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Arma de brinquedo (art. 10, § 1º, inc. II,
da Lei 9437/97)
André
Luiz Rodrigo do Prado Norcia*
INTRODUÇÃO
A
Lei 9.437/97 em seu art. 10, § 1º, inc. II, traz o seguinte tipo incriminador:
"Nas mesmas penas [detenção de um a dois anos e multa] incorre quem: (...)
II - utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem,
para o fim de cometer crimes".
O
legislador mais uma vez antecipou-se criando um tipo autônomo de verdadeiros
atos preparatórios para tentar combater o já enraizado uso de armas de
brinquedo no cometimento de crimes. Como veremos, o legislador,
intencionalmente ou não, foi inteligente na confecção do crime que estudaremos.
Um dos grandes problemas dos dias atuais é a criação interminável de tipos na
tentativa errônea de combater a criminalidade, pois o Direito Penal em sua
essência deve ser exceção, visto que nunca foi e não será o salvador da pátria
para problemas sociais, econômicos etc. O que dizer então da punição de atos
preparatórios? É bom que seja, como manda o art. 31 do Código Penal, uma
exceção dentro do Direito Penal. Veremos que a atuação do Estado na reprimenda
de atos preparatórios que exigem elemento subjetivo explícito, como no nosso
caso, pode trazer grande insegurança jurídica e arbitrariedade, uma vez que a
linha divisória do que é lícito e do que é crime é tênue demais.
Por
esses motivos o legislador foi inteligente e cauteloso, criando um tipo (não é
o primeiro) de atos que sozinhos não oferecem nenhum perigo. Atos que não
trazem lesividade e ainda constituem um verdadeiro direito. No entanto, os
mesmos atos somados a uma finalidade específica transformam a conduta em um
perigo real e iminente para a sociedade, com lesividade visível e palpável à
paz social.
Demonstraremos
que a doutrina se precipitou. Ora analisa o crime apenas sob o ponto de vista
da conduta e, é claro, não vê lesividade jurídica do crime; ora analisa a expressão
"para o fim de cometer crimes" afastando a aplicabilidade do crime
por tratar-se de expressão de idéia futura quando a conduta é presente – que
ótimo, pois, se assim não fosse, como veremos, o crime realmente seria infeliz
e inaplicável.
Por
ser um tipo autônomo, o crime em estudo é totalmente compreensível e aceitável
e pode ter real aplicação na prática, punindo aqueles que a lei quis punir.
Para isso, basta que se ultrapasse a dificuldade que qualquer tipo criado com a
mesma fórmula (atos preparatórios + finalidade subjetiva descrita no tipo)
apresentará: o meio de prova.
INTENÇÃO
DO LEGISLADOR
O
grave problema do uso de armas no cometimento de inúmeros crimes não é atual,
muito menos exclusividade do Brasil. O aumento da violência com armas de fogo
provou que não havia mais como punir criminosos com uma contravenção penal e
passou-se a exigir uma resposta para os problemas causados com armas de fogo. O
legislador, respondendo a uma verdadeira necessidade, coloca em vigor a Lei de
Armas de Fogo, 9.437/97. A intenção clara da Lei é cercar os criminosos que
fazem uso de armas de fogo e eram levemente punidos com um dos delitos liliputianos.
Essa intenção manifesta-se, por exemplo, com a inclusão de 18 núcleos no
art. 10, caput, da Lei; ou na expressão "transportar" do mesmo
artigo, que vem para resolver problemas doutrinários e jurisprudenciais. O
agente deixava a arma de fogo no porta-luvas ou porta-malas de seu veículo e,
para escapar da lei, argumentava dizendo que não estava "portando".
E
quanto à arma de brinquedo?
A
criminalidade também se desenvolve e não era novidade o uso de armas de
brinquedo no cometimento de crimes, muitas vezes o roubo, art. 157 do Código
Penal. Um objeto que imita uma arma de fogo demonstrou-se de uma eficiência
ímpar, uma vez que as pessoas de bem, sabedoras do mal que uma arma de fogo
pode causar, sempre sucumbem a essa verdadeira violência. Podemos, com a devida
compreensão, classificar a arma de brinquedo como a rainha da vis compulsiva.
O
delinqüente descobriu um jeito de obter a mesma vantagem patrimonial sem
valer-se de uma arma de fogo, escapando do aumento de pena previsto para o
roubo (art. 157, § 2º, inc. I, Código Penal). Não entraremos no mérito das duas
correntes doutrinárias que surgiram a respeito do aumento ou não da pena do
roubo pelo uso de arma de brinquedo (Súmula 174, STJ), uma vez que não traz
diferença para o crime que agora estudamos.
A
intenção da nova lei é clara, o legislador percebeu que não adiantaria todo
esforço para elaboração da Lei 9.437/97, sem tratar de um problema conhecido e
grave: cometimento de crime com arma de brinquedo. E por isso criou um tipo
incriminador sobre o assunto, antecipando-se e punindo aqueles que quiserem escapar
dos preceitos específicos para arma de fogo, servindo-se de arma de brinquedo
(ou simulacro) para seu empreendimento criminoso.
ARMA
DE BRINQUEDO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA – ESPÉCIES DO MESMO GÊNERO
O
ponto crucial do nosso estudo é analisar a forma que criou o crime em estudo.
O
legislador nem sempre demonstra uma boa técnica e coerência ao editar leis
penais, sobrando para o intérprete essa árdua tarefa, pois nunca é demais a
preocupação com analogias in malan partem ou interpretações que
tragam mais dano do que benefício à comunidade. Basta lembrar os problemas do
art. 9º da Lei 8.072/90 ou a solução dada ao art. 14 da Lei 6.368/76, também
por infelicidade do legislador de 1990.
No
nosso caso o legislador foi primoroso, pois explicitamente pegou de empréstimo
a forma do art. 288 do Código Penal, formação de quadrilha ou bando. Este crime
compõe-se da soma de atos preparatórios a uma finalidade criminosa. Ambos, o
art. 288 e o art. 10, § 1º, inc. II, da Lei 9.437/97, são espécies do gênero
"atos preparatórios com finalidade criminosa".
Como
espécies do mesmo gênero, podemos dizer que são exceções no Direito Penal, só
possíveis pelo art. 31 do nosso diploma penal. E é bom que seja assim. O
legislador pode, mas não deve, antecipar-se até os atos preparatórios. Se o
próprio crime já deve ser exceção no Direito, o que dizer da punição de atos
preparatórios. Só em casos excepcionais, de real necessidade, deve o legislador
criar tipos como esses. Isso porque a conduta não apresenta gravidade
intrínseca e nem seria típica, não fosse a construção do tipo penal autônomo
que a puni. Sua gravidade ou lesividade social surge quando a ela se agrega uma
finalidade específica, de índole criminosa. Torna-se difícil o meio de prova.
Como não se pode ler pensamento, são as circunstâncias externas que
demonstraram que os autores tinham a intenção de cometer crimes.
O
art. 288 descreve a conduta de associação de mais de três pessoas para
finalidade criminosa. Da mesma maneira o crime em estudo descreve a utilização
de arma de brinquedo para finalidade criminosa. São idênticos em sua construção
típica, o que demonstra a cautela que teve o legislador, na medida em que se
serviu de um exemplo de quase sessenta anos de aplicação, sempre considerado
constitucional, compreensível e totalmente aplicável: a formação de quadrilha.
Podemos
inferir que, para aplicação prática, o nosso crime terá a mesma dificuldade que
qualquer outro da mesma espécie. A mesma dificuldade que a formação de
quadrilha sempre teve: o meio de prova.
POTENCIALIDADE
LESIVA
O
crime em estudo tem potencialidade lesiva?
Tem
e muito. A doutrina, data venia, equivoca-se ao dizer que o crime não
pode ser considerado aplicável por ausência de potencialidade lesiva.
Podemos
partir de seu irmão, o art. 288 do Código Penal. A formação de quadrilha tem
potencialidade lesiva? Claro que tem, dirá a unanimidade da doutrina. Então
mudamos a pergunta: Associação de mais de três pessoas, por si só, também tem
potencialidade lesiva? Não só não tem, como é um direito constitucional
intocável o direito de associação. Ora, se considerarmos a associação de quatro
pessoas isoladamente, provocar-se-á, com razão, revolta ao dizer que tal
conduta deve ser incriminada. Não deve e não pode, pois, como dito, o direito
de associação não só é lícito como é um direito previsto na Carta Magna. O que
transforma a associação, "do mocinho no bandido", é simplesmente a
finalidade criminosa que o tipo traz como elementar.
Sempre
se diz que a diferença entre o remédio e o veneno é a quantidade. Desse modo,
assim como pode parecer um absurdo chamar açúcar, de que tanto gostamos, de
veneno, ele pode excepcionalmente ser um veneno mortal. Basta ministrá-lo a um
diabético. Da mesma maneira é realmente absurdo condenar, execrar, incriminar a
associação de mais de três pessoas, a menos que se esteja diante do tipo de
formação de quadrilha, em que há uma finalidade criminosa. A mesma associação
de quatro ou mais pessoas que não tem potencialidade lesiva, e sim benefícios à
sociedade, terá e muito se a finalidade for criminosa, como consta de maneira
primorosa no tipo.
E
quando simplesmente se utiliza arma de brinquedo, há potencialidade lesiva?
Se
houvesse, talvez não teríamos infância. Nunca teve, não tem e nunca terá.
Podemos, exagerando, até extrair um direito à utilização de arma de brinquedo
pelos jovens, sempre dispostos a imitar seus heróis de desenhos e filmes
norte-americanos, armados como guerreiros. No entanto, não é esse
"utilizar" que cuida o crime em estudo. Assim como o núcleo
"associarem-se", a conduta de utilizar arma de brinquedo ganhará
muita lesividade jurídica se somada à finalidade criminosa, colocada também de
maneira primorosa no tipo incriminador.
A
lesividade não está no objeto em si, pois não passa de um brinquedo, e talvez
essa expressão tenha assustado a doutrina. A lesividade, que não é pouca, está
no meio de vida daquele que, fazendo útil uma arma de brinquedo, está mantendo
seu empreendimento criminoso, na iminência de cometer um crime. O que o
legislador quis punir, antecipando-se, é o empreendimento criminoso,
servindo-se de um objeto (seja arma de brinquedo ou um simulacro capaz de
atemorizar outrem) que pode tornar bem mais eficaz o cometimento de qualquer
crime.
Ora,
na formação de quadrilha nem são necessários objetos corpóreos para
configuração do delito, basta associação intelectual desde que tenha finalidade
criminosa. Concluiu o legislador que deve reprimir esse estado de ânimo, essa
organização, essa "sociedade comercial" que pretende fabricar crimes.
O
enfoque não deve ser dado à arma de brinquedo, um simples objeto inofensivo,
quase sempre de plástico, e sim ao tipo como um todo. O legislador corretamente
se antecipou, concluiu que deve punir esse estado de ânimo, essa transformação
de um objeto em um instrumento prestes a disparar; não projéteis, óbvio, mas
disparar a consumação de vários outros crimes.
Há
um poder maléfico armazenado na quadrilha, na iminência de lesionar a
sociedade. É o mesmo poder armazenado no indivíduo que utiliza um objeto de
maneira a facilitar, tornar possível o cometimento de inúmeros crimes.
Enquanto
o art. 288 tenta desmontar a "empresa" criminosa, o crime em estudo
tenta desmontar o "empresário individual", o fabricante de delitos.
Nas
inúmeras favelas do nosso imenso país, a utilização de uma arma de brinquedo
com finalidade criminosa tem uma lesividade maior que muitos delitos. O
equívoco da doutrina foi olhar para um simples brinquedo de criança,
desprezando toda situação que o tipo exige para se elevar a conduta a um crime
autônomo.
Poder-se-ia,
por absurdo, dizer que o legislador não se pode antecipar dessa maneira, pois a
conduta não tem como lesionar, no presente, qualquer bem jurídico. Convenhamos,
então a associação criminosa de mais de três pessoas também é inconstitucional
e inaplicável. Não tem a formação de quadrilha, da mesma maneira, como ofender
qualquer bem jurídico, pois os agentes ficaram só nos atos preparatórios. Nada
fizeram ainda, apenas se prepararam.
É
claro que ambos os delitos têm lesividade jurídica se os estudarmos como tipos
autônomos que são. Enquanto a doutrina ficar procurando uma ofensa, lesividade
jurídica a uma vítima determinada para o crime em estudo, não a encontrará e
ainda concluirá equivocadamente que o tipo não pode ser aplicado.
REDAÇÃO
PERFEITA DO TIPO
Podemos
dizer mais uma vez que o legislador, intencionalmente ou não, foi primoroso na
criação do tipo incriminador para quem utilizar arma de brinquedo (ou
simulacro) com a finalidade de cometer crimes. Usando a mesma fórmula da
formação de quadrilha, o próprio tipo resolve os problemas que a doutrina
aponta, graças a sua boa redação.
Não
é demais lembrar que há uma grande dificuldade quanto ao meio de prova pela
própria natureza do crime. Aliás, a idêntica dificuldade que já temos no crime
de formação de quadrilha e qualquer outro da mesma espécie.
Importante
também dizer que a aplicação do dispositivo foi restringida pelo núcleo. É
certo que seja assim, pois se trata de meros atos preparatórios com finalidade
criminosa. Não foi sem motivo a exigência de mais de três pessoas no art. 288.
O legislador achou demais a punição de três pessoa ou menos que se associam
para cometer crimes. É coerente e necessária a precaução na incriminalização de
atos preparatórios, ainda mais dessa espécie (somadas à finalidade criminosa).
Com
isso, vai-se demonstrando a aplicabilidade e a inteligente redação do referido
tipo incriminador que complementou a Lei de Armas de Fogo.
Quanto
ao núcleo do tipo
O
núcleo do tipo é "Utilizar". Utilizar, segundo o dicionário, é tornar
útil, aproveitar, servir-se. Útil por sua vez é: que tem algum uso, que serve
para alguma pessoa ou coisa. Se utilizar é fazer algo transformar-se em útil,
podemos dizer que quem torna útil faz ter serventia o que antes não tinha.
Utilizar
é mais do que o simples portar e é mais do que trazer consigo. Pode ocorrer,
mas nem sempre quem porta está utilizando. O legislador preocupou-se em exigir
a certeza de que o agente está tornando um objeto sem importância, um simples
brinquedo em uma arma em potencial, eficaz na consumação de vários delitos. Um
verdadeiro perigo para a coletividade. Isso para separar aquele que brinca, ou
transporta uma arma de brinquedo daquele que deseja manter seu empreendimento
criminoso. O núcleo, de maneira inteligente, é um divisor de águas. A expressão
utilizar traz consigo verdadeira soma objetiva e subjetiva. Enquanto portar é
um estado apenas objetivo, pois é difícil mensurar a intenção que está no
"portar", o verbo utilizar nos dá a idéia de uma intenção, uma
ligação subjetiva entre o agente e o objeto. Assim, realmente o agente quer
mais que portar, mais que trazer consigo. Utiliza, transformando pelos seus
atos o objeto em algo útil para sua finalidade.
Inteligência
do núcleo do tipo. Se o tipo trouxesse como núcleo o verbo portar ou trazer
consigo, seria a verdadeira incriminalização da arma de brinquedo. Estaríamos
punindo aquele que está carregando um pedaço de plástico. Nesse caso seria
fácil a prisão em flagrante por se tratar de uma simples aferição objetiva,
saindo do espírito da Lei e dando margem a inúmeras arbitrariedades. Imaginem
uma blitz policial em frente a uma loja de brinquedos.
Por
hipótese, imaginemos se houvesse no art. 288, como núcleo, o verbo juntar-se.
Seria uma forma mais objetiva sem o ânimo de associar-se, sem o affectio
societatis. Da mesma maneira se daria uma amplitude maior do que a intenção
da lei, não alcançando a finalidade de punir as empresas criminosas. Seria
fácil a arbitrariedade e com certeza uma afronta aos direitos individuais. Por
isso, o tipo reclama mais, sempre lembrando que se trata de atos preparatórios
que materialmente ainda não afetaram a sociedade: uma antecipação do
legislador.
Foi
feliz o legislador com a referida redação, dando mais segurança aos direitos
individuais e exigindo mais que uma ligação objetiva entre o agente e o objeto
material do crime. As circunstâncias devem demonstrar que o agente não apenas
portava, mas dava utitilade ao objeto para possível cometimento de crimes
indeterminados. Demonstra-se novamente que o legislador não pune a arma de
brinquedo em si, mas o estilo de vida, o empreendimento criminoso capaz de
fabricar crimes.
Quanto
à expressão "para o fim de cometer crimes"
Para
alcançar a sua intenção, o legislador evidentemente fez uso da mesma fórmula do
art. 288 do Código Penal, descrevendo como conduta atos preparatórios
totalmente lícitos, transformados em grande perigo para sociedade se somados à
finalidade criminosa. Com isso, imitou no final do tipo a expressão "para
o fim de cometer crimes".
Com
essa expressão, elemento subjetivo explícito no tipo, o crime em estudo torna-se
autônomo, dando-lhe aplicabilidade e evitando problemas, como concurso e
posterior absorção de crimes. Fica claro que o agente não tem em mente um crime
específico, nem precisa cometer qualquer crime para que se encaixe como uma
luva no tipo. O que se pune não é o emprego da arma de brinquedo em um crime
determinado e sim a conduta de dar utilidade, de servir-se de arma de brinquedo
para cometer crimes indeterminados.
A
conduta de ambos os crimes, "utilizar arma de brinquedo" e
"associarem-se", é presente, bem como a finalidade, a vontade também
é presente, atual, porém destinada a produzir efeitos futuros. Não há problema
na conduta atual com a finalidade futura, pelo contrário. A prova do que o
agente quer produzir no futuro é que justifica a punição no presente.
Se
a palavra crime estivesse no singular, o tipo seria suicida. Não se teria um
tipo autônomo e, sempre que o agente empregasse arma de brinquedo (ou
simulacro) em um crime determinado, ocorreria a absorção. A Lei estaria
incentivando o cometimento do crime com arma de fogo, uma vez que seria crime
único em vez de dois crimes em concurso se cometido com arma de brinquedo. No
entanto, com a redação precisa do tipo não há que se confundir o delito em
apreço, de objetividade jurídica própria, com os possíveis que o agente possa
praticar.
Por
que não se lembrar de seu irmão mais velho (quanto à forma)? A formação de
quadrilha é tipo autônomo, independente de qualquer crime futuro que os
quadrilheiros venham a praticar. Na verdade, eles não precisam praticar um
delito sequer para encaixar-se no tipo do art. 288 do diploma penal.
Teleologicamente, se os agentes praticarem crimes futuros, podemos dizer que a
infração penal prevista no art. 288 não cumpriu com efetividade seu papel de
desmontar a empresa criminosa. O bom seria se fossem punidos antes da prática
de delitos futuros, para evitá-los. Ora, é a antecipação do legislador.
Da
mesma maneira, aquele que utiliza arma de brinquedo para finalidade criminosa
deveria ser punido antes de praticar os delitos que tem em mente, sob pena da
não-efetividade da lei penal.
É
possível então a aplicação isolada do crime de utilizar arma de brinquedo (ou
simulacro) para o fim de cometer crimes?
Perfeitamente
possível, da mesma maneira que o art. 288 do Código Penal e qualquer outro
delito feito sob a mesma forma, da mesma espécie. Haverá dificuldade, e não
será pouca, quanto ao meio de prova pela natureza das infrações. Demonstraremos
com exemplos que se pode aplicar o crime em tela.
Não
é demais ressaltar que o que torna a conduta (em princípio inofensiva) de
utilizar arma de brinquedo em situação justificante para criminalização é
justamente o elemento subjetivo explícito do tipo, dando-lhe grande
potencialidade lesiva. Transformando, como já dissemos em uma comparação, o
açúcar em veneno.
Quanto
à "arma de brinquedo" e "simulacro de arma capaz de atemorizar
outrem"
As
expressões coadunam-se com a intenção do legislador, de punir por antecipação
aqueles que montam seu empreendimento criminoso, valendo-se de objetos
semelhantes a armas de fogo.
O
importante é notar que o brinquedo em si é inofensivo e, como dito, atípico por
excelência. A importância aparece quando se soma a transformação deste
inofensivo objeto em instrumento de fácil e efetiva aplicação no cometimento de
crimes com a intenção do agente em praticá-los.
O
próprio tipo ensina que o objeto deve ser capaz de atemorizar alguém, isto é, o
agente deve ter a capacidade de fazer do objeto uma arma capaz de consumar
crimes. Arma, claro, no sentido de instrumentalidade no cometimento de um
crime. Meio hábil para ajudar na consumação de um crime futuro.
A
expressão "arma de brinquedo" pode levar o intérprete a comparar um
brinquedo com uma arma de fogo e tal comparação não será feliz no estudo deste
crime que é autônomo e independente. O crime foi inserido na Lei para cuidar de
uma situação conhecida e comum nos dias atuais. Se não fosse criado, sabendo do
tratamento mais severo da lei para as armas de fogo, os delinqüentes seriam
encorajados mais ainda ao uso de simulacros e armas de brinquedo no cometimento
de seus crimes, escapando aos rigores da Lei nova.
Quanto
à Pena
É
aplicada a mesma pena de dois outros crimes do § 1º do art. 10: detenção de um
a dois anos e multa. Conclui-se que o legislador não respeitou, como deveria, o
princípio da proporcionalidade das penas. Aliás, infelizmente é comum no
Direito Penal a desproporção das penas. Basta citar a pena do homicídio culposo
do Código Penal, art. 121, § 3º, que é a mesma da injúria racial prevista no
art. 140, § 3º, do mesmo diploma; sendo esta de reclusão e aquela de detenção.
Essa
falta de propriedade não pode tirar a constitucionalidade do referido
dispositivo, nem sua aplicabilidade, apesar da lamentável desproporcionalidade.
EXEMPLOS
PRÁTICOS
Os
exemplos práticos sempre demonstram um fato, um possível acontecimento da vida,
e devem se encaixar no crime em estudo para mostrar a sua aplicabilidade. No
entanto, não podemos relacionar as situações possíveis para lei abstrata,
exaurindo sua aplicação. Essa observação faz-se importante pelo núcleo do tipo,
utilizar, que, como visto, tem uma exigência maior que o simples uso ou porte
de uma arma de brinquedo. Caberá aos julgadores separar, nas situações de fato,
aquelas que se encaixam no tipo e aquelas condutas que se mostrarem atípicas. O
legislador foi inteligente com o núcleo do tipo, exigindo mais para
configuração do crime, porém restringiu sua aplicação. Bom que seja assim, uma
vez que é mais um crime de atos preparatórios somados à finalidade criminosa. A
linha que separa a tipicidade da aticipidade é tênue, mas distinta.
O
problema do crime em tela é o mesmo que qualquer um da sua espécie, o meio de
prova.
Imaginemos
dois indivíduos com seus respectivos telefones interceptados conforme a lei
vigente. Em sua conversa, combinam e compram duas armas de brinquedo para
cometerem crimes. Eles justificam claramente que dois bancos possuem uma
vigilância insuficiente e, como "dá cadeia" armas de fogo, eles podem
cometer seus roubos com tranqüilidade munidos de armas de brinquedo. Tudo
devidamente gravado. Dois dias após, um deles adquire um coldre axilar, pois
ouviu de um delinqüente que, ao abrir sua jaqueta e mostrar o instrumento
dentro de um coldre de arma de fogo, a vítima fica mais atemorizada,
facilitando o seu crime. O outro prefere comprar uma tinta cor prata, pois
aprendeu que as pistolas niqueladas são mais efetivas no cometimento de crimes,
e assim pinta seu objeto. Uma semana depois são surpreendidos na porta do
Banco, sem terem praticado nenhum crime, munidos das armas de brinquedos nas
situações descritas. Ainda mais, testemunhas os viram mais de uma vez na frente
do banco e em outro, aquele descrito na gravação. Precisamos de mais? Uma ou
duas testemunhas, vizinhos dos agentes, afirmando com veemência que ouviram mais
de uma vez ambos dizerem que iriam "assaltar" aqueles que saíam do
banco. Fica claro que os agentes deram utilidade aos objetos com a finalidade
criminosa e o fato se encaixa como uma luva no tipo penal. Difícil, mas pode
ocorrer: e se eles confessarem que há dias realmente utilizavam as armas
simuladas com intenção de cometer crimes indeterminados?
Desafiamos
aqueles que não se contentam com o exemplo a dar um exemplo tão pormenorizado
de formação de quadrilha sem outro crime atrelado. É claro, via de regra aquele
e este virão acompanhados no processo de outros crimes, pois são estes que
demonstraram claramente a intenção do agente.
É
por isso que a doutrina unânime aceita e explica o crime de formação de
quadrilha como crime autônomo, mas não dá detalhes de um exemplo prático.
Sempre haverá alguém, examinando um caso hipotético, exigindo mais provas para
a configuração do crime. Quantos planos, quantas reuniões são necessárias para
configuração da formação de quadrilha? É penoso o trabalho de saber em que
momento começa a associação criminosa, assim como é difícil saber quando o
agente deu uso, utilidade, mudou de simples brinquedo para um instrumento de
sua finalidade criminosa. Lembramos que a expressão "utilizar" traz carga
subjetiva por natureza, não sendo suficiente portar, transportar ou trazer
consigo uma arma de brinquedo. Bom que seja assim. Utilizar, tornar útil não em
um crime específico, mas sim em seu empreendimento criminoso.
Assim,
podemos dar exemplos mais fáceis e que acontecem corriqueiramente. Exemplos do
crime em estudo atrelado, ligado a outros delitos, que servirão como meio de
prova. Não são meros exemplos doutrinários e apaixonantes como o da embriaguez
fortuita, em que o indivíduo tropeça e cai em um tonel de pinga.
Imaginemos
que o agente é o "dono" da favela, fato mais do que comum,
infelizmente. Munido de uma arma de brinquedo, ele impõe horário para os
moradores dos cinco ou seis barracos em frente à favela, a fim de possibilitar
a venda de drogas. Essas pessoas são vítimas do crime de constrangimento
ilegal, previsto no art. 146 do Código Penal e não há como dizer que o agente,
depois de surpreendido, não estava utilizando a arma de brinquedo para o fim de
cometer crimes. É um verdadeiro empreendimento criminoso. O agente não quer
praticar um crime de constrangimento ilegal hoje ou amanhã, demonstra-se que
ele deu utilidade para o objeto em sua vida criminosa para o cometimento de
qualquer crime. É típica a conduta, merecendo a reprimenda perfeita do art. 10,
§ 1º, inc. II, da Lei 9.437/97. Claro, como acontece na formação de quadrilha,
a denúncia ministerial trará o crime em conjunto com os delitos de
constrangimento ilegal, que são meios de prova do seu assumido estilo de vida.
Podemos
dizer mais: se o inc. III, do § 1º, do art. 10, é um crime subsidiário
explícito (disparo de arma de fogo), classificamos o nosso delito como
subsidiário implícito, ou seja, no último exemplo ocorreria a absorção do
constrangimento ilegal pelo crime de utilizar arma de brinquedo para cometer
crimes. A pena do primeiro é menor que do segundo.
O
último exemplo é o mais interessante. O agente, "dono da favela", faz
uso, utiliza uma arma de brinquedo para cometer crimes indeterminados. Demonstra-se
essa conduta quando ele acaba por praticar vários crimes de ameaça contra
quatro vítimas diferentes em dias diferentes. Preso pela polícia, as quatro
vítimas o reconhecem como autor das ameaças e está mais do que demonstrado que
o agente utilizava a referida arma de brinquedo apreendida para o cometimento
de crimes. Há ainda uma testemunha que explica o modus operandi do
autor. Conta que o agente, nos dias que desconfiava estar prestes a sofrer ação
da polícia, trocava sua arma verdadeira pela imitação, sabendo das
conseqüências atuais para quem faz uso de arma de fogo. No entanto, nenhuma das
quatro vítimas quer representar, ou seja, impedem que o Ministério Público
intente ação penal, dependente de representação por ser de ação penal pública
condicionada. Pela doutrina atual, equivocada, restaria mandar esse criminoso
embora sem qualquer resposta estatal, por acreditar que é inaplicável o crime
em estudo, apesar de mais do que comprovada a conduta de utilizar arma de
brinquedo com a finalidade criminosa.
Mais
do que clara está a dificuldade de aplicar o crime independente de outros
delitos por causa do meio de prova. Problema idêntico ao crime de formação de
quadrilha. Em regra, esses delitos virão acompanhados de outros crimes e
circunstâncias que demonstrarão a finalidade criminosa, separando essas
condutas da simples, e atípica, associação e utilização de arma de brinquedo.
Bom que seja assim; trata-se nos dois crimes de atos preparatórios com
finalidade criminosa.
CONCLUSÃO
Não
há como sustentar a inaplicabilidade do crime que estudamos, muito menos sua
inconstitucionalidade. Estaríamos desprezando sessenta anos de vigência do
crime de formação de quadrilha ou bando, tipo da mesma espécie. Apesar de firme
opinião em contrário, poderemos e deveremos respeitar a posição de que não há
necessidade de tipificar atos preparatórios como esses. Crimes de perigo
abstrato do qual é vítima a coletividade como a associação criminosa do art.
288 do Código Penal e a utilização de arma de brinquedo com finalidade
criminosa. Entretanto, serão sempre inaceitáveis as argumentações que tentarem
retirar o crime do ordenamento jurídico, seja formal ou materialmente.
PROBLEMAS
APONTADOS PELA DOUTRINA
Passemos
à análise de alguns supostos problemas que a doutrina aponta, como fundamento
da inaplicação, incompreensão do crime em estudo.
Se
a arma de brinquedo nunca foi admitida para caracterizar a contravenção do art.
19, como pode servir de crime autônomo?
A
contravenção presumia perigo resultante da simples situação objetiva de posse,
do porte de uma arma de fogo. É o que acontece hoje com o art. 10, caput,
da Lei 9.437/97. A incriminalização decorre do objeto em si e não das atitudes
do agente, do seu meio de vida. A Lei nunca presumiu, e nem poderia ter feito,
o perigo resultante da posse de um brinquedo, pois realmente seria um absurdo.
O crime em estudo pune a escalada do agente que se coloca em uma situação
diferenciada, efetiva e presumivelmente perigosa à sociedade por querer adotar
um estilo de vida, cometimento de crimes. Servindo-se para isso de uma peça
idêntica a uma arma de fogo. O enfoque não o objeto em si, mas as atitudes do
agente com o referido objeto.
O
núcleo do tipo, situação presente, é incompatível com a expressão "para o
fim de cometer crimes", situação futura?
A
conduta de associarem-se prevista para o crime do art. 288 do Código Penal é
presente, apesar de a finalidade ser de cometer crimes futuros. Aliás, é essa
construção que dá autonomia ao tipo, pois, se ligasse a conduta ao cometimento
concomitante de um crime, teríamos os problemas já apontados; haveria
inevitável absorção do crime, tornando-o ineficaz. Quando o tipo trouxe a
finalidade futura, separou o delito em estudo do emprego efetivo de uma arma de
brinquedo em um crime determinado.
Assim
como a expressão associar carrega mais de uma situação objetiva, ou seja, exige
um estado de ânimo, uma vontade indissociável dos atos materiais que os agentes
pratiquem, o verbo utilizar também exige a mesma ligação da situação de fato
com a intenção de tornar útil, dar uma utilidade, uma finalidade ao objeto.
Inteligência do tipo que impede a punição da simples posse de um objeto, muitas
vezes de plástico.
Não
há que se falar em incompatibilidade do núcleo com a finalidade. O crime é
utilizar, dar uma utilidade à arma de brinquedo (ou simulacro) e não empregar
em um crime determinado. O utilizar não está ligado a um crime determinado que
se pretenda praticar. A conduta é presente, independente de qualquer crime,
assim como no crime de formação de quadrilha ou bando.
Na
verdade a expressão final não "matou" o começo da oração, argumento
equivocado da doutrina, mas salvou, dando autonomia como um crime autônomo,
independente como deve ser.
Podemos
concluir que a fórmula de construção de tipos dessa espécie (atos preparatórios
+ finalidade criminosa) sempre trará os mesmos problemas de interpretação que
devem ser ultrapassados. São, porém, crimes aplicáveis apesar da dificuldade do
meio de prova.
É
verdade que a lei estaria incentivando o cometimento de crimes com arma de
fogo, pois seria um crime único em vez de dois crimes em concurso se cometido
com arma de brinquedo?
Qualquer
manual de direito penal ensina-nos a resposta a essa pergunta. Se mais de três
pessoas efetivamente se associarem para cometer um crime determinado, o fato é
atípico. Ensinam mais: se foram vários crimes, porém determinados, o fato é
totalmente atípico. O art. 288 do Código Penal não pune a associação para
determinado crime e sim a construção de um estilo de vida, de uma "empresa
criminosa". É essa a diferença entre o concurso eventual e a formação de
quadrilha.
Da
mesma maneira, se o agente utilizar uma arma de brinquedo no cometimento de um
crime de ameaça, p.ex., não estaremos diante de um problema, pois o fato é
totalmente atípico com relação ao instrumento usado para ameaçar. Não se
encaixa no tipo do inc. II, § 1º, do art. 10, da Lei 9.437/97. Não cuida o
referido crime da utilização do objeto em um crime determinado. A punição vem
quando o agente, querendo tornar-se um delinqüente mais eficaz, mais poderoso
para consumação de delitos indeterminados, dá utilidade a um objeto que imita
uma arma de fogo.
Por
outro lado, se em um processo de ameaça se comprova que o agente já fazia uso
da arma de fogo que empregou no crime de ameaça, deverá responder em concurso
com o caput do art. 10 da Lei. O mesmo se diz para arma de brinquedo, pois
são objetos jurídicos diversos.
Não
incentiva a Lei, portanto, o uso de armas de fogo sob pretexto de ser menos
severa a conjugação dos crimes em concurso. Mais uma vez percebe-se a precisão
da redação do tipo em estudo, dando-lhe aplicabilidade, autonomia e coerência
com o sistema.
Há
problema no caso de roubo cometido com arma de brinquedo (Súmula 174, STJ)?
É
importante salientar que a divergência doutrinária e jurisprudencial não
afetará a compreensão, vigência e aplicabilidade do crime em estudo.
Se
a arma de brinquedo foi apenas instrumento no cometimento do crime de roubo, ou
seja, o agente não deu utilidade ao objeto para fins criminosos, apenas
empregou efetivamente em um crime de roubo, o fato é atípico, não se encaixa no
art. 10, § 1º, inc. II, da Lei de Armas. Assim, o agente responderá pelo roubo,
com aumento de pena para aqueles que admitem a Súmula do Superior Tribunal de
Justiça.
Por
outro lado, se demonstrado pelas provas do processo que o agente utilizava,
havia dado anterior utilidade em sua empreitada criminosa com o objeto parecido
com a arma de fogo, não para o crime de roubo, mas para esse e qualquer outro
que viesse a cometer, estamos diante do crime de utilizar arma de fogo com finalidade
criminosa. Nesse caso há concurso deste com o crime de roubo.
A
única discussão é se nesse último caso o concurso é com o roubo simples ou com
pena aumentada pelo emprego de arma. Alguns podem dizer que será bis in idem
se houver concurso do crime em estudo com o art. 157, § 2º, inc I, do
Código Penal.
Já
foi dito que tal discussão não tem relevância para nosso estudo, pois de uma
maneira ou de outra o crime previsto para quem utiliza arma de brinquedo (ou
simulacro) com finalidade criminosa é autônomo e continua intocável,
independente da corrente adotada para o caso de concurso com o crime de roubo.
* Advogado em São Paulo (SP).
Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1028
>. Acesso em: 17/10/06.