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Marcela Blumetti Matos*
Antes do surgimento do Estado, não havia quem
interviesse na forma de vida, na conduta dos indivíduos, nas relações sociais.
As pessoas gozavam de plena liberdade. No momento que o cidadão renunciou uma
parcela de sua liberdade, o Estado surgiu.
Em que pese serem muitas as teorias que
justificam o nascimento do Estado, estas não são nosso objetivo. Mister se fez falar de um dos motivos que deram vazam ao
surgimento do Estado, pois a renúncia da liberdade em favor deste, se deu em
virtude da promessa de uma contra-prestação. O que ocorreu foi uma troca:
liberdade pela proteção de bens jurídicos (valores) relevantes.
Nesse sentido, Beccaria [1]
assevera que somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua
liberdade, fazendo com que cada qual apenas concorde em pôr no depósito comum
(o Estado) a menor porção possível dela, sendo que a reunião de todas essas
pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir.
O direito, sobretudo o direito penal, em
determinados períodos da história, foi utilizado pelo Estado como um
instrumento eficaz de controle social, através do qual a proteção dos bens e
direitos individuais se efetivava por meio de um poder ilimitado e
desproporcional (direito de punir). A justiça penal vigente atentava, em todos
os sentidos, contra a necessária certeza do direito e segurança individual.
Foucault [2], dizia que o direito penal como
manifestação do Poder, integra a anatomia política do Estado fazendo parte de
sua tática política, significando dizer, portanto, que ele é um instrumento
político a seu serviço, isto é, constitui uma só técnica de manejo de certos e
determinados conflitos. As funções do direito penal correspondem às mesmas
funções cometidas, ou que se venha a cometer, constitucionalmente, ao Estado,
segundo a conformação política que se lhe dá. Daí não ser possível dissociar
fins do direito e fins do Estado.
O surgimento do Estado liberal baseado nos ideais
iluministas de igualdade, legalidade e autonomia privada, significou, na visão
de Sebástian Mello [3], a
inauguração de uma nova era para o direito penal.
Com o liberalismo, o direito penal destinou-se a
regular os casos de intervenção do Estado na liberdade individual,
representando a relativização dos poderes e abusos praticados pelo Estado
aristocrático, impondo limites ao poder de punir.
Os ideais iluministas ditaram os princípios
limitadores do direito de intervenção do poder político na esfera da liberdade
individual, colocando sob o crivo do direito penal os bens jurídicos mais
importantes.
O direito penal adquiriu novos princípios
informadores e a incriminação só era justificada quando a conduta do agente
violava um dos direitos fundamentais do homem. O direito penal do Estado
liberal ganhou uma nova estrutura, fundada numa série de garantias
constitucionais, arrimadas nos princípios fundamentais da liberdade,
legalidade, humanidade e segurança jurídica para os cidadãos [4].
O constitucionalismo liberal trouxe para a
sociedade, através dos novos valores do direito penal, segurança e certeza, com
um regime estrito de legalidade buscando evitar a incerteza do poder punitivo,
criando limites que asseguram a liberdade, permitindo a intervenção Estatal
apenas quando violados os bens jurídicos perpetrados pela Constituição [5].
Com muita propriedade, Carlos Aurélio Souza [6] pontua:
Diz-se que a segurança, como exigência objetiva
da Justiça, procede do conjunto estrutural e funcional de um sistema jurídico,
através de seus costumes, normas e instituições, como Direito objetivo, dada a
priori, ou como princípio de legalidade ou anterioridade da Lei; a
segurança é dada pelo Legislador ou pelo administrador, ao propor leis ou
regulamentos; como valor, deve vir implícita neles. A
própria Lei deve garantir o amparo dos direitos do cidadão, e também que será
por ele cumprida, e pelos demais.
Nas sociedades contemporâneas, o papel do Estado
está previamente definido nas Constituições, que estabelecem os pressupostos de
criação, vigência e execução de todo ordenamento jurídico. Por conseqüência
lógica, o papel do direito penal também está constitucionalmente definido. No
entanto, o perfil do direito penal, ou seja, saber quais as funções que se
devem creditar a ele, implica em saber as funções constitucionalmente assinaladas
ao Estado [7].
Assim, os limites do direito de punir, agora
dependem das funções constitucionalmente previstas para o Estado. Se o Estado
deve possibilitar a convivência social, proporcionar o exercício da liberdade e
controlar a violência, o direito penal servirá para esses fins, pois os limites
do direito penal, são os limites do Estado, e o
direito penal é um dos muitos instrumentos de política social de que se vale o
Estado para a realização de seus fins [8].
Do modelo liberal para o modelo democrático, a
intervenção penal deve estar a serviço dos fins constitucionais assinalados ao
Estado: proteção a vida, a liberdade, a saúde, a
integridade física, segurança, enfim.
Entretanto, por ser a forma mais incisiva de
intervenção social, esta somente deve ter lugar quando seja absolutamente
necessária à segurança dos cidadãos. É que o direito penal moderno tem como um
de seus pressupostos, o princípio da intervenção mínima.
Segundo Paulo Queiroz [9], “a intervenção penal, quer em nível
legislativo, quando da elaboração das leis, quer em nível judicial, quando da
sua aplicação concreta, somente se justifica se e quando seja realmente
imprescindível e insubstituível”.
O princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à
coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de
forma menos gravosa. Desse modo, a lei penal só deverá intervir quando for
absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio, explica Luiz Régis Prado [10].
Ao princípio da intervenção mínima se relacionam
a fragmentariedade e a subsidiariedade,
duas características do direito penal. A subsidiariedade,
que pressupõe a fragmentariedade (o direito penal só
deve intervir para sancionar condutas graves praticadas contra bens mais
importantes), é considerada como remédio sancionador extremo, devendo ser
ministrado pelo Estado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente [11].
A intervenção Estatal se dará unicamente quando
for demonstrada a ineficiência dos demais ramos do direito em punir com a
veemência necessária a conduta, e quando restar provado que o ilícito violou
valores cuja alçada de atribuição para punir é do direito penal [12].
Nesse diapasão, há de se ressaltar que a
intervenção penal quase sempre implica em medidas de caráter constritivo a
liberdade do indivíduo.
Ocorre que, a liberdade é um valor supremo que
goza de especialíssima proteção Constitucional, portanto, toda restrição penal
a ela, deve pressupor a absoluta necessidade e adequação. Isso significa que a
intervenção penal só é admitida quando ocorre lesão a um bem jurídico definido,
e quando não puder ser substituída por outro meio menos gravoso de intervenção.
Em outras palavras, o direito penal envolve a
garantia de liberdade tendo por escopo a proteção dos direitos individuais. E
para que haja liberdade tem que haver segurança jurídica. As pessoas não podem
ser privadas da liberdade sem consciência e conhecimento. Por isso a
intervenção penal deve ser exceção, tornando o direito penal um instrumento
eficaz para garantir a liberdade dos cidadãos.
Entretanto, se a conduta criminosa, por um lado, lesiona bens jurídicos que o direito penal objetiva proteger, a intervenção penal (aplicação de penalidade),
implica necessariamente uma lesão de bens jurídicos do autor do delito (sua
liberdade, no caso de prisão ou medidas de segurança; de seu patrimônio, no
caso de multa; ou de seus direitos no caso de inabilitações etc.). Esta
privação de bens jurídicos do autor tem por objeto garantir os bens jurídicos
do resto dos cidadãos. Mas não pode exceder certos limites [13].
Nessa esteia, Carlos Aurélio Souza [14]
afirma: “a segurança é objetiva, visível, publicada, está nas leis, nos sinais,
e a própria lei é um sinal, pode-se dizer. Certeza é confiança em algo que a
segurança projeta em cada um de nós: a segurança externa nos dá certeza
interna”.
O citado autor observa ainda a existência de uma
conexão entre a dimensão funcional da segurança jurídica (princípio da
legalidade) com seu sentido estrutural (exigências de segurança
jurídica), pois o próprio ordenamento exige segurança para manter sua
integridade ou completude [15].
Zaffaroni [16],
por exemplo, refere-se à segurança jurídica como um conceito complexo, já que
contém um significado objetivo (consistente no efetivo asseguramento
de bens jurídicos) e subjetivo (consistente no sentimento de segurança
jurídica; ou seja, na certeza desta disponibilidade de disposição). Neste
sentido, a intervenção penal afeta duplamente a segurança jurídica: como
afetação de bens jurídicos, lesiona seu aspecto objetivo;
como “alarme social” lesiona seu aspecto subjetivo.
Trata-se de um discurso sob a perspectiva garantista do direito penal, nucleado no princípio da
legalidade que, nos ensinamentos de Nilo Batista [17], é a “base estrutural do próprio
estado de direito, é também a pedra angular de todo direito penal que aspire a
segurança jurídica”.
O princípio da legalidade constitui, neste
sentido, não apenas um pressuposto do Direito Penal, mas na lição de Conde [18]:
(...) se apresenta assim como uma conseqüência do
princípio de intervenção legalizada do poder punitivo estatal e igualmente como
uma conquista irreversível do pensamento democrático. (...) A idéia do Estado
de Direito exige que as normas que regulam a conveniência sejam conhecidas e
aplicadas, além de serem elaboradas por um determinado procedimento, de um modo
racional e seguro, que evite o acaso e a arbitrariedade em sua aplicação e que
as dote de uma força de convicção tal que sejam aceitas pela maioria dos
membros da comunidade.
O princípio da legalidade,
determina os mecanismos de legitimação do direito de punir do Estado.
Contudo, o exercício desse poder penal está normativamente fulcrado
nos princípios constitucionais do Estado democrático e do direito penal
liberal, se tornando um exercício de poder racional, que exercita o controle
penal com segurança.
O primado da segurança jurídica é o primado da
lei, em que aquela entra como elemento integrante da norma jurídica: o
princípio da legalidade, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar
de fazer algo senão em virtude de lei anterior (CF, art. 5º, inc. II).
Dessa forma, podemos pontuar, por fim, que por
trás do princípio da legalidade, encontramos valores como segurança jurídica e
liberdade. É que, a elaboração de normas penais (princípio da legalidade), tem
a função de garantir uma uniformização e previsibilidade da intervenção penal,
subtraindo as arbitrariedades, garantindo um mínimo de segurança jurídica para
a sociedade.
[1] BECCARIA, Cesare. Dos
delitos e das penas. Tradução por Torrieri Guminarães. São Paulo: Hemus,
1983. p. 15.
[2]
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. 12. ed.
Petrópolis: Vozes, 1995. p. 26-30.
[3] MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. Direito Penal – sistemas,
códigos e microssistemas jurídicos. Curitiba: Juruá,
2004. p. 92.
[4] MELLO. Ibidem.
p. 93.
[5] MELLO. Op.
Cit.. p.
94-95.
[6] SOUZA, Carlos
Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência. Um enfoque
filosófico-jurídico. São Paulo: LTr,
1996. p. 131.
[7] QUEIROZ,
Paulo de Souza. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 121.
[8] QUEIROZ. Ibidem.
p. 122.
[9] QUEIROZ.
Op. Cit. p. 123.
[10]
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro vol. I.
2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 84.
[11]
BATISTA. Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4ª ed. Rio de
janeiro: Revan, 1999. p.
84-87.
[12]
BATISTA. Ibidem. p. 84-87.
[13]
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho penal.
Buenos Aires: Ediar, l987. p.
30.
[14]
SOUZA. Op. Cit. p.
16.
[15]
SOUZA. Op. Cit. p.
66.
[16]
ZAFFARONI. Op. Cit. p.
49-50.
[17] BATISTA. Op. Cit.p.
67.
[18]
CONDE, Francisco Muñoz. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1975. p. 135-136.
*Estudante de Direito
Disponível em: < http://www.direitonet.com.br/artigos/x/28/65/2865/ > / Acesso em : 18 out. 2006