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Aborto por Anomalia Fetal

 

 

Thomaz Rafael Gollop*

 

 

O avanço da ciência médica e, em especial, das novas tecnologias reprodutivas, inicia em nosso meio um debate muito importante e que já evoluiu muito em países desenvolvidos, relativo à adequação ético-legal dos resultados obtidas através dessas mesmas tecnologias. O diagnóstico pré-natal (DPN) de anomalias fetais permite, em casais com risco genético, avaliação muito precisa de patologias fetais. Quando não existe tratamento para a afecção diagnosticada, estabelece-se uma situação angustiante para a família que, segundo o autor, deve ser contemplada com um atendimento profissional seguro e competente. Essa questão é tratada no presente artigo, que se acompanha de revisão da realidade de outros países e de reflexões sobre o encaminhamento desse problema em nosso país.

UNITERMOS - Ética, medicina fetal, aborto por anomalia fetal, aborto-legislação.

O descompasso entre o avanço de ciência e a lei

"Tem sido sempre dever e obrigação do médico, desde tempos imemoriais, fazer tudo que ele pode para preservar a vida e jamais tirar uma vida inocente. Eu, sem dúvida, reconheço que há alguns entre nós, na profissão médica, que pensam que em determinadas circunstâncias rígidas esta obrigação dera ser colocada de lado."

Eduard J. Lauth Jr., 1967

O diagnóstico pré-natal (DPN) de anomalias fetais foi uma aquisição incorporada à medicina na década de 50 nos países desenvolvidos, e iniciada no Brasil no final dos anos 70. Nos últimos anos desenvolveu-se uma nova área multidisciplinar de atuação, denominada Medicina Fetal, que incorporou às técnicas de diagnóstico as possibilidades da terapêutica intra-uterina. Não há dúvida que o futuro trará avanços imensos e será possível tratarmos fetos com doenças graves por meio da terapia gênica. É fundamental, entretanto, transportarmos o foro das discussões para a realidade vigente. O diagnóstico de anomalias fetais foi mais influenciado por fatores sociais que por avanços técnicos. Sua evolução dependeu das mudanças de atitudes que a sociedade foi apresentando, à medida que a industrialização prolongava a vida média das pessoas, hoje de 80 anos nos países desenvolvidos, ao mesmo tempo que a mulher ganhava espaço na vida produtiva. As mulheres que procuravam prosseguir os estudos e entravam no mercado de trabalho diavam a maternidade até a quarta década de vida, passando a constituir um grupo de gestantes de maior risco genético para aberrações cromossômicas. O DPN permitiu a identificação de fetos portadores de aberrações cromossômicas e colocou aos olhos de todos a questão do aborto por anomalia fetal.

Devemos lembrar, entretanto, que o DPN não se restringe unicamente ao diagnóstico das aberrações cromossômicas. Ao contrário, em todos os países do mundo, incluindo-se o Brasil, é a ultrasonografia que efetua a maioria dos diagnósticos de anomalias anatômicas fetais, sendo que muito freqüentemente essas alterações são diagnosticadas em casais sem antecedentes de malformações congênitas, representando casais até então de baixo risco genético. Vale assinalar ainda que os diagnósticos efetuados através da ultra-sonografia tendem a ser tardios. Isso decorre do fato de muitos serviços padronizaram a primeira ultra-sonografia de rotina no pré-natal por volta da vigésimo semana. É razoável ser proposto pelo menos um exame confirmatório após a suspeita levantada em uma primeira ultra-sonografia anormal, o que fará a gestação encontrar-se até na 22ª - 24ª semanas quando tivermos um diagnóstico seguro e comprovado por uma equipe médica habilitada.

Deve ser dito que o grau de precisão dos resultados obtidas na avaliação da saúde fetal é altíssimo, desde que os exames sejam realizados por equipe competente e especialmente treinada. De uma maneira geral é admitida uma margem de erro menor que 1/1000.

A imensa maioria dos erros inatos de metabolismo, das anomalias da cadeia de hemoglobina (talassemias e anomia falciforme, por exemplo) e das infecções congênitas (apenas para ficarmos com alguns exemplos) permite hoje diagnósticos precisos no feto, muitas vezes com auxílio da biologia molecular.

No caso específico das infecções congênitas (rubéola, toxoplasmose e citomegalovírus), a incorporação da reação em cadeia da polimerase (PCR) permitiu a investigação dos fetos de gestantes que apresentaram infecção aguda por um destes agentes e a informação, com grande margem de segurança, se o feto foi de fato comprometido ou não.

Nesse ponto entra a questão: o que fazer diante de uma anomalia fetal grave e incurável?

O aborto de um feto com anomalia grave sempre foi motivo de tensão, mesmo porque muitos profissionais envolvidos no tratamento dessa questão consideram o aborto uma solução inaceitável. O enfrentamento da questão suscitou, nos países desenvolvidos, no final da década de 60, incansáveis discussões na categoria médica e fora dela, além de envolver os casais que estavam gerando fetos anormais.

No Brasil, a introdução das técnicas de diagnóstico pré-natal só ocorreu em 1979 e, conseqüentemente, todo o debate em relação ao aborto por anomalia fetal se iniciou muito depois do ocorrido nos países de primeiro mundo. Na verdade esta questão só recebeu espaço na imprensa e passou a ser discutida pela sociedade brasileira a partir de 1992, quando foi constituída a Comissão de Estudo para Reformulação do Código Penal. Retomaremos este ponto a seguir.

A lei nos diversos países e no Brasil

A melhor revisão que encontramos sobre as leis relativas ao aborto no mundo é de Henshaw (1990) e consideramos válido mencionar alguns dos dados mais importantes desse notável trabalho.

As leis que norteiam o aborto induzido no mundo têm abrangência variável, desde aquelas que o proíbem sem nenhuma exceção até aquelas que o consideram um direito da mulher grávida. Cinqüenta e três países com mais de 1 milhão de habitantes, correspondendo a 25% da população mundial, situam-se na categoria mais restritiva, em que o aborto é permitido somente quando a gravidez representa um risco para a vida da mãe.

Quarenta e dois países com pelo menos 1 milhão de habitantes, compreendendo 12% da população mundial, possuem leis autorizando o aborto por razões médicas em sentido mais amplo - quando há risco de vida materna (não limitado ao risco de perder sua vida) e, algumas vezes, por risco genético ou por razões jurídicas como estupro ou incesto. Nesses países, porém, não é permitido o aborto por indicações sociais isoladamente ou a pedido unicamente da gestante.

Vinte e três por cento da população mundial vive nos catorze países com mais de 1 milhão de habitantes nos quais o aborto é permitido por razões sociais ou médico-sociais, significando que o aborto é permitido por condições sociais adversas. Condições sociais adversas tanto justificam a interrupção da gestação quanto devem ser consideradas na avaliação do agravo à saúde mental da mulher. Na maioria desses países, incluindo Austrália, Finlândia, Inglaterra, Japão e Taiwan, o aborto é virtualmente permitido pela simples decisão da gestante.

As leis menos restritivas dizem respeito aos 23 países onde o aborto é permitido pela simples opção da grávida. Alguns dos países mais populosos do mundo - China, Rússia, países da antiga União Soviética, Estados Unidos e a métade dos países da Europa - estão nessa categoria, correspondendo a 40% da população mundial. Na Suécia, na ausência de contra-indicações médicas, a mulher tem o direito de optar pelo aborto legal até o término da décima-oitava semana de gestação. Em algums países, como a Suécia e a antiga Iuguslávia, o aborto é definido explicitamente como um direito da mulher grávida.

Mesmo nos países onde o aborto é permitido pela simples opção da mulher, os serviços médicos estão sujeitos às normas médicas e cirúrgicas. Por exemplo, na maioria, senão em todos os países, os serviços que executam os abortos devem ser orientados por médicos devidamente licenciados e apenas com o consentimento da gestante. A maioria dos países que permitem o aborto por decisão única da gestante tem limites de idade gestacional para que ele seja efetuado. Assim, o aborto é permitido até 24 semanas (Cingapura) ou até a viabilidade do concepto (China, Holanda e Estados Unidos). Na Inglaterra o limite legal é de 28 semanas, embora limitações administrativas tenham baixado esse limite para 24 semanas.

De uma maneira geral, os países muçulmanos, a África e a América Latina contam com poucos abortos legais, excetuados os casos de estupro e risco de vida materna.

No Brasil, a lei que regulamenta o aborto está contida no Código Penal, sancionado em dezembro de 1940. É evidente que esse Código é anacrônico. Também é indiscutível que em 1940 era inexistente qualquer meio de avaliação da saúde fetal. Felizmente a medicina evoluiu muito, e a Medicina Fetal em particular desenvolveu técnicas de diagnóstico e, quando possível, de tratamento fetal. Tornou-se urgente a revisão do Código Penal e uma discussão da sociedade brasileira relativa à opção da gestante de interromper uma gravidez diante de uma anomalia grave e incurável.

Em 1992 foi criada uma Comissão para Reformulação do Código Penal, e a parte específica dos crimes contra a vida foi orientada por uma subcomissão, presidida pelo desembargador Dr. Alberto Franco, e da qual tivemos o privilégio de participar. É necessário fazermos justiça ao mencionar que, antes dos trabalhos da Comissão, um grupo de conselheiros do Conselho Federal de Medicina já havia elaborado um estudo contemplando uma possível descriminalização do aborto por anomalia fetal até 24 semanas de gravidez. A Comissão propõe a seguinte redação para o futuro Código Penal:

"Não constitui crime o aborto praticado por médico: Se se comprova, através de diagnóstico pré-natal, que o nascituro venha a nascer com graves e irreversíveis malformações físicas ou psíquicas, desde que a interrupção da gravidez ocorra até a vigésimo semana e seja precedida de parecer de dois médicos diversos daquele que, ou sob cuja direção, o aborto é realizado".

Entretanto, como costuma acontecer, os fatos sociais precedem a reformulação das leis. Em 19 de dezembro de 1992, o juiz Dr. Miguel Kfouri Neto, de Londrina, autorizava pela primeira vez um aborto legal em feto portador de anencefalia numa gestação de 20 semanas. Por estímulo e orientação do Dr. Kfouri, a equipe do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana de São Paulo entrou com ação judicial em 4 de novembro de 1993 solicitando a interrupção legal de uma gravidez de 24 semanas com feto portador de acrania e onfalocele. Em 5 de novembro, ou seja, transitando em julgado por apenas 24 horas, o juiz Dr. Geraldo Pinheiro Franco autorizava a interrupção da gravidez. Baseado nessas duas sentenças, em 3 de dezembro de 1993 o juiz Dr. José Fernando Seifarth de Freitas, de Guaralhos, São Paulo, autorizava a interrupção de uma gestação de 20 semanas comprometida por anencefalia.

Os casos acima mencionados mostram que dois preconceitos foram eliminados. Nem é lenta a justiça quando a decisão é urgente para preservar a qualidade de vida dos envolvidos, nem são os juízes insensíveis aos avanços da ciência e às necessidades prementes do ser humano! E fato, porém, que estava certo o Dr. Kfouri ao afirmar que a justiça precisa de defrontar-se com casos práticos, a fim de raciocinar e amadurecer pontos de vista com base em situações práticas.

Não temos dúvidas que em espaço de pouco mais de um ano demos muitos passos adiante no sentido de vermos reformulado o Código Penal naquilo que diz respeito à interrupção legal do aborto por anomalia fetal.

A ética

"A disponibilidade de métodos seguros e precisos de diagnóstico pré-natal certamente cai no escopo de uma atenção médica ética e de alta qualidade. De maneira similar, a execução de um aborto em condições médicas adequadas é consistente com a alta ética profissional".

Richard Helller, 1971

Como podemos depreender da citação acima, as discussões éticas relativas ao aborto por anomalia fetal tiveram lugar nos países de primeiro mundo logo após a introdução dos métodos de diagnóstico pré-natal, há mais de vinte anos. Tanto é verdade que nos Estados Unidos, até 1973, quando a lei americana foi modificada permitindo o aborto, o diagnóstico de uma anomalia fetal era submetido às comissões de ética e aos obstetras dos hospitais que, diante de um diagnóstico efetuado e na dependência da decisão da gestante - ou do casal - aprovavam a interrupção da gravidez.

As discussões éticas relativas a esse tema foram iniciadas há muito tempo nos países desenvolvidos. Uma testemunha indiscutível desse fato foi o colóquio "génétique, procréation et droit" (CGPD) ocorrido em 1985 em Paris. Faremos várias citações a respeito pois elas nos parecem oportunas ao discutirmos tema tão importante no Brasil.

Na verdade, o dilema do casal frente a um diagnóstico de anomalia fetal grave e incurável não ocupa na atualidade um espaço importante nos meios de comunicação, como é o caso, por exemplo, da fertilização de mulheres após a menopausa, e nem por isso ele é na realidade menos importante.

A evolução da ciência médica tem sido impressionante nos campos do diagnóstico, da terapêutica e em algums países a prevenção ocupa hoje lugar de destaque. As conseqüências dessa evolução atingem igualmente médicos, sociedade, legisladores e consumidores. Entendemos aqui o consumidor como o paciente que necessita do serviço de saúde. Há uma enorme diferença entre a situação do paciente de um país desenvolvido e aquilo que ocorre no Brasil. Nos países desenvolvidos o médico é obrigado a informar ao paciente sobre seus riscos, e colocar à sua disposição todos os métodos diagnósticos e terapêuticos disponíveis, sob pena de ser processado se assim não agir. No Brasil, compreensivel de certa forma pela ausência de suporte legal, não é isso que ocorre. Não é infreqüente entre nós que um médico deixe de indicar um exame específico em gestação de risco genético por temer seus resultados e as conseqüências inexoráveis dos mesmos.

Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor não foi ainda absorvido pela sociedade em geral e pelos pacientes em particular. No Brasil, o questionamento dos pacientes sobre a excelência do atendimento médico é ainda muito tênue. O direito que todo paciente deve ter relativo a um atendimento médico competente e atualizado é assimilado por uma pequena minoria de pessoas que tem acesso à informação e a um atendimento médico diferenciado. Na realidade, na maioria dos casos em que o resultado é o nascimento de uma criança afetada, fruto de gestação reconhecidamente de risco genético, esse fato é ainda interpretado como fatalidade.

Observando-se a questão de uma maneira mais ampla, nos países de primeiro mundo o ônus de uma criança deficiente recai primordialmente sobre o Estado. Esse, por sua vez, provê a família com recursos adequados de reabilitação e insere o deficiente da melhor maneira possível dentro da sociedade. No Brasil não ocorre o mesmo. O ônus do deficiente recai integralmente sobre a família. Ainda pior: muitos planos de assistência médica e seguros-saúde se desobrigam de fornecer cobertura em casos de anomalia congênita ou moléstia hereditário. A equação é duplamente perversa em nosso caso. O casal é obrigado a manter a gravidez de um feto anormal, e por ocasião do nascimento da criança não tem recursos para cuidar dela!

É fácil entender também porque nos países desenvolvidos são elaborados programas nacionais para defecção de anomalias fetais. Não se trata de altroismo. Simplesmente, não interessa ao Estado arcar com número maior de deficientes de toda a natureza, além do estritamente imprevisível. As cifras são impressionantes. Nos Estados Unidos são gastos 3 bilhões de dólares por ano com crianças com sequelas de paralisia cerebral, apenas para citarmos um exemplo. Outro dado importante é que o custo de uma criança com síndrome de Down nos primeiros dez anos de vida permite a realização de 10 mil amniocenteses ou amostras de vilo corial. Olhada a questão sob esse prisma passamos a obter fundamentos para uma argumentação mais sólida no sentido de divulgarmos a Medicina Fetal e exigirmos uma reformulação legal.

A Medicina Fetal não é obra de Deus nem do demônio. Ela é parte integrante da medicina que fornece diagnóstico e quando possível terapêutica, encarando o feto como um paciente. Entretanto há situações nas quais uma anomalia grave é diagnosticada e para a qual não temos terapêutica. Nossa experiência em 19 anos de trabalho convivendo com pacientes de diferentes credos e extratos sociais é que em 92% dos casos no Brasil, diante de uma anomalia fetal, a opção do casal é pela interrupção de gestação (Pieri, 1991). Será ético que em uma situação dessa natureza o casal não seja atendido em um hospital adequado e por médico competente?

Não nos parece que a resposta a essa questão deva ser consensual. Todas as opiniões devem ser respeitadas. Parece-nos indiscutível, entretanto, que o pluralismo deva ser respeitado e que os pacientes tenham direito ao livre arbítrio. Haverá certamente entre os médicos aqueles que, por motivos diversos, inclusive religiosos, consideram ser impossível atuar em uma interrupção de gravidez. Entretanto, seguros estamos que existirão outros que assumirão esses casos dentro da mais elevada ética médica!

Temos visto, entre outros. em meios leigos de comunicação, uma abordagem superficial e tendenciosa das anomalias fetais. É fundamental fornecermos ao casal ou à gestante todas as informações que dizem respeito à patologia fetal diagnosticada. Evolução, reabilitação, perspectivas para a vida adulta e complicações nas diversas etapas da vida fazem parte de um aconselhamento genético competente. Uma decisão por parte do casal depende de informação adequada. Para citarmos um exemplo corriqueiro, raramente vimos um casal ser informado que 50% das crianças com síndrome de Down desenvolvem moléstia de Alzheimer na terceira década de vida.

Entraremos agora em uma questão mais delicada, e que diz respeito à manutenção da vida. É inquestionável que o diagnóstico pré-natal de anomalias fetais representa um progresso considerável. Adquirimos uma série impressionante de técnicas nos últimos anos: em 1974 a ultra-sonografia, em 1976 a retoscopia, em 1978 as primeiras coletes de sangue fetal e com elas o diagnóstico das hemoglobinopatias, em 1980 as embrioscopias, em 1982 a cordocentese, em 1983 e 1984 a amostra de vilo corial. Ao pensarmos ter chegado à maturidade, descobrimos que podiamos incorporar a moderna biologia molecular à medicina fetal e, utilizando a reação em cadeia da polimerase podemos realizar nos anos 90 diagnósticos precisos de infecção fetal e outras moléstias.

O feto passou de fato a ser um paciente! Um paciente ao qual não desejamos dar apenas vida mas sim uma excelente qualidade de vida! Parece-nos oportuno iniciarmos uma discussão nesse sentido. Um recém-nascido com anencefalia, retardo mental por erro inato de metabolismo ou por cromossomo X frágil está vivo eventualmente, mas qual será sua qualidade de vida em um país com as condições do nosso?

O diagnóstico fetal atua no escopo da prevenção, e talvez seja essa uma das razões, não a única certamente, de sua pobre repercussão em nosso meio. Dados não nos faltam. Em 20% dos casos a família já possui uma criança portadora de aberração cromossômica, doença metabólica ou uma malformação. É indispensável fornecermos ao casal o máximo de informação a fim de que ele saiba que exames poderão ser feitos em futuro gravidez para avaliarmos a saúde do feto. Entretanto, em 80% dos casos a catástrofe se abate sobre casais que não têm qualquer antecedente de doença congênita ou hereditária. São os casos nos quais uma ultra-sonografia de rotina identifica uma malformação fetal, apenas para citarmos uma situação freqüente na prática médica. O casal deve ser informado com detalhes, assim como seu obstetra. Quando necessário, devemos ouvir a opinião do pediatra e do cirurgião infantil. A multiplicidade dos casos é que torna díficil ao legislador prever cada um deles.

Não podemos deixar de considerar um outro aspecto ético importante. Tomando como exemplo as mulheres grávidas com mais de 40 anos, apenas 6% dos exames de diagnóstico pré-natal executados nessas gestantes irá diagnosticar um feto anormal. Isto significa que a imensa maioria dos exames realizados em gestantes de risco genético conhecido revela fetos normais e as gestações prosseguirão sem problemas! O diagnóstico pré-natal é, portanto, altamente tranqüilizados na maioria dos casos e ainda tem o mérito de preservar muitas gestações que talvez não fossem à frente se o casal não dispusesse de meios seguros de avaliação da saúde fetal!

A imensa maioria dos diagnósticos realizados em medicina fetal é baseada em certezas e não em probabilidades. A margem de erro com a qual se trabalha nessa área, contando evidentemente com profissionais habilitados, é minima. Esse dado deve ser um fator de tranqüilidade para os pacientes, para o legislador e para a sociedade.

Voltemos à questão legal. É interessante observarmos a lei francesa de 1975 relativa à interrupção da gravidez por anomalia fetal. "A gravidez pode ser interrompida em qualquer período da gestação quando há uma forte probabilidade da criança que irá nascer ser portadora de uma afecção grave, reconhecida como incurável no momento do diagnóstico". É interessante observarmos o cuidado do legislador francês que prevê uma evolução da ciência, mas não trabalha com feitos científicos ainda não alcançados. Dizemos isso ao analisarmos a questão "incurável no momento do diagnóstico". É óbvio que muitas doenças consideradas incuráveis, hoje, poderão ter cura em dez ou vinte anos, mas isso não resolve o problema dos nossos consulentes agora.

Mas essas questões todas levam a discussões cada vez mais interessantes e aprofundadas. No CGPD, em 1985, Bernardette Modell perguntava: "Tem a mãe o direito de levar à frente uma gestação com uma criança gravemente afetada, quando isso representa uma carga financeira e social imensa para toda a sociedade? Pode uma mãe recusar um tratamento intra-útero para uma moléstia fetal curável?" Podemos ver que as reflexões não se esgotam nesse modesto texto, e nem é nossa pretensão responder a todas as possíveis questões éticas nele envolvidas. Pensamos ser importante iniciarmos o debate.

Desejamos finalizar as nossas considerações citando uma das frases que nos pareceu mais importantes do CGPD:

"A ética não está, como se tem dito, atrasada em relação à ciência, mas os cientistas tentam praticá-la dentro de um contexto no qual as leis ainda não foram estabelecidas".

Abstract - Abortion Resulting from Fetal Anomaly

The advance of medical science, especially of the new reproduction technologies. begin in our milieu a very important debate, which has already progressed in developed countries in terms of ethical and, legal adequacy of the findings obtained from those technologies. The prenatal diagnosis (PND) of fetal anomalies permits accurate diagnoses of fetal pathologies in high-genetic risk couples. When a dingnosedaffection cannot be treated, a distressing situation is created for the family who should be safely assisted by a competent professional, according to the author. The present article deals with this question, and a review of the reality of other countries and reflections on the conduction of such a problem in Brazil is enclosed herewith.

Bibliografia

  1. Genétique, Procréation et Droit. Paris Actes Sud, Hubert Nyssanm, 1985.
  2. Henshaw SK. Induced abortion a world review, 1990 Fam Plann Perspect 1990;22 76-89
  3. Pie ri PC . Conhecimentos e crenças em amostra de 348 gestantes que se dirigem ao diagnóstico pré-natal em São Paulo [dissertação] São Paulo Instituto de Biociências da USP. 1991

*Livre docente em Genética Médica pela Universidade de São Paulo. Diretor do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana de São Paulo, São Paulo - SP

 

Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v2/abortano.html>. Acesso em: 11 nov. 2006.