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Amaury Silva*
*Juiz de Direito 2ª Vara Criminal de Teófilo
Otoni/MG
Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal
Professor de Teoria Geral do Direito Penal - UNIPAC - Teófilo Otoni/MG
Uma das primeiras reflexões que vem à tona, com a análise do texto da
chamada nova Lei de Tóxicos, publicada no Diário Oficial da União em
24/08/2006, com previsão de vigência para 45 dias a contar daquela data, surge
envolta em uma perplexidade, por sua dicção sibilina quanto à afirmação de uma
política repressiva penal de maior intensidade em relação ao tráfico de drogas.
Em consideração ao pensamento alusivo à problemática do consumo de drogas,
parece escorreito supor que o sistema penal deixa de ser o instrumental
repressivo, mesmo que ocorram algumas dificuldades conceituais para a
apresentação desse novo caráter, como flexibilização, descriminalização ou
despenalização.
Acontece que em referência ao comportamento típico que revela a expressividade
do tráfico de drogas, a Lei 11.343/2006 carrega de maneira reluzente um
paradoxo, em que se percebe apenas de maneira velada, o endurecimento do
controle social da questão pelo direito penal, com projeção de aumento de
penas. De fato, o art. 33 e seu § 1º ao realizarem a previsão que se assemelha
ao antigo art. 12, Lei 6.368/76 exasperou com as sanções, tanto no que concerne
à pena aflitiva quanto à pecuniária, oscilando no perfil de 05 a 15 anos de
reclusão e 500 a 1.500 dias-multa. A indução, instigação e o auxílio ao uso
indevido de drogas também são recepcionados como crimes, com reprimenda de 01 a
03 anos de detenção e multa de 100 a 300 dias-multa (art. 33, § 2º, Lei
11.343/2006). O crime de consumo consensual compartilhado surge para mitigar
possível excesso do art. 12 da lei antiga, sendo uma nova figura penal, com
penas previstas entre 06 meses a 01 ano de detenção e 700 a 1.500 dias-multa
(art. 33, § 3º, Lei 11.343/2006).
Ainda, o crime de associação para o tráfico, em comparação com o paradigma da
lei anterior (art. 14, Lei 6.368/76) também teve a pena exasperada, conforme
previsão do art. 35, Lei 11.343/2006, criando a previsão abstrata de 03 a 10
anos de reclusão e 700 a 1.200 dias-multa.
O caráter de maior rigorismo veio amainado pela causa especial de diminuição de
pena prevista no art. 33, § 4º, Lei 11.343/2006, que sustenta a redução da
sanção no caso concreto, frente aos ilícitos do art. 33, caput e seus
§§, no oscilatório de 1/6 a 2/3, se o acusado for primário, tiver bons
antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas e não integrar
organização criminosa. Importante frisar que a expressão contida no dispositivo
referente ao poder do magistrado em realizar a aritmética da redução, consiste
em um poder-dever, cujo sujeito ativo do benefício é o acusado, e estando
presentes os critérios perfilados na norma jurídica, não pode haver resistência
no seu reconhecimento e aplicação.
Assim, temos que se o acusado for primário, não ostentar um padrão de
comportamento social que possa a ele colar um predicativo de antecedentes
desabonadores, preencherá dois dos requisitos para se alcançar a proclamação do
tráfico privilegiado. E para sua plena obtenção, não poderá ter reconhecido na
própria decisão condenatória, que tenha se dedicado a atividades criminosas e
nem que seja integrante ou componente de organização criminosa. Ocorrendo uma
única dessas balizas dirimentes, afastada restará a possibilidade da redução da
pena, que exige ao visto, a conjuntura favorável ao acusado. O padrão para a
escolha da maior ou menor quantidade de diminuição da pena, creio que ficará
condicionada à verificação das condições do art. 59, CP, porque no sistema
trifásico por nós adotado é o motriz da dosimetria, tendo como coadjuvante
subsidiário o que dispõe o art. 28, § 2º, Lei 11.343/2006, instrumental que
possibilita a abertura de um leque objetivo para avaliação dos acontecimentos
de conflito com a lei penal, sob o enfoque das drogas.
Com isso, tem-se o efeito básico e lógico para os casos que irão acontecer e
ser julgados, após a vacatio legis, com a vigência da nova lei,
abrangendo os fatos que irão irromper no mundo jurídico com esse novo formato.
Tal situação poderá ensejar que muitos episódios simétricos em comparação com o
regime da lei de 1976 fiquem com a situação atual mais branda. Em tese, uma
condenação anterior por tráfico de pouca densidade, implicaria concretamente na
pena mínima, presentes os demais fatores convergentes para a dosimetria nesse
sentido, implicando em 03 anos de reclusão. Com o novo desenho, a reprimenda de
05 anos, amortizada com 2/3 realizará uma pena final bem menos impactante, isto
é, 01 ano e 08 meses de reclusão.
É de se ter em conta da consideração que essa modificação no sistema da fixação
das penas referentes ao crime de tráfico não ficará estanque aos crimes que
acontecerão, após a vigência do novo comando legal. O princípio da
retroatividade da lei penal benigna previsto no art. 5º, XL, Constituição
Federal e no art. 2º e parágrafo único, CP diz que a lei posterior que de
qualquer modo favorecer o agente, a ele será aplicada sem limitações de ordem
prática, quanto à fase processual ou de cumprimento da pena, logicamente
inviável de se cogitar sua aplicação quando o caso apontar que a pena a ser
objeto dessa incidência, já tenho sido cumprida ou por outro motivo extinta a
punibilidade.
Ao revelar o alcance desse preceito, Celso Delmanto expressa a dimensão para o
seu reconhecimento: “A redação do parágrafo único deixa incontestável que a
retroatividade benéfica não sofre limitação alguma e alcança sua
completa extensão, sem dependência do trânsito em julgado da condenação. Basta,
apenas, que a lei posterior favoreça o agente de qualquer modo, para
retroagir em seu benefício”.[1]
Esse mesmo entendimento está revelado pelo pensamento de Mirabete: “Além de não
mais considerar fato anteriormente incriminado, a nova lei pode favorecer o
agente de forma diversa (novatio legis in mellius). O parágrafo único do
art. 2º, em consonância com o art. 5º, XL, da CF, dispõe que deve ser ela
aplicada aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória
transitada em julgado. Refere-se, portanto, aos dispositivos da lei nova que,
ainda incriminando o fato, dão a seu autor um tratamento menos rigoroso, não só
com relação à natureza ou quantidade da pena, como também a todos os seus
efeitos penais. Estão nessa categoria de norma penal mais benéfica as que
prevejam novos casos de extinção da punibilidade ou novos benefícios, as que
diminuem os requisitos para sua concessão etc. O princípio da retroatividade da
lex mitior, exceção ao princípio da irretroatividade da lei penal, não
se detém mesmo havendo coisa julgada. Ainda que se esteja procedendo à execução
penal que se refiram à pena e à medida de segurança, a aplicação da lei nova
mais benigna ao fato anterior é obrigatória, cabendo esta ao juiz encarregado
da execução quando a sentença tiver transitado em julgado (art. 60, I, da Lei
de Execução Penal e Súmula 611 do STF)”.[2]
Não houve efetivamente com a nova lei, o fenômeno do abolitio criminis,
todavia, a percepção de que a lei nova, traz um tratamento mais benéfico aos
agentes que estejam vinculados aos crimes previstos no art. 12, caput e
§ 1º, incisos I e II e § 2º, inciso II (exclusivamente no que tange à
utilização do local para o tráfico), Lei 6.368/76, surge como inexorável
conclusão, pela correspondência e identidade de previsões típicas do sobredito
dispositivo da lei anterior com o art. 33, caput, § 1º, incisos I, II e
III, Lei 11.343/2006.
Inegável que a inclusão no ordenamento jurídico penal de uma causa especial de
diminuição de pena, até então não possível para certo e determinado crime,
enseje a ocorrência do fenômeno da lex mitior como anota Francisco de
Assis Toledo: “Pode-se, entretanto, afirmar que, de um modo geral, salvo
excepcional demonstração em contrário, reputa-se mais benigna a lei na qual: a)
(...); b) forem criadas novas circunstâncias atenuantes, causas de diminuição
da pena ou benefícios relacionados com a extinção, suspensão ou dispensa de
execução da pena, ou, ainda, maiores facilidades para o livramento
condicional;”.[3]
O raciocínio em desenvolvimento faz impor a conclusão de que passa a constituir
causa especial de diminuição de pena, se presentes os critérios legais, tendo
como destinatários todas as pessoas que estejam sendo investigadas ou
processadas, pelos crimes da Lei 6.368/76 já identificados, mesmo que tais
julgamentos ocorram, após a vigência da Lei 11.343/2006. Há um prolongamento
dessa incidência, para os feitos pendentes de recursos, cabendo essa
proclamação no âmbito da avaliação recursal.
E mais, sendo o caso de decisões transitadas em julgado, não se poderá opor
limites à retroatividade, cabendo ao juiz da execução penal, homologar a
redução da pena, com base no art. 2º, parágrafo único, CP, realizando-se novo
cálculo de liquidação em referência a todos os condenados que se encaixem na
situação melhorada, independentemente do estágio da execução da pena, ou seja,
regime de cumprimento da sanção ou livramento condicional, e dependendo a nova
leitura do quadro aritmético da sanção, poderá se reconhecer de modo automático
o seu cumprimento, ficando extinta a punibilidade respectiva. Ficarão fora
desse âmbito, os casos em que as penas foram efetiva e totalmente cumpridas.
Pelo efeito liberatório da pena privativa da liberdade que esse reconhecimento
irá ensejar, não se pode nem dizer em uma inicial abordagem à nova lei, que o
legislador esteve totalmente ciente dessa resultante. Entretanto, não podem ser
tolerados óbices à efetivação dessas novas conseqüências, inclusive com o
reconhecimento pelo Poder Judiciário, sob pena de se estrangular a ordem
constitucional vigente. Esse pensamento é decorrente da percepção de que em
muitos momentos, pelo legislador ordinário o direito penal para o trato da
questão do tráfico de drogas, é concebido de maneira mais austera e severa,
perdendo seu caráter de fragmentariedade, surgindo nesse cenário a redução da
pena como uma contramarcha.
De acordo com essa posição, seria inadmissível supor que a diminuição da pena
não poderia ocorrer, pela utilização da combinação entre leis, para a criação
da força nova benigna em uma terceira norma, critério esse afastado por
considerável doutrina e entendimento jurisprudencial. Ora, na hipótese
comentada, não se trata de combinação de leis, mas autêntico vigor do princípio
da retroatividade benigna, tratando com menor severidade de situações
pretéritas idênticas àquelas que também tratadas pela lei nova, o foram com
mais brandura, sendo assim, o foco exclusivista é na lei nova e o comparativo
entre duas leis, imprescindível mecanismo para a própria existência do
princípio.
Nem mesmo no acalanto da vacatio legis, uma virtual ab-rogação do seu
texto ou a derrogação do dispositivo invocado poderia frear os efeitos já
explanados e inseridos no contexto da ordem jurídica penal, porque a publicação
já constitui um suficiente aceno do Estado no sentido de que não mais assimila
a situação antes mais grave, o que obviamente não se confunde com erro na
publicação ou divulgação do conteúdo da norma jurídica.
A respeito do assunto, Rogério Greco apresenta o seguinte ponto: “Como tivemos
oportunidade de ressaltar, somente após a entrada em vigor da lei penal é que
lhe devemos obediência. A vigência da lei penal, portanto, é o nosso marco
inicial. Contudo, tal regra diz respeito somente àquelas leis que criem novas
figuras típicas, agravem a aplicação da pena ou que, de qualquer modo,
prejudiquem o agente. Pode acontecer que a lei nova contenha dispositivos
benéficos, sendo considerada, assim, uma novatio legis in mellius. Neste
caso, para que possa vir a ser aplicada, é preciso que aguardemos o início de
sua vigência, ou basta a sua só publicação? Embora tal posicionamento não seja
unânime, a maior parte de nossos doutrinadores, a exemplo do Ministro Vicente
Cernicchiaro, entende ser possível a aplicação da lex mitior mesmo
durante o período de vacatio legis, muito embora tenham existido em
nossa história leis penais que permaneceram em vacatio legis durante um
longo espaço de tempo e vieram a ser revogadas sem sequer terem entrado em
vigor, como foi o caso do Código Penal de 1969”.[4]
Sendo essa a conformação dada ao intitulado tráfico privilegiado, a partir da
causa especial de diminuição de pena, seus efeitos serão obrigatoriamente estendidos
a todos os casos simétricos, previstos até então na lei que vivencia agora seus
estertores, como irrenunciável sujeição à garantia constitucional da
retroatividade benigna da lei penal.
Notas do texto:
[1] Código Penal Comentado, Renovar, 3ª edição, p. 06.
[2] Código Penal Interpretado, 4ª edição, Atlas, p. 105.
[3] Princípios Básicos de Direito Penal, Saraiva, 5ª edição, p. 35/6.
[4] Curso de Direito Penal – Parte Geral, 3ª edição, Editora Impetus, p. 131/2.
Fonte: Escritório Online
SILVA, Amaury. A nova lei de tóxicos e a retroatividade benigna da lei penal. Disponível em http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=7296&. Acesso em 20 de outubro de 2006.