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VIOLÊNCIA SEXUAL
INTRAFAMILIAR: É POSSÍVEL PROTEGER A CRIANÇA?
Maria Regina Fay de Azambuja[1]
SUMÁRIO: Introdução. – I. O tratamento dispensado à criança ao longo da história. – II. A chegada da criança ao sistema de Justiça: de onde provêm os encaminhamentos? – III. Reflexos da violência sexual intrafamiliar na vida da criança vítima: como fica o direito à convivência familiar? – IV. A negação e o segredo: como o sistema de Justiça lida com as duas facetas da violência sexual praticada contra a criança? – V. Alternativas à proteção da criança. – Conclusão. – Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A mudança de paradigmas no que tange aos
direitos da criança, operada no nosso país, a partir da Constituição Federal de
1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, reflete-se em todas as áreas do
conhecimento, mas, de forma especial, na esfera dos sistemas de Proteção e
Justiça.
Com a vigência do Estatuto da Criança e do
Adolescente, em
O texto aborda o tratamento que as legislações,
ao longo da história, dispensaram à criança, a iniciar pelo Código de Hamurábi
até a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Posteriormente, mostra a chegada da criança vítima de violência sexual
intrafamiliar ao Sistema de Justiça e as principais dificuldades observadas
pelos profissionais para o enfrentamento do fenômeno. Por último, são apontadas
alternativas à proteção da criança à luz da legislação vigente.
I. O
tratamento dispensado à criança ao longo da história
A humanidade tem dispensado à criança um
tratamento legislativo que se coaduna com a compreensão do significado da
infância presente em cada momento histórico. Já em seus primórdios, os homens
praticavam várias formas de violência à criança, “desde os egípcios e mesopotâneos, passando pelos romanos e gregos, até
os povos medievais e europeus, não se considerava a infância como merecedora de proteção especial”[2],
muitas vezes contando com o beneplácito da própria legislação e da cultura
dominante.
Ao tempo
do Código de Hamurábi (
É no final do século XVIII que a infância
começa a ser vista como uma fase distinta da vida adulta. Até então,
participavam das mesmas atividades. As escolas eram freqüentadas por crianças,
adolescentes e adultos. Com o surgimento do entendimento de que a infância era
uma fase distinta da vida adulta também passam a ser utilizados os castigos, a
punição física, os espancamentos através de chicotes, paus e ferros como
instrumentos necessários à educação. Na Inglaterra, em 1780, as crianças podiam
ser condenadas à pena de enforcamento por mais de duzentos tipos penais.
Somente em 1871, é fundada
No Brasil, a situação da criança não foi
diferente. Contam os historiadores que as primeiras embarcações que Portugal
lançou ao mar, mesmo antes do descobrimento, foram povoados com as crianças
órfãs do rei. Nas embarcações vinham apenas homens e as crianças recebiam a
incumbência de prestar serviços na viagem, que era longa e trabalhosa, além de
se submeter aos abusos sexuais praticados pelos marujos rudes e violentos. Em
caso de tempestade, era a primeira carga a ser lançada ao mar. Até o advento da
Constituição Federal de
II. A chegada
da criança ao sistema de Justiça: de onde provêm os encaminhamentos?
Os casos de violência sexual intrafamiliar
praticados contra a criança chegam ao Sistema de Justiça através do Conselho
Tutelar ou nos disputas familiares envolvendo guarda, visitas ou processos de
suspensão e destituição do poder familiar.
Dentro do contexto sócio-jurídico-cultural
construído pela humanidade, ao longo dos tempos, torna-se indiscutível que a
nova postura do ordenamento jurídico brasileiro, alicerçada em documentos
internacionais, em especial a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de
1989, e assinada pelo Governo brasileiro, em 26 de janeiro de 1990, promulgado
pelo Decreto Presidencial 99.710, de 21 de novembro de 1990, passou a
constituir-se em um instrumento incentivador e facilitador do enfrentamento da
violação dos direitos à criança, em especial, à violência intrafamiliar.
Cabe ao Conselho Tutelar receber, entre
outras situações de ameaça ou violação dos direitos da criança e do
adolescente, os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos praticados
contra a referida população, mostrando-se de extrema urgência a sua criação e
instalação, em todos os municípios, “para
a efetivação da política de atendimento à criança e ao adolescente, tendo em
vista assegurar-lhes os direitos básicos, em prol da formação de sua cidadania”[3].
Embora as formas de maus-tratos e violência
praticados contra as crianças sejam muitas, procuraremos nos deter, ao longo do
trabalho, na abordagem da violência intrafamiliar, especificamente através do
abuso sexual, pois, “ainda que a
violência com visibilidade seja a que ocorre fora de casa, o lar continua sendo
a maior fonte de violência”[4].
Pesquisa realizada em 1997, pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul,
apontou que, em uma amostra de 1.579 crianças e adolescentes em situação de
rua, 23,4% não retornavam para casa porque seriam vítimas de maus-tratos.
Flores e cols., em 1998, “estimaram que
18% das mulheres de Porto Alegre, com menos de 18 anos, sofreram algum tipo de
assédio sexual cometido por pessoas de sua família”[5].
Pode-se afirmar que a violência doméstica
contra a criança e o adolescente
representa todo ato ou
omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e
adolescentes que –sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à
vítima- implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do
adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do
direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento[6].
Os maus-tratos infantis supõem e existência
de uma criança espancada, nomenclatura adotada por C. Henry Kempe, não se
conhecendo, com suficiência, a relação entre causa e efeito. Um dos modos de
melhor conhecer os maus-tratos se dá através do estudo dos sintomas
apresentados pela criança, ou através das ações dos adultos que têm
responsabilidade sobre as crianças (pais, cuidadores e amigos)[7].
A violência doméstica pode se manifestar através da violência física, da
violência sexual, da violência emocional e da negligência, constituindo “um problema que atinge milhares de crianças
e adolescentes e não costuma obedecer a algum nível sócio-cultural específico, como se pode pensar”[8].
Segundo Viviane Nogueira de Azevedo Guerra, a violência doméstica “permeia todas as classes sociais como
violência de natureza interpessoal”[9].
A
violência sexual ou exploração sexual “se
configura como todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um
ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular
sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-la para obter uma
estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa”[10].
É também definida como o envolvimento de crianças e adolescentes, dependentes e
imaturos quanto ao seu desenvolvimento, em atividades sexuais que não têm
condições de compreender plenamente e para as quais são incapazes de dar o
consentimento informado ou que violam as regras sociais e os papéis familiares.
Incluem a pedofilia, os abusos sexuais violentos e o incesto, sendo que os
estudos sobre a freqüência da violência sexual são mais raros dos que os que
envolvem a violência física[11].
O abuso sexual pode ser dividido em familiar e não familiar. Autores apontam
que “aproximadamente 80% são praticados
por membros da família ou por pessoa conhecida confiável”, sendo que cinco
tipos de relações incestuosas são conhecidas: pai-filha, irmão-irmã, mãe
–filho, pai-filho e mãe-filha, sendo possível que o mais comum seja irmão-irmã;
o mais relatado é entre pai-filha (75% dos casos), sendo que o tipo mãe-filho é
considerado o mais patológico, freqüentemente relacionado com psicose [12].
A violência sexual doméstica praticada contra a criança, de cunho
intrafamiliar, “retém os aspectos do
abuso relativos ao apelo sexual feito à criança, bem como destaca tal
ocorrência no interior da família”[13].
Insere-se o abuso sexual da criança em uma gama extensa de situações de
violação dos direitos da infância.
A demanda do Conselho Tutelar, no que se
refere à violência intrafamiliar, abarca situações difíceis de serem
enfrentadas, podendo ser apontado, entre outros fatores, que ao mesmo grupo
familiar pertencem os dois pólos da ação, agressor e vítima, sendo que “as crianças- vítimas inocentes e
silenciosas do sistema e da prática de velhos hábitos e costumes arraigados na
cultura do nosso povo - são as maiores prejudicadas neste contexto calamitoso”[14].
Aponta Salvador Célia, referindo-se à situação da infância brasileira:
A maioria das crianças
brasileiras começa a ser agredida ainda no ventre materno, pela desnutrição
materna e pela violência contra a mulher, e quando sobrevive às doenças
perinatais, respiratórias e preveníveis por vacinação, quando sobrevive à fome
e à diarréia, chega à idade adulta agredida pela falta de oportunidade do
mercado de trabalho, depois de sofrer o fenômeno da evasão (diga-se “expulsão
escolar”), quando então poderíamos falar no maltrato da instituição escolar,
que entre outras causas multifatoriais apresenta um currículo completamente
desligado da aplicação para as reais necessidades da maioria da população
brasileira[15].
Ao Conselho Tutelar aporta uma demanda que,
até o momento, não pode ser devidamente dimensionada, não só pelo fato de que o
reconhecimento da violência doméstica é recente, como também em decorrência da “utilização de diferentes definições do
fenômeno pelas instituições e pesquisadores responsáveis pelas estatísticas
disponíveis, a diversidade das fontes de informações existentes e a
inexistência de inquéritos populacionais nacionais”[16],
fatores que dificultam sobremaneira a oferta de estimativas mais apuradas.
Sempre que estiver presente notícia de fato
que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou
adolescente (art. 136, inciso IV, ECA), bem como se mostrar necessário o
ajuizamento de ações de suspensão ou destituição do poder familiar (art. 136,
inciso XI, ECA), independentemente das medidas de proteção ou aplicáveis aos
pais (arts. 101 e 129 ECA), o Conselho Tutelar encaminhará ou representará ao
Ministério Público. De posse das informações, o Ministério Público avaliará a
necessidade do ajuizamento de ação de suspensão ou destituição do poder
familiar, assim como a adoção das medidas legais cabíveis, tanto na área cível
como criminal. Ao propor a ação, no âmbito cível ou mesmo criminal, o
Ministério Público aciona o sistema de Justiça, dando início a uma nova fase na
vida da criança ou do adolescente e de seus pais.
As causas motivadoras da ação de suspensão ou
destituição do poder familiar, na atualidade, vêm elencadas nos artigos 1.637 e
1.638 do Novo Código Civil, assim como no artigo 22 do Estatuto da Criança e do
Adolescente. O desvirtuamento do instituto do poder familiar “legitima o agente ministerial a intentar
Ação de Suspensão ou Destituição do Pátrio Poder, sempre que constatar a
ocorrência de casos de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos
pais ou responsável”[17].
A legitimidade para a propositura da ação de
suspensão ou destituição do poder familiar é atribuída ao Ministério Público ou
a quem tenha legítimo interesse, onde se destaca, por exemplo, o guardião que
pretende pleitear a adoção da criança que se encontra sob sua guarda. Nas
hipóteses em que estiver presente o motivo grave, poderá a autoridade
judiciária, ouvido o Ministério Público, decretar, em caráter liminar ou
incidental, a suspensão do poder familiar, ficando a criança confiada a pessoa
idônea, mediante termo de responsabilidade (artigo 157 do ECA).
O desafio que se impõe, neste momento
histórico, é que ambas as medidas, suspensão e destituição do poder familiar,
de cunho essencialmente drástico, hão de ser aplicadas somente quando se
mostrarem a melhor alternativa para a criança ou adolescente envolvido, e não
como uma simples punição ou um castigo aos pais, especialmente em face do
disposto no art. 6º da Lei nº 8.069/90, que assim reza:
Na interpretação desta Lei
levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem
comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento.
Verifica-se, pelo alerta que o mencionado
dispositivo traz, que a nova lei regulamentadora do art. 227 da Constituição
Federal passa a significar um “movimento
mais amplo de melhoria, ou seja, de reforma da vida social no que diz respeito
à promoção, defesa e atendimento dos direitos da infância e da juventude”[18].
Por sua vez, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em
seu art. 3.1, salienta que “todas as
ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou
privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos
legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”.
Não há mais como admitir, neste nascer de
século, por parte do Poder Público, uma atuação descomprometida com a “defesa dos interesses da criança que sofre
maus-tratos praticados, muitas vezes, por aqueles que teriam legitimidade e
possibilidade de defendê-las”[19].
Assim, embora as causas que autorizam a
suspensão ou a perda do poder familiar venham elencadas no Código Civil e no
Estatuto da Criança e do Adolescente, frente aos princípios constitucionais
introduzidos com a Carta de 1988, há que se buscar, sempre, o melhor interesse
da criança. Na prática, uma das tarefas mais desafiadoras e difíceis para os
profissionais do Direito reside em identificar o melhor interesse da criança,
especialmente nas demandas que aportam ao Poder Judiciário, envolvendo pedido
de suspensão ou destituição do poder familiar. Observa-se a existência de casos
de “prova mal formada, prova mal
produzida, prova precária, em que, mesmo assim, ajuiza-se temerariamente a ação
de destituição do pátrio poder, como se esta fosse a cura para todos os males
da criação e da má orientação dos pais” [20]
Mesmo que os casos de violência sexual
intrafamiliar praticados contra a criança, recebidos pelo sistema de Justiça
brasileiro, sejam muito inferiores aos números que realmente ocorrem, como
sugerem os estudos realizados em outros países, certo é que passa a ser, o
sistema de Justiça, o destinatário da demanda que o Conselho Tutelar não
conseguiu, dentro de sua esfera de atribuições, assegurar a proteção integral
às crianças cujos direitos foram ameaçados ou violados.
Estarão os
integrantes do sistema de Justiça capacitados para enfrentar a demanda
envolvendo violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança?
O tema exige constante reflexão, atenção, e
avaliação por parte dos profissionais que integram as diversas instituições que
compõem o sistema de Justiça, sob pena de ser a criança exposta a uma nova
forma de violência, praticada em nome do Poder Público, por órgão ou
instituição que têm o dever de zelar pelo cumprimento das disposições legais
previstas na Constituição Federal e na Lei nº 8.069/90.
III. Reflexos
da violência sexual intrafamiliar na vida da criança vítima: como fica o
direito à convivência familiar?
Sempre que os casos de violência sexual
intrafamiliar chegam ao sistema de Justiça, ou já houve o afastamento da
criança de sua família natural, quer pela sua colocação em abrigo, quer
retirada do abusador do lar, ou presente está o risco de que o afastamento
venha a ocorrer, gerando a negação ou a ameaça a um dos direitos fundamentais
que lhe vem assegurado na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
O direito à convivência familiar é, antes de
tudo, um direito que integra a condição humana. No dizer de Hannah Arend:
A condição humana compreende
algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são
seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se
imediatamente uma condição de sua existência[21].
A Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos da Criança sinaliza para a importância do “direito da criança de viver com seus pais a não ser quando
incompatível com seus melhores interesses; o direito de manter contato com
ambos os pais caso seja separada de um ou de ambos e as obrigações do estado nos casos em que tal separação resulta
de ação do Estado”, assim como “a
obrigação do Estado de promover proteção especial às crianças desprovidas do
seu ambiente familiar e assegurar ambiente familiar alternativo apropriado ou
colocação em instituição apropriada, sempre considerando o ambiente cultural da
criança[22].
Seja o enfoque que buscarmos,
indiscutivelmente, a família desempenha um papel essencial na vida, na formação
e no desenvolvimento da criança, justificando a sua inclusão entre os seus
direitos fundamentais, na medida em que se constitui instrumento essencial na
formação do “ego maduro”, capaz de “discriminar
a realidade, pensar sobre ela e, a partir de sua capacidade de antecipação,
analisar os possíveis caminhos a serem escolhidos, até assumir, por opção e com
responsabilidade, a ação a ser realizada, a qual anteriormente passou por um
processo de reflexão, decisão,
planejamento, para culminar na sua execução”[23].
As crianças, seres humanos estruturalmente dependentes, embora titulares de
direitos, necessitam de proteção e cuidado dos pais ou substitutos a fim de que
possam vencer as etapas iniciais do seu desenvolvimento, pois “o desenvolvimento pleno de um bebê só
poderá ocorrer se contar com o amor de seus pais, que vai-se expressar como uma
íntima relação que os estudiosos denomina de apego”[24].
As disfunções apresentadas pela família,
especialmente as que envolvem a violência sexual, repercutem diretamente na
vida e na saúde das crianças, porquanto pessoas em desenvolvimento, como bem
foi salientado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, “sendo do interesse da sociedade e do Estado o desenvolvimento
biopsicológico da população infanto-juvenil em condições de normalidade”[25].
Traz a nova lei, para o sistema de Justiça, conceitos e achados que há muito
vinham sendo considerados no campo da educação e saúde, sem que o mundo do
Direito tivesse deles se apropriado, como era de se esperar no decorrer do
século passado.
Os casos que desembocarem no sistema de
Justiça estão a exigir, muitas das vezes, a adoção de medidas que implicam no
afastamento da criança do agressor, quer pela sua retirada do lar, quer pelo
afastamento compulsório do abusador do ambiente familiar.
A Lei nº 9.086/90 traz a possibilidade, há
muito esperada pelos profissionais envolvidos com a proteção da criança, de
afastamento do agressor da moradia comum, sempre que verificada a hipótese de
opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável (art. 130 do ECA),
sendo que “a provisional autorizada pelo
artigo deve ser concedida liminarmente, sem audiência do agressor, ad
cautelam, exatamente para não frustrar a proteção, apesar de terapêutica”[26].
Trata-se de providência que vem ao encontro do princípio da doutrina da
proteção integral da criança, uma vez que, historicamente, a vítima, já com as
marcas da violência, era sistematicamente institucionalizada, arcando com o
prejuízo adicional de se ser privada do convívio com o restante do grupo
familiar, permanecendo o agressor a usufruir do conforto do lar.
A prática tem mostrado que a aplicação do
novo dispositivo legal nem sempre se mostra eficaz, porquanto a ordem judicial
não tem o condão de manter o agressor longe da moradia comum, especialmente nos
casos em que conta o abusador com a conivência da mulher ou companheira, “na medida em que, não implicando
restrição ou privação de liberdade do agressor, não impede que venha a retornar
em momento posterior ao do afastamento coercitivo
por ato judicial, ficando a moradia da vítima e restante do grupo familiar
desguarnecidos de qualquer proteção”[27].
Murillo José Digiácomo afirma que a lei “privilegia
a manutenção da criança ou adolescente em sua família de origem, determinando o
afastamento cautelar não do vitimizado (o que consistiria em mais uma violência
contra ele), mas sim do vitimizador, que dependendo da situação pode mesmo ter
sua custódia decretada”[28],
porquanto o descumprimento da ordem judicial de afastamento, em tese,
caracteriza o tipo penal previsto no artigo 330 do Código Penal, autorizando a
decretação da prisão preventiva.
As dificuldades encontradas para o
afastamento do agressor da moradia comum, em que pese possam ser futuramente
sanadas com reformas legislativas, não podem servir de obstáculos à adoção de
medidas que efetivamente favoreçam a criança, assegurando-lhe “todas as oportunidades e facilidades, a fim
de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
em condições de liberdade e dignidade” (art. 3º do ECA).
Especialistas apontam que, em estudo
sobre famílias fisicamente
abusivas que tinham um filho alocado fora de casa devido ao abuso, a baixa
condição sócio-econômica, idade mais avançada da criança, maior gravidade do
abuso e/ou problema comportamental escolar na vítima foram preditivos de má
evolução no esforço de reabilitação da agência de assistência social, e de uma
necessidade de cuidado institucional permanente para as vítimas (Barth et al.,
1985-1986)[29].
Um dos aspectos mais relevantes nas demandas
que envolvem a violência sexual contra a criança consiste em avaliar
adequadamente a viabilidade ou não da permanência ou do retorno do agressor ou
da vítima para a moradia comum. Como avaliar corretamente a situação? Entre as
medidas a serem adotadas, encontramos a oitiva do grupo familiar, a fim de
averiguar “se é seguro o retorno da
criança/adolescente para a companhia imediata dos agressores”, bem como o
encaminhamento da família para programas de ajuda especializada, além da
necessidade de se “pensar na recuperação
dos agressores”, uma vez “que
agressores de crianças e adolescentes foram quase sempre vítimas de agressão em
sua própria infância”[30].
Presente também a necessidade de serem
adotadas medidas que visem a interrupção física do abuso, nos casos em que
presente está a violência sexual, sendo que “a
primeira preocupação deve ser a de avaliar a capacidade da família de proteger a criança de novos
abusos e a necessidade ou não do afastamento imediato da criança
(hospitalização, casa de parente, vizinho ou instituição)”. No Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, “a suspeita de
abuso leva à realização de uma avaliação breve que muitas vezes requer a
hospitalização da criança”[31].
Como já se afirmou, uma das decisões mais
difíceis e delicadas a ser tomada no âmbito do sistema de Justiça refere-se à
decisão de afastar ou não a criança abusada sexualmente de sua família. Não
raras vezes nos deparamos com situações em que a mãe não consegue reconhecer o
abuso a que foi submetida sua filha, fator impeditivo ao desempenho da
necessária proteção que a criança necessita. Nestes casos, faz-se necessário
investir na possibilidade de a mãe vir a perceber o risco enfrentado pela
filha, cabendo salientar:
O trabalho da negação
geralmente leva a mudanças psicológicas e interacionais que possibilitam à mãe
reconhecer e acreditar na criança, e tornar-se protetora. O trabalho da negação
também pode mostrar que não é possível nenhuma mudança e que a criança não deve
ficar com a mãe, quando o abusador entrar novamente em cenário familiar[32].
Há que se considerar que a separação da
criança da família, em razão do abuso sexual intrafamiliar, somente deve ser
buscada na impossibilidade de afastar o abusador da moradia comum, hipótese em
que a criança deve receber uma completa explicação dos motivos de seu
afastamento, pois, caso contrário, “se
sentirá acusada, punida e abandonada”,
não havendo razão para impedir “o contato
entre a criança e sua mãe, irmãos e amigos, exceto quando as mães não acreditam
na criança, a acusam e rejeitam pelos problemas que se seguem à revelação”[33].
Não havendo possibilidade de a criança
retornar ao lar, em caráter temporário ou definitivo, por absoluta falta de
condições de os pais assumirem os deveres para com o filho, oferece a lei a
medida de proteção, prevista no art. 101, inciso VIII, do Estatuto da Criança e
do Adolescente, consistente na colocação em família substituta. Vem a colocação
em família substituta, na condição de medida de proteção, oportunizar à criança
a convivência em família, em atenção ao artigo 227 da Constituição Federal e ao
artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Três são as formas de
colocação em família substituta previstas na Lei nº 8.069/90: guarda, tutela e
adoção. A primeira não pressupõe a prévia suspensão ou destituição do poder
familiar; a segunda exige, no mínimo, a anterior suspensão do poder familiar,
ao passo que a adoção vai implicar sempre em perda ou extinção do poder
familiar.
Observa-se que, na prática, assegurar o
direito à convivência familiar à criança vítima de violência intrafamiliar, em
especial a violência sexual, não se mostra uma tarefa simples, especialmente
pela presença de inúmeros fatores que passam a se constituir em empecilhos ou
complicadores para que se opere o direito fundamental em comento.
IV. A negação
e o segredo: como o sistema de Justiça lida com as duas facetas da violência
sexual praticada contra a criança?
Todas as formas de violência contra a criança
produzem conseqüências nefastas ao desenvolvimento infantil, não encontrando
amparo no ordenamento jurídico pátrio. A violência, o abuso ou a exploração
sexual, no entanto, apresentam particularidades que acarretam maiores dificuldades
para a prevenção, identificação e diagnóstico, assim como para o atendimento,
os encaminhamentos e tratamentos que passam a necessitar, tanto a vítima como o
agressor e o grupo familiar.
A violência doméstica, de um modo geral, em
face de suas características,
é uma violência
interpessoal; um abuso de poder disciplinador e coercitivo dos pais ou
responsáveis; um processo de vitimização que às vezes se prolonga por vários
meses e até anos; um processo de imposição de maus-tratos à vítima de sua
completa objetalização e sujeição; uma forma de violação dos direitos
essenciais da criança e do adolescente como pessoas e, portanto, uma negação de
valores humanos fundamentais como a vida, a liberdade, a segurança; tem na
família sua ecologia privilegiada[34].
Na sociedade, é observada sensível diferença
na forma de encarar a violência física e a sexual da criança. Um dos fatores
responsáveis pela diferença de visão vem apontado na assertiva de que “no abuso físico, um pouquinho de violência
física é considerada aceitável, e somente as formas severas de violência ou
punição física são identificadas como abuso”[35].
Em contrapartida, “qualquer violação
sexual da integridade da criança é rotulada como abuso e a definição normativa
é muito mais estreita para o abuso sexual do que para o abuso físico”, sendo
que, “enquanto nenhum dos pais é levado
ao tribunal e nenhuma criança recebe cuidados se eles dão uma palmada no
traseiro da criança, um pai bem pode acabar na prisão por ter esfregado
levemente os genitais da criança”[36].
O abuso sexual ganhou espaço nas pesquisas e
estudos há aproximadamente três décadas, tendo como fato propulsor o contexto
cultural de proteção aos direitos da mulher e da criança. Há trinta anos atrás,
o ingresso de uma criança em um hospital, em decorrência de maus-tratos, era
considerado um caso raro e dramático, sendo vista a criança como vítima
inconfundível de uma ação criminal [37].
A violência sexual da criança, manifestada
através da pedofilia (preferência de um adulto por relações sexuais com crianças,
através da adição), de atos violentos de abuso sexual ou através do incesto,
por pertencer à esfera privada, “acaba se
revestindo da tradicional
característica de sigilo”[38].
A negação, via de regra, acompanha a situação de violência sexual, sendo-lhe
atribuída natureza específica de síndrome de segredo, para a criança e a
família, e síndrome de adição, para a pessoa que comete o abuso[39].
O medo de ser castigada, não acreditada e
protegida pode levar a criança a não revelar o abuso sexual, que “permanece um segredo de família, até mesmo
depois de uma clara revelação, e inclusive quando as ameaças legais e
estatutárias há muito tempo já foram removidas; este é o resultado da negação,
não da mentira; a mentira relaciona-se ao conceito legal de prova, a negação
pertence ao conceito psicológico de crença e assunção da autoria”[40].
Afirma-se que a negação constitui
um mecanismo de defesa utilizado pelos membros da família:
O pai pode utilizar a
negação por considerar o incesto como educação sexual para sua filha. A mãe é
incapaz de reconhecer e processar os óbvios sinais de incesto, porque isto
colocaria em risco seu relacionamento com o marido. A filha utiliza a negação e
a constrição de afeto para diversos propósitos: como proteção contra a vergonha
e a culpa, para obscurecer a consciência da perversão do pai e preservar a
família intacta”[41].
Fatores externos, assim como fatores
psicológicos, contribuem para a manutenção do segredo no abuso sexual
intrafamiliar. Entre os fatores externos, podemos citar a inexistência de
evidências médicas, o que leva a família a não ter como comprovar o fato;
ameaças contra a criança vítima e suborno; falta de credibilidade na palavra da
criança leva-a, muitas vezes, a não revelar o abuso com medo de ser castigada
pela “mentira”; temor pelas conseqüências da revelação, com a concretização das
ameaças que recebeu. Entre os fatores psicológicos, destaca-se: a culpa, no
sentido legal, é do abusador, mas, no sentido psicológico, é também da criança;
a negação, no sentido psicológico, é diferente da mentira; no mecanismo de
defesa conhecido como dissociação, a vítima separa o abuso sexual (fato real)
dos sentimentos que o ato lhe provoca[42].
O rompimento do segredo, levando à denúncia
do fato, pode ser influenciado por alguns fatores, como por exemplo, a ameaça
isolada ou combinada com medo da perda de integridade física; tentativa de
suicídio; contágio por doença sexualmente transmissível; receio da perpetuação
da vitimização com irmãs/irmãos; risco de gravidez; restrição das atividades
típicas da adolescência; desconfiança da mãe e disque denúncia[43].
A adição, por sua vez, é complementar ao
abuso sexual como síndrome de segredo para a criança; “para o abusador, o abuso sexual da criança funciona como adição
(abusador= adito; criança= droga); ele sabe que o abuso é prejudicial à criança
e mesmo assim abusa”[44].Para
a melhor compreensão da síndrome da adição, Tilman Furniss descreve:
Eu atendi pais que relatavam
quão desesperadamente haviam tentado parar de abusar sexualmente de seus filhos,
mas a qualidade aditiva do abuso sexual da criança como uma síndrome de adição
fazia-os prosseguir[45].
O abuso sexual da criança, como síndrome da
adição, “se desenvolve pela compulsão à
repetição; os sentimentos de culpa e conhecimento de estar prejudicando a
criança podem levar a uma tentativa de parar o abuso, mas em razão da compulsão
à repetição, o abusador não consegue seu intento”[46].
A dependência psicológica decorre do alívio das tensões, constituindo-se a
“excitação do abusador” o elemento aditivo central[47].
Há que se considerar que a criança, por ser
uma pessoa em desenvolvimento, carece biologicamente de “maturação nos níveis emocional, social e cognitivo”, levando-a a
comportar-se, relacionar-se e a pensar de uma forma diferente dos adultos [48].
A diferença de condições encontradas na criança e no adulto acaba por se
refletir na forma como a primeira enfrenta e reage a uma situação de abuso
sexual, bem como pela maneira como se manifesta quando é chamada a falar sobre
o fato ocorrido; enquanto a criança tem medo de falar, o adulto teme ouvi-la,
favorecendo a clandestinidade.
Nos casos de abuso sexual intrafamiliar da
criança, torna-se necessário envolver a mãe no processo de revelação, sem
desconhecer que, até as mães apoiadoras, muitas vezes, “ficam tão perturbadas durante a entrevista, que transmitem à criança a
mensagem direta ou indireta de não revelar; ou as crianças ficam tão ansiosas
que se fecham para protegerem as mães”[49].
Fator facilitador da manutenção do segredo é
encontrado no mito, construído ao longo do tempo, de que a família é um “bom meio natural”. A assertiva “encobre uma verdadeira ditadura familiar,
corroborando para a construção de um imaginário social denegatório e permitindo
que a família incestogênica se perpetue imune e intacta a intervenções
externas”[50].
Nos casos de abuso sexual da criança, de
cunho intrafamiliar, que se constitui o objeto de estudo do presente trabalho,
raramente é feito o diagnóstico, o que impede a chegada do caso ao sistema de
Justiça. As famílias, aparentemente, levam “uma
vida normal e tranqüila na
comunidade”. A realização de um exame mais aprofundado, no entanto, permite
perceber que a família “apresenta um
contato limitado com o mundo extrafamiliar”[51].
A relação incestuosa intrafamiliar, que tende a se protelar por vários anos,
pode apresentar as seguintes características:
“O pai pode
ter uma personalidade passiva e introvertida e geralmente a vida sexual do
casal é pobre. Inicia a relação com sua filha num período de ‘stress’, solidão
e dependência. A atividade incestuosa pode não ser motivada pelo sexo, mas
representar uma necessidade de afeto”[52].
A mãe, por
sua vez, mesmo conhecendo a relação incestuosa, pode ignorá-la ou mesmo
incentivá-la, “pois assim sua filha a
estará substituindo num papel onde se sente incapaz”, sendo comum as crianças vítimas do incesto “se tornarem pequenas mães, assumindo deveres domésticos que seriam
tarefas da mãe”[53].
Já a filha “utiliza a negação e a
constrição de afeto para diversos propósitos: como proteção contra a vergonha e
a culpa, para obscurecer a consciência da perversão do pai e preservar a
família intacta. A persistência da negação da criança sobre o abuso sexual
previsivelmente complica sua avaliação e tratamento”[54].
Nas famílias incestuosas “há confusão referente às fronteiras intergeracionais e há pouco respeito pelo espaço físico,
privacidade e pertences dos membros”, observando-se “falta de recato com relação à nudez e toalete, e também deficiências no
estabelecimento de limites”, sendo que
“as fronteiras rígidas entre a família incestuosa
e o mundo externo contrastam de forma aguda com a indistinção de fronteiras
entre as gerações dentro da família”[55].
Marceline Gabel afirma que “as
fronteiras das gerações não são respeitadas na transgressão que representa uma
relação sexual pai-filha”, pois, ao mesmo tempo que a relação coloca o
casal pai/filha, mantém, no mesmo nível,
mãe e filha[56].
A
negação ou síndrome do segredo envolve todo o desenrolar do processo de abuso
sexual intrafamiliar, tanto nas etapas em que o fato ainda não foi
identificado, e que pode durar vários anos, acompanhado de freqüentes ameaças;
como nas etapas que se desenvolvem junto ao sistema de saúde ou de Justiça,
cabendo referir que, “sobreviver ao abuso
sexual da criança como pessoa intacta pode ser tão difícil para o profissional
como é para a criança e para os membros da família”[57].
Envolver a mãe no processo de revelação,
assim como os irmãos da vítima, são providências necessárias, exigindo que cada
caso seja avaliado para se buscar a melhor forma de trabalhar com o grupo
familiar. O índice de admissão da prática do abuso por parte dos abusadores
aumenta na medida em que “a intervenção é
bem preparada pela rede profissional, existem mais fatos disponíveis e a pessoa
que confronta o suposto abusador é bem apoiada pela rede profissional e pelos
fatos da evidencia perante ele”[58].
A falta de compreensão e entendimento do
abuso sexual intrafamiliar, verificado, com freqüência, tanto nas agencias de
saúde, como no sistema de Justiça, pode gerar intervenções inadequadas, com
sensíveis prejuízos especialmente à criança. A nomeação do abuso sexual da
criança “cria o abuso como um fato para a família”, podendo “refletir-se na rede profissional e no nosso próprio pânico e crise
profissionais, quando intervimos cegamente em um processo que muitas vezes não
compreendemos”[59].
Além da negação, por parte dos envolvidos no
abuso sexual da criança, no âmbito intrafamiliar, que permite que a violência
seja mantida em segredo por longos anos, escapando, por vezes, inclusive, da
percepção do sistema de Justiça, encontramos também, de um modo geral, um
evidente despreparo dos profissionais que compõem o sistema de Justiça para
intervir de modo adequado nos casos que uma suspeita é levantada. Entre os aspectos
que apontam o despreparo dos profissionais que integram o sistema de Justiça
podemos citar a inabilidade para a oitiva da vítima criança. Sabe-se que
ouvir uma criança não é o
mesmo que ouvir um adulto, principalmente uma criança abusada sexualmente é
preciso preparo técnico-emocional e, ainda, muita sensibilidade, até mesmo para
entender que não podemos ficar nos lugares em que, normalmente, estamos, no
sentido mais amplo, e permanecer ao lado da criança de modo a não deixá-la
ainda mais oprimida e humilhada[60].
É preciso, pois, que os integrantes do
sistema de Justiça tenham consciência de que “o processo de renovado segredo e a recaída na negação psicológica
secundária são parte de um processo terapêutico no abuso sexual da criança como
síndrome de segredo e de adição, que tem como núcleo terapêutico a transição da
negação e do segredo para a realidade, privacidade e responsabilidade”[61],
o que poderá evitar a tomada de decisões que venham de encontro ao melhor
interesse da criança. Indiscutivelmente, os profissionais do Direito “necessitam de conhecimentos específicos
sobre a dinâmica do abuso sexual infantil,
sobre a estrutura familiar, no caso de o abuso ser intrafamiliar, e noções
sobre conceitos básicos de psicologia para melhor inquirir a criança”[62].
Igualmente, “é de crucial importância
comunicar-se no nível real de desenvolvimento cognitivo, intelectual,
psicossocial e psicossexual da criança”[63],
pois, caso contrário, nossa intervenção se distanciará da realidade, diminuindo
as possibilidades de proteção para a vítima.
V.
Alternativas à proteção da criança
Para que as Instituições possam se adequar às
normas constitucionais que elegeram a criança como prioridade absoluta, é
necessário investir em novos recursos. Entre as formas de violência praticadas
contra a criança, a violência sexual intrafamiliar é a que apresenta maior
dificuldade de manejo. Há que se investir em novos recursos como, por exemplo,
a constituição de equipes interdisciplinares nas Instituições de Saúde,
Proteção e Justiça. Investimentos contínuos na capacitação dos profissionais
que atuam nas diferentes esferas, bem como dos estudantes, em especial nos
cursos de Direito, Enfermagem, Serviço Social, Psicologia e Medicina. Também
não podemos esquecer o abusador, havendo que se desenvolver programas
destinados a esta população, em especial aos que cumprem pena privativa de
liberdade.
Nos feitos judiciais, seja na esfera cível
como criminal, é preciso assegurar à criança a proteção integral, evitando
buscar a prova da materialidade nos crimes que envolvem violência sexual
intrafamiliar através do depoimento da criança.
É momento de pensarmos em mecanismos de
considerar o dano psíquico causado na vítima criança como prova da
materialidade em crimes que envolvem violência sexual. Sabemos que raramente é
possível apurar os danos físicos, sem que com isto o crime não tenha
acontecido. As marcas mais importantes, segundo apontam os especialistas, se
situam na esfera psíquica das pequenas vítimas, cujas seqüelas podem se
estender por toda a vida, com reflexos no desenvolvimento social, cognitivo e
psíquico da criança.
CONCLUSÃO
O desconhecimento, por parte dos
profissionais integrantes do sistema de Justiça, do funcionamento das famílias
em que está presente o abuso sexual da criança, assim com a ausência da
utilização dos instrumentos jurídicos por um ângulo clínico (especialmente o
conteúdo das perícias psiquiátricas dos pais e das vítimas; falta de exploração
do trabalho terapêutico voltado para os pais que se encontram no sistema carcerário),
contribuem para a pouca eficácia da intervenção do sistema de Justiça na vida
das pequenas vítimas.
A efetiva proteção da criança vítima de
violência sexual intrafamiliar pressupõe investimentos em novas alternativas,
pois, caso contrário, estaremos repetindo práticas que não mais se coadunam com
as regras constitucionais.
É preciso que os profissionais, integrantes
ou não do sistema de Justiça, tenham a consciência de que, invariavelmente,
cometerão erros e desacertos ao lidarem com o abuso sexual da criança,
principalmente em decorrência da complexidade que o tema se reveste, devendo a
constatação ser colocada a serviço da reflexão, da avaliação e da busca de
melhores condições para o desempenho de suas funções. Em bom momento, o sistema
de Justiça começa a perceber a relevância do seu papel, tanto no campo da
pesquisa a serviço da prevenção social, como do campo terapêutico-clínico,
desenvolvendo, cada vez mais, a compreensão de que o trabalho realizado sob o
manto da interdisciplinariedade pode proporcionar maior proteção à criança.
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[1]
Minicurrículo: Procuradora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do
Sul, com atuação na 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça. Especialista
Endereço: Rua Gonçalo de Carvalho, 471, ap. 401 – Bairro Independência – Porto Alegre/RS – CEP: 90.035-170.
Telefone: Res.: (51) 3311-7808, Cel.: (51) 99942490, Com.: (51) 3288-8382.
[2] ANDRADE, Anderson Pereira de. A Convenção sobre os Direitos da criança em seu décimo aniversário: avanços, efetividade e desafios. Revista Igualdade, Curitiba: Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e Juventude do Ministério Público do Paraná, v. 8, n. 28, jul./set. 2000, p. 2.
[3] CARVALHO, Rose Mary de. Comentários ao art. 136 do ECA. In: CURY, Munir (coord.); AMARAL E SILVA, Antônio Fernando (coord.); GARCÍA MENDEZ, Emílio (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. 1.ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 419/420.
[4] KRISTENSEN, Chistian Haag; OLIVEIRA, Margrit Sauer; FLORES, Renato Zamora. Violência contra crianças e adolescentes na Grande Porto Alegre. In: ______ et. al. Violência Doméstica. Porto Alegre: Fundação Maurício Sirotsky - AMENCAR, 1998, p. 115.
[5] Idem, p. 73.
[6] GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de Pais contra Filhos: a tragédia revisitada. 3.ed. São Paulo: Cortez, 1998, p. 32/33.
[7]
KEMPE, Ruth S.; KEMPE C. Henry. Ninõs maltratados. 4.ed. Madrid: Ediciones
Morata, S. L., 1996, p. 26/27.
[8] BRAUM, Suzana. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre: AGE, 2002, p. 16.
[9] GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Op. cit., p. 31.
[10]
Idem, p. 33.
[11] KEMPE, Ruth S.; KEMPE, C. Henry. Op. cit., p. 84.
[12] ZAVASCHI, Maria Lucrecia Scherer et. al. Abuso sexual em crianças: uma revisão. Jornal de Pediatria, v. 67 (3/4), 1991, p. 131.
[13] MEES, Lúcia Alves. Abuso Sexual, trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2001, p. 18.
[14] ALBERTON, Marisa Silveira. Op. cit., p. 26.
[15] CÉLIA, Salvador. Maltrato e negligência: intervenção a nível preventivo. In: LIPPI, J. R. Abuso e negligência na infância: prevenção e direitos. Rio de Janeiro: Científica Nacional, 1990, p. 43.
[16] REICHENHEIM, Michael E.; HASSELMANN, Maria Helena; MORAIS, Claudia Leite. Conseqüências da violência familiar na saúde da criança e do adolescente: contribuições para a elaboração de proposta de ação. Ciência e Saúde Coletiva, 4 (1), 1999, p. 110.
[17] SCHREIBER, Elisabeth. Os Direitos Fundamentais da Criança na Violência Intrafamiliar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001, p. 137.
[18] CURY, Munir (coord.); AMARAL E SILVA, Antônio Fernando (coord.); GARCÍA MENDEZ, Emílio (coord.). Op. cit., p. 38.
[19] SCHREIBER, Elisabeth. Op. cit., p. 80.
[20] FONSECA, Antônio Cezar Lima da. A ação de destituição do pátrio poder. Revista Igualdade, Curitiba: Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e Juventude do Ministério Público do Paraná, v. 8, n. 29, out./dez. 2000, p. 10.
[21] AREND, Hannah. A condição humana. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 17.
[22] CURY, Munir; GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso; MARÇURA, Jurandir Norberto. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 238.
[23] VASCONCELLOS, Amélia Thereza de Moura. A relação família, escola, comunidade. In: FICHTNER, Nilo (org.). Transtornos mentais da infância e da adolescência, um enfoque desenvolvimental. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 60.
[24] ZAVASCHI, Maria Lucrecia Scherer; COSTA, Flávia; BRUNSTEIN, Carla. O bebê e os pais. In: EIZIRIK, Cláudio Laks; KAPCZINSKI, Flávio; BASSOLS, Ana Margareth Siqueira. O ciclo da vida humana: uma perspectiva psicodinâmica. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001, p. 43.
[25] BRANCHER, Leoberto Narciso. Maus-tratos na infância, implicações jurídicas do atendimento da vítima. Revista Jurídica da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 1, n. 1, 1997, p. 69.
[26] VIEIRA, Francisco Xavier Medeiros; CURY, Munir (coord.); AMARAL E SILVA, Antônio Fernando (coord.); MENDEZ, Emílio García (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. 1.ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 403.
[27] BRANCHER, Leoberto Narciso. Op. cit., p. 71.
[28] DIGIÁCOMO, Murillo José. O Conselho Tutelar e a Medida de Abrigamento. Revista Igualdade, Curitiba: Centro Operacional das Promotorias da Infância e Juventude do Ministério Público do Paraná, v. 8, n. 27, abril/jun. 2000, p. 7/8.
[29] KAPLAN, Sandra J. Abuso Físico e Negligência. In: LEWIS, Melvin (org.). Tratado de psiquiatria da infância e adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 1.029.
[30] GOLDENBERG, Gita W. Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 2, 1994, p. 191.
[31] ZAVASCHI, Maria Lucrecia Scherer; TETELBOM, Miriam; GAZAL, Christina Hallal; SHANSIS, Flávio Milman. Abuso sexual na infância: um desafio terapêutico. Revista de Psiquiatria, Porto Alegre, n. 13, set./dez. 1991, p. 139.
[32] FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar,
manejo, terapia e intervenção legal integrados. Traduzido por Maria Adriana
Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 286.
[33] Idem, p. 225.
[34] GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Op. cit., p. 32.
[35] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 13.
[36] Idem. Ibidem.
[37]
KEMPE, Ruth S.; KEMPE, C. Henry. Op. cit., p. 32.
[38]
GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Op. cit., p. 32.
[39] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 29.
[40] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 31.
[41] GREEN, Arthur H. Abuso
sexual infantil e incesto. In: LEWIS, Melvin (org.). Tratado de psiquiatria da infância e adolescência. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1995, p. 1.
033.
[42] DOBKE, Veleda. Abuso Sexual: a inquirição das crianças, uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001, p. 34/35.
[43] OLIVEIRA, Suzana Braum Antunes. O segredo nas famílias incestogênicas: do silêncio ao rompimento. In: ELSEN, Ingrid (org.). Livro Programa, Livro Resumo do Congresso Internacional Família e Violência. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1999, p. 261.
[44] DOBKE, Veleda. Op. cit., p. 36.
[45] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 18.
[46] DOBKE, Veleda. Op. cit., p. 36.
[47] Idem. Ibidem.
[48] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 14.
[49] Idem, p. 198.
[50] OLIVEIRA, Suzana Braun Antunes de; PINHEIRO, Lucilene de Souza. Mitos e Fatos Acerca da Vitimização Sexual contra Crianças e Adolescentes. In: ELSEN, Ingrid (org.). Livro Programa, Livro Resumo do Congresso Internacional Família e Violência. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1999, p. 229.
[51] ZAVASCHI, Maria Lucrecia Scherer et. al. Op. cit., p. 131.
[52] ZAVASCHI, Maria Lucrecia Scherer et. al. Op. cit., p. 131.
[53]
Idem. Ibidem..
[54] GREEN, Arthur H. Op. cit., p. 1.033.
[55] Idem. Ibidem.
[56] GABEL, Marceline (org.). Crianças vítimas de abuso sexual. Traduzido por Sonia Goldfeder. São Paulo: Summus, 1997, p. 176.
[57] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 1.
[58] Idem, p. 200.
[59] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 200.
[60]
DOBKE, Veleda. Op. cit., p. 96.
[61] Idem, p. 290.
[62] Idem, p. 96.
[63] FURNISS, Tilman. Op. cit., p. 197.