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Homicídios de Adolescentes:
Refletindo sobre Alguns Fatores Associados
Sergio Kodato*
Ana Paula Soares da Silva**
Resumo
Este estudo é uma investigação de alguns fatores associados a homicídios
praticados contra adolescentes, no município de Ribeirão Preto (SP), onde, no
período de
Palavras-chave: Homicídio; adolescência;
violência; tráfico de drogas.
Adolescents’ Homicide: Thinking about Some Associated Factors
Abstract
This research is an investigation of some factors associated to homicides committed against adolescents, at the city of Ribeirão Preto (SP),
in which, during the period of
1995-1998, 101 children and
adolescents were killed. The collect
and analysis of data were made
throughout the association of the following methods:
sociographics data enrollment,
analysis of taken lawsuits in the local prosecuting counsel; participant observation of the local internment institution, destined to adolescents authors of infraction acts;
interview with intern adolescents for homicide acts (n=8). As a result one may state
that the life conditions that ends on
death of adolescents are product of a synchronization of factors, where,
besides the fragility of institutions,
one may observe determinants the dispute for appropriation of goods, conflict of financial interests, drug traffic and,
a mode of producing of interpersonal
relationship, of which resolution of conflictive situation materializes in non mediate and violent
ways.
Keywords: Homicide;
adolescence; violence; drug traffic.
As demandas da sociedade civil por maior
segurança e melhores condições de vida contrastam com a miséria crescente e a
multiplicação das ocorrências de violência em todas as esferas da vida social.
A dificuldade dos aparelhos de Estado em conter ou amenizar o incremento do
crime, dos atentados ao patrimônio e à própria integridade física do cidadão
comum, acabam por colocar segmentos significativos da população em estado de
pânico e temor.
Se, como coloca Adorno (1995, p. 303), "a
história da sociedade brasileira pode ser contada como uma história social e
política da violência", o recrudescimento da criminalidade geral e a
multiplicação de suas faces e dimensões, atingindo em especial e
inexoravelmente crianças e adolescentes, possibilitam dizer que se está diante
de uma nova fase dessa história. Uma fase de mudança quantitativa e
qualitativa, caracterizada pelo aumento e agravamento dos episódios de
violência. Uma fase de crise no processo civilizatório,
onde impera a lei do mais forte, numa tragédia fáustica,
que exige esforços consideráveis no sentido de atenuar e sublimar os efeitos
desse mal.
Esta investigação incursiona
por esse campo intrincado da manifestação cotidiana da violência e, em
especial, da sua última conseqüência, o homicídio. Os dados foram coletados na
cidade de Ribeirão Preto, que se localiza na região nordeste do Estado de São
Paulo, situando-se a
A escolha de Ribeirão Preto justifica-se pelo
fato de que, nesta cidade, o índice de homicídios apresenta uma elevação
crescente nos últimos anos. Segundo dados da Fundação SEADE (1999, www.seade.gov.br ),
no início da década atual, este índice, para cada 100.000 habitantes, era de
15,89 (em 1991). Em 1998, ele chega a alcançar 43,64. Durante este período, os
dados disponíveis indicam ainda os seguintes valores: 18,08 em 1994, 41,68 em
1996 e 37,54 em 1997. Como se percebe, a partir de 1994, o índice dobra,
aproximando-se, por exemplo, daqueles relativos à cidade de São Paulo, no
início da década, que, de 44,79 em 1991, e, 44,90 em 1994, saltou
para 55,56 em 1996 e 54,76 em 1997 (Fundação SEADE, 1999). É importante notar
que o maior aumento no índice de homicídios,
Em relação à população jovem, os índices de
mortalidade por homicídio não são tão elevados quanto os da população
Entretanto, tal fato não minimiza a gravidade do
problema
Contudo, não é este o fato que mais vem chamando
a atenção dos diferentes segmentos sociais. É a participação do adolescente em
atos violentos e não o seu processo de vitimização
que mobiliza opiniões e solicitação de intervenção. E neste tocante, os dados
sobre a autoria de homicídios por jovens parece vir de
encontro com as especulações. Pelo menos o número de processos registrados no
município aponta para um crescente aumento. De acordo com Silva (1999), que
realizou um levantamento de processos de adolescentes autores de atos infracionais que tiveram envolvimento com o Juizado da
Infância e Juventude no município, durante o período
Considerando-se o processo de aumento no número
de homicídios no município, tanto os praticados pelos adolescentes como aqueles
em que eles figuram como vítimas, que fatores estariam neste fenômeno
articulados? Quem são os adolescentes vítimas dos
homicídios atuais? Por quais motivos, em que circunstâncias e por quem são
cometidos tais assassinatos? Haveria associações entre a prática de atos infracionais, a passagem por instituições de internamento e
a vitimização?
A fim de levantar indícios que possibilitem
melhor refletir e compreender estas e outras questões é que foi realizado este
trabalho. Pretende-se, com ele, a partir do conhecimento de determinadas
condições que contribuem para a ocorrência dos homicídios, fornecer
subsídios para a possibilidade de ações preventivas e/ou remediativas
que atenuem o problema.
Método
Participantes
Cento e um processos instaurados no Ministério
Público, visando a apurar os homicídios de adolescentes, no período de 1995-98,
foram analisados e classificados.
Oito adolescentes internados por prática de
homicídio na Unidade Educacional da FEBEM, situada
Material
As entrevistas foram gravadas
Procedimentos
Como
se observa, nesta investigação, recorreu-se ao inter-método que permite a
articulação entre a pesquisa quantitativa e a qualitativa, sendo portanto a coleta e a análise dos dados realizadas através
da conjunção das seguintes técnicas: 1) levantamento de dados sociográficos, através da análise dos processos judiciais
instaurados no Ministério Público local, em função dos homicídios ocorridos (n=
101); 2) observação participante da instituição de internamento no município,
destinada para adolescente autor de ato infracional
(FEBEM/RP, UE-03); e, 3) entrevistas com alguns dos adolescentes internos pela
prática de homicídio (n= 8).
Com relação ao levantamento sociográfico,
objetivando-se a busca das regularidades, empreendeu-se a coleta de informações
que pudessem ser quantificadas. Foram levantadas e classificadas informações
referentes a: a) dados pessoais, como idade, local de
residência, ocupação, escolaridade, naturalidade, responsável, etnia e envolvimento
com tráfico, b) dados sobre o homicídio, contendo informações sobre local de
ocorrência, distrito policial, a forma como ocorreu o crime, a qualificação e
situação do homicida, versão do Boletim de Ocorrência e outras versões surgidas
ao longo do inquérito policial, bem como o desfecho do processo, c) dados sobre
internação, investigando-se, nos casos onde as vítimas tiveram passagens pela
FEBEM, o número de vezes em que estiveram internadas, o número de dias que
permaneceram na instituição, a quantidade de fugas e se saíram ou não da
instituição com a definição de outra medida, como a liberdade assistida.
Quanto à utilização das técnicas de observação na
instituição de internamento e de entrevista com os adolescentes internos pelo
cometimento de homicídios, a mesma foi requerida quando do levantamento dos
dados sociográficos. Dentre as vítimas às quais
constavam informações sobre a internação, número significativo havia passado
pela FEBEM, o que indicava que os homicídios poderiam estar realmente
vinculados ao mundo da delinqüência e, consequentemente, também às instituições
encarregadas de coibi-la ou remediá-la.
As observações foram realizadas durante um
período de seis meses, distribuídas em duas visitas semanais à instituição.
Cada visita durava em média três horas. Após a visita, anotava-se no diário da campo as observações feitas pelo pesquisador. Neste
trabalho, foram utilizadas as observações relativas à proposta pedagógica da ins–tituição destinada aos adolescentes autores de
homicídio.
As entrevistas foram semi-abertas, baseadas em
roteiro estruturado em torno dos atos infracionais
cometidos pelos entrevistados, principalmente os homicídios. As en–trevistas foram realizadas individualmente, na própria ins–tituição de internamento, durando em média 60 minutos.
Cada adolescente foi entrevistado uma única vez.
Resultados
Levantamento Sociográfico
dos 101 Processos
Pode-se afirmar que a maior parte da amostra é
oriunda das camadas pobres da população. Embora não haja a disponibilidade de
dados quantitativos sobre a renda das famílias, é a conjunção das informações
que permite esta afirmação. Baixa escolaridade, desemprego, baixa qualificação
profissional dos responsáveis e condições de moradia são exemplos de elementos
que compõem esta configuração.
Os dados sobre o local de residência das vítimas
mostram que a maior parte (75,24%) residia nas regiões Norte e Oeste do
município, setores de maior concentração populacional. Segundo dados da
Prefeitura Municipal (1998), nestas regiões, em 1996, residia
74,55% da população do município. Também foram essas regiões que centralizaram
a maior parte dos homicídios (78,22%).
Com relação à escolaridade, os resultados indicam
que as vítimas possuíam baixo nível de instrução, sendo que a maioria, 41, 96%,
situou-se na faixa de primeira a quarta série. Pode-se citar que, em relação ao
primeiro grau, 10,89% cursou até a segunda série,
11,88% até a quinta série e, apenas 3,96% cursou até a oitava série.
Geralmente, o abandono da escola ocorre entre os doze e quatorze anos, faixa
etária que marca o início do envolvimento com os atos infracionais.
Quanto à idade, a maioria (58,41%), quando do
falecimento, situava-se na faixa dos 16-17 anos. Esta porcentagem eleva-se para
84,15% quando considera-se a faixa que compreende dos
15 aos 18 anos de idade. Com relação a etnia das
vítimas, as porcentagens distribuem-se da seguinte forma: 45,54% de brancos,
53,46% de negros e pardos e, 0,99% sem informação.
A
distribuição de acordo com o gênero ratifica a masculinização
do mundo do crime, e em particular do crime organizado, como discutido por Zaluar (1996). Dentre as vítimas, 94,06% era do gênero
masculino e apenas 5,94% (n=6) do feminino. Quando se considera o gênero dos
autores dos homicídios, apenas em um dos casos verifica-se a presença e autoria
de uma mulher.
Nascidas na maioria (68,32%)
A
ocupação das vítimas era diversificada entre serviços gerais, servente de
pedreiro, chapa, ajudante de bar, balconista, etc. Todas as atividades
caracterizam-se pela não exigência de qualificação ou grau de escolaridade. Na
realidade, o tráfico de entorpecentes parece ter sido a principal atividade
econômica. Em muitos casos, com os proventos advindos dessa atividade, os
adolescentes contribuíam para o orçamento familiar e alguns chegavam a
sustentar suas famílias. Em outros, os adolescentes abandonaram a família e
passaram a ter vida independente, morando na rua ou no próprio ponto de venda
das drogas. A avaliação dos processos judiciais apontou, em meio a
singularidades e peculiaridades, para ao menos uma constância: grande parte dos jovens vitimados apresentavam antecedentes infracionais e passagens pela Unidade Educacional da FEBEM
de Ribeirão Preto (UE-03), particularmente antecedentes que envolvem a presença
das drogas. Dos 41 casos em que foi possível obter a informação, 29 constavam que o adolescente possuía envolvimento com o
narcotráfico, o que representa 70,73% dos processos com informação.
Em relação ao uso de entorpecentes, em 11,88% dos
processos continha informação de que a vítima não fazia uso e, em 42,57% dos
processos havia informação de que a vítima usava maconha e/ou crack. Em grande parte dos processos não há
informações precisas (45,54%), mas apenas suposições de envolvimento com
drogas.
Quanto ao antecedente de internação, como
referido anteriormente, dos 84 casos com esta informação, 45 passaram pela
FEBEM, permanecendo em média 116 dias. A menor permanência foi de um dia e, a
maior, de 577 dias, alguns sendo inclusive encaminhados para a FEBEM da capital
do Estado. Os dados sobre a quantidade de vezes em que estiveram internados
apresentam as seguintes distribuições: 35,56% teve uma
passagem; 24,44% duas passagens; 24,44% três passagens; 6,67% quatro e, 6,67%
cinco passagens. Dentre esses adolescentes (n= 45), 55,56% empreendeu
tentativas de fuga durante o período da internação. Por sua vez, no que diz
respeito à desinternação, dos 41 casos com
informação, apenas 16 saíram em liberdade assistida e um foi encaminhado para o
Conselho Tutelar. Os outros 24 saíram da instituição sem aplicação de qualquer
medida.
Os homicídios, quase totalmente, foram cometidos
por arma de fogo (geralmente revólver calibre 38). Apenas três foram cometidos
por arma branca (estiletes e faca): um contra uma vítima do gênero masculino, e
dois, contra duas meninas, sendo um cometido pelo namorado e outro pela única
mulher autora de homicídio.
Como observado acima, o local do homicídio
geralmente coincide com a região de residência da vítima, bem como em
determinados casos, a vítima figura, em outro processo analisado, como a autora
do homicídio, caracterizando um movimento cíclico nesse processo, onde existe
uma proximidade bastante forte entre as vítimas e os autores dos homicídios.
Geralmente, os homicídios seguem um mesmo padrão:
dois indivíduos em uma moto, portando armas de fogo, saem à procura da vítima e
quando a encontram, o passageiro descarrega sua arma
sobre a mesma, empreendendo-se a fuga logo
A autoria do homicídio é conhecida em apenas
43,56% da amostra e, em 56,43% ela é desconhecida. Ou não há outras informações
(por exemplo, não haviam testemunhas), ou se impôs a
lei do silêncio, ou ainda, as investigações não foram concluídas, indicando que
a morosidade e inoperância da polícia legitimam a impunidade.
Em relação à idade do autor, é significativa a
participação de menores de 18 anos. Dos 44 processos onde a autoria é conhecida,
em 20 o homicídio foi cometido ou assumido apenas por adolescente, em 15
somente por maiores e, em nove, foi cometido por menores e maiores de idade. O
número bruto de autores dos homicídios (n=58) mostra que há uma
equivalência entre o menor e o maior de idade: 29 eram menores e 29 maiores. De
acordo com levantamento da D.I.G., citado anteriormente, 42%
dos homicídios, registrados no ano de 1998, foram praticados por jovens
com menos de 18 anos. Em nossa pesquisa, como se verifica,
do total de autores identificados, 50% são menores de 18 anos, chamando assim a
atenção para o fato de que adolescentes estão sendo utilizados, seja como
matadores, seja assumindo a autoria de um maior de idade. Os jovens assumem a
responsabilidade em metade dos homicídios cometidos na cidade, e um número cada
vez maior deles está sendo vítima de homicídio. Isto é evidência cabal de que
os mecanismos de contenção e canalização da violência estão funcionando
precariamente, em crise permanente de realização.
A
polícia participa diretamente como autora em 4,9% dos homicídios, alegando
estrito cumprimento da lei. Em outros, ela aparece como suspeita, apontada por familiares ou por algumas
testemunhas. Em depoimentos de adolescentes internados na FEBEM, encontram-se
também referências a espancamentos e constrangimentos sofridos quando
surpreendidos pela polícia em via pública.
Quanto ao desfecho dos processos, a ausência de
informações dificulta análises mais precisas. Em 48 processos, inexiste o
relatório de conclusão dos fatos e, em 15 ainda não foram concluídos os
inquéritos policiais. Em onze casos, foi decretada a prisão preventiva e em
cinco, o indiciamento. Alguns casos foram arquivados pela morte do autor (n =
4) ou pelo autor estar foragido (n = 1). Outros,
aguardavam a identificação do autor (n = 6). No caso de autores
menores de idade conhecidos (n = 29), em dez processos aparece o
encaminhamento para a Vara da Infância e Juventude e, em um houve a aplicação
da internação.
Os poucos casos de declaração de prisão
preventiva do indiciado indicam que não há efetivo interesse e vontade política
para a apuração dos fatos. A maior parte dos inquéritos não é concluída pela
morosidade, quase paralisação nas investigações, seja por falta de laudos
periciais, seja talvez pela falta de equipamentos, viaturas e recursos humanos.
A Análise Institucional da FEBEM-RP e as
Entrevistas com Adolescentes Homicidas
Na análise da instituição FEBEM-RP, verificou-se
uma insuficiência nas práticas pedagógicas, apesar do esforço cotidiano dos
agentes institucionais envolvidos. O período escolar é optativo, ao contrário
do que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
A ressocialização
depende muito mais de esforços pontuais de profissionais da instituição e das particula–ridades de cada adolescente do que da existência
e manu–tenção de um programa
pedagógico articulado e consis–tente com os objetivos
de uma internação, tal qual apregoa o ECA e as normas internacionais na área.
Não há um programa claro e fundamentado com diretrizes, conteúdos e atividades,
sendo o ócio a característica central na rotina de grande parte dos internos.
Considerando-se que muitos adolescentes são internados por envolvimento com
drogas, de acordo com dados da própria instituição, 90% dos internos foram ou
são usuários, seria de se esperar, numa proposta psicopedagógica,
a presença de intervenções que tratassem da dependência. A ausência de
trabalhos como, por exemplo, o desenvolvido no formato de comunidades
terapêuticas, deixa uma lacuna para aqueles adolescentes que porventura
desejariam abandonar o uso das drogas. Ao contrário, a exemplo do que ocorre em
outras instituições com a mesma característica, e de conhecimento público, há
indícios que tratam da presença de drogas no estabelecimento. O cheiro de
maconha é um destes indícios, registrados nos boletins internos da instituição.
A guerra de grupos que controlam o tráfico manifesta-se também dentro da
própria instituição, havendo internos de um pavilhão que não podem entrar em
contato com internos de outros pavi–lhões: são os
chamados espinhos. A instituição FEBEM parece estar
portanto estacionada no nível da assistência psico-pedagógica,
não realizando sua função sócio-edu–cativa e, com
isso, pouco contribuindo para a ressocia–lização,
quando não agravando a conduta infracional.
Quanto às entrevistas realizadas com menores
internos que cometeram homicídios, as análises apontam para uma boa capacidade
de compreensão, raciocínio, iniciativa e também, de frieza nos momentos de
tensão. As infrações geralmente começam com uso de drogas e pequenos assaltos,
que segundo eles são motivados pela necessidade, mas realimentados pela
ganância, fato semelhante ao relatado por Craidy
(1998), sendo esta uma das características que, segundo a autora, distingue o
infrator do menino de rua. Os homicídios geralmente são atribuídos a impulso
incontrolável, atitude impensada, defesa no sentido de matar ou morrer,
necessidade pelo fato da vítima do assalto ter reagido. Não se notam
indícios de culpa com relação ao homicídio, havendo arrependimento em somente
dois casos dos oito entrevistados. As armas são adquiridas com grande
facilidade e os atentados são premeditados, geralmente envolvendo cúmplices.
Demonstram familiaridade com a guerra de gangues: "de vez em quando a
gente ia dar uns tiros nas bocadas dos outros". Relatam
espancamentos e abusos sofridos quando detidos por policiais, que deixam
seqüelas de ódio e ressentimento. Para alguns adolescentes entrevistados,
polícia é pior que bandido. Queixam-se do ócio na FEBEM e têm ciência de
que se não tomarem providência no sentido de mudança no estilo de vida,
fatalmente encontrarão a morte. Segundo os próprios adolescentes, quem mata
morre. Representam a violência como instrumento de intimidação e poder.
Discussão
O contexto social, no qual se desenrolaram os
fatos, mostra um quadro de evidente pobreza. Cabe salientar que não se está
aqui assumindo uma relação direta entre miséria e criminalidade. A criminologia
crítica (Taylor, Walton & Young, 1980), há muito,
apontou com clareza que a questão fundamental é a produção das leis e a atuação
enviesada das instituições de controle social da violência, "que só
identifica como criminoso o delinqüente oriundo das classes populares" (Zaluar, 1996, p. 67). Tal reconhecimento, contudo, não
exclui aquele relativo à existência de configurações infracionais ligadas a determinadas classes sociais.
E, na problemática estudada, ou seja, homicídios, fica
bastante clara a sua relação com as condições de extrema pobreza, bem como com
os fatores a ela inerentemente vinculados, em especial, a busca por uma
alternativa econômica e de sobrevivência, encontrada por esta população no
mundo do comércio das drogas.
A exposição aos estímulos e oportunidades de
pequenos delitos e de envolvimento com o comércio das drogas parece ainda
vinculada também à constituição familiar, ou melhor, à rede de apoio dos
adolescentes, em especial, à ausência de figuras que possam exercer um papel de
apoio e proteção à vulnerabilidade e ao risco. Na maioria dos casos, o
envolvimento com o tráfico inicia-se num momento da vida onde a introdução ao
mundo adulto apresenta-se de forma bastante contraditória. De acordo com
Pinheiro (1997, p. 46), "...muitos jovens
tentam compensar a marginalidade aderindo as gangues de rua, enquanto outros se
envolvem no tráfico de drogas. O crime se torna a maneira mais fácil e rápida
de ter mobilidade social e canais ‘respeitáveis’ para tal mobilidade são
cortados amplamente". Numa predestinação ao ilícito, a extrema
pobreza e a falta de opções empurram o adolescente para a marginalidade e a
criminalidade, ao mesmo tempo em que ele é ideologicamente capturado pelos
sonhos de consumo e grandeza, veiculados pela mídia e valorizados socialmente
como sinônimo de felicidade e sucesso.
Para Castro (1998, p. 18) "as construções identitárias da contemporaneidade apontam, também, na
direção da radicalização do individual onde o sujeito apenas se reconhece na
apoteótica realização dos ditames da cultura de consumo". A falta
de condições dignas de sobrevivência, a frustração diante de tantas
oportunidades virtuais de consumo são elementos para se pensar a prática infracional, de certa forma, enquanto uma conduta reativa.
A atividade ilícita é perpetrada no sentido de suprir uma falta, uma carência
no plano material e simbólico, busca desesperada de satisfação que acaba
redundando em morte.
Como afirma Violante
(1997, p. 58), "ao sair da infância, o Eu deve poder auto-investir
e projetar-se no futuro, na esperança de ter, então alcançado seus ideais (...)
Para constituir-se, o Eu exige realidade: prazer real, significação e
reconhecimento advindo de, pelo menos, um outro Eu que lhe sirva de ponto de
apoio, modelo identificatório e suporte de
investimento...". Marcados por um momento em que a modernidade apresenta
frutos impossíveis de serem alcançados, e, pela ausência de modelos que
contrariem o dito popular que "o crime não compensa", o modelo
identificatório dos adolescentes passa facilmente a
ser o do traficante, poderoso e bem sucedido. Os dados de Silva (1999) são
bastante representativos deste poder de atração. O tráfico de entorpecentes é a
segunda infração que mais cresce no período estudado pela autora, aumentando,
em treze anos, 23,75 vezes.
A ausência de figuras significativas de
autoridade parece assim agravar, em determinados casos, o relacionamento desses
adolescentes com a lei e com a sua adaptação às instituições sociais. Por outro
lado, nas famílias onde ocorre a ausência de um dos cônjuges, em geral, o menor
é forçado muitas vezes a abandonar a escola e ingressar precocemente no mercado
de trabalho, como forma de sobrevivência e auxílio na renda familiar. A
necessidade alia-se à possibilidade de ganho substancioso e o menor é capturado
para o furto ou para o pequeno tráfico de varejo, na função de
"avião". Estando no meio do pequeno tráfico, insere-se num
ambiente de consumo de álcool e drogas, onde ocorre um intenso comércio
obviamente ilegal de armas, bicicletas e motos e, que lhe possibilita o contato
com um mundo simbólico bastante marcado pela peculiaridade da atração do crime
organizado. O consumo de drogas, constitui-se assim em
uma das principais portas de entrada para os atos infracionais
e para o tráfico. Adolescentes pobres dependentes passam a praticar pequenos
delitos para pagar dívidas assumidas com o uso de substâncias entorpecentes.
Aos poucos, assumem "bronca" de traficantes
maiores, inserindo-se assim numa rede de conflitos e disputa de mercados.
Dentro dessa dinâmica de vida comercial ilícita, de economia de troca
conturbada, de intenso porte de armas, no convívio inter-grupal,
é inevitável que os pequenos desacordos sejam resolvidos de forma violenta,
intensificando-se até suas últimas conseqüências.
Nesse mesmo sentido, também os espaços vivenciados
pelos adolescentes não oferecem condições para mudarem a trajetória de
envolvimento com o crime. A amostra estudada é insuficientemente instruída,
compondo o contingente de alunos repetentes que acabam evadindo-se, e muitas
vezes sendo expulsos da escola. As medidas aplicadas àquelas vítimas com
antecedentes infracionais, que tiveram passagem pelo
Juizado da Infância e Juventude, por sua vez, também não foram suficientes para
oferecer novos referenciais e possibilidades de re-significação do papel social
desses adolescentes, nem mesmo, para impedir a internação. Uma vez internados,
essa medida foi marcada pela inatividade, pelo ócio, não conseguindo cumprir
assim o caráter sócio-educativo de reeducação. A maioria reincide e procura
fugir da instituição ou, quando saem, retornam ao mundo do crime.
Com relação ao autor do homicídio, a maior
parcela não é identificada pela morosidade nas investigações, sendo poucos os
casos de efetivação da prisão do autor do homicídio. Além de dificuldades
técnicas, articulam-se a falta de recursos materiais, a ausência de vontade
política de setores da polícia que, capturados por determinados agenciamentos
ideológicos, podem vir a entender a morte de adolescentes infratores como
"higiene social". Ao mesmo tempo, há que se considerar que, quando
ocorre a identificação, poucas são as possibilidades de re-socialização destes
autores, sejam eles adultos ou adolescentes. Cumprindo pena ou medida
sócio-educativa em instituições com reconhecida dificuldade de efetivação de
seu papel, numa cultura infracional e num contexto
extremamente complexo de disputas, dificilmente os autores de homicídios
conseguirão romper com o círculo repetitivo do fenômeno, podendo sempre ser a
próxima vítima.
Considerações
Finais
Em todos os atestados de óbito das vítimas,
existe uma observação que sintetiza claramente uma trajetória existencial
marcada pelo não: "não era eleitor, não era reservista, não deixou filhos,
não deixou bens, teve morte não natural". Desprovidos de condições dignas
de sobrevivência, não assistidos em seus direitos elementares, não reconhecidos
na singularidade de suas demandas, não tiveram os adolescentes a possibilidade
de atingir a vida adulta. Não tiveram acesso às políticas sociais básicas,
definidas enquanto prioridades no Art. 4 do ECA e, ao
que tudo indica, não sofreram a ação das políticas de assistência social e nem
das medidas de proteção (Incisos II e III, Art. 87 do ECA). Não puderam ainda
beneficiar-se efetivamente das medidas sócio-educativas, propostas no sentido
de se evitar a escalada no mundo da delinqüência e de promover a
re-socialização do adolescente. Em suma, as vítimas, na grande maioria, não
tiveram condições infra-estruturais favoráveis ao desenvolvimento pleno, não
receberam a assistência necessária, enveredaram-se pela delinqüência e
incapacitados para a reabilitação social, continuaram a infracionar,
acabando por ser mortas.
A forte presença da não possibilidade na vida
destas vítimas, que poderíamos também denominar de incompletude,
não é apenas uma característica que aparece de modo isolado. Ela articula-se
ainda com o que identificamos como impotência e repetição. Incompletude,
impotência e repetição marcam não apenas a trajetória individual, mas o
fenômeno estudado como um todo.
Os
processos não se completam, inexistindo informações e finalizações desde o
abandono ou exclusão da vida escolar até o próprio inquérito que investiga o
homicídio. Faltam dados, medidas e providências. Essa realização parcial indica
o descaso com a efetiva recuperação e reintegração do adolescente. Se a
prioridade na proteção, execução de políticas sociais e destinação preferencial
de recursos públicos não está sendo executada, isto
certamente implica numa deterioração maior ainda no nível de vida dos
adolescentes, em especial dos provenientes de camadas pobres. Nesse sentido,
podemos considerar os homicídios como decorrentes diretamente do fracasso das
instituições que não cumprem com seu papel prescrito socialmente. Mais do que
isto, algumas delas criminalizam ainda mais o
adolescente, ao invés de lhe oferecer um atendimento adequado.
É exatamente nessa fragilidade das instituições e
no alcance de resultados significativos, que repousa a outra faceta do fenômeno
em questão, a impotência. Impotência no discurso e na prática. Em especial,
impotência dos aparelhos de Estado diante do crime e tráfico organizados, cada
vez mais equipados.
O
aparecimento do crack, o seu consumo e a
distribuição pulverizada por micro-traficantes, parece ter
alterado sensivelmente a configuração da criminalidade no município. Os
dados de Silva (1999) apontam para a utilização de armamento pesado por parte
dos adolescentes, tais como metralhadoras e fuzis, indicando uma mudança
qualitativa na história da delinqüência juvenil no município, nos últimos anos.
Embora ainda a grande maioria dos autores de atos infracionais
seja composta por aqueles que praticam atos leves e desprovidos de violência,
esses adolescentes, paulatinamente, gozam de uma infra-estrutura e de um
suporte logístico oferecido pelo crime organizado. E, no nível da produção de
subjetividades, verifica-se, na cultura dos adolescentes envolvidos na prática
de atos ilegais, um processo de glorificação do crime. Entre os
institucionalizados, são aqueles que cometeram infrações pesadas, como
homicídios e latrocínios, inseridos em uma estrutura de tráfico organizado, os
que são mais respeitados e temidos, não apenas por outros adolescentes, mas
também pelos monitores e coordenadores da instituição.
Neste universo simbólico, os adolescentes são
colocados na linha de frente, não só do tráfico de varejo de entorpecentes, mas
da guerra entre gangues, tanto assumindo crimes cometidos por maior imputável,
quanto eles próprios cometendo o homicídio diretamente. Está em curso um
processo de produção de mortes de jovens, que necessita ser manietado em algum
elo de sua cadeia, uma vez que apresenta uma tendência de franco e cíclico
crescimento.
As histórias dos adolescentes vitimados,
excetuando-se os casos de mortes por engano, aponta
ainda para uma repetição de ocorrências, eventos premeditados. A leitura dos
processos é uma repetição de fatos, uma produção em série: evolução do
envolvimento da vítima com atos infracionais,
apreensões pela polícia , passagens por instituições,
presença do tráfico de entorpecentes, uso e porte de armamento pesado, matar e
morrer.
Com
certeza, neste processo onde adolescente mata adolescente, existe a mediação de
adultos, seja através das quadrilhas, seja através das instituições que
desvirtuam seu papel. O aumento no número de adolescentes que assumem a autoria
dos homicídios é assustador. Mais do que isto, é indicativo de que anos de
políticas e práticas institucionais e sociais mal conduzidas e eivadas de
equívocos, geraram e repetiram, em determinados segmentos populacionais, como
mecanismo de sobrevivência e canal de ascensão social, uma geração de
adolescentes submetidos à vitimização e/ou à
propensão à infração e ao delito.
Como conclusão, pode-se afirmar que a
delinqüência e as condições de vida que levaram à morte os adolescentes, são fruto de uma sincronização de fatores, onde, além da
fragilidade institucional, observa-se como determinantes a disputa pela
apropriação de bens materiais, o embate de interesses financeiros e de
comercialização de entorpecentes, e, um modo determinado de produção de
subjetividades, cujo destaque pode ser dado à recorrência à resolução de
conflitos de forma não mediada e violenta.
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Crime e castigos vistos por uma antropóloga.
*Psicólogo, Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Professor do Curso de Psicologia da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto.
**Psicóloga, Pesquisadora do Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI), Mestre em Psicologia e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722000000300018&lng=es&nrm=iso>. Acesso em: 12 nov. 2006