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A inviolabilidade da correspondência
do condenado preso
Azor
Lopes da Silva Júnior*
É lícito ao Estado devassar correspondência dos condenados durante a execução de pena privativa de liberdade?
A
insegurança social e a natureza jurídica das penas
Questionar
direitos dos criminosos talvez até cause repulsa àqueles outros que, hoje mais
que nunca, se vêem enclausurados em suas casas ou blindados em seus carros para
fugir do ataque de marginais numa sociedade onde o crime avança célere.
Entretanto, o que se espera do homem evoluído, social, moral e intelectualmente,
é que sublime seu lado fera, instintivo - o id descrito por Sigmund
Freud - e o faça retornar à elevada razão humana.
Ainda
hoje, dois mil anos após o mais nefasto e injusto julgamento, onde o mais puro
inocente foi condenado a uma pena de suplício cruel, é atual trazer a lume a
natureza das penas e a condição jurídica que deve ocupar o criminoso. Como
sempre, se fazem imortais os pensamentos de Beccaria.
Ora,
tem a pena corporal o condão e o objetivo de despojar o ser humano de seus
direitos, de subjulgá-lo ao poder e afligi-lo diante da sociedade dos homens de
bem, de vingar pelo crime cometido - punitur quia pecatum est - ou de
prevenir o avanço da ilicitude pela punição do infrator - punitur ne pecetur?
A
história nos dá conta da primeira hipótese de aflições impostas ao violador da
lei, onde se via como vítima do crime a própria divindade, representada pelo
governante legislador investido pelo direito divino dos reis. O crime afrontava
aos deuses.
A
vindicta, de início privada, passando a pública manteve sua natureza
retributiva e o atual engodo acadêmico de esperança por um sistema
penitenciário recuperador não foge da hipócrita utopia.
De
nossa parte, pousamos entendimento de que a virtude esteja no ponto médio: de
maneira alguma devemos retornar aos suplícios degradantes e talvez ainda não
estejamos social e espiritualmente prontos para a clemência não onerosa. A
pena, indubitavelmente é retributiva mas, necessariamente não deve ser vingança;
a vingança é ópio dos coléricos. O sentimento de vingança é cabível às vítimas,
porquanto seres dotados de paixão, de alma; o Estado, pessoa jurídica de origem
humana, de justificação ainda questionada pelos teóricos, bem como a sociedade
- universitas personae - não têm alma, não podem ter sentimento e,
assim, não tem legitimidade para a vingança.
Todavia,
na mesma medida em que o crime avança, o segue marginalmente os sentimentos de
insegurança e vingança, alastrando-se nas veias do organismo social e, porque
não dizer também do estatal e, assim, paradoxalmente, cria-se uma relação onde
os infratores da lei passam a ser "vítimas" do Estado-criminoso,
tendo-se como testemunhas a sociedade.
O
direito do condenado ao sigilo da correspondência
Para
se chegar a uma conclusão lastreada na lógica jurídica e ao direito positivado,
importa primeiramente focalizar os pólos desta relação, apenado e Estado, nesta
trama do universo jurídico. Seguindo na esteira do raciocínio, é a Lei Maior
quem vai nos dar conta da condição do prisioneiro e, nela, temos que um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III, CF). Na ordem internacional a Carta
Constitucional rende seu louvor à prevalência dos direitos humanos (art. 4º,
II, CF).
Pois
bem, ao apregoar a dignidade da pessoa humana, já de plano não distingue ela a
situação jurídica do ser e, teleologicamente, abre espaço ao conceito de
dignidade. Numa interpretação meramente gramatical vemos que
"dignidade" encerra a idéia de "modo de proceder que infunde
respeito; elevação ou grandeza moral; honra; autoridade, gravidade; decência,
decoro."(1). Fala-se aí nos chamados Direitos Humanos de Primeira Geração,
tratados no Pacto de São José e, a este propósito, Antonio José
Maffezoli Leite e Vitore André Zilio Maximiano,
Procuradores do Estado de São Paulo e membros do Grupo de Trabalho de Direitos
Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo , em brilhante trabalho
anotam :
"O Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos foi adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da Assembléia
Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966. Logo, é um pacto de
amplitude mundial. Entrou em vigor em 1976, quando foi atingido o número mínimo
de adesões (35 Estados).
O Congresso Brasileiro aprovou-o através do
Decreto-Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991, depositando a Carta de
Adesão na Secretaria Geral da Organização das Nações Unidas em 24 de janeiro de
1992, entrando em vigor em 24 de abril do mesmo ano. Desde então, o Brasil
tornou-se responsável pela implementação e proteção dos direitos fundamentais
previstos no Pacto.
Na época em que se iniciou, no âmbito da
Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a discussão para
edição de um Pacto que reunisse todos os direitos da pessoa humana,
idealizou-se dois modelos: um único que conjugasse as duas categorias de
direito e outro que promovesse a separação de um lado, dos direitos civis e
políticos e, de outro, dos direitos sociais, econômicos e culturais.
A divergência que ocorria entre os países
ocidentais e os países do bloco socialista era sobre a autoaplicabilidade dos
direitos que viessem a ser reconhecidos. Os países ocidentais, cuja orientação
acabou prevalescendo, entendiam que os direitos civis e políticos eram
auto-aplicáveis, enquanto que os direitos sociais, econômicos e culturais eram
"programáticos", necessitando de uma implementação progressiva. A ONU
continuou reafirmando, no entanto, a indivisibilidade e a unidade dos direitos
humanos, pois os direitos civis e políticos só existiriam no plano nominal se
não fossem os direitos sociais, econômicos e culturais, e vice-versa.
Assim, o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos é adotado no auge da Guerra Fria, reconhecendo, entretanto,
um conjunto de direitos mais abrangente que a própria Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Em virtude da ditadura militar que governou o
país por 21 anos, o Governo brasileiro só ratificou o Pacto quando seus
principais aspectos já se encontravam garantidos na atual Constituição Federal,
em seu título II, denominado "Dos Direitos e Garantias Fundamentais".
Assim,
temos que a dignidade é bem natural e juridicamente inalienável ao ser humano,
seja qual for sua condição e, sua prevalência na órbita jurídica internacional,
tal qual gravado pelo poder constituinte originário, ilimitado e soberano, é
inquestionável.
Ainda
lembrando-se o Pacto de São José, vemos que em seu artigo 10 que:
"Toda pessoa privada de sua liberdade
deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa
humana".
Ao
falarmos da dignidade, urge lembrarmo-nos que seu conceito encerra o da
intimidade e, portanto, da conseqüente inviolabilidade de correspondência,
objeto deste despretensioso trabalho. Para Rui Barbosa, citado pelo
constitucionalista Alexandre de Moraes(2), tratam-se de disposições
assecuratórias, porquanto, em defesa dos chamados direitos fundamentais,
reconhecidos pelo ordenamento jurídico, limitam o poder estatal garantindo seu
respeito. Dignidade humana, como aponta um dos "considerandos" da
Declaração Internacional dos Direitos Humanos da ONU (1948), é inerente
todos como fundamento da liberdade, da justiça e da paz.
José
Afonso da Silva(3), mais minucioso a respeito, indica distinção semântica entre
os conceitos de privacidade e intimidade, componentes da
decantada dignidade humana. Para ele privacidade tem conotação
mais ampla e agasalha todas as manifestações da esfera íntima, privada e da
personalidade, definindo-a como "o conjunto de informação acerca do
indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controlo, ou comunicar,
decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem isso poder ser legalmene
sujeito". Intimidade, por sua vez, encera a idéia de "esfera
secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os
demais", nas palavras de René Ariel Dotti(4).
Exsurge
pois que, pela Norma Constitucional, de caráter pétreo, o condenado
aprisionado, além de não perder sua natureza humana, conserva o direito à
dignidade que lhe é inerente, e aqueles que dela decorrem, como, in casu,
à privacidade e intimidade (ex vi art. 5º, XLIX, CF).
De
outra parte, não se pode, em prol do indivíduo expor a coletividade de homens à
mercê da sorte. Daí vemos que o Estado, como bem lembrado por Dalmo de Abreu
Dallari(5), lida constantemente, no exercício do poder conferido, com os
dualismos da necessidade x possibilidade, da liberdade x autoridade e do
indivíduo x coletividade. Especialmente nestes dois últimos, vemos, por não
raras vezes, sucumbir os valores individuais aos coletivos, estes representados
pela soberana figura do Estado. Bem lembra o autor que no confronto do
indivíduo com o coletivo, virtus in mejus, porquanto se pernicioso seria
sacrificar o todo em favor do unitário, também o será o contrário. Finaliza o
festejado jurista que o Estado deve reconhecer no indivíduo o valor mais alto,
já que em função dele existem a sociedade e o próprio Estado.
Arremata
recomendando cuidadoso estudo no exercício da autoridade, uma vez que,
quebrando-se o indelével equilíbrio entre ela e a liberdade, abre-se farto habitat
às arbitrariedades e desvirtua-se o papel do Estado, de propiciador de proteção
jurídica, a usurpador dos valores fundamentais da pessoa humana.
A
melhor hermenêutica da Lei de Execução Penal
Descendo
do nível Constitucional ao ordinário, ao compulsar os enunciados da Lei de
Execução Penal (Lei n.º 7.210, de 11.07.84), logo no terceiro artigo
encontramos que "Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os
direitos não atingidos pela sentença ou pela lei ". Ora, qual sentença
ou lei pode se contrapor às cláusulas pétreas constitucionais? Logo, aí vemos
que a Lei define seus próprios princípios em direção à reserva de direitos
humanos àqueles condenados.
Mais
adiante, ao cuidar dos direitos dos condenados, o artigo 41, inciso XV,
assegura o contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da
leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons
costumes. Encerra-se, portanto o reconhecimento do direito, condicionando-o à
moral e aos bons costumes e, acenando com a possibilidade de sua suspensão por
ato motivado da autoridade pública.
Em
respeitável artigo publicado na Revista Consulex(6), Miguel Lucena, Delegado de
Polícia do Distrito Federal, citando o eminente e saudoso penalista Nelson
Hungria, desenvolve raciocínio no sentido de que o parágrafo único do artigo 41
daria guarida à interceptação e devassa da correspondência do preso, tal qual
ocorre no caso da correspondência do falido, que poderia ser aberta e lida pelo
síndico no interesse da massa sob o manto do artigo 63, II, da Lei de
Falências.
Neste
ponto nosso cuidado deve ser redobrado na análise do assunto. Julio Frabrini
Mirabete(7) aponta que, diante do artigo 5º, XII, da Lei Maior, estão revogados
os artigos 240, § 1º, f, do Código de Processo Penal, bem como o artigo
63, II, da Lei de Falências. Com efeito, o dispositivo processual penal em tela
é hoje derrogado, já que a busca domiciliar é de mandado privativo das
autoridades judiciárias e não mais das autoridades de polícia judiciária.
Note-se que o festejado penalista sequer falou no artigo 41 da Lei de Execução
Penal e por quê?
Como
de se esperar, a norma infraconstitucional, Lei n.º 7.210/84 (Execuções Penais)
não deu guarida, nas suas condicionantes, à violação do conteúdo das missivas
particulares. Cuidava ela de um bem jurídico diverso: o contato com o
mundo exterior, e aí estabeleceu restrições, e não daquilo que nos
debruçamos a analisar: a inviolabilidade da correspondência.
Com
efeito, entendemos que o "contato com o mundo exterior" por meio de
correspondência possa ser suspenso ou restrito. Ora, se o Estado pôde o mais,
privar fisicamente o condenado do contato com o mundo exterior com a imposição
de pena privativa de liberdade, tão certo é que poderá, motivadamente, alargar
este isolamento com a suspensão ou restrição, sempre temporárias, do contato
por correspondência.
Todavia
estender a interpretação para atingir outro direito, este integrante da
intimidade individual: a inviolabilidade de correspondência, se nos parece
inadequado e ilegal. Por todo o já exposto é inquestionável que a violação
tipifica-se claramente no artigo 151, caput, do Código Penal Brasileiro.
A
figura típica do delito de violação de correspondência é de mera conduta,
inexigindo, pois resultado causalístico. O dolo finalístico que impõe a
reprovabilidade da conduta, não se descriminaliza com a invocação, inócua, por
parte do agente penitenciário, de que agiu em estrito cumprimento do dever
legal ou exercício regular de direito.
Expurgue-se
ainda mais, eventual busca de justificativa na deturpação dos ensinamentos
administrativistas, quiçá invocando-se poder discricionário do administrador
público. Ora, o ato administrativo perfeito tem como princípio elementar a
legalidade que, se inobservada, transmuta-lhe em ato arbitrário e, como contra
legem, eivado de vício insanável e capaz de deixar o agente à sorte das
penas da lei; lembre-se o axioma do Direito Administrativo que, se pelo
princípio da legalidade, a todos é dado fazer tudo aquilo que não seja defeso
em lei, ao administrador somente é permitido aquilo que ela o autorize.
Devassar,
qual seja "invadir ou observar aquilo que é defeso ou vedado; Ter vista
para dentro de"(8), em se tratando de correspondência fechada e com
destinatário certo, mesmo que ele submetido à pena privativa de liberdade, é
prática abominável que não só deixa de encontrar aporte no ordenamento jurídico
mas, em sentido absolutamente inverso, implica em injusto com reprimenda legal
da esfera penal, concomitante com a esfera administrativo-disciplinar.
NOTAS
1. MICHAELIS.
Dicionário prático da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1987.
2. MORAES,
A . Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p.58.
3. SILVA,
J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros. p.
188-90.
4. DOTTI,
R.A . Proteção da vida privada e da liberdade de informação. São Paulo:
RT, p. 69.
5. DALLARI, D. A . Elementos
de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva. p.130-131.
6. LUCENA,
M. Violação de correspondência. Revista Jurídica Consulex, v. I, p. 46-7, 1999.
7. MIRABETE,
J.F. Manual de direito penal. v. 2 . São Paulo: Atlas, 1999, p. 199.
8. MICHAELIS.
Dicionário prático da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1987.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL.
Senado Federal. Secretaria de Documentação e Informação. Constituição da
República Federativa do Brasil quadro comparativo 1946-1967 1969-1988. Brasília:
Subsecretaria de Edições Técnicas, 1996, 708p.
DALLARI,
D. A. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1999.
307p.
DOTTI,
R.A. Proteção da vida privada e da liberdade de informação. São Paulo:
RT, p. 69.
LUCENA,
M. Violação de correspondência. Revista Jurídica Consulex, v. I, 1999, mensal.
MIRABETE,
J.F. Manual de direito penal, v. 2. São Paulo: Atlas, 1999, 500p.
MORAES,
A. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, 766p.
SILVA,
J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros.
768p.
* Capitão da Polícia Militar de São Paulo, professor de Direito da Centro
Universitário de Rio Preto (UNIRP), pós-graduado pela Universidade Estadual
Paulista (UNESP), multiplicador de Direitos Humanos habilitado pela Anistia
Internacional.
Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9032
>. Acesso em: 17/10/06.