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A violência doméstica como
violação dos direitos humanos
Stela
Valéria Soares de Farias Cavalcanti*
SUMÁRIO: I.
INTRODUÇÃO. 2. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO OBSTÁCULO À FRUIÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS. 2.1. Os direitos humanos fundamentais. 2.2 A proteção aos direitos
humanos segundo a Constituição de 1988. 2.3. Evolução histórica da vitimologia.
2.4. A vitimologia e os direitos humanos caminham juntos. 2.5. A vítima no
sistema penal brasileiro. 2.6. Vitimização e sobrevitimização. 3. VIOLÊNCIA DE
GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 3.1. A Violência. 3.2. Conceito de Violência de
gênero. 3.3. Conceito de Violência doméstica. 4. A VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA: BERÇO
DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE. 4.1. A importância da família na formação do ser
humano. 4.2. Infância vítima de violência. 4.3 A violência doméstica como uma
das causas da violência na sociedade. 5. A CIDADANIA DA VÍTIMA DOS DELITOS
DOMÉSTICOS.5.1. A cidadania. 5.2. A cidadania das mulheres vítimas de crimes
domésticos e de gênero. 5.3 Perfil da mulher vítima de crimes domésticos. 5.4.
Perfil do agressor. 5. ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO NO COMBATE À VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA 5.1. O poder público frente à problemática da violência de gênero e
doméstica 5.2. O papel das Delegacias da Mulher no Brasil 5.3. O papel dos
Centros de Apoio às vítimas de crimes 5.4. Metodologia de atendimento pelos
Centros de Apoio 5.5 Dados estatísticos sobre violência doméstica na América
Latina 6. A JUSTIÇA PENAL CONSENSUADA 6.1. Direito Comparado 6.2. Modelo
brasileiro de justiça penal consensuada 6.3. A Lei n. 10.886/2004 7. A LEI N.
9.099/95 E OS JUIZADOS ESPECIAIS 7.1. Breve histórico sobre a criação dos
Juizados Especiais Criminais no Brasil 7.2. O modelo de justiça criminal
adotado no Brasil e os Juizados Especiais 8. BIBLIOGRAFIA.
1.
INTRODUÇÃO
A
violência doméstica é um dos mais graves problemas a serem enfrentados pela
sociedade contemporânea. É uma forma de violência que não obedece a fronteiras,
princípios ou leis. Ocorre diariamente no Brasil e em outros países apesar de
existirem inúmeros mecanismos constitucionais de proteção aos direitos humanos.
Por
essa razão, em 17 de junho de 2004, foi sancionada a lei n. 10.886/04,
acrescentando um novo tipo ao artigo 129 do Código Penal – a violência
doméstica, como meio de conter o avanço dessa manifestação de violência na
família.
Apesar
de a Constituição Federal de 1988 ter incluído entre seus princípios
fundamentais a dignidade da pessoa humana, o direito penal e processual penal
pátrios ainda se preocupam em demasia com o crime e com o criminoso, deixando
de lado quem mais necessita de assistência e apoio: a vítima.
A
Vitimologia contemporânea tem apresentado propostas para assegurar o direito
fundamental à vida e à integridade física da vítima penal. Exemplo disso são os
programas de assistência às vítimas de crime, mudanças legislativas que
valorizem a atuação da vítima na justiça criminal e a criação de instrumentos
jurídicos que assegurem a reparação do dano, no plano civil e penal. Com base
em seus fundamentos foram criados em todo o Brasil os Centros de Apoio às
Vítimas de Crimes - instituição que visa a reestruturar a vítima de crime e sua
família, para o retorno ao convívio social, fornecendo apoio assistencial,
psicológico e jurídico, metodologia e organização que veremos com vagar mais
adiante.
Preocupadas
com as estatísticas alarmantes da ocorrência dos delitos domésticos,
instituições públicas e organizações não-governamentais discutem o problema e
tentam contribuir para a minimização dos efeitos avassaladores que a violência
na família acarreta aos seres humanos, especialmente mulheres e crianças.
Os
dados são alarmantes. Em 1984, a Espanha registrou 16.070 denúncias de maus
tratos encaminhadas à polícia. Segundo o Ministério do Interior, cada ano se
apresenta no País uma média de 18.000 a 20.000 denúncias por maus tratos
físicos e psíquicos a mulheres e estes números representam apenas 10% do total
de casos que se produzem anualmente na Espanha. Isto significa uma cifra
negativa de mais de 200.000 agressões silenciadas. [01]
Os
países árabes, a exemplo da Arábia Saudita em que a religião muçulmana impõe
uma série de restrições à fruição dos direitos fundamentais pelas mulheres, no
mês de abril de 2004, divulgou através do jornal Arab News fotos da agressão
sofrida pela apresentadora da TV saudita Rania al-Braz, que sofreu 13 fraturas
e foi hospitalizada após ser brutalmente espancada por seu esposo; isso
demonstra que até os países árabes já começaram a se preocupar com a repressão
da violência doméstica. [02] Segundo informações colhidas na revista
francesa L’Express, que divulgou a notícia na França, o agressor será
processado por tentativa de homicídio.
No
Brasil a situação não é diferente. Apesar de não haver estatísticas oficiais,
algumas organizações não-governamentais de apoio às mulheres e crianças vítimas
de maus tratos apresentam números assustadores da violência doméstica. Segundo
relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a questão
da violência contra a mulher, em 1993, mais de 70% de todos os casos
denunciados de violência contra a mulher ocorrem no lar. [03]
Estima-se que a cada 4 (quatro) minutos uma mulher seja vítima de violência
doméstica [04]. Em São Paulo, os dados das Delegacias Especializadas
demonstram que, em 84,3% dos casos de delitos domésticos, as vítimas são do
sexo feminino. Dos 849 inquéritos policiais em instaurados na 1.ª e 3.ª
Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo, entre 1988 e 1992, 81,5% se referem
a lesões corporais dolosas. [05]
A
situação se repete em outras capitais. Apesar disso, o Brasil ainda caminha a
passos lentos na busca de soluções para enfrentar o problema. Alguns fatores
contribuem para o aumento da impunidade: a) por ocorrer no seio familiar, esse
é um tipo de violência que é difícil de ser diagnosticado; b) não existem
estatísticas oficiais precisas para demonstrar as causas do problema; c) as
políticas públicas desenvolvidas até agora têm se mostrado insuficientes para
evitar ou minimizar o sofrimento das vítimas da violência; d) a legislação
brasileira ainda e preocupa demasiadamente com o réu em detrimento da vítima.
Em
recente pesquisa realizada pelo Alô Senado em 27 capitais brasileiras, constatou-se
que 17% das entrevistadas reconheceram já ter sofrido algum tipo de violência
doméstica, desse total, 54% afirmaram ter sofrido violência física, seguida da
violência psicológica (24%), violência moral (14%) e 7% assumiram ter sofrido
violência sexual doméstica. Constatou-se também que 4 em cada 10 mulheres
afirmaram já ter presenciado algum tipo de violência contra outras mulheres.
Deste total, 80% foram descritas como violências físicas [06].
A
violência doméstica atinge milhares de mulheres e crianças todos os dias no
Brasil e no Mundo. São alvo tanto as vítimas diretas como as crianças que
presenciam agressões entre seus genitores.
Os
números alarmantes relativos à violência doméstica levaram à Organização
Mundial de Saúde a reconhecer a gravidade que o fenômeno representa para a
saúde pública e recomendar a necessidade de efetivação de campanhas nacionais
de alerta e prevenção.
Um
dos maiores desafios da democracia brasileira é o de criar condições para que
todos os cidadãos tenham efetivamente os mesmos direitos, as mesmas garantias e
as mesmas oportunidades de participar da construção do país.
Porém,
as estatísticas demonstram que, no Brasil, a perspectiva universalista de
igualdade de direitos não tem se mostrado suficiente para que o ordenamento
jurídico assegure a equidade desejada entre homens, mulheres, brancos, índios e
negros. O problema está na desigualdade social e econômica cujas conseqüências
levam à prática da violência doméstica e outras violações aos direitos
fundamentais.
Tal
desigualdade está estampada nos dados sócio-econômicos da sociedade brasileira.
Quando considerados à luz de indicadores como raça/étnica e gênero, essas
diferenças ganham novos contornos e as desigualdades são ampliadas, sobretudo
quando se observa a situação de grupos historicamente excluídos, de que são
exemplos as mulheres negras e as indígenas.
Diante
desse cenário, para que ocorra a efetivação da equidade social e de gênero,
torna-se necessário conciliar o princípio universalista da igualdade com o
reconhecimento das necessidades específicas de grupos historicamente excluídos
e culturalmente discriminados.
Ao
analisar 83 processos que tramitaram entre 1984 e 1989 em varas criminais e no
Tribunal do Júri no Fórum Regional de Santo Amaro, em São Paulo, WÂNIA PASINATO
IZUMINO, concluiu que:
As
estatísticas sobre o perfil dos vitimados por violência são eloqüentes a
respeito do maior grau de insegurança doméstica para a população feminina, a
porcentagem de mulheres atacadas por parentes e conhecidos é significativamente
maior do que aquela agredida por estranhos (esta tendência se inverte no caso
masculino). Na maioria dos casos o local da ocorrência é a residência da
vitima. [07]
No
plano internacional, o Brasil é parte signatária de tratados e convenções
internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos. Isso não impede a
existência de violações que precisam ser prevenidas e reprimidas mediante a
ação ordenada do Poder Público.
Nesse
sentido, a Recomendação Geral n. 19/92, intitulada "A violência contra a
mulher", aprovada pelo Comitê que monitora a CEDAW, [08] dispõe
que a definição de discriminação contra a mulher, prevista no art. 1.º da
Convenção, inclui a violência baseada no sexo, a violência perpetrada por
autoridades públicas e por quaisquer pessoas, organizações, e que os Estados
também podem ser responsáveis por atos privados se não adotarem medidas com a
devida diligência para impedir a violação dos direitos ou para investigar e
castigar os atos de violência e indenizar as vítimas. [09]
Procurar-se-á
neste artigo que os direitos humanos das mulheres, no âmbito da legislação
brasileira, devem ser considerados na perspectiva da discriminação e da
violência. Discriminação e violência são partes de um mesmo binômio, como faces
da mesma moeda. Discriminação e violência se retro-alimentam na medida em que a
discriminação das mulheres (a prática da exclusão) justifica as agressões (a
prática da violência) e vice-versa.
No
Brasil a violência contra a mulher não encontra limites de idade, condição
social, etnia e religião. Suas manifestações são variadas e muitas encontram
fortes raízes culturais. Entre as formas mais freqüentes pode-se destacar as
agressões físicas, sexuais e de caráter emocional.
Embora
atos de violência contra a mulher ocorram em todas as esferas da vida social,
seja pública (assédio moral e sexual), ou privada (violência doméstica), as
práticas que adquiriram maior visibilidade social são aquelas que ocorrem
dentro de casa.
A
violência doméstica é um fenômeno perverso que afeta mulheres, crianças e
idosos com sérias conseqüências não só para o seu pleno desenvolvimento, mas
também comprometendo o exercício da cidadania e dos direitos humanos.
O
Brasil que se quer é o Brasil de todos e para todos, sem exclusões. Um país
onde a batalha para a erradicação da pobreza saiba atribuir a necessária
prioridade à dimensão de gênero. Um país onde não exista um enorme conjunto de
mulheres cuja existência se traduz, no cotidiano, na mais dura imagem da
pobreza, da doença, da carência, da marginalização social e da violência. Um
país onde não se tolere a violência doméstica.
2.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO OBSTÁCULO À FRUIÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
2.1.
Os direitos humanos fundamentais
O
Direito Internacional dos Direitos Humanos é recente na história contemporânea,
tendo surgido no Pós-Guerra como resposta às atrocidades cometidas durante o
nazismo. É naquele cenário que se desenvolve o esforço de reconstrução dos
direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a ordem
internacional contemporânea.
Uma
das principais preocupações desse movimento foi converter os direitos humanos
em tema de legítimo interesse da comunidade internacional. Diante da crescente
consolidação do positivismo concernente aos direitos humanos, pode-se afirmar
que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos invocam,
sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na
medida em que celebram o consenso internacional acerca de temas centrais à
dignidade humana.
O
processo de universalização dos direitos humanos propiciou a formação de um
sistema normativo internacional de proteção. Fundado no valor da primazia da
pessoa humana, esse sistema interage com o sistema nacional de proteção, a fim
de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e proteção de direitos
fundamentais.
Em
1974, iniciaram-se os trabalhos de elaboração da Convenção sobre a Eliminação
de todas as formas de discriminação contra a Mulher. Em 18 de dezembro de 1979,
após cinco anos de intensos trabalhos, com a decisiva participação de mulheres
e grupos da sociedade civil, a Assembléia Geral da ONU aprovou, por meio da
resolução 34/180, o texto daquela Convenção. Em setembro de 1981, com o
deposito o vigésimo instrumento de ratificação, a Convenção entrou em vigor.
A
Convenção impõe aos Estados-Partes uma dupla obrigação: eliminar a
discriminação e assegurar a igualdade. A Convenção, portanto, consagra duas
vertentes fundamentais: a vertente repressiva-punitiva (proibição da discriminação)
e a vertente positiva-promocional (promoção da igualdade).
Essa
convenção foi ratificada pelo Brasil em 1984. Trata-se do instrumento
internacional de direitos humanos que mais recebeu reservas pelos Estados. O
Estado brasileiro formulou 15 reservas que só foram eliminadas em 1994, quando
a convenção foi integralmente ratificada.
A
constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significou mera
enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir
dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Estado para a
concretização da democracia.
ANTONIO LUÑO [10]
entende que:
los
derechos fundamentales aparecem, por tanto, como la fase más avanzada del proceso
de positivación de los derechos naturales en los textos constitucionales del
Estado de Derecho, proceso que tendría su punto intermedio de conexión en los
derechos humanos.
O
Estado brasileiro também ratificou relevantes tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos, sendo exemplos: a Convenção Americana de
Direitos Humanos "Pacto de San José da Costa Rica", em 25 de janeiro
de 1992 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher "Convenção de Belém do Pará",em 27 de
novembro de 1995 que endossam o dever de assegurar a igualdade e proibir a
discriminação, a fim de que se alcance o pleno exercício dos direitos humanos.
Modernamente,
a doutrina apresenta a classificação de direitos fundamentais de primeira,
segunda e terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que
passaram a ser constitucionalmente reconhecidos.
Manoel
Gonçalves Ferreira Filho conclui que "a primeira geração seria a dos
direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim,
completaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e
fraternidade". [11]
Assim,
os direitos humanos fundamentais podem entendidos como o conjunto de direitos e
garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua
dignidade, por meio de proteção contra o arbítrio do poder estatal e o
estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
humana.
1.2
A proteção aos direitos humanos segundo a Constituição de 1988.
Rompendo
com a ordem jurídica anterior, marcada pelo autoritarismo advindo do regime
militar, que perdurou no Brasil de 1964 a 1985, a Constituição brasileira de
1988, no propósito de instaurar a democracia no país e de institucionalizar os
direitos humanos, fez uma verdadeira revolução na ordem jurídica nacional,
passando a ser o marco fundamental da abertura do Estado brasileiro ao regime
democrático e da normatividade internacional de proteção aos direitos humanos.
Para Dino Pasini [12]:
"La
concepción de los derechos del hombre es uma concepción histórica, dinámica que
implica el progresivo reconocimiento, el respecto y la tutela jurídica del
hombre considerado en su integridad como individuo y persona irrepetible, como
ciudadano y como trabajador y, por tanto, no sólo de los derechos personales...
de los derechos civiles y políticos... sino también de los derechos
económicos-sociales y culturales.
A
Carta de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a dignidade da pessoa humana
a princípio fundamental (art. 1.º, III), instituindo, com esse princípio, um
novo valor que confere suporte axiológico a todo o sistema jurídico e que deve
ser sempre levado em conta, quando se trata de interpretar qualquer das normas
constantes do ordenamento jurídico nacional.
No
que concerne às declarações adotadas pelo Brasil, citam-se como exemplos:
Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas
de 20/11/1959; a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às
Vítimas da Criminalidade e de abuso de poder; a Declaração de Pequim, adotada
pela quarta Conferência Mundial sobre Mulheres: ação sobre igualdade,
desenvolvimento e paz, de 1995, entre outras.
Apesar
de existirem leis, declarações e tratados internacionais de proteção aos
direitos humanos, sabe-se que constantemente são violados. Quando um ser
humano, seja criança, adolescente ou mulher é vítima de violência doméstica os
pilares de sustentação da justiça são fortemente abalados.
Norberto
Bobbio, [13] corroborando esse entendimento, diz que:
El problema que se nos
apresente, em efecto, no es filosófico, sino jurídico y, em sentido más amplio,
político. No se trata tanto de saber cuáles y cuántos son estos derechos, cuál
es su naturaleza y su fundamento, si son derechos naturales o históricos,
absolutos o relativos, sino cual es el modo más seguro para garantizarlos, para
impedir que, a pesar de las declaraciones solemnes, sean continuamente
violados.
O
Constituinte de 1988 seguindo tendência mundial demonstrou preocupação de
indenizar a vítima de crime pelo dano sofrido, quando no artigo 245 disse que
"A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará
assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimas por crime
doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito". Foi o
primeiro passo para a instituição de políticas públicas voltadas para o
atendimento às vítimas no Brasil.
2.3.
Evolução histórica da vitimologia
Foram
três fases da historia da vitimologia. A primeira, a fase da vingança privada e
da justiça privada, do protagonismo da vítima ou sua idade do ouro; a segunda,
fase em que a vítima, marginalizada, ficou em segundo plano, ou fase de
neutralização e finalmente a fase atual, do seu redescobrimento.
O
período da vingança privada certamente marcou a civilização. A vingança, como
resposta à agressão, consistia geralmente na imposição ao algoz de males
físicos, da tomada de seus bens materiais ou até à morte.
Com
o surgimento das organizações sociais, percebeu-se que não interessava mais a
vingança sem limites. Surge, então o Direito Penal como matéria de ordem
pública, a partir do Estado Moderno. Deste ponto em diante, o Estado chama para
si a responsabilidade da administração da justiça, passando a ser o detentor
exclusivo do Direito de Punir. Nesse segundo momento na história da
Vitimologia, tem-se a fase da neutralização, em que é notório o enfraquecimento
da vítima.
A
denominada fase do redescobrimento teve início após a Segunda Guerra Mundial. O
termo Vitimologia foi primeiramente utilizado pelo advogado israelense Benjamim
Mendelson, [14] um dos sobreviventes do holocausto, em conferência
no Hospital do Estado, em Bucareste, quando afirmou: um horizonte novo na
ciência biopsicossocial: a vitimologia.
Posteriormente
Hans Von Henting começou a escrever sobre a relação criminoso-vítima,
demonstrando uma imagem nova do agredido, muito mais realista e dinâmica, como
sujeito ativo e não como mero objeto.
Daí
em diante inúmeras obras sobre a vítima foram publicadas, muitas das quais no
Brasil. É o momento de redescobrimento do papel da vítima na justiça criminal.
Em
1979 foi criada a Sociedade Mundial de Vitimologia e em 1984, fundada no Rio de
Janeiro a Sociedade Brasileira de Vitimologia. Finalmente, em 1985, na Assembléia
Geral da ONU, foi aprovada a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para
as Vítimas de Delito e de Abuso de Poder, mesmo ano em que a Sociedade Mundial
de Vitimologia foi credenciada como órgão consultivo.
Muito
já foi feito em prol da Vitimologia, mas em época de redescobrimento há que
arregaçar as mangas e lutar por dias ainda melhores, em que efetivamente
estejam resguardados a cidadania das vítimas e seus direitos fundamentais.
2.4.
A vitimologia e os direitos humanos caminham juntos
A
Vitimologia é um campo multidisciplinar e oferece muito mais do que apenas uma
coleção de estudos sobre vítimas. Inicialmente as pesquisas e abordagens
vitimológicas eram ligadas à criminologia, mas agora existem muitas outras
possibilidades, conforme se verá.
Vítimas
constituem um poderoso clamor para a consciência atual e debate público e levam
à análise da medida do nosso próprio sofrimento e do sofrimento dos outros. É
também um escopo para o Movimento de Direitos Humanos.
Enquanto
vítimas de crime freqüentemente têm preocupação com à sua participação no
processo, na lei, nas conseqüências e efetividade, as vítimas da opressão e do
abuso de poder necessitam e querem proteção e assistência antes de mais nada.
A
vitimologia abrange vários níveis de atuação em diferentes contextos. Pode-se
dizer que repousa em um tripé: estudo e pesquisa; mudança da legislação e
assistência e proteção à vitima. Cada um desses segmentos é de importância
fundamental para uma nova visão do crime e de todo o sistema penal.
A
visão que durante séculos prevaleceu, da importância primordial que deveria ser
dada ao crime e ao criminoso, sendo a vítima a grande esquecida no drama
criminal, está sendo modificada com abordagem vitimológica da relevância da
vítima e da necessidade da sua inclusão no processo de assistência.
Todo
o arcabouço do sistema penal, a começar com a polícia, passando pelo Ministério
Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e finalmente a execução da pena é
calcado quase que exclusivamente na perseguição ao criminoso (nem sempre bem
sucedida) e na sua punição (quase sempre falha), deixando fora das preocupações
do Estado a vítima, o lesado, o agredido, aquele que sofreu a ofensa e que deve
requerer mais atenção.
A
visão vitimológica tem contribuído para modificar este contexto, inclusive
apontando medidas extrajudiciais quando cabíveis, que geram diminuição da
hostilidade e melhor resolução de conflitos. Muitos países de várias partes do
mundo, inclusive do continente americano, já estão adiantados na prática da
aplicação conceitual, na modificação das leis e principalmente na criação de
centros de proteção e atendimentos às vítimas.
A
atenção à vítima engloba, portanto, o estudo e a pesquisa, para dimensionar e
conhecer melhor o objetivo, a adaptação da legislação a uma nova abordagem.
Algumas
dessas ações, já implantadas com sucesso no Brasil, incluem o programa de
intervenção em crises, a compensação, a restituição, o ressarcimento do dano, a
assistência médica, psicológica e jurídica que prevê o acompanhamento tanto na
mediação, como no processo criminal ou cível quando instaurado.
As
Nações Unidas têm se preocupado com a questão das vítimas, tendo aprovado, com
o voto do Brasil, a Declaração dos Direitos das Vítimas de Crimes e Abuso de
Poder, em Assembléia Geral no Congresso de Prevenção de Crime e Tratamento de
Delinqüente em Milão, na Itália em 1985, ratificado em 1986.
O
campo dos direitos humanos, pode oferecer uma concepção mais ampla de
vitimização e direito das vítimas. Pode também ajudar a melhor conceituar a
vitimização definida como criminal, comparativamente às não consideradas
criminais, apesar de seus efeitos danosos.
O
enfoque nos direitos humanos pode ajudar a examinar as fontes de vitimização e
a relação entre causas do crime e causas da opressão. A opressão produz as
condições primordiais para os crimes contra a pessoa e contra a propriedade.
Uma análise do ponto de vista dos direitos humanos é detectar as condições
adversas, políticas, sociais e econômicas provocadas da vitimização.
A
vitimologia é ciência que estuda vítimas – não somente vítimas de crime, mas
vítimas em geral; os direitos humanos darão uma visão de vítimas antes
ignorada. Para a vitimologia atual, promover direitos das vítimas depende de
promover direitos humanos em geral. Por essa perspectiva, os direitos humanos
internacionais oferecem um novo alento para as vítimas e a vitimologia.
Em
contrapartida a vitimologia oferece instrumental para o estudo científico de
direitos humanos, que abrange mais direitos qualitativamente e
quantitativamente, sendo que a vitimologia tem mais profundidade e produziu uma
série de teorias e metodologias que podem fundamentar a compreensão da
opressão, seus aspectos, causas, impactos e soluções.
Também
é sabido que as vitimas de crime enquanto vitimizadas fazem parte do leque de
necessitados do país e acrescentam às estatísticas negativas da desigualdade
social. Logo, a preocupação com a assistência às vítimas é necessária à
diminuição às grandes desigualdades sociais existentes no país. Uma boa
assistência fará com que a pessoa vitimizada deixe rapidamente essa condição e
volte a contribuir para o crescimento do país.
2.5.
A vítima no sistema penal brasileiro
O
sistema penal brasileiro disseminou o discurso da ressocialização do agente,
encampando a idéia de que o tratamento da vítima não é problema seu. As vítimas
reivindicam, na verdade, o que realmente querem, é ajuda e proteção eficazes.
Quando constatam a ineficácia do sistema penal em lhes prestar a assistência de
que necessitam, muitas vezes procuram em outras fontes.
Entretanto,
como o apelo do sistema penal é ainda extremamente sedutor, essa lacuna muitas
vezes tende a desaguar em demandas por mais criminalização, na medida em que o
sistema penal cria e reproduz a idéia – aliás, totalmente fantasiosa, de que
pode dar às vítimas a ajuda e a proteção que elas, com razão, reclamam.
A
partir desse tipo de consciência é que, na esfera do direito comparado e
internacional, existe uma preocupação real com a valorização da vítima, de
forma especial em relação à vítima mulher, no tocante à violência de gênero.
Ainda
hoje a vítima ocupa, no sistema penal, uma posição de desvantagem. Seus
interesses são relegados a um plano absolutamente secundário. Seu papel é,
basicamente, o de testemunha, ou seja, uma ferramenta utilizada para que se
alcance resultado que o sistema almeja.
A
Carta Política de 1988 assegurou proteção específica à vítima, ao contrário do
que ocorreu com a figura do criminoso. Exceção é o art. 245 que prevê a obrigação
de o erário reparar os danos causados às vítimas. Todavia, tal previsão depende
da criação de lei específica, que até o momento não foi editada.
No
Brasil ainda prevalece o preconceito e o desrespeito por parte da sociedade com
relação à vítima. A vítima é considerada, na maioria das vezes e pela maioria
das pessoas, a causadora do crime.
Aos
poucos, o Estado brasileiro vem se conscientizando do seu papel de proteção e
amparo às vítimas de crimes. As Leis 9.099/95 e 9.714/98 são exemplos da
preocupação dos legisladores penais com a vítima de crime. Infelizmente, essas
leis não são suficientes para protegê-las do jugo da violência e do preconceito
da sociedade.
2.6.
Vitimização e sobrevitimização
Enquadrada
a vítima no contexto do sistema penal vigente, cumpre abordar o que se
denominou sobrevitimização no processo penal – vitimização secundária, ou seja,
o dano adicional à vítima que advém do funcionamento do sistema.
A
vítima não sofre apenas o fato punível em si mesmo. Sofre também danos
psíquicos, físicos, sociais e econômicos, gerados pela reações formais e
informais decorrentes do fato. O que a vítima mais espera é por justiça e
muitas vezes a justiça tarda e falha.
Na
opinião do autor Louk Hulsman [15] após sua experiência em alguns
serviços de atendimento às vítimas, principalmente no Tribunal de Paris, a
maioria delas não menciona que espécie de repressão ou retribuição deseja, nem
muito menos se quer reparação. Não demonstram também desejo de vingança, mas
tão somente querem ser ouvidas, querem falar do seu prejuízo na esperança de,
ao fazê-lo, cessar o que lhe incomoda, reencontrando a paz.
No
curso do processo penal sente-se desprestigiada, mero instrumento a serviço de
um sistema que não a considera. Quase sempre não compreende o procedimento
legal, que habitualmente não lhe é esclarecido. Sente-se vexada por se ver
obrigada a narrar os fatos por mais de uma vez (na polícia e em juízo, no mínimo).
É constrangida, nas audiências de instrução e julgamento, a deparar-se com o
agente. Sente-se freqüentemente como a verdadeira acusada, e constata, inúmeras
vezes, que o dano sofrido ficou sem reparação.
A
maioria das pessoas que se sentem vitimizadas ou ameaçadas no contexto de uma
situação criminalizável está sempre mais preocupada com a possibilidade de
ver-se ressarcida, ajudada ou protegida – ou as três coisas – que com a punição
do autor do fato que a atingiu. Por isso é importantíssimo situar a vítima e
seus anseios no sistema penal brasileiro e a atuação do Estado na implementação
de políticas compensatórias é imprescindível.
No
tocante à violência doméstica e contra a mulher se observa que há por parte das
vítimas a busca de apoio moral, psicológico e material. Geralmente em face das
relações afetivas que envolvem os conflitos domésticos, não há a intenção de a
vítima punir o agressor.
A
realidade de sobrevitimização não restou alterada com o advento da Lei n.
9.099/95, que instalou os Juizados Especiais Criminais no Brasil. Ostentando um
discurso de reinserção da vítima no contexto do sistema criminal, ante a
possibilidade de composição civil dos danos e a ampliação dos casos de
representação criminal, incluindo-se nesse rol as lesões leves, a lei não
oferece opções de enfrentamento produtivo do conflito doméstico.
3.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
3.1.
A Violência
Enfrentar
o tema violência doméstica implica abordar a questão do sofrimento intenso que
a acompanha, sempre disseminado no ambiente em que ela impera. O universo da
violência é sempre um universo de dor e sofrimento.
Sônia
Felipe conceitua a violência como:
Uma
série de atos praticados de modo progressivo com o intuito de forçar o outro a
abandonar o seu espaço constituído e a preservação da sua identidade como
sujeito das relações econômicas, políticas, éticas, religiosas e eróticas... No
ato de violência, há um sujeito...que atua para abolir, definitivamente, os
suportes dessa identidade, para eliminar no outro os movimentos do desejo, da
autonomia e da liberdade.
3.2.
Conceito de Violência de gênero
Violência,
em seu significado mais freqüente, quer dizer uso da força física, psicológica
ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade;
é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de
manifestar sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser
espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu
domínio, é uma forma de violação dos direitos essenciais do ser humano.
Esse
trabalho preocupa-se com a violência de gênero. O que é gênero? O termo gênero
é bastante amplo, empregado com diferentes sentidos. Significa espécie, como
quando se trata do gênero humano.
A
sociologia, a antropologia e outras ciências humanas lançaram mão da categoria
gênero para demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais
existentes entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e
privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que
foram construídos historicamente, e criaram pólos de dominação e submissão.
O
gênero, no entanto, aborda diferenças sócio-culturais existentes entre os sexos
masculino e feminino, que se traduzem em desigualdades econômicas e políticas,
colocando as mulheres em posição inferior à dos homens nas diferentes áreas da
vida humana.
O
estudo das ciências humanas, com o uso da categoria gênero, não só tem revelado
a situação desigual entre mulheres e homens, como também tem mostrado que a
desigualdade não é natural e pode, portanto, ser transformada em igualdade,
promovendo relações democráticas entre os sexos.
O
conceito de violência de gênero deve ser entendido como um relação de poder de
dominação do homem e de submissão da mulher. Ele demonstra que os papéis
impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e
reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre
os sexos e indica que a prática desse tipo de violência não é fruto da
natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas.
Assim,
não é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais que determinam
comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos das mulheres. Os
costumes, a educação e os meios de comunicação tratam de criar e preservar
estereótipos que reforçam a idéia de que o sexo masculino tem o poder de
controlar os desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir das mulheres.
Em
pesquisa realizada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos da Mulher
[16], a violência de gênero é concebida como resultado "das
motivações que hegemonicamente levam sujeitos a interagirem em contextos
marcados por e pela violência". O trabalho ressalta que "a prática da
violência doméstica e sexual emerge nas situações em que uma ou ambas as partes
envolvidas em um relacionamento não cumprem os papéis e funções de gênero
imaginadas como naturais pelo parceiro. Não se comportam, portanto, de acordo
com as expectativas e investimentos do parceiro, ou qualquer outro ator
envolvido na relação".
A
própria expressão violência contra a mulher foi assim concebida por ser
praticada contra pessoa do sexo feminino, apenas e simplesmente pela sua
condição de mulher. Essa expressão significa a intimidação da mulher pelo
homem, que desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e seu
disciplinador.
Nesse
contexto, violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito
público como no privado, motivada apenas pela sua condição de mulher.
Muito
se tem feito para mudar essa situação. Houve êxitos importantes.
Desenvolveram-se por toda parte a luta pela igualdade de direitos, o
reconhecimento da situação das mulheres e as proposituras de ações afirmativas
que garantem oportunidades e condições iguais. São tratados, declarações
internacionais, assinados praticamente em todos os países do mundo e que
representam instrumentos de desenvolvimento e progresso para a sociedade.
Mesmo
com esses avanços, há problemas sérios que continuam a se perpetuar, como
ocorre com a violência praticada diariamente contra as mulheres.
3.3.
Conceito de Violência doméstica
Violência
doméstica ou intrafamiliar é aquela praticada no lar ou na unidade doméstica,
geralmente por um membro da família que viva com a vítima, podendo ser esta
homem ou mulher, criança, adolescente ou adulto.
A
violência doméstica pode ser praticada contra o gênero feminino e masculino. É
um tipo de violência que ocorre dentro de casa, nas relações entre as pessoas
da família, entre homens e mulheres, pais, mães e filhos, entre jovens e
idosos. Pode-se afirmar que, independentemente da faixa etária das pessoas que
sofrem espancamentos, humilhações e ofensas nas relações descritas, as
mulheres, crianças e adultas são os principais alvos.
Há
os que preferem denominá-la violência intrafamiliar e, neste caso, pode ocorrer
fora do espaço doméstico, como resultado de relações violentas entre membros da
própria família. Existe uma crítica com relação a essa terminologia porque,
mais uma vez se estaria escondendo a violência praticada contra a mulher.
O
termo violência intrafamiliar tem sido bastante usado nos programas nacionais
adotados por governos latinos e caribenhos. Por exemplo, na Bolívia, a lei que
impulsiona as políticas públicas nessa área denomina-se "Violência na
Família ou Doméstica", compreendida como "agressão física,
psicológica ou sexual cometida pelo cônjuge ou convivente, pelos ascendentes e
descendentes, irmãos, parentes civis ou afins em linha direta ou colateral; os
tutores, curadores ou encarregados da justiça".
No
Chile, há uma legislação específica sob o título "Lei de Violência
Intrafamiliar" definida como "todo maltrato que afete a saúde física
ou psíquica de ascendente, cônjuge, convivente, menores de idade ou incapazes,
sejam descendentes, adotados, tutelados, colaterais consangüíneos até o quarto
grau, inclusive dependente de qualquer dos membros do grupo familiar".
Estudos
intitulados "Informes sobre a situação da violência de gênero contra as
mulheres", organizados pelas Nações Unidas e realizados em 1999, em
relação à Bolívia, revelam que, das vítimas de violência intrafamiliar, 98,4%
são mulheres. Por sua vez, estatísticas policiais realizadas com base em
atendimentos realizados no Chile, referentes ao ano de 1997, identificaram o
homem como a principal figura agressora, representando 85% dos que praticam a
violência intrafamiliar [17].
A
violência doméstica é um problema que acomete ambos os sexos e não costuma
obedecer nenhum nível social, econômico, religioso ou cultural específico, como
poderiam pensar alguns.
Segundo
o Ministério da Saúde, as agressões constituem a principal causa de morte de
jovens entre 5 e 19 anos. A maior parte dessas agressões provém do ambiente
doméstico. A Unicef estima que, diariamente, 18 mil crianças e adolescentes
sejam espancados no Brasil. Os acidentes e as violências domésticas provocam
64,4% das mortes de crianças e adolescentes no País, segundo dados de 1997.
A
vítima de violência doméstica, geralmente, tem pouca auto-estima e se encontra
atada na relação com quem agride, seja por dependência emocional ou material. O
agressor geralmente acusa a vítima de ser responsável pela agressão, a qual
acaba sofrendo os efeitos da discriminação, culpa e vergonha.. A vítima também
se sente violada e traída, já que o agressor promete que nunca mais vai repetir
este tipo de comportamento e termina não cumprindo a promessa.
Estudos
da socióloga Heleieth Saffiori concluíram que quando as mulheres se atrevem a
prestar queixa às autoridades já estão sofrendo em silêncio há pelo menos dez
anos. [18]
Para
entender a violência doméstica, deve-se ter em mente alguns conceitos sobre a
dinâmica e diversas faces da violência doméstica, como por exemplo:
Violência
física é o uso da força com o objetivo de ferir, deixando ou não marcas
evidentes. São comum murros e tapas, agressões com diversos objetos e
queimaduras por objetos ou líquidos quentes. Quando a vítima é criança, além da
agressão ativa e física, também é considerado violência os atos de omissão
praticados pelos pais ou responsáveis.
O
abuso do álcool é um forte agravante da violência doméstica física. A
embriagues patológica é um estado onde a pessoa que bebe torna-se extremamente
agressiva, às vezes nem lembrando com detalhes o que tenha feito durante essas
crises de furor e ira. Nesse caso, além das dificuldades práticas de coibir a
violência, geralmente por omissão das autoridades, ou porque o agressor quando
não bebe "é excelente pessoa", segundo as próprias esposas, ou
porque é o esteio da família e se for detido todos passarão necessidade, a
situação vai persistindo.
Segundo
a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram agredidas fisicamente por seus
parceiros entre 10% a 34% das mulheres do mundo. De acordo com a pesquisa
"A mulher brasileira nos espaços públicos e privados" – realizada
pela Fundação Perseu Abramo em 2001, registrou-se espancamento na ordem de 11%
e calcula-se que perto de 6,8 milhões de mulheres já foram espancadas ao menos
uma vez.
A
violência psicológica ou agressão emocional, às vezes tão ou mais prejudicial
que a física, é caracterizada por ameaça, rejeição, depreciação, discriminação,
humilhação, desrespeito, punições exageradas. Trata-se de uma agressão que não
deixa marcas corporais visíveis, mas emocionalmente causa cicatrizes indeléveis
para toda a vida.
3.
A VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA: BERÇO DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE
3.1.
A importância da família na formação do ser humano
A
criança tem no adulto um modelo a ser seguido. A relação com os familiares é a
primeira relação do indivíduo com o mundo. É nela que ele aprende as regras de
convivência que norteiam a vida em sociedade. É a partir dela que a criança vai
gradativamente construindo seus conceitos sobre o respeito ao outro, os
limites, os direitos e deveres.
É
na família que o indivíduo começa a perceber a si mesmo e ao mundo que o cerca.
Se ele encontra um ambiente de respeito e equilíbrio, tende a utilizar como
paradigma ao longo de sua vida. Se, ao contrário, convive com adultos desequilibrados
e violentos, muito provavelmente utilizará esse padrão para se relacional com
todos a sua volta. Geralmente filhos de pais violentos acabam repetindo a
estória de seus pais no futuro.
A
família, sendo o primeiro grupo social do indivíduo, homem ou mulher, tem o
dever de oferecer a ele condições dignas para o seu pleno desenvolvimento
físico e psíquico, garantindo-lhe segurança e proteção.
No
entanto, a cada dia mais e mais crianças são vitimizadas com atos violentos
dentro da sua própria casa, caracterizando assim a violência doméstica – aquela
que se dá no âmbito familiar ou entre pessoas muito próximas da família.
Afinal,
se a criança e o adolescente não conseguem encontrar segurança e estabilidade
em suas próprias casas, que visão levarão para o mundo lá fora? Os conflitos
nas crianças podem resultar da disparidade entre o que diz a mãe, sobre ter
medo de estranhos, e a violência sofrida dentro de casa, cometida por pessoas
que a criança conhece muito bem. Além disso a violência doméstica pode ainda
perpetuar um modelo de ração agressiva e violenta nas crianças que estão com a
personalidade em formação.
A
violência doméstica é considerada um dos fatores que mais estimula crianças e
adolescentes a viver nas ruas. Em muitas pesquisas feitas, as crianças de rua
referem maus-tratos corporais, castigos físicos, violência sexual e conflitos
domésticos como motivo para sair de casa.
3.2.
Infância vítima de violência
A
infância vítima de violência compreende o contingente social de crianças e
adolescentes que se encontram em situação de risco pessoal e social, daqueles
que se encontram em situações especialmente difíceis, ou, ainda, daqueles que
por omissão ou transgressão da família, da sociedade e do Estado estejam sendo
violados em seus direitos básicos.
A
eles a Constituição Federal de 1988 e a Lei n. 8.069/90 asseguram o direito de
Proteção Especial, como forma de defesa contra a violência em suas várias
modalidades.
As
crianças vítimas de violência formam no Brasil um país chamado infância que
está longe de ser risonho e franco. Nele encontram-se:
-
a infância pobre, vítima da violência social mais ampla;
-
a infância explorada, vítima da violência no trabalho;
-
a infância fracassada, vítima da violência escolar;
-
a infância vitimizada, vítima da violência doméstica.
O
objetivo deste trabalho é estudar a infância vitimizada pela violência
doméstica. Este é o contingente vítima da violência praticada no lar e, por
isso mesmo, a mais secreta de todas. Aqui estão as vítimas da pedagogia negra –
maus tratos físicos, da negligência, do abuso sexual quase sempre de natureza incestuosa
e da perversa doçura, ou seja, da violência psicológica. As notícias a seguir
dão uma idéia da amplitude e da gravidade dessas formas de violência doméstica:
-
Bebê de cinco anos é morto por pai bêbado. [19]
-
Mãe é acusada de acorrentar filha à cama [20].
-
Abuso sexual de natureza incestuosa [21].
-
Menina passou meses trancada e sem comida em casa [22].
-
Desde 2000, país já mataram 456 filhos [23].
Estudo
inédito do Lacri (Laboratório de Estudos da Criança e do Adolescente) da USP
indica que, desde 2000, ao menos 456 crianças ou adolescentes morreram em
conseqüência de atos de violência sofridos dentro de casa no Brasil. Segundo o
estudo, ocorreram no primeiro trimestre do ano passado, em 128 municípios
pesquisados (20 Estados), 20.757 notificações e 456 óbitos.
Tais
formas de violência compõem um triste mosaico: o da infância em dificuldade, da
infância violentada e violentada cotidianamente.
Essas
crianças necessitam de proteção especial. Mas, dentre todas, existe um grupo
que até recentemente tinha ficado esquecido e que agora está sendo tirado da
clandestinidade – é o grupo das crianças vítimas, principalmente meninas, da
violência doméstica.
A
violência sexual também é forma de violência doméstica. Quando a violência
sexual é praticada por familiares ou pessoas que gozam da confiança da vítima,
as conseqüências são ainda muito mais graves, posto que a relação da criança e
do adolescente com a família é elemento fundamental na construção da sua identidade.
Os
pais exercem poder e fascínio sobre os filhos que necessitam sentir que são
amados, que possuem uma relação de confiança e segurança, onde haja troca de
carinho, diálogo e compreensão.
Entre
os abusadores, os padrastos aparecem como os mais freqüentes, seguidos dos pais
biológicos, avós, tios e outros parentes próximos.
3.3
A violência doméstica como uma das causas da violência na sociedade
Ao
afirmar que a violência na família é o berço da violência na sociedade,
pretende-se enfatizar o quanto uma estrutura familiar emocionalmente
equilibrada é importante para a formação de adultos responsáveis e conscientes
do seu papel de cidadãos. Não se pode, contudo, deixar de identificar outras
matrizes geradoras da violência no bojo da própria sociedade.
A
questão da violência doméstica só pode ser entendida dentro do contexto social
mais amplo, pois a estrutura familiar não está isolada da estrutura da
sociedade. Uma está contida na outra, influenciando as relações entre as
pessoas.
A
exclusão social, o autoritarismo, o abuso de poder, as imensas desigualdades
entre os povos, raças, classes e gêneros, são elementos que desencadeiam estresse,
competitividade, sentimento de humilhação e de revolta, falta de diálogo e de
respeito ao outro. Esses elementos da estrutura social se inserem na estrutura
familiar sem que seus membros se dêem conta, desencadeando relações carregadas
de intolerância e violência, atingindo principalmente a criança e as mulheres,
por se encontrarem em condições de maior vulnerabilidade.
Enquanto
a violência das ruas e o crime organizado vêm sendo temas de muitas discussões,
mobilizando cada vez mais pessoas no mundo inteiro, a violência dentro da
estrutura familiar é ainda intocável, protegida sob o manto do silêncio, pelo
mito de que toda família é amorosa e protetora, não sendo capaz de maltratar
seus próprios membros. No entanto, não se pode pensar em um mundo mais pacífico
enquanto não se conseguir garantir a todos uma infância de respeito e uma vida
digna junto a sua família.
O
ambiente de paz em casa contribui efetivamente para que a criança, ao tornar-se
adulta, estabeleça relações emocionalmente mais equilibradas com as outras
pessoas. A paz em casa, portanto, é um grande começo para a paz nas ruas.
4.
A CIDADANIA DA VÍTIMA DOS DELITOS DOMÉSTICOS
4.1.
A cidadania
A
cidadania é um processo em constante construção, que teve origem,
historicamente, com o surgimento dos direitos civis, no decorrer do século
XVIII – chamado Século das Luzes -, sob a forma de direitos de liberdade, mais
precisamente, a liberdade de ir e vir, de pensamento, de religião, de reunião,
pessoal e econômica, rompendo-se com o feudalismo medieval, na busca da
participação na sociedade.
A
concepção moderna de cidadania surge, então, quando ocorre a ruptura com o Ancien
Régime absolutista, em virtude de ser ela incompatível com os privilégios
mantidos pelas classes dominantes, passando o ser humano a deter o status de
cidadão, tendo asseguradas, por um rol mínimo de normas jurídicas, a liberdade
e a igualdade contra atuação arbitrária do então Estado-coator.
Com
o aparecimento do Estado Social nas primeiras décadas do século XX, as
fronteiras da cidadania ampliaram-se ainda mais, aumentando as dificuldades de
formulação de um conceito mínimo capaz de entender, coerentemente, esse novo
fenômeno em construção.
A
partir do século XVIII, com o movimento iluminista, começam a ser definidos os
primeiros contornos do conceito de cidadania. Como resultado da Revolução
Francesa, surge, então, a famosa Déclaration des Droits de L`Homme et du
Citoyen, de 1789, que, sob a influência do discurso jurídico burguês,
lançou as primeiras bases da idéia de cidadão.
A
revolução burguesa pretendeu deixar claro – e o fez no art. 16 da Declaração –
que não há Constituição onde não se tem assegurado garantia dos direitos
individuais nem é determinada a separação dos poderes. Buscou-se, então,
colocar em primeiro plano os direitos dos indivíduos, transformando os súditos
em cidadãos, em repúdio à monarquia absolutista, sob o manto de uma república
constitucional.
A
idéia de cidadão, que, na Antiguidade Clássica conotava o habitante da cidade –
o citadino – o indivíduo a quem se atribuiam os direitos políticos; um status
jurídico que assegurava o direito de participar ativamente da vida política do
Estado em que vivia.
4.2.
A cidadania das mulheres vítimas de crimes domésticos e de gênero
Não
é outra a lição de João Baptista Herkenhoff, para quem a cidadania não se
resume ao estado ou qualidade de quem goza os direitos e desempenha os deveres
para com o Estado. Segundo ele, a cidadania em sua essência é composta por
quatro dimensões: a social, a econômica, a educacional e a existencial
[24].
No
Brasil as mulheres conquistaram o direito ao voto em 1930, antes não eram
cidadãs na acepção maior da palavra. A partir da conquista do direito ao voto
advieram outras conquistas femininas. Hoje as mulheres são freqüentemente
eleitas para cargos públicos, inclusive estando à frente da administração de
grandes metrópoles.
Ao
analisar o cenário sociopolítico brasileiro nas últimas décadas é possível
verificar que, embora grandes parcelas da população permaneçam sem ter seus
direitos reconhecidos, vivendo em situação de absoluta carência de direitos e
de cidadania, vários setores se mobilizaram cobrando uma maior intervenção das
instituições na resolução dos conflitos.
Especificamente
nos casos de violência contra a mulher, no período que vai dos anos 70 até
meados dos anos 80, todas as iniciativas de combate e denúncia da violência
partiram da sociedade civil, principalmente de coletivos feministas.
O
carro-chefe das reivindicações feministas no início da década de 80, elemento
catalisador e marca significativa do movimento das mulheres brasileiras, a
mobilização sob o lema "quem ama não mata" contra os assassinatos de
mulheres justificados pela legítima defesa da honra, alcançou eco na opinião
pública levando à experiência internacionalmente inédita da criação, em 1985,
da primeira Delegacia de Defesa da Mulher pelo governo Franco Montoro em São
Paulo.
Na
década de 90 o cenário começou a ser alterado, com a institucionalização do
combate e prevenção da violência contra a mulher, principalmente após o
surgimento de novas Delegacias de Defesa da Mulher e dos Centros de Apoio às
Vítimas de Crimes em vários Estados da Federação.
Em
contrapartida, os dados alarmantes sobre a ocorrência da violência doméstica e
de gênero faz perceber que ainda não se pode comemorar, já que há um grande
caminho a ser trilhado na luta contra a violência no Brasil. A violência impede
as suas vítimas do pleno exercício da cidadania, além de vilipendiar os
direitos e garantias individuais assegurados pela Constituição Federal de 1988.
3.Perfil
da mulher vítima de crimes domésticos
As
estatísticas demonstram que a mulher é mais freqüentemente vítima da violência
intrafamiliar que o homem. O quadro abaixo demonstra qual o perfil da vítima de
violência doméstica no Brasil:
39,3%
têm entre 18 e 40 anos
30,7%
dão donas de casa
6,3%
comerciárias
5,7%
trabalhadoras da economia informal e
profissionais
liberais
3,6%
funcionárias públicas [25]
Nos
últimos 10 anos proliferaram os estudos que, utilizando-se de boletins de
ocorrência registrados nas Delegacias de Defesa da Mulher, procuraram a partir
das informações ali descritas definir qual é o perfil das mulheres que recorrem
à delegacia para comunicar as agressões sofridas, bem como delinear um perfil
do agressor e as circunstâncias que cercam as agressões.
Os
estudos demonstraram que o número de ocorrências registradas tem crescido a
cada ano, sugerindo que as mulheres, com a abertura desse espaço, tornaram-se
menos tolerantes com a violência e mais fortalecidas para denunciar seus
agressores.
Demonstraram
também que as mulheres que procuram as unidades das DDMs são freqüentemente
vitimadas pelos mesmos agressores com os quais em geral possuem algum tipo de
vínculo (na maior parte das vezes, conjugal). [26]
Alguns
dados ajudam a traçar um perfil da mulher agredida em casa em Alagoas:
50%
têm entre 30 e 40 anos,
30%
têm entre 20 e 30 anos.
50%
dos casos o casal tinha entre 10 e 20 anos
de
convivência e,
40%
entre um e dez anos.
Esses
dados mostram que, depois da queixa:
40%
dos casais se separam.
60%
continuam a viver conjugalmente.
Em
1988, 85% das denúncias registradas nas primeiras e terceira DDM de São Paulo
foram de agressão e 4,17% de ameaças. Em 1992, nas mesmas delegacias, as
denúncias de agressão caíram para 68% dos casos, com as ameaças subindo para
21,3%. Essa alteração é um indicador de que, em alguns casos, a mera
apresentação da queixa numa delegacia e uma advertência da autoridade policial
consegue cessar a violência [27].
4.4.
Perfil do agressor
A
maioria os agressores são homens (67,4%), cônjuge e/ou ex-cônjuge da vítima.
Não há trabalhos explícitos sobre incidência de patologias psiquiátricas nos
agressores, entretanto, considera-se válido que os agressores se dividem entre
portadores de: transtorno anti-social da personalidade, transtornos explosivos
da personalidade (emocionalmente instável), dependentes químicos e alcoolistas,
embriagues patológica, transtornos histéricos (histriônico), outros transtornos
da personalidade, tais como, paranóia e ciúme patológico [28].
Através
da análise empírica detecta-se também que os agressores geralmente têm baixa
auto-estima, estão desempregados ou com algum problema financeiro ou dependem
economicamente da mulher.
O
quadro abaixo demonstra quem são os principais agressores:
33,1%
têm entre 21 e 50 anos
9,0%
comerciários
8,4%
desempregados
5,9%
trabalhadores da economia informal
e
profissionais liberais
2,6%
funcionários públicos [29]
5.
ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO NO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
5.1.
O poder público frente à problemática da violência de gênero e doméstica
Qual
o papel que deve desempenhar o poder público frente à problemática da violência
doméstica?
O
poder público é o primeiro interessado no combate à violência. Porém a
violência que é veiculada pela mídia diariamente é a violência urbana. A
violência doméstica é discutida isoladamente, como se não fosse importante para
a sociedade, como se fosse apenas preocupação da família vítima da violência.
Mas os estudos demonstram a interligação das várias formas de violência, logo o
poder público começa a despertar para o grave problema da violência doméstica,
suas causas e conseqüências desastrosas para a sociedade.
Essa
preocupação que se vê é o início de um processo de conscientização de que para
tratar a violência urbana, deve-se primeiramente extirpar suas causas, que vão
desde as desigualdades sociais, à fome, ao desemprego, até à violência
doméstica, pois quem vive a violência no seio familiar geralmente a repete na
rua.
A
partir do entendimento do problema da violência doméstica como um problema
social e, por conseguinte, que diz respeito a todos os indivíduos, pode-se
apresentar sugestões para que o poder público atue de forma eficaz para tentar
conter essa onda de violência que assola o Brasil.
Como
exemplos têm-se:
Desenvolver
políticas públicas de qualidade que visem a prevenção e o combate à violência,
tendo como prioridade o acesso das famílias à educação saúde, trabalho,
habitação e ao lazer;
Realizar
pesquisas objetivando diagnosticar a violência praticada no seio familiar, possibilitando
assim, uma intervenção acertada, contemplando as peculiaridades de cada
localidade;
Promover
campanhas de cunho educativo nas escolas e nos meios de comunicação, divulgando
os locais de atendimento à criança e ao adolescente em caso de violência
doméstica;
Capacitar
os agentes de atendimento às vítimas de violência, tais como: médicos,
enfermeiros, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, advogados,
promotores de justiça, juízes, policiais e educadores, a exemplo do que ocorre
em Maceió através do atendimento do CAVCRIME – Centro de Apoio às Vítimas de
Crime;
Estruturar
serviços de referência em cada município para atender aos casos de violência
doméstica;
Instalar
e fornecer boa estrutura aos Conselhos Tutelares e capacitação freqüente para
os seus membros;
Garantir
um serviço policial e jurídico eficiente na apuração e na punição dos delitos
domésticos, que devem funcionar articulado com a equipe multiprofissional do
centro de referência e com o centro de apoio às vítimas.
5.2.
O papel das Delegacias da Mulher no Brasil
A
violência doméstica ganhou força em sua denúncia nos anos 80, período em que
coincidiu com a abertura democrática na sociedade brasileira, momento de
ampliação dos espaços sociais em que as mulheres, articuladas nos diversos
grupos feministas, ocuparam-se em denunciar a ocorrência de crimes contra a
mulher.
A
primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher (DDM) foi criada pelo Decreto
n. 23.769, de 6 de agosto de 1985, cuja atribuição era a investigação e
apuração dos delitos contra pessoas do sexo feminino, sem limitações de idade,
referentes a lesões corporais, crimes contra a liberdade pessoal e crimes
contra os costumes.
O
objetivo da criação de Delegacias especializadas no atendimento às mulheres é
criar um espaço institucional de denúncia e repressão à violência contra a
mulher, visando a dar um atendimento diferenciado às mulheres vítimas de
violências físicas, estimulando-as a denunciarem seus agressores.
As
DDMs foram idealizadas como espaço institucional de combate a prevenção da
violência contra a mulher, com quadros formados apenas por policiais mulheres
(delegadas, escrivãs, investigadoras) apoiadas por uma equipe de assistentes
sociais e de psicólogas.
Visava-se
criar um espaço em que as mulheres pudessem trazer da notícia dos crimes sem
constrangimento, em que fossem ouvidas, sua representação encaminhada e todos
os procedimentos legais adotados.
Embora
tenha sido uma iniciativa pioneira que ainda hoje desperta o interesse de
organismos internacionais que trabalham com a assistência a mulheres vítimas de
violência e com a defesa dos direitos das mulheres, passados 19 anos de sua
criação ainda há muita polêmica sobre as DDMs e os problemas que afetam seu
funcionamento.
Entre
os problemas apontados estão a falta de recursos materiais e de pessoal
especializado, além da rápida multiplicação de delegacias por todo o Estado
brasileiro, atendendo mais a interesses políticos do que às reais necessidades
de atendimento às vítimas.
O
Estado de Alagoas possui uma Delegacia Especializada da Mulher e o Centro de
Apoio às Vítimas de Crimes – CAVCRIME, órgãos especializados no atendimento às
mulheres vítimas de delitos. O CAVCRIME presta atendimento na Delegacia da
Mulher e vem desempenhando um trabalho magnífico com as vítimas de violência em
Alagoas.
5.3.
O papel dos Centros de Apoio às vítimas de crimes
A
partir da Constituição de 1988, artigo 245, o Estado brasileiro ficou obrigado
a dar uma atenção especial às pessoas vítimas de crimes e seus herdeiros e
dependentes.
Com
esse respaldo é que o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Estado
dos Direitos Humanos, decidiu fomentar, nos Estados, a criação de centros de
assistência e apoio às vítimas de crimes. No ano de 1999, a Lei n. 9.807, de 13
de julho, estabeleceu normas de organização e manutenção de programas especiais
de proteção às vítimas e testemunhas ameaçadas.
A
partir da edição da Lei n. 9.807, o Ministério da Justiça apoiou a implantação,
nos Estados de Santa Catarina e da Paraíba, de centros de assistência e apoio
às vítimas de crimes atuantes nas áreas de suas respectivas capitais:
Florianópolis, com o Pró-CEVIC (Programa Catarinense de Atendimento às Vítimas
de Crime), e João Pessoa, com o CEAV (Centro de Atendimento às Vítimas de
Violência).
No
ano de 2000 outros centros foram criados em parceria com as Secretarias de
Estado dos Direitos Humanos, a exemplo de Minas Gerais, com o Núcleo de
Atendimento a Vítimas de Crimes Violentos, São Paulo, por meio do CRAVI (Centro
de Referência e Apoio a Vítimas) e em Alagoas com o CAVCRIME (Centro de Apoio
às vítimas de crime).
O
fenômeno mundial pelo qual a violência toma proporções assustadoras, fato que é
mais evidentemente percebido nos grandes centros urbanos, mas que existe em
todos os rincões do mundo, torna as pessoas freqüentemente passíveis de
vitimizações geradas pelas mais variadas motivações.
Já
que o Estado tem fracassado no combate às várias formas de violência, ao menos
tem se mostrado preocupado em compensar suas vítimas através de políticas
públicas compensatórias. Os Centros de Apoio são uma iniciativa de pôr à
disposição daqueles que são diretamente afetados pelos matizes impostos pela
violência social um serviço que torna o Estado, mormente em seu papel de ente
garantidor do acesso à justiça e da prática da cidadania, uma figura mais
presente em suas vidas.
Essa
experiência pioneira vem dando certo em vários Estados da federação, a exemplo
do Estado de Alagoas em que o CAVCRIME atende inúmeras pessoas na capital e no
interior e presta relevante serviço à sociedade.
O
objetivo desses centros de assistência e apoio a vítimas de crimes é
basicamente o de conceder amparo jurídico, social e psicológico às pessoas
vitimizadas. A atuação interdisciplinar das áreas jurídica, social e
psicológica busca primordialmente a reestruturação moral, psíquica e social da
vítima. O acesso à justiça significa para essas pessoas o restabelecimento da
ordem social individual e familiar, o que implica, em última instância, o controle
da violência, o exercício da cidadania e o resgate dos direitos humanos.
5.4.
Metodologia de atendimento pelos Centros de Apoio
Em
linhas gerais, o funcionamento desses centros segue uma metodologia de
funcionamento semelhante. O primeiro atendimento à pessoas que a eles recorrem
é geralmente feito por psicólogos e assistentes sociais que, na oportunidade,
colhem as informações necessárias para a instrução do processo de
acompanhamento do caso: dados pessoais, escolaridade, profissão, estrutura
familiar, situação de violência que a levou a procurar o centro, etc.
Como,
em geral, as queixas têm relação direta com importantes questões jurídicas,
ocorre o encaminhamento para o núcleo jurídico, que a partir de então passa a
acompanhar o andamento processual do caso.
No
aspecto social, os procedimentos referem-se basicamente ao apoio à família,
capacitação e reinserção profissional, encaminhamento para tratamento de saúde
etc. Para tanto, são acionadas as várias instituições governamentais e
não-governamentais com atuação nessas áreas específicas, formando uma rede de
parcerias que convergem em seus objetivos principais.
No
aspecto psicológico, ocorre o atendimento sempre centrado no luto violento, ou
seja, no incidente criminoso, razão motivadora da situação de vitimização. O
acompanhamento é tanto individual quanto familiar, uma vez que a
desestabilização do núcleo familiar é uma tônica constante nos casos atendidos.
5.5
Dados estatísticos sobre violência doméstica na América Latina
Bolivia:
-
66% dos 1.432 casos de agressão física denunciados na Clínica Forense de La Paz
em 1986 eram mulheres;
-
Dessas 60.7% foram agredidas pelo cônjuge e 16.7% foram agredidas por outros
familiares ou vizinhos.
Chile:
-
Em Santiago 80% das mulheres foram vítimas de abuso físico, emocional ou sexual
por parte do seu companheiro ou de um familiar.
Colombia:
-
65% das mulheres declaram terem sido agredidas por seus maridos ou
companheiros.
Costa
Rica:
-
95% das mães jovens são vítimas de incesto.
Nicaragua:
-
Segundo o (BID) 52% das mulheres de Managua (60% segundo várias organizações
não governamentais) sofrem algum tipo de violência por seus parentes.
-
A violência doméstica custa ao Estado 29.5 milhões de dólares por ano (1.6% do
produto interno bruto) são em faltas ao trabalho.
-
30% das mulheres que sofreram agressões em 1997 foram hospitalizada e 15%
necessitaram de alguma cirurgia.
-
No Bairro de Cuba libre em Managua 95% das agressões contra mulheres ocorrem em
suas casas; em 53% dos casos o homem estava bêbado.
Perú:
-
70% de todos os crimes denunciados à polícia são de mulheres lesionadas por
seus maridos.
-
No Hospital Materno de Lima, 90% das mães entre 12 e 16 anos foram violentadas
sexualmente por seus pais, padastros ou familiar próximo.
Venezuela:
-
Em Caracas, durante a primeira semana de funcionamento do Serviço Municipal
para Mulheres em 1985, 89% dos casos atendidos estavam relacionados com grave
maltrato físico por parte de seus companheiros [30].
Brasil:
-
Dos 849 processos analisados, referentes a casos de violência doméstica
apresentados na Primeira DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) de São Paulo, em
1988, e na Terceira DDM de São Paulo, em 1988 e 1992, 81,5% se referem a lesões
corporais dolosas, ou seja, houve evidências de agressão suficientes para que a
Polícia levasse o caso a Justiça.
-
Dos casos restantes, 4,47% se referem a estupro ou atentado violento ao pudor;
7,77% a ameaças; e 1,53% a seduções.
-
As mulheres são vítimas em 84,3% dos casos. Com mais freqüência, as vítimas
estão nas seguintes faixas etárias: 24,6% de 18 a 35 anos, 21,3% de 36 a 45
anos e 13% de 46 a 55 anos. [31]
Os
dados estatísticos apresentados confirmam o que a pesquisa empírica já havia
revelado, ou seja, que a mulher e a criança do sexo feminino são as maiores
vítimas da violência; que o delito de lesão corporal leve (violência doméstica)
é o mais praticado, seguido pela ameaça e que as pessoas realmente necessitam e
procuram apoio assistencial, psicológico e jurídico junto às políticas públicas
de atendimento, que prestam relevante serviço à comunidade a que servem.
6.
A JUSTIÇA PENAL CONSENSUADA
6.1.
Direito Comparado
As
reflexões acerca de uma justiça penal consensuada são antigas, tendo a
legislação processual espanhola se ocupado da questão em 1882, em sua Ley de
Enjuiciamiento Criminal.
O
motivo justificador dessa forma distinta de solução dos conflitos penais tem
origem no seio social, na insatisfação das pessoas com o processo penal
tradicional. A celeridade do processo, cada vez mais exigida pela população,
aliada à importância adquirida pela vitimologia, fez com que a justiça
consensuada se tornasse caminho obrigatório, também para o processo penal.
O
direito comparado é importante fonte para a construção do modelo consensual de
processo brasileiro, que viria a ser implantado no país, a partir da Lei dos
Juizados Especiais.
Dentre
os ordenamentos jurídicos estudados para a criação da justiça consensuada no
Brasil, observa-se o norte-americado, com o plea-bargaining, o francês (art. 40
do CPP), o alemão (art. 153, CPP), o espanhol. Entretanto, foi dos ordenamentos
italianos e português que a Lei n. 9.099/95 mais se aproximou.
No
sistema norte-americano, a disponibilidade é princípio há muito adotado. O
acusado pode ali ser condenado com base na sua confissão (declaração de
culpabilidade), evitando-se o ajuizamento da ação penal propriamente dita, e
por conseqüência, o processo tradicional.
O
parágrafo 153 da legislação processual penal alemã prevê que o Estado pode
abster-se da persecução penal em caso de delitos menores (crimes de bagatela);
caso a pena prevista para o crime seja inferior a um ano, o Ministério Público
pode prescindir da acusação, mediante autorização do Tribunal competente para a
abertura do procedimento ordinário.
A
Lei de Procédure Pénale da França, em seu livro I (De l’exercice de l’action
publique et de l’instruction), Título I (Des autorités chargées de
l’action publique et de l’instruction), Capítulo II (Du ministère public),
Seção III (Des attributions du procureur de la République), artigo 40,
esclarece o papel do Ministério Público, diante de um fato criminoso
A
Lei italiana n. 689, de 24 de novembro de 1981, em seus artigos 77 e seguintes,
prevê que o juiz, nos casos em que forem aplicáveis penas alternativas, a
pedido do acusado e após parecer favoráveis do Ministério Público, aplique-se
sanção, declarando-se em via de conseqüência extinta a infração penal, com o
registro da pena para o efeito único de impedir um segundo benefício.
O
Código de Processo Penal Italiano de 1988, em seus artigos 439 e seguintes e
artigo 556, prevê que a proposta de acordo pode ser formulada para crimes
apenados com até 2 (dois) anos de detenção, dele não decorrendo efeitos civis
ou registros penais, nem impedimento à concessão de sursis sucessivo. Tampouco
implica o acordo condenação a custas processuais.
O
Código de Processo Português, de 1987, em seus artigos 392 e seguintes, prevê
que o Ministério Público pode requerer ao tribunal a aplicação da pena de multa
ou de pena alternativa para penas detentivas não superiores a seis meses. O
representante do Ministério Público também funciona como representante da
vítima para formular pedido de indenização civil. A homologação judicial da
proposta aceita corresponde à condenação. Em caso de não aceitação, o Ministério
Público não fica vinculado à proposta para instauração do procedimento
sumaríssimo. [32]
6.2.
Modelo brasileiro de justiça penal consensuada
Previu
a Constituição de 1988 em seu artigo 98, I, a criação dos juizados especiais cíveis
e criminais, tendo estes últimos competência para a conciliação, julgamento e
execução das infrações de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos
oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o
julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Essa
previsão constitucional veio a atender à necessidade, já premente à época, de
se conferir maior velocidade aos julgamentos, especialmente na esfera criminal.
Com
esse entendimento, o constituinte determinou o início de um novo modelo de
processo penal no Brasil, no qual inúmeras garantias individuais eram previstas
ao cidadão, ao passo que certos princípios jurídico-criminais ganhavam
elasticidade.
Por
esse novo paradigma processual, aceitou o legislador primário que nem todas as
controvérsias penais necessitavam de processo efetivo e rígido, podendo ser
resolvidas mediante o consenso.
A
fim de se fazer cumprir a norma constitucional, era mister a promulgação de uma
lei federal, uma vez que apenas à União cabe legislar em matéria penal (artigo
22, I, CF).
Apenas
após a promulgação da lei federal é que se permitiria aos Estados criar seus
juizados especiais, as respectivas regras de organização judiciária, e os
procedimentos, atendendo estes às normas gerais editadas pela União na lei
federal, obedecendo sempre às peculiaridades regionais.
A
Lei n. 9.099/95 previu a criação dos Juizados Especiais e instituiu o consenso
na justiça penal brasileira.
Pode-se,
nesse contexto, traçar o perfil esquemático da justiça consensuada brasileira
da seguinte forma:
-
Contexto de política-criminal: princípio da intervenção mínima;
descriminalização; despenalização;
-
Órgão do Poder Judiciário competente: Juizados Especiais Criminais;
-
Legislação correspondente: Lei n. 9.099/95 e Lei n. 10.259/01;
-
Competência material: infrações de menor potencial ofensivo, definidas como
contravenções penais e crimes a que a lei penal comine pena privativa de
liberdade máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei
preveja procedimento especial. A partir da Lei n. 10.259/01, o conceito de
infrações de menor potencial ofensivo passou a abranger os crimes a que a lei
penal comine pena privativa de liberdade máxima não superior a dois anos,
abrangidas as contravenções e os delitos para os quais a lei preveja
procedimento especial.
-
Princípios gerais: oralidade, simplicidade, informalidade; economia processual
e celeridade;
-
Objetivos da lei: reparação dos danos sofridos pela vítima; aplicação da pena
não privativa de liberdade;
-
Principais institutos: conciliação (composição de danos civis) e transação
penal.
6.3.
A Lei n. 10.886/2004
Em
maio de 2002, foi sancionado pelo Presidente da República o Projeto de Lei n.
76, de 2001, convertido na Lei n. 10.455/02 que criou o instituto do
afastamento cautelar do agressor.
Em
virtude da necessidade premente e da cobrança da sociedade civil organizada
pela tipificação dos crimes intrafamiliares, em 17 de junho de 2004 foi
publicada a Lei n. 10.886 que acrescentou parágrafos ao art. 129 do Decreto-Lei
n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal, criando o tipo especial
denominado Violência doméstica, nos seguintes termos:
Art.
129. ..............................
.....................................
Violência
Doméstica
§
9.º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se
o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena
– detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.
§
10. Nos casos previstos nos §§ 1.º e 3.º deste artigo, se as circunstâncias são
as indicadas no § 9.º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço)."
A
edição desta lei é um marco na história da violência doméstica no Brasil, pois
em um passado próximo era ela admitida nas relações conjugais, como no caso da
ausência de tipificação do delito de estupro praticado pelo cônjuge.
Porém,
a pena aplicada ao delito ainda possibilita a sua inserção entre os delitos
considerados de menor potencial ofensivo, em razão de a lei dos juizados
especiais não distinguir os tipos penais pela sua natureza, mas apenas leva em
consideração a pena.
Pretende-se,
portanto, demonstrar que os delitos domésticos em razão dos bens jurídicos
atingidos, saúde, integridade física e psíquica e de ser praticados com
violência contra a pessoa não poderiam ser considerados de menor potencial
ofensivo.
7.
A LEI N. 9.099/95 E OS JUIZADOS ESPECIAIS
7.1.
Breve histórico sobre a criação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil
A
criação dos Juizados Especiais Criminais veio atender parte da demanda
reformista vigente há décadas no seio do pensamento jurídico brasileiro.
O
anteprojeto que resultou na lei federal n. 9.099/95 nasceu antes da promulgação
da Constituição de 1988, sob a forma de proposta ofertada por dois juizes de
São Paulo à Associação Paulista de Magistrados e colocada sob o crivo de grupo
de trabalho constituído por ordem da presidência do Tribunal de alçada daquele
Estado, integrado por juristas de renome.
O
grupo optou por elaborar substitutivo que foi discutido na seccional da OAB em
São Paulo e foi mesclado com sugestões de representantes de todas as categorias
jurídicas, resultando no anteprojeto finalmente apresentado ao deputado Michel
Temer. O anteprojeto transformou-se no projeto de lei n. 1480/89.
Ao
iniciar a tramitação legislativa surgiram propostas e projetos paralelos,
inclusive projeto de lei do Deputado Nelson Jobim.
O
Deputado Ibrahim Abi-Ackel, relator de todas as propostas na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara selecionou, para o âmbito penal, o projeto
Michel Temer, e para o cível o projeto Nelson Jobim, unificando os dois
projetos num substitutivo que, depois de tramitar pelo Senado foi retomado na
Câmara e aprovado definitivamente, transformando-se na lei n. 9.099, de
26.09.95.
Cumpre
informar, que os Estados do Mato Grosso do Sul – em 1990, através da Lei
Estadual n. 1.071 – e do Mato Grosso – em 1993, pela lei n. 6176 tomaram a
vanguarda na regulamentação do art. 98 do Texto Constitucional de 1988. Aos
Estados pioneiros juntou-se posteriormente a Paraíba.
A
discussão sobre a constitucionalidade das leis estaduais instalou-se de forma
ampla no cenário nacional. Enquanto alguns defendiam a necessidade de
promulgação de lei federal para a regulamentação da norma constitucional,
outros aplaudiam a adoção de iniciativas que implementavam no país a política
da oralidade, da celeridade, da economia e da racionalidade.
Embora
o Supremo Tribunal Federal tenha por fim decidido que a criação de juizados
criminais pelos Estados dependia de lei federal, e decretado a
inconstitucionalidade de norma estadual que outorgasse competência penal a
juizados especiais, a iniciativa dos Estados pioneiros vingou, cumprindo seu
papel, sobrevindo a edição da lei federal.
7.2.
O modelo de justiça criminal adotado no Brasil e os Juizados Especiais
O
modelo de justiça criminal adotado no Brasil, marcado mais recentemente pela
edição da lei dos crimes hediondos, em 1990, insere-se no contexto de um
sistema penal de tendência eminentemente "paleorepressiva",
assinalado por posturas como a de endurecimento das penas, corte de direitos e
garantias fundamentais, tipificações novas e agravamento da execução penal.
O
texto da Lei Federal n. 9.099/95 regula, a partir do art. 60, o funcionamento
dos Juizados Especiais Criminais, delineando sua competência e estabelecendo
normas penais, processuais e de procedimento, além de cuidar da execução da
pena.
Considerando
a justiça criminal um subsistema do sistema penal, os Juizados Especiais
Criminais representam um novo modelo de justiça criminal, de natureza antes de
tudo consensual, cuja finalidade maior e principal seria perseguir soluções
pacificadoras, rápidas e eficazes que atendam aos interesses dos diretamente
envolvidos no conflito - agente, vítima e sociedade.
A
Lei n. 9.099/95 é aplicável aos delitos tidos como de menor potencial ofensivo,
considerados aqueles cuja pena máxima cominada for igual ou inferior a dois
anos.
Várias
são as críticas a essa definição de menor potencial ofensivo, principalmente em
virtude de absorver alguns delitos em que há violência, como no caso dos crimes
domésticos.
O
que se pretende, neste estudo, é justamente abordar o tema da violência
doméstica à luz do sistema consensual inaugurado pela lei n. 9.099/95,
realizando a constatação empírica, através da realização da pesquisa de campo
proposta na introdução, da vitimização duplicada nesse novo subsistema.
Diante
de tudo o que foi dito, impende formular um questionamento: a atuação funcional
do sistema penal oferece solução, ou a resposta efetiva passa pela
diversificação das reações jurídicas diante da conduta desviante? Em alguns
ordenamentos jurídicos tem predominado a tendência à despenalização e
descriminalização, com a negação expressa e absoluta das posições radicais de
ultradireita, que pregam o dito novo realismo criminológico.
Mas
para que as alternativas descriminalizadoras causem uma renovação construtiva,
as medidas encetadas devem estar comprometidas, acima de tudo, com a
pacificação da situação conflituosa, almejada pela vítima, pela sociedade e,
muitas vezes, até mesmo pelo agente. Também na esfera judicial ele pode e deve
ocorrer, desde que os agentes de controle que promovem a aplicação efetiva da
lei tenham em mira buscar solução para o conflito, mais que para o processo.
Questiona-se
se o critério adotado pela Lei n. 9.099/95 para aplicar a justiça penal
consensual é adequado, ou seja, o critério da pena aplicada ao tipo penal
infringido. Entende-se que um conceito de direito material, como é o de
infração de menor potencial ofensivo, deveria ter atendido a critérios
definidos na criminologia e pela vitimologia (dentre eles o bem jurídico
tutelado pela norma e a periculosidade do agente), a fim de, conforme o
objetivo da lei – atender aos interesses da vítima – viabilizar a justiça
consensuada para as infrações cuja solução através do consenso sejam
suficientes para a solução do conflito.
Ocorre
que não é esse procedimento que se observa desde o atendimento prestado à
vítima nas Delegacias de Polícia, na falta de cumprimento dos prazos legais e
no tratamento que lhe é dispensado nas audiências nos juizados especiais.
Na
verdade, a vítima freqüentemente é mal atendida nas Delegacias de polícia, não
recebendo o tratamento e encaminhamento devido; as Delegacias não cumprem os
prazos para conclusão dos Termos Circunstanciados; os Juizes e Promotores
desconhecem o procedimento e na hora de aplicar a reprimenda penal, geralmente
estabelecem o pagamento de cestas básicas ínfimas pelo crime praticado.
O
resultado é que o sistema, confirmando uma tendência que não é nova, acaba por
jogar na vala comum o conflito doméstico, cuja potencialidade lesiva é alta,
porque a violência ocorre num âmbito eminentemente privado, costuma aumentar
gradativamente de intensidade e é normalmente reiterativa, implicando, no mais
das vezes, em constante e crescente risco de vida para a vítima.
Assim,
mister que sejam analisados mais profundamente esses aspectos da prática
judicial, a fim de salvaguardar os interesses das vítimas de crimes,
principalmente dos delitos domésticos. Pretende-se com a elaboração da
dissertação de mestrado discutir os problemas enfrentados pelas vítimas nos
juizados especiais criminais e quais as perspectivas de mudança desta
realidade, salvaguardando os direitos fundamentais das vítimas, sobretudo
mulheres e crianças.
Apresentada
a problemática a ser enfrentada, os dados estatísticos e as pesquisas empíricas
realizadas, conclui-se que a violência doméstica é um delito grave e que
acomete centenas de milhares de pessoas em todo o mundo. No Brasil os dados são
alarmantes.
A
potencialidade lesiva do conflito doméstico é intensa. A escalada progressiva
dessa violência que ocorre dentro de casa vai de um padrão de lesividade menos
grave (ameaças e lesões corporais leves) para outro altíssimo, às vezes irreparável
(lesões graves, estupro, homicídio).
Apesar
disso o que se vê é que os delitos domésticos são tratados nas instâncias do
sistema penal, em especial pelos Juizados Especiais Criminais, da mesma forma
que são tratados conflitos marcados pela eventualidade da relação vítima X
autor, como uma briga de vizinhos e um atropelamento no trânsito.
Fato
preocupante também é que o aparato da justiça também não está comprometido com
a solução do conflito, tampouco Juízes e Promotores estão preparados para
prestar um adequado atendimento às vítimas, preocupados, no mais das vezes, com
o destino do procedimento e com a celeridade do processo.
Precisa-se
modificar essa realidade. Conscientizar os atores do atendimento às vítimas de
crimes das conseqüências maléficas à sociedade pela prática da violência
doméstica e conclamá-los a abraçar essa causa e a se preocupar com os reais
interesses da vítima no processo criminal.
É
certo que muito pode ser feito para que, sem o desrespeito aos Direitos
Fundamentais do réu, possa a vítima ter tratamento digno de seu valor na
justiça criminal, satisfazendo suas pretensões e interesses, satisfazendo sua
concepção de justiça, o que está diretamente ligado ao retorno do status quo
anterior ao cometimento da infração e da harmonia tão desejada pela sociedade.
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03
Fonte: A Violência dentro de casa. Revista Cláudia, 1996.
04
Fonte: Dados do Cefêmea – Centro Feminista da Assessoria colhidos no site
www.wmulher.com.br/template.asp?canal=saude&id-mater=2071
05
Fonte: www.psiqweb.med.br/infantil/violdom.html
06
Fonte: www.interlegis.gov.br/comunidade/casas_legislativas/federal
07
IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e Violência contra a mulher – o papel do
sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. São Paulo: Annablume:
Fapesp, 1998, p. 09.
08
Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher, assinada pelo Brasil em 1981 e ratificada em 1984, com reservas e em
1994, sem reservas. Publicada no Diário do Congresso Nacional em 23.06.1994.
09
CEDAW. Relatório Nacional Brasileiro. Brasília, 2002, Distribuição
gratuita. p. 46.
10 LUÑO, Antonio. Los derechos
fundamentales. 6. ed. Madri: Tecnos, 1995, p. 43-44.
11
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos Fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1995, p. 57.
12
PASINI, Dino. Il problema dei diritti umani nel mondo occidentale. I Diritti
dell´uomo, Casa Dott. Eugenio Jovene. Napoli, 1979, p. 198.
13 BOBBIO, Norberto. Presente y
porvenir de los derechos humanos. Universidade Complutense.
Faculdade de Derecho. Instituto de Derechos Humanos, Madrid, 1982, p. 09.
14
PIEDADE JUNIOR, Heitor. Vitimologia: sua evolução no tempo e no espaço.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993, p. 11.
15 HULSMAN, Louk & CELIS, Jacqueline Bernal. Penas
Perdidas – o sistema penal em questão. 2. ed. Trad. Maria Lúcia Karam. Rio
de Janeiro: Luam, 1997, p. 117.
16
Pesquisa Nacional sobre as Condições de Funcionamento das Delegacias
Especializadas no Atendimento às Mulheres, realizada pelo Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública,
sistematizou informações do atendimento referentes ao ano de 1999, no
território nacional, em 267 delegacias de mulheres.
17
GARCIA, Ana Isabel e outros. Sistemas Públicos contra la Violência Doméstica en América Latina – Un
Estudo Regional Comparado. Fundación Gênero Y Sociedad. San Jose. Costa Rica. 2000.
18
Fonte: A violência dentro de casa. Revista Cláudia, julho de 1996, p.36.
19
Estado de São Paulo, 1990.
20
Estado de São Paulo, 1990.
21
O Globo, 6/8/1989, p. 06.
22
Jornal do Brasil, 11/7/1989, p. 08.
23
Folha de São Paulo, 10/01/2004, p. 14.
24
HERKENHOFF, João Baptista. Como funciona a cidadania. 2.ª ed. Manaus:
Editora Valer, 2001, p. 20-21.
25
Fonte: Diário do Congresso Nacional, relatório final da CPI destinada a
investigar a questão da violência contra a mulher, 1993.
26
Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Violência contra a Mulher, Congresso
Nacional, 1993.
27
Fonte: idem 18.
28
Fonte: idem 18.
29
Fonte: idem 23.
30
Fonte: video "Violence against women: a violation of human rights",
editado pelo Institute for Development Training en Chapel Hills, NC, EE.UU. As
estatísticas sobre Nicaragua foram colhidas no artigo "‘Sopa de muñeca´´ a
discreción", publicado por el diario El País em 22 de março de 1998.
(www.vidahumana.org)
31
Fonte: www.psiqweb.med.br/infantil/violdom.html
32
ARAÚJO, Letícia Franco de. Violência contra a Mulher. A Ineficácia da
Justiça Penal Consensuada. São Paulo: Lex, 2003, p. 34-36.
*promotora de Justiça em Maceió (AL), pós-graduada em Direito Constitucional pelo Cesmac/Fadima, mestranda em Direito Público pela UFAL
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A violência doméstica como violação dos direitos humanos . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 901, 21 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7753>. Acesso em: 14 nov. 2006.