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A fragilidade da legislação concernente à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil
Tiago Emboava Dias*
A
Constituição Federal de 1988 concebeu um novo enfoque sobre os princípios pelos
quais as normas anteriores que regulavam direitos e garantias de crianças e
adolescentes se norteavam, assimilando a doutrina da proteção integral em seu
bojo, segundo a qual a criança é vista como cidadã, não mais se afigurando como
mero objeto de assistência ou pessoa em potencial, mas sujeito de direito,
destinatário de proteções específicas e prioritárias, necessárias ao seu
desenvolvimento.
O
texto constitucional, no Título VIII, em seu Capítulo VII - Da família, da
criança, do adolescente e do idoso - preconiza:
Art.
227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
[...]
§
4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da
criança e do adolescente.
A
despeito da norma constitucional, um dos obstáculos ao combate à exploração
sexual infanto-juvenil e suas variadas dimensões é a falta de dispositivos
legais específicos na legislação infraconstitucional, que vislumbrem todas as
suas nuances. De um lado temos o Código Penal, datado de 1940; de outro, a Lei
n° 8.069 de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Porém, nenhum deles é capaz de suprir com absoluta eficácia as complexidades
inerentes a esta modalidade criminosa.
No
que se refere ao Código Penal, é possível constatar que o mesmo encontra-se
defasado da realidade há mais de seis décadas. Muitas alterações foram feitas e
muitas propostas estão sendo submetidas ao trâmite legal, porém, sua base
filosófica continua a mesma de mais de sessenta anos atrás, o que enseja uma
série de discussões para a sua atualização.
Em
obediência aos critérios estabelecidos para a capitulação dos crimes, os
sexuais foram ordenados na categoria de Crimes contra os Costumes.
De
acordo com Júlio Fabbrini Mirabete, o capítulo intitulado Crimes contra os
Costumes protege o indivíduo no que concerne à sua maturidade e liberdade
sexual, combate à corrupção e à prostituição, bem como tutela o pudor público e
individual. Aduz o autor, ainda, que este sentimento é a base que a
coletividade utiliza na elaboração de normas sobre a moral e os costumes,
obedecendo aos critérios ético-sociais vigentes para evitar fatos que sigam de
encontro a estes princípios e lesem interesses do indivíduo, da família e da
sociedade . [01]
No
entanto, sem instrumentos eficazes da legislação ordinária, a proteção à
criança e ao adolescente no que tange à exploração sexual depara-se com
dispositivos legais direcionados somente ao denominado rufião, os quais, tanto
na teoria quanto na prática, são inócuos em relação àquele que efetivamente
usufrui dela, o cliente.
A
ausência de tipificação que sustente a instrução criminal contra essa figura
demonstra a incompatibilidade entre a gravidade do delito praticado e a
previsão legal vigente.
Diante
da atual legislação infraconstitucional, o texto da Carta Magna não encontra
correspondência ao que pretende. A Lei n° 8.069/90, que instituiu o ECA, elenca
dezessete tipos penais cujo sujeito passivo é a criança ou o adolescente,
alternadamente ou em conjunto. Porém, é omissa em relação ao tráfico
internacional, limitando-se à tipificação de condutas com incidência no caso.
É
o que se observa no exame de seu art. 239, que prevê promover ou auxiliar a
efetivação de ato destinado ao envio de crianças e adolescentes para o exterior
com a inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro. Deste
modo, resta à legislação penal o encaixe das hipóteses que o tipo abrange.
Há
de se ressaltar que, até março do ano 2005, as dificuldades eram ainda maiores
em face da restrição do elemento típico do art. 231 do Código Penal que
disciplinava a modalidade criminosa do "tráfico de mulheres". O
advento da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, deu nova redação ao artigo,
que passou a "tráfico internacional de pessoas" e também inseriu uma
nova figura delitiva através do art. 231-A, o "tráfico interno de
pessoas".
Não
há dúvida de que esta reforma foi um grande passo no combate ao crime
organizado, posto que a falta de um tipo penal a incidir diretamente sobre a
matéria obstruía em muito a atuação do Estado contra o tráfico de seres humanos,
pois a resposta penal dependia do sexo do sujeito passivo [02].
Por
outro lado, a condição do sujeito passivo do tráfico de seres humanos ser a
criança ou o adolescente torna o enquadramento da conduta pendente entre o
Estatuto e o Código Penal. Senão vejamos o que este diz:
Art.
231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de
pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no
estrangeiro:
Pena
- reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
§
1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do art. 227:
Pena
- reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.
§
2o - Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de
reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.
Encontrando-se
a conduta do autor voltada à prostituição da vítima, seja ela criança ou
adolescente, torna-se pacífico o enquadramento típico no artigo supra, apesar
da ambivalência entre o Código Penal, que guarda a definição do crime cujos
elementares são a pessoa e a prostituição, e o Estatuto da Criança e do
Adolescente, que abriga em seu bojo os delitos praticados contra a criança e o
adolescente.
Tomando
o Estatuto da Criança e do Adolescente como específico no tratamento da pessoa
menor de dezoito anos, não se haveria de preteri-lo pelo Código Penal.
Contudo,
diante da nova redação que foi dada pela Lei nº 11.106, de 2005, a conduta
tipificada pelo artigo 231 do diploma penal passou também a abranger o crime
praticado contra a criança e o adolescente - independentemente de gênero -
cominando penas diferenciadas; de um lado, o parágrafo primeiro prevê reclusão
de quatro a dez anos, além de multa, se a conduta do agente foi praticada
contra pessoa menor de dezoito anos e maior de catorze; de outro, o parágrafo
segundo prescreve pena de cinco a doze anos no caso de emprego de violência,
grave ameaça ou fraude, bem como pena de multa e aquela correspondente à
violência, resguardando assim as pessoas menores de catorze anos, presumida a
violência.
Na
hipótese do agente limitar sua conduta ao envio de criança ou adolescente ao
exterior sem o propósito de prostitui-los, deve-se enquadrar a conduta no art.
239 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prescreve:
Art.
239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou
adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o
fito de obter lucro:
Pena
- reclusão de quatro a seis anos, e multa.
Do
dispositivo percebe-se que o mesmo deixa de acobertar determinadas situações, o
que gera problemas em seu enquadramento típico, v.g., o envio de criança
ou adolescente para o exterior em obediência às formalidades legais, ou que não
tenha como fito a obtenção de lucro; neste caso não se aplica o tipo previsto
no ECA, face a ausência de elemento típico, mas sim na conduta prevista pelo
art. 231 do Código Penal, contanto que haja conhecimento por parte do autor de
que o deslocamento da vítima visa sua prostituição.
Inexistindo
este, resta a possibilidade de enquadramento do fato no delito previsto pelo
art. 245 do Código Penal, desde que a conduta envolva ato realizado pelo
progenitor. Eis o texto da lei:
Art.
245 - Entregar filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia
saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo:
Pena
- detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
8.1
A ação penal nos crimes contra os costumes
As
diretrizes que norteiam a classificação subjetiva da ação penal encontram-se no
Título VII do Código Penal, nos artigos 100 e seguintes. Primordialmente, a
ação penal é definida como pública, mas sujeita a exceções nas quais a lei a
declarará privativa do ofendido.
Essa
ação penal pode ser de três tipos, a depender do crime em questão, quais sejam:
a)
Ação Penal Pública Incondicionada - o crime é considerado contra toda a
sociedade, passível de ser iniciado por qualquer meio, posto que o titular da
ação é o Estado. Basta a simples notícia do crime (notitia crimine) para
que a mesma seja iniciada.
b)
Ação Penal Pública Condicionada - como o próprio nome sugere, esse tipo de ação
continua tendo o Estado como titular. Considera-se como de interesse de toda a
sociedade, porém espera-se da vítima ou seu representante legal a denúncia
formal do fato ao Estado para que este inicie a ação penal, sob pena desta ser
considerada nula. A intenção é a de preservar a vontade do ofendido em provocar
o Judiciário ou não.
c)
Ação Privada - nesta o ofendido ou seu representante legal são os titulares da
ação. São crimes que atingem apenas a esfera privada da vítima, cabendo a esta
decidir por apurar o fato e punir os autores ou relevar o ocorrido, a pretextos
particulares [03].
Na
linha daquilo que preconiza o art. 100 do Código Penal, no que se refere às
exceções pelas quais a lei comuta a ação penal de pública para privada, o art.
225 deste diploma legal condiciona a atuação do Estado contra os crimes contra
a liberdade sexual e o de corrupção de menores – este em especial para o
presente estudo – ao oferecimento de queixa por parte da vítima. Senão vejamos:
Art.
225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede
mediante queixa.
§
1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I
- se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem
privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II
- se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto,
tutor ou curador.
§
2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público
depende de representação.
Deste
modo, o crime denominado "corrupção de menores", disciplinado no
artigo 218 do Códex Penal, fica à mercê do particular em oferecer sua
representação ao Ministério Público, o que condiciona e dificulta a aplicação
da lei, posto que, em muitos casos de exploração sexual comercial, pais e mães
exercem o papel de cafetões dos próprios filhos, sustentando-se dessa prática.
Por
óbvio a lei abre exceções. No caso da família ser pobre e não poder arcar com
os honorários advocatícios, a ação passa a ser pública condicionada e no caso
do crime ser praticado com abuso do pátrio poder – atual poder familiar – ou na
qualidade de tutor ou curador, a ação é pública incondicionada.
Em
conseqüência disto, tal dispositivo dificulta em muito a ação do parquet,
ainda mais pelo fato de criar a possibilidade de os denominados clientes da prostituição
infanto-juvenil, quando acionados por investigações, persuadirem as famílias
por quaisquer meios, para que estas retirem do Ministério Público o poder de
propor a respectiva denúncia.
8.2
A questão da idade
O
artigo II do Estatuto da Criança e do Adolescente define como criança "a
pessoa até doze anos de idade incompletos", e adolescente "aquela
entre doze e dezoito anos de idade". Essa delimitação esclarece a
distinção entre adulto, criança e adolescente, ao mesmo tempo em que estabelece
o limite para a proteção contra a exploração sexual.
Na
análise da Lei 8.069/90, observa-se a ausência de dispositivo específico que
coíba a prática da exploração sexual no que tange ao tráfico de crianças e
adolescentes. O artigo 83 da supracitada Lei estabelece:
Art.
83. Nenhuma criança poderá viajar para fora da comarca onde reside,
desacompanhada dos pais ou responsáveis, sem expressa autorização judicial.
Tal
dispositivo busca proteger as pessoas de até doze anos, não lhes permitindo
sair da comarca onde residem desacompanhadas de seus pais ou responsáveis, mas
exclui a figura do adolescente, que só será enquadrado em hipóteses de viagens
ao exterior.
Nesse
esteio, a tipificação fica aquém da realidade pois, de acordo uma das
principais pesquisas realizadas sobre o assunto em nosso país, a Pesquisa sobre
Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual
Comercial no Brasil (PESTRAF) [04], a maior parte das denúncias de
tráfico referem-se a vítimas entre doze e dezoito anos de idade.
Com
base neste dado, pode-se concluir que os principais alvos do aliciador são
pessoas dentro da faixa etária que delimita a adolescência e, mesmo que haja
concordância plena em relação à idade de dezoito anos, continua demasiadamente
subjetivo o consenso sobre a definição de um adolescente sexualmente
desenvolvido e a de uma criança impúbere.
Outro
problema é a brandura com que o artigo 251 do Estatuto, em correspondência aos
artigos 83, 84 e 85, sanciona a pessoa ou empresa que efetua o transporte de
crianças ou adolescente nas circunstâncias dos artigos supra. Tal conduta é
enquadrada como mera infração administrativa, cominando pena de multa que varia
de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro no caso de
reincidência.
Isso
demonstra que o Estatuto da Criança e do Adolescente não impõe a
responsabilidade necessária e evidente às empresas de transportes e deixa de
coibir a remessa de adolescentes para outros municípios e estados, visto que
não exige autorização judicial ou acompanhamento dos pais ou responsáveis, nos
mesmos termos adotados para as crianças. Para suprir esta lacuna, a conduta
discriminada há de ser enquadrada como crime de tráfico interno de pessoas,
previsto no Código Penal.
8.3
Os crimes de exploração sexual no Estatuto da Criança e do Adolescente
O
Estatuto possui outros artigos que descrevem crimes praticados contra crianças
e adolescentes, estabelecendo a pena para cada caso. Os que se referem à
exploração sexual são os seguintes:
Art.
240. Produzir ou dirigir representação teatral, televisiva ou película
cinematográfica, utilizando-se de criança ou adolescente em cena de sexo explícito
ou pornográfica:
Pena:
reclusão de um a quatro anos, e multa.
Parágrafo
Único: Incorre na mesma pena quem, nas condições referidas neste artigo,
contracena com criança ou adolescente.
Art.
241. Fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo
criança ou adolescente:
Pena:
reclusão de um a quatro anos.
Art.
244 - A - Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art.
2o desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual.
Pena
- reclusão de quatro a dez anos e multa.
1º
- Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo
local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas
referidas no caput deste artigo;
2º
- Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de
localização e funcionamento do estabelecimento.
Este
último artigo foi acrescentado ao dispositivo penal em junho do ano 2000. É de
se verificar que o legislador, pela primeira vez, assumiu o crime de exploração
sexual, atribuindo a este uma pena máxima equivalente aos crimes de estupro e
atentado violento ao pudor.
Todavia,
não há dispositivo que trate incisivamente da questão da pornografia infantil
na internet, situação esta que ocorre com extrema freqüência.
Em
segunda análise, a implementação do art. 244-A, deixa transparecer a
possibilidade de os artigos anteriores que tratam da exploração sexual infantil
estarem tacitamente revogados, à medida que parecem ser absorvidos pelo texto
daquele artigo.
Porém,
é contraditória a discrepância entre as penas aplicadas pelos artigos 240 e
241, que tratam da produção de mídia pornográfica infanto-juvenil, e aquela
cominada pelo artigo 244-A; enquanto aqueles prevêem pena mínima de um ano,
este impõe uma pena mínima de quatro anos, muito mais coerente com a dimensão
alcançada pelo crime de exploração sexual.
Resta
razoável, então, a aplicação do disposto no art. 244-A, nas hipóteses do agente
concorrer na criação ou direção de produção teatral, televisiva ou
cinematográfica que envolva a participação de criança ou adolescente, ou nos
casos em que o agente fotografe ou publique imagens destas em contexto erótico
ou pornográfico, pois tais hipóteses remetem a uma espécie do gênero que a
exploração sexual infanto-juvenil envolve.
8.4
Posições doutrinárias acerca da presunção de violência nos crimes sexuais
praticados contra crianças e adolescentes
Nota-se
muito distinto o tratamento dado pela sociedade aos sujeitos que integram a
relação da prostituição infanto-juvenil. Aos rufiões e gigolôs aplica-se a lei,
pois a mesma é estritamente direcionada a estes; quanto aos clientes, que
fomentam este mercado, não há dispositivo legal que trate expressamente da
conduta destes. Às crianças e aos adolescentes vítimas da exploração sexual, é
reservado um tratamento absurdamente incoerente às suas condições, como
demonstra a jurisprudência dos tribunais pátrios, que colocam em xeque a
presunção de violência contra jovens iniciados na vida do meretrício,
privando-os de seu direito à justiça.
É
o que se apreende das decisões abaixo transcritas:
1
- Os temas tratados nos julgados em confronto são diversos, pois enquanto o
acórdão recorrido, com base no exame aprofundado da prova, concluiu que o réu
era inocente porque o tipo de relacionamento mantido com as menores já fazia
parte da rotina delas, não acrescentando nenhum conhecimento novo sobre o
assunto, o paradigma, admite expressamente graus de corrupção. Inexiste,
portanto, divergência a ser dirimida.
2
- Recurso especial não conhecido. (STJ - Rel. Fernando Gonçalves - DJ
DATA:24/05/1999 PÁGINA:207 - STJ000265672).
No
crime de estupro, a presunção de violência prevista no art. 224, a, do CP é
relativa. Assim, pode ser afastada se a vítima, ainda que com 12 anos de idade,
não era ingênua ou inexperiente e tinha capacidade de autodeterminação, com clara
ciência da importância do ato que praticara (STJ - REsp. - Rel. Edson Vidigal -
j. 13.10.1998 - RT 762/580).
Há
de se ressaltar que não é esta a posição majoritária de nossos colendos
tribunais. Mas apoiados nesta corrente, diversos juristas defendem a
relatividade da presunção de violência, sob o pretexto de que a lei não
condiciona expressamente a sua natureza.
Esta
assertiva, aliada ao fato de que as demais alíneas carregam em si a hipótese de
presunção relativa através de interpretação sistemática, levaria à conclusão de
que a presunção de violência contra o menor de quatorze anos seria igualmente
relativa.
Aqueles
que comungam dessa opinião ainda enfatizam a existência de adolescentes com
menos de quatorze anos já munidos da malícia sexual e de suas conseqüências, de
forma que a presunção de violência deve ceder diante da experiência sexual
anterior do jovem em questão, por sua suposta autodeterminação sexual, ou por
seu demasiado desenvolvimento corporal, que conduziria o agressor ao erro de
tipo.
Na
contramão, a corrente mais tradicional e conservadora coloca a presunção como
absoluta sob o argumento de que a iniciação sexual precoce da criança menor de
quatorze anos não implica em desenvolvimento psicológico suficiente para que
compreenda as conseqüências de tais atos; alegam, ainda, que a idade da vítima
surge como parte do próprio tipo penal, havendo uma verdadeira norma de
extensão. Tal entendimento encontra guarida nas decisões de nossas Cortes, nas
quais a presunção do art. 224, ‘a’, do Código Penal é absoluta e
constitucional.
Adotar
o caráter absoluto da violência presumida nos crimes sexuais cometidos contra
menores de quatorze anos não é ignorar a realidade que nos circunda; pelo contrário,
é reconhecê-la, admitindo a existência da prostituição infantil e a condição
irrevogável de crianças e adolescentes como vítimas de um crime praticado por
adultos – salvo exceções nas quais o jovem prostitui-se por conta própria, ou
tendo como rufião outro adolescente.
8.5
Da ausência da figura do cliente nos crimes de lenocínio
Dentro
do contexto da exploração sexual infanto-juvenil, o Código Penal brasileiro
também visa o resguardo da criança e do adolescente através de artigos que
tipificam a conduta do aliciador, sujeitos a majorantes - embora, como
ilustrado anteriormente, a de presunção de violência não tenha absoluta
acolhida em nossos julgados.
A
conduta do agente que incorre no crime de lenocínio remete a quatro tipos
penais contidos no título sexto, capítulo quinto, do Código Penal, quais sejam:
a mediação para servir a lascívia de outrem, o favorecimento da prostituição, a
manutenção de casa de prostituição e o rufianismo.
Não
há um entre estes que deixe de tipificar a conduta praticada por aliciadores e
gigolôs, figuras ativas na exploração sexual de crianças e adolescentes. Porém,
não é possível dizer o mesmo sobre a criminalização da conduta do cliente; na
melhor das hipóteses, esta poderá ser enquadrada através da interpretação da
norma. São os seguintes artigos:
Mediação
para servir a lascívia de outrem
Art.
227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena
- reclusão, de um a três anos.
§
1o Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos,
ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão,
tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de
tratamento ou de guarda:
Pena
- reclusão, de dois a cinco anos.
§
2º - Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena
- reclusão, de dois a oito anos, além da pena correspondente à violência.
§
3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
Favorecimento
da prostituição
Art.
228 - Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que
alguém a abandone:
Pena
- reclusão, de dois a cinco anos.
§
1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do artigo anterior:
Pena
- reclusão, de três a oito anos.
§
2º - Se o crime, é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena
- reclusão, de quatro a dez anos, além da pena correspondente à violência.
§
3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
Casa
de prostituição
Art.
229 - Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar
destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou
mediação direta do proprietário ou gerente:
Pena
- reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Rufianismo
Art.
230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus
lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:
Pena
- reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§
1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do art. 227:
Pena
- reclusão, de três a seis anos, além da multa.
§
2º - Se há emprego de violência ou grave ameaça:
Pena
- reclusão, de dois a oito anos, além da multa e sem prejuízo da pena
correspondente à violência.
Os
núcleos penais contidos nos artigos supra são nitidamente direcionados à
conduta do aliciador, intermediário na relação a ser estabelecida entre a
vítima e o usufrutuário.
Digna
de nota, porém, a redação do artigo 228, formada por quatro núcleos verbais
que, se apreciados em seu mais puro significado, podem incluir a figura do
cliente no pólo ativo da conduta. São eles: induzir, atrair, facilitar, ou
impedir o abandono da prostituição.
Embora
seja este mais um dispositivo direcionado ao aliciador, parece razoável
entender os núcleos verbais formalizados pelas expressões "atrair" e
"impedir" como condutas próprias do cliente.
Do
ponto de vista prático, tal proceder funciona como estímulo à permanência da
criança ou do adolescente no mercado do sexo pago, através do pagamento pelos
serviços sexuais prestados.
Da
mesma forma que na prostituição exercida por adultos, a figura do cliente, que
paga pelos serviços sexuais de crianças e adolescente, passa despercebida, numa
clara demonstração de conivência da legislação com a cultura machista e
preconceituosa que impregna a sociedade como um todo [05].
É
nitidamente lógica a correlação entre oferta e demanda no mercado do sexo pago;
por conseguinte, não há dúvida de que não existiria a prostituição infantil se
não houvesse pessoas dispostas a pagar pela degradação moral destes jovens.
8.6
Da suspensão condicional do processo
Como
instituto despenalizador previsto pelo art. 89, da Lei nº 9.099 de 26 de
setembro de 1995, a suspensão condicional do processo permite aos acusados de
crimes cujas penas mínimas não excedam a um ano, a sustação do curso de seus
processos por um lapso temporal compreendido entre dois e quatro anos, mediante
o cumprimento de exigências legais. Findo esse período e preenchidas as
condições, o processo é extinto sem que seu mérito seja julgado.
Em
tese, sua proposição cabe exclusivamente ao Ministério Público, apesar de sua
iminente natureza jurídica de direito penal público subjetivo de liberdade.
Nesse liame, o professor Damásio de Jesus preconiza que, desde que preenchidas
as condições determinadas em lei, a suspensão condicional do processo configura-se
como direito do acusado, deixando de ser mera faculdade do parquet [06].
Da
maneira como foi ditado, tal instituto incide sobre diversos tipos penais,
inclusive naqueles elencados em leis penais extravagantes, como o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
E,
como é possível observar em todo o acima exposto, muitos dos crimes tratados
neste trabalho possuem pena mínima cominada em um ano ou menos, o que os coloca
na área de abrangência do art. 89 da Lei 9.099/95.
Criado
para ampliar o rol de possibilidades de penas alternativas às privativas de
liberdade – indiscutivelmente uma evolução no direito penal - o instituto da
suspensão condicional do processo acaba por ser prejudicial ao combate da
exploração sexual infanto-juvenil, na medida em que grande parte dos processos
por crimes correlacionados à sua prática torna-se passível de ser suspensa,
fato que incrementa ainda mais a cultura de impunidade que impregna tais atos
delituosos.
BIBLIOGRAFIA
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São Paulo: Ed. Saraiva, 1996.
* bacharelando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (SP)
DIAS, Tiago Emboava. A fragilidade da legislação concernente à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 901, 21 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7681>. Acesso em: 14 nov. 2006.