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Os Regulamentos Disciplinares militares e sua conformidade com a constituição federal

                                                                                                                                      

Jorge César de Assis *

 


1. INTRODUÇÃO AO TEMA
O recente ajuizamento de ação declaratória de inconstitucionalidade contra o Regulamento Disciplinar do Exército, proposta pelo Procurador-Geral da República, e o não conhecimento da mesma por parte do Supremo Tribunal Federal, sugerem a necessidade de uma reflexão mais aguçada sobre o tema, principalmente em decorrência de uma série de decisões em sentidos opostos que ocorrem na Justiça Federal.
Este é nosso propósito: refletir e incentivar os estudiosos a debaterem a questão.
Primeiramente, se diga em relação aos regulamentos disciplinares, que eles têm, de forma indireta, uma previsão constitucional, calcada no art. 5º, inciso LXI, que assegura que "ninguém será preso, senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei".
Ao referir-se à transgressão militar, o dispositivo constitucional está admitindo a existência de um Regulamento Disciplinar, já que são exatamente os regulamentos que contém o rol das transgressões disciplinares militares.
Leciona Antonio Pereira DUARTE (2) que os regulamentos disciplinares ordenam e classificam as transgressões ou contravenções disciplinares, dispondo sobre as penas disciplinares e os recursos cabíveis contra as punições impostas.
Cada Força singular tem seu respectivo regulamento, onde se delineiam as diferentes sanções disciplinares e modos de aplicação.
O Estatuto dos Militares, no entanto, impõe como limite às sanções disciplinares de impedimento, detenção ou prisão, o prazo máximo de 30 dias.
Na Marinha, o atual Regulamento Disciplinar foi baixado pelo Decreto nº 88.545, de 26.06.1983, com as alterações introduzidas pelo Decreto nº 1.011, de 22.12.1993.
O Exército regula as contravenções ou transgressões disciplinares praticadas pelos seus componentes através do novel Decreto nº 4.346, de 26.08.2002 – que revogou o Decreto nº 90.608, de 08.12.1984, sendo esta revogação o pomo de Adão no tocante à questionada inconstitucionalidade do atual RDE.
Na Aeronáutica, o Regulamento Disciplinar foi instituído pelo Decreto nº 76.322, de 22.09.1975.
Para que se possa entender o questionamento da constitucionalidade dos regulamentos disciplinares, interessante destacar que os regulamentos disciplinares da Marinha, o anterior do Exército e o da Aeronáutica foram editados sob a égide da Constituição Federal de 1969, e o novel regulamento da Força Terrestre, veio à lume sob a égide da Carta Política de 1988.
Para Cláudio FONTELES, então Procurador-Geral da República, “o simples exame do arcabouço normativo que regula a matéria em apreço é suficiente para demonstrar a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002. Com efeito, se a Constituição de 1988 determinou que os crimes e transgressões militares fossem definidas por lei, não é possível a definição de tipos penais via decreto presidencial. Assim, o ato normativo impugnado violou o art. 5º, inciso LXI, da Carta Magna.
A ofensa constitucional torna-se ainda mais clara a partir do exame do princípio da recepção de normas pela Constituição. Segundo esse princípio, toda a ordem normativa proveniente de regimes constitucionais anteriores é recebida pela Carta Magna em vigor, desde que com ela materialmente compatível. Considera-se, nesse caso, que a norma recepcionada passou a revestir-se da forma prevista pelo texto constitucional para a matéria.
O elemento fundamental para a recepção da norma, nesse passo, é a sua compatibilidade material. O clássico exemplo de recepção normativa pela Constituição de 1988 é o Código Tributário Nacional, aprovado como lei ordinária (Lei nº 5.172/1966), mas recebido com o status de lei complementar (art.146 da Constituição c/c 34, § 5º, da ADCT).
Simulação similar ocorreu com o Decreto nº 90.608/1984.
Ao estabelecer o Regulamento Disciplinar do Exército, essa norma não colidiu materialmente com a nova ordem constitucional. Houve, pois, sua recepção pela Constituição de 1988, com força de lei, nos termos do artigo 5º, inciso LXI, da Constituição, que fixou a reserva legal para dispor sobre transgressões disciplinares e respectivas penas.
Assim, o Regulamento Disciplinar do Exército, muito embora aprovado por decreto presidencial ganhou, com a Carta Magna vigente, o status de lei ordinária. Esse paradoxo entre a força material (lei) e a forma infralegal (decreto) suscita a grande dificuldade: qual o procedimento adequado para se alterar essa norma no novo regime constitucional?
A doutrina é pacífica em admitir que o procedimento a ser seguido é o estabelecido pela Constituição vigente. Assim, se uma norma é recebida como lei pela nova ordem constitucional, deve prevalecer o procedimento por esta estabelecido para a alteração legal, independentemente da forma com que originariamente entrou em vigor. Em outros termos, se é recepcionada como lei ordinária, somente poderá ser alterada contra lei de igual hierarquia.
Com essas considerações, constata-se que o Regulamento disciplinar do Exército, estabelecido pelo Decreto nº 90.608/1984 e recepcionado como lei ordinária pela Constituição de 1988, somente poderia ter sido alterado por outra lei de igual hierarquia. O Decreto nº 4.346/2002, porém, revogou aquele ato normativo (art.74), violando a reserva da lei estabelecida no artigo 5º, LXI, da Constituição Federal.” (3)
O Supremo Tribunal Federal entretanto não conheceu da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta contra o RDE, sendo que dentre os dez Ministros presentes, sete decidiram não julgar o mérito da ação porque a petição inicial não detalhou quais os dispositivos do decreto que seriam inconstitucionais.
No dia do julgamento (03/11/2005), o Advogado-Geral da União, Ministro Álvaro Augusto Ribeiro Costa, fez a defesa do decreto na tribuna do STF. Segundo ele, o decreto regulamentou o Estatuto dos Militares e não definiu crimes militares como contestou a PGR. Na ação, a Procuradoria-Geral da República argumentou que a definição de crimes só pode ocorrer por meio de uma lei.
O decreto, segundo o Ministro Álvaro Costa, não ofende o princípio da legalidade porque não trata de crimes militares e sim de transgressões miltiares. As transgressões, segundo ele, são ilícitos de natureza adminsitrativa, não se tratando de crimes propriamente militares, como entendeu a PGR na ADI. “Transgresões militares são ilícitos de natureza puramente administrativa, tendo por escopo a defesa dos princípios sobre os quais se baseia a organização das Forças Armadas: a hieraquia e a disciplina”, disse o Ministro na tribuna. (4)

Partindo das ilações de Cláudio FONTELES ao ajuizar a ADI em relação ao novel Regulamento Disciplinar do Exército, podemos então concluir em face do instituto de recepção das normas pelo ordenamento constitucional vigente, que os regulamentos da Marinha, da Aeronáutica, e de qualquer Polícia Militar ou Corpo de Bombeiro Militar editados por decreto, anteriormente à Constituição de 1988, foram por ela recepcionados, estando vigentes com status de leio ordinária.
À nível doutrinário (a discussão ainda é escassa), via de regra, prega-se a inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares que não estejam fixados por lei.
Todavia, antes mesmo da edição do Decreto n º 4.346/2002, Paulo Tadeu Rodrigues ROSA já questionava a recepção dos regulamentos disciplinares pelo texto constitucional atual, indagando ainda se ditos regulamentos se encontravam em consonância com o disposto nos preceitos que tratam dos direitos e garantias do cidadão. (5)
O autor se referia, especificamente ao Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Goiás, Decreto Estadual nº 4.717/96, às alterações sofridas no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Minas Gerais, Decreto nº 88.545/83, feitas pelo Decreto nº 1.011, de 22.12.1993, lembrando que se os regulamentos existentes à época da CF/88, foram recepcionados com status de lei ordinária, não poderiam ser revogados e nem alterados por decreto, sendo portanto inconstitucional a medida adotada. (6)
Tal posição é secundada por Eliezer Pereira MARTINS, para quem a questão que se traz aqui à colação é da maior importância, dado que na atualidade todas as transgressões militares estão definidas em decretos e não em lei, o que para o autor – e no seu entender, a melhor doutrina importa na inconstitucionalidade de todas as prisões por transgressões disciplinares. (7)
A bem da verdade – e curiosamente, Eliezer Pereira MARTINS se insurgiu apenas e tão-somente contra as prisões disciplinares decorrentes de regulamentos editados por decreto, já que admitiu a possibilidade, embora não recomendada segundo ele, de que os regulamentos disciplinares sejam baixados por decretos, desde que não definam condutas ensejadoras de prisão por transgressão disciplinar .(8)
É uma posição curiosa, repetimos. Se aceita a tese de que, ao excepcionar a prisão por transgressão disciplinar militar da necessidade da ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, o constituinte originária fixou a reserva legal para todas as punições disciplinares, seria inaceitável, em princípio, um regulamento disciplinar que contivesse transgressões puníveis por penas outras que não a prisão, esse sim, passível de ser editado por decreto.
Feitas estas considerações iniciais acerca da constitucionalidade dos regulamentos disciplinares, necessário entretanto analisar, com muito vagar e serenidade, os dispositivos constitucionais que garantem a disciplina e a hierarquia como pilares básicos das Instituições Armadas para só então, concluir-se sobre a constitucionalidade ou não do Regulamento Disciplinar do Exército (9), ou de qualquer outra Força Armada ou Auxiliar.
Há que se aceitar a premissa de que a Carta Magna não possui dispositivos antagônicos entre si, qualquer contradição aparente implica o esforço necessário para a conciliação das normas estabelecidas em dispositivos constitucionais diversos a serem considerados.
Desta forma, o princípio insculpido no art. 5º, LXI, segundo o qual é excepcionada a necessidade de ordem judicial fundamentada à prisão nos casos de transgressão disciplinar e crimes propriamente militares, definidos em lei deve, em relação à transgressão disciplinar, ser analisado de forma restritiva, já que outros princípios constitucionais incidem sobre a questão, como o da estruturação das Forças Armadas com base na disciplina e hierarquia, e o da submissão das Forças Armadas ao comando supremo do Presidente da República além da competência deste, em editar decretos para a fiel execução das leis.


2. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL: CRIME PROPRIAMENTE MILITAR versus TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR

A previsão constitucional que assegura a reserva legal dos crimes propriamente militares, encontrada no art. 5º, LXI, não é, no referido art. 5º, dispositivo isolado.
Em que pese não se ter verificado ainda por parte da doutrina tal referência, é possível, sem qualquer dificuldade, constatar que existe, em relação aos crimes propriamente militares, considerável suporte em outro dispositivo do mesmo art. 5º, muito mais abrangente, qual seja o de seu inciso XXXIX, não há pena sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, princípio vigente em todas as constituições democráticas, como corolário da precisa lição de Feuerbach .(10)
Esta constatação nos permite indagar, onde, na Constituição, existe princípio similar que dê suporte à pretensão de se admitir apenas transgressões disciplinares estabelecidas por lei, ou seja, seria em um arremedo do dispositivo anteriormente citado, algo como não há transgressão disciplinar sem lei anterior que a defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Ressalte-se que não se pretende, de forma alguma, afrontar o dispositivo constitucional do art. 5º, LXI, mas sim concluir, extreme de dúvida, qual a sua melhor interpretação em face da finalidade das Forças Armadas e Auxiliares, e dos instrumentos de garantia da regularidade de suas funções, que são os regulamentos disciplinares.
Daí porque não nos parece haver dúvidas de que o constituinte originário, ao inserir a vedação de habeas corpus na hipóteses contempladas pelo art. 5º, LXI quis, primeiramente, fortalecer a hieraquia e a disciplina das Forças Armadas, que são as vigas mestras dessas instituições.
Um passeio pelo direito comparado irá nos mostrar que na Espanha, o art. 25.1. de sua Constituição formula assim o princípio da legalidade dos delitos e das penas ( e das infrações e sanções administrativas): Ninguém pode ser condenado ou sancionado por ações ou omissões que no momento de produzir-se não constituam delito, falta ou infração administrativa, segundo a legislação vigente naquele momento” (11). (o destaque é nosso)
José Luis Rodrígues-Villasante y Prieto, ao comentarem o dispositivo constitucional espanhol ressaltam, todavia, que o direito disciplinar está sujeito a reserva da lei (princípio da legalidade: art. 25.1. da CE), o que não exclui a possibilidade de que as leis contenham remissões a normas regulamentares e não impede a colaboração regulamentar da norma sancionada .(12)
Assim, quer nos parecer que, ao contrário do direito constitucional espanhol, o direito constitucional brasileiro não contemplou o princípio da legalidade estrita da infração administrativa, a aceitar apenas regulamentos disciplinares com base em lei formal resultante do devido processo legislativo brasileiro, situado a partir do art. 59 de nossa Carta Magna, ainda que se possa pretender identificá-lo no seu já tão referido art. 5º, inciso LXI.
Teríamos então, no Brasil, um princípio da legalidade ampla, a aceitar os regulamentos que especificam infrações e penas administrativas também por decretos, da mesma forma que na Espanha, onde o princípio da legalidade da infração e da pena administrativa está expressamente previsto na Constituição, se admite a existência e vigência de leis que contenham remissões a normas regulamentares, p.ex., o art. 47 do Estatuto dos Militares em relação aos Regulamentos das Forças Armadas brasileiras.
Discorrendo sobre a recepção das garantias penais e processuais para o âmbito da esfera administrativa do direito espanhol, José Luis Rodríguez-Villasante y Prieto aduzem que não se trata de preconizar um transplante de todas as garantias penais e processuais para o âmbito sancionador administrativo. É necessário buscar o adequado equilíbrio entre as garantias básicas do infrator e as prerrogativas da Administração no exercício de sua potestade sancionadora ou disciplinar. Caso contrário, advertem os autores, superada a etapa em que eram possíveis os excessos no exercício de uma potestade sancionadora incontrolada, poderemos cair no extremo oposto: enquanto as garantias do infrator disparam, alçadas por um irreflexivo efeito mimético de transposição em bloco do processo penal para o administrativo sancionador, as prerrogativas da Admistração se reduzem até quase sua eliminação. Neste sentido, devemos recordar que a potestade sancionadora da Administração se justifica – segundo a doutrina constitucional espanhola – precisamente porque sua eficácia e imediatidade é a melhor salvaguarda do interesse público, frente a possível ineficácia da Administração da Justiça para reprimir ilícitos de gravidade menor. (13)


2. ORGANIZAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS COM BASE NA HIERARQUIA E NA DISCIPLINA

Um outro ponto que não se pode descuidar, sob pena de se fazer uma análise parcial da questão, é o de que as Forças Armadas e Auxiliares são instituídas constitucionalmente (art.142 e 42) e em decorrência disso, seus valores maiores – a disciplina e a hierarquia são, igualmente, constitucionalmente protegidos.
Esta circunstância elementar das Forças Armadas – constituição com base na hierarquia e disciplina, pressupõe um dever de obediência, calcado principalmente na obrigação que tem o subordinado de obedecer ao seu superior, salvo quando a ordem deste for manifestamente ilegal.
Este dever de obediência está, ao longo do Estatuto dos Militares (14) reforçado por inúmeros dispositivos, dentre os quais podemos citar:

“ Da Ética Militar
Art. 28. (...) IV- cumprir e fazer cumprir as leis, os regulamentos, as instruções e as ordens das autoridades competentes; (...) VI- zelar pelo preparo próprio, moral, intelectual e físico e, também, pelo dos subordinados, tendo em vista o cumprimento da missão comum; (...) XIX-zelar pelo bom nome das Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer aos preceitos de ética militar”.

(...)

“Dos Deveres Militares
Art. 31. Os deveres militares, emanados de um conjunto de vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao serviço, e compreendem, essencialmente:
I- a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições devem ser defendidas mesmo com o sacri[ício da própria vida; (...) IV- a disciplina e o respeito à hierarquia; VI- o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens.(...)” (15)

“Do Compromisso Militar
Art. 32. Todo cidadão, após ingressar em uma das Forças Armadas, mediante incorporação, matrícula ou nomeação, prestará compromisso de honra, no qual afirmará a sua aceitação consistente das obrigações e dos deveres militares e manifestará a sua firme disposição de bem cumpri-los.”

(...)

“Do Comando e da subordinação
Art. 34. Comando é a soma de autoridade, deveres e responsabilidades de que o militar é investido legalmente quando conduz homens ou dirige uma organização militar. O Comando é vinculado ao grau hierárquico e constitui uma prerrogativa impessoal, em cujo exercício o militar se define e se caracteriza como chefe.
(...)
Art. 35. A subordinação não afeta , de modo algum, a dignidade pessoal do militar e decorre, exclusivamente, da estrutura hierarquizada das Forças Armadas”.
(Os destaques são nossos)

Esta simples relação de alguns dos deveres militares é mais do que suficiente para demonstrar a importância dos regulamentos disciplinares já que é por meio deles que se mantém a disciplina nas organizações militares.
Conceitos especialíssimos como “comando”, “superior”, “subordinação”, “chefia”, “dedicação e fidelidade à pátria”, “obediência devida”, “ética militar” e “sacrifício da própria vida” seriam inócuos sem a existência de um regulamento disciplinar que lhes garanta a existência.
Se os valores básicos das Forças Armadas estão protegidos constitucionalmente, nos parece exagerado, taxar-se de inconstitucional um regulamento disciplinar que seja expedido por decreto – e apenas por isso.
Tome-se por exemplo o questionamento do Regulamento Disciplinar do Exército. Ao declarar-se a inconstitucionalidade do referido decreto, seja pela via difusa ou concentrada do controle da constitucionalidade, inevitavelmente estará se desarmando a Força, que poderá ficar submetida a um lapso temporal indeterminado sem qualquer tipo de controle sobre seus integrantes, e com isso, a inexorável derrocada da disciplina e da hierarquia.


3. SUBMISSÃO DAS FORÇAS ARMADAS À AUTORIDADE SUPREMA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Outro ponto extremamente importante na análise da constitucionalidade dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas, é a submissão das mesmas à autoridade suprema do Presidente da República.
Essa circunstância está explícita no caput do art. 142 do Texto maior.
A expressão dispensa interpretação, está reproduzida no art.2º do Estatuto dos Militares, além de só encontrar limites na própria lei.
A autoridade do Presidente da República em face das Forças Armadas é exercida nos termos da própria Constituição, sendo competência exclusiva do mais alto mandatário do país, dispor, mediante decreto sobre “a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos públicos”, além de “exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais generais e nomeá-los para os cargos que lhe são privativos” ( conforme art. 84, incisos VI, letra a e; XIII, da CF). (16)
Bem por isso, os regulamentos disciplinares da Marinha (art.19, letra a ) e da Aeronáutica (art.42, 1, letra a ) destinam inclusive a competência do Presidente da República inclusive para aplicar punições disciplinares a todos os seus integrantes. (17)
O Regulamento anterior do Exército também fazia essa previsão (art.9, nº 1), mas o atual RDE, excluiu o Presidente da República do rol de autoridades com competência para aplicar punição disciplinar.
Os decretos que editam regulamentos disciplinares das Forças Armadas regulamentam dispositivo de uma lei específica, o art. 47 da Lei nº 6.880/1980, o Estatuto dos Militares. (18)
São chamados de Decretos de Execução, passíveis de serem editados pelo Presidente da República, naturalmente com amparo constitucional (art. 84, VI, letra a, c/c inciso XIII).
Idêntica análise, guardadas as devidas proporções, deve ser feita em relação à submissão das Forças Auxiliares à autoridade suprema dos Governadores dos Estados e do distrito Federal.
A submissão das Forças Armadas ao mais alto mandatário do País é a regra nos países democráticos.
Com efeito, na Espanha, a Lei nº 17, de 19 de julho de 1989, que regula a regra do pessoal militar profissional, estabelece em seu art. 2º, que o mando supremo das Forças Armadas corresponde a sua Majestade o Rei, que tem inclusive o posto de Capitão General do Exército de Terra, da Armada e do Exército do Ar. (19)
Também em Portugal o Presidente da República exerce as funções de Comandante Supremo das Forças Armadas. (20)
Na República Dominicana, o Presidente da República é o Chefe da Administração Pública e o Chefe Supremo de todas as Forças Armadas da República, e dos Corpos Policiais. (21)
Idêntica situação ocorre no Perú, onde de acordo com o art. 167 da Constituição, o Presidente da República é o Chefe Supremo das Forças Armadas e da Polícia nacional.
Pondera Enrique Bernales BALLESTEROS, que a potestade de Chefe Supremo que tem o Presidente da República é de natureza essencialmente política e corresponde ao princípio de que o Governo deve conduzir as Forças Armadas e a Polícia Nacional, como a todas outras instituições do Estado integrantes do Poder Executivo.
Se o Presidente da República como Chefe de Governo dirige a toda a adminsitração pública, através dos ministros e chefes de organismos estatais, no caso das instituições castrenses e policiais esta condição global não basta, porque estão estruturadas hieraquicamente, debaixo do princípio da disciplina e do acatamento da ordem superior. Para elas não é suficiente a condução política global. Tem que haver mando supremo para que ditas decisões sejam acatadas. Por isso, o Presidente da República não somente as conduz mas é seu Chefe Supremo; em conseqüência, na linha de mando e sob o princípio da disciplina, ninguém desobedecerá às ordens do Presidente dentro das Forças Armadas e na Polícia Nacional. (22)


4. HIPÓTESES DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DO EXÉRCITO

Uma análise de decisões emanadas do 1º grau da Justiça Federal brasileira, nos permite destacar, com algumas variações, duas hipóteses pelas quais têm sido decretada a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, por via de habeas corpus, podendo se afirmar, inclusive, não existir uniformidade quanto aos fundamentos adotados para decidir.
Antes de prosseguirmos convém lembrar, como fez Michel TEMER, que a constituição vigente permite a identificação de controle preventivo e repressivo. O primeiro é localizado quando se pensa em controle lato da constitucionalidade: destina-se a impedir o ingresso, no sistema de normas que, em seu projeto, já revelam desconformidade com a Constituição. Esse controle é exercido tanto pelo Legislativo quanto pelo Executivo. Aquele é estruturado em Comissões, como decorre do art. 58 da CF. Tais Comissões permanentes, destinam-se, basicamente, a emitir pareceres sobre projetos de lei. Uma delas se incumbe do exame prévio de constitucionalidade (23)
Além disso, existe igualmente o controle preventivo da parte do Chefe do Executivo, previsto no § 1º, do art. 66, ao preceituar que “se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, veta-lo-á, total ou parcialmente...”
Daí se infere que o controle prévio se refere a , que são atos inacabados, ou seja, que ainda não estão aptos a produzir efeitos jurídicos.
Porém, ressalta TEMER, anote-se mais. Nem todos os projetos de atos normativos se submetem, constitucionalmente, a esse controle preventivo. Inocorre, por exemplo, no caso de medidas provisórias, resoluções dos tribunais e decretos. Decretos são atos a cujo procedimento o constituinte não impôs fórmulas de apreciação formal .(24)
Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas foram editados por decretos.
Já o controle repressivo da constitucionalidade é exercido pelo Poder Judiciário, seja pela via de exceção (ou de defesa), seja pela via de ação, direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade.
Anotamos, ainda, com TEMER, que a via de exceção (ou de defesa) tem as seguintes peculiaridades: a) só é exercitável à vista do caso concreto, de litígio posto em juízo; b) o juiz singular poderá declarar a inconstitucionalidade de ato normativo ao solucionar o litígio entre as partes; c) não é declaração de inconstitucionalidade de lei em tese, mas de exigência imposta para a solução do caso concreto; d) a declaração, portanto, não é o objeto principal da lide, mas incidente, conseqüência .(25)
Feitas estas considerações que consideramos necessárias, voltemos ao problema em questão, para demonstrar duas hipóteses opostas de declaração de inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, verificáveis pela via de exceção (de defesa do militar que pretende impedir a aplicação de uma punição disciplinar).


4.1. DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO Nº 4.346/2002, MAS GARANTE A APLICAÇÃO DO DECRETO Nº 90.608/1984.

Há decisões que declaram a inconstitucionalidade do RDE vigente mas asseguram a aplicação do regulamento anterior, como por exemplo a sentença datada de 05 de junho de 2004, do Juiz da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Amapá (26), em que foi decretada a inconstitucionalidade do atual RDE, Decreto nº 4.346/2002, por estar em contraposição ao disposto no art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que expressamente revoga delegações concedidas ao Poder Executivo em matéria de competência atual do Congresso Nacional.
Para o magistrado prolator da sentença, a Constituição Federal estipulou uma reserva legal, em face dos regulamentos disciplinares, porém o fez no art. 142, inciso X, quando estabeleceu que “ a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres...”
Dessa forma, nos termos da decisão referida, não poderia o Presidente da República editar novo Regulamento Disciplinar do Exército, pois essa é uma matéria sujeita à competência do Congresso Nacional, sendo certo que, conforme o art. 25 do ADCT, inexiste atualmente a possibilidade de regulamentação, por decreto, da previsão constante no art. 47 da Lei nº 6.880/1980 .(27)
Interessante destacar que ao declarar a inconstitucionalidade do novo RDE, a sentença salvaguardou o regulamento anterior, tendo o i. magistrado anotado o seguinte:
“Há que se considerar, no entanto, que a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002 não exime o impetrante/paciente de responder pela transgressão, pois a sua conduta também era punida pelo revogado Decreto nº 90.608/1984, que fica agora revigorado. Isso porque, se o atual regulamento disciplinar é nulo, nula também é a revogação por ele promovida, o que restabelece a eficácia do antigo Regulamento Disciplinar do Exército”.
Assim, a ordem de HC foi concedida em parte, tão-somente para determinar a autoridade militar que promovesse o enquadramento da conduta do impetrante / paciente com a imposição da respectiva pena, de acordo com as disposições do Decreto nº 90.608/1984, abatendo-se os dias de detenção já cumpridos.
O interessante desta decisão de 1º grau é que ela não desarmou a Força Terrestre (o que estaria fazendo de declarasse a inconstitucionalidade de um regulamento e impedisse a aplicação do outro), ao tempo em que considerou que a declarada inconstitucionalidade do atual Regulamento Disciplinar do Exército não eximia o paciente de responder pela transgressão, prevista inclusive no regulamento anterior.
Todavia, apreciando o recurso necessário, o egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por unanimidade conheceu e deu provimento ao recurso de ofício, para cassar a decisão recorrida, determinando à autoridade impetrada que reenquadrasse a conduta do paciente ao Decreto Presidencial nº 4.346/02, conforme punição inicialmente imposta.
No corpo do v. acórdão, o i. relator afastou a tese de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002, por entender que o mesmo não afronta a Constituição Federal nem tampouco a lei, estando em consonância com nosso ordenamento jurídico .(28)


4.1.1. REPRISTINAÇÃO DE REGULAMENTO DISCIPLINAR

Interessante anotar que a hipótese de eventual declaração de inconstitucionalidade do RDE vigente, com a garantia de aplicação do regulamento anterior poderia suscitar o debate acerca de eventual repristinação do regulamento revogado (Decreto nº 90.608/84).
No dizer de Antonio CHAVES, citado por Maria Helena DINIZ, etimologicamente, repristinação é palavra formada do sufico latino re (fazer de novo, restaurar) e pristimus (anterior, antigo, primitivo), significando, pois, restauração do antigo .(29)
A impossibilidade de repristinação, salvo disposição legal em contrário, está prevista na Lei de Introdução ao Código Civil - LICC (30), que é “uma lei de introdução às leis”, por conter princípios gerais sobre as normas sem qualquer discriminação (31), aludindo portanto à aplicação de todas as normas jurídicas, sejam elas da seara do direito privado ou do direito público.
Diz o § 3º, do art. 2º, da LICC:
“Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
No magistério ainda de Maria Helena DINIZ, “deixando de existir a norma revogadora, não se terá o convalescimento da revogada. A revogação põe termo à lei anterior, que, pelo término da vigência da norma que a revogou, não renascerá. Como se vê, a lei revocatória não voltará ipso facto ao seu antigo vigor, a não ser que haja firme propósito de sua restauração, mediante declaração expressa da lei nova que a restabeleça, restaurando-a ex nunc, sendo denominada por isso repristinatória. Faltando menção expressa, a lei restauradora ou repristinatória é lei nova que adota o conteúdo da norma primeiramente revogada. Logo, sem que haja outra lei que, explicitamente a revigore, será a norma revogada tida como inexistente. Daí, se a norma revogadora deixar de existir, a revogada não se convalesce, a não ser que contenha dispositivo dizendo que a lei primeiramente revogada passará a ter vigência. Todavia, aquela lei revogada não ressuscitará, pois a norma que a restabelece, não a faz reviver, por ser uma nova lei, cujo teor é idêntico ao daquela. A lei restauradora nada mais é do que uma nova norma com conteúdo igual ao da lei anterior revogada” .(32)
Por ora, suficiente que se diga que a declaração incidental de inconstitucionalidade do RDE não é norma revogadora daquele regulamento, daí porque a impropriedade em se falar de repristinação.
O poder de revogar uma lei é de outra lei, elaborada na forma que a Constituição prevê para o devido processo legislativo. Já o poder de revogar decretos é do Chefe do Executivo, que é quem pode editá-los.


4.2. DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO Nº 4.346/2004 E IMPEDE A APLICAÇÃO DO DECRETO Nº 90.608/1984

Por outro lado, há decisões que declaram a inconstitucionalidade do RDE vigente e impedem a aplicação do RDE anterior, como por exemplo a sentença datada de 28.09.2004, expedida pelo Juiz Federal da 1ª Vara Federal de Santa Maria / RS (33), pendente de julgamento do recurso necessário, onde foi declarada a inconstitucionalidade do atual Regulamento Disciplinar do Exército – Decreto nº 4.346/2002, por entender o magistrado que a edição do referido regulamento ocorreu em violação ao art. 5º, LXI (reserva legal dos regulamentos disciplinares) e também do art. 25 do Ato das disposições Constitucionais Transitórias – ADCT.
Dessa forma, concluiu o magistrado que o art. 47 da Lei 6.880/80 (fonte geradora dos regulamentos disciplinares) não foi recepcionada pela nova carta.
Interessante destacar que asseverou a r. sentença que “reconhecida a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002, não há que se falar em repristinação do Decreto nº 90.608/1984. Este regulamento padece dos mesmos vícios de validade de seu sucessor, quais sejam, fundamentam-se em norma não recepcionada pela Constituição de 1988 e contrariam expressamente o art. 5º, LXI, da Constituição, que preceitua que sejam os crimes e transgressões militares previstos em lei”.
Necessário asseverar ainda que tanto a doutrina quanto a jurisprudência majoritárias entendem que o Decreto nº 90.608/84 – RDE anterior, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 – a questão nos parece pacífica, daí porque, a nosso sentir, a questão remanesce a eventual constitucionalidade ou inconstitucionalidade tão-somente do decreto nº 4.346/2002.
Não há como olvidar, data venia, que a referida decisão deixou a Força desarmada, já que não permitiu que fosse apurada a transgressão em tese cometida, sendo então, possível questionar: Se as Forças Armadas são estruturadas no binômio hierarquia e disciplina (valores previstos constitucionalmente), resguardado este binômio tanto pela lei penal militar quanto pelos regulamentos disciplinares, como é, então, que a Força Terrestre vai manter sua disciplina e hierarquia, sem nenhum regulamento disciplinar a lhe socorrer?


5. NOSSA POSIÇÃO ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DO EXÉRCITO (DECRETO Nº 4.346/200)

Vamos nos ater somente à constitucionalidade do RDE vigente, Decreto nº 4.346/2002, por entendermos que em relação aos regulamentos das demais Forças Armadas – anteriores à CF / 88, resta pacificado que os mesmos foram devidamente recepcionados pelo ordenamento constitucional vigente, com status de lei ordinária, em decorrência da reserva legal estatuída a partir do art. 5º, LXI.
Em que pesem os argumentos contrários e de todo respeitados, entendemos que o Decreto nº 4.346/2002 é constitucional, em nada ofendendo a Carta Magna ou à Lei, estando apto a produzir os efeitos a que se destina, fundamentando nossa posição nos motivos abaixo relacionados:

a. O art. 5º, inciso LXI, da Carta Magna, na parte em que se refere a transgressão disciplinar definida em lei, deve ser interpretado de forma ampla, tendo em vista a situação peculiar das Forças Armadas e de seus integrantes, cujos princípios de estrutura e manutenção também se encontram constitucionalmente protegidos.
Dos princípios basilares da hierarquia e disciplina decorre um dever de obediência, calcado na obrigação que tem o subordinado de obedecer ao seu superior, salvo ordem manifestamente ilegal.
Um dos instrumentos para salvaguardar as instituições militares e zelar pela regularidade de suas importantes funções constitucionais é, sem sombra de dúvida o regulamento disciplinar, o qual, se declarado inconstitucional deixará a Força Militar desarmada, sem ter como manter a disciplina e a hierarquia (princípios constitucionais). Aliás, os defensores da inconstitucionalidade do atual Regulamento Disciplinar do Exército não aludem sobre qual seria a maneira de se manter e disciplina e a hierarquia sem o indispensável regulamento disciplinar.
Da mesma forma, as Forças Armadas subordinam-se constitucionalmente à autoridade suprema do Presidente da República. Este, também constitucionalmente, detém competência para expedir decretos e exercer o comando supremo das Forças Armadas.
A simples declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002, faz tábula rasa da estrutura organizacional das Forças Armadas, prevista na Constituição Federal, além de passar ao largo da autoridade e da competência constitucional do Presidente da República. (34)

b. A fonte direta do Decreto nº 4.346/2002 é o art. 47 da Lei nº 6.880/80 – Estatuto dos Militares, que assevera que os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e a interposição de recursos contra as penas disciplinares. Portanto, o Decreto nº 4.346/2002 é um decreto de execução, de competência exclusiva do Presidente da República.
A lei referida no inciso X do § 3º do art. 142, da CF, que disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos e os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações específicas dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra, é a Lei nº 6.880/1980 – Estatuto dos Militares, que já possui, inclusive, esta estrutura sistemática, estando as obrigações e os deveres dos militares tratados no seu Título II, especificamente os deveres no art.31; já os direitos e prerrogativas dos militares estão no Título III, especificamente os direitos entre os artigos 50 a 53.
Os termos direitos e deveres referidos não se confundem com os regulamentos disciplinares, estes previstos a partir da autorização do art.47 do Estatuto.
O Decreto nº 4.346/2002 foi editado com o propósito de regulamentar o art. 47 da Lei nº 6.880/1980 – Estatuto dos Militares.
Eventual incompatibilidade ou extrapolação do texto do mencionado ato normativo em face da lei sob cuja égide foi editado constitui verdadeira crise de legalidade, estranha ao controle normativo abstrato, que limita-se apenas à aferição de ofensa direta a dispositivos da Constituição Federal.
Nesse sentido é a jurisprudência reiterada do STF, destacando-se:
“Constitucional. Administrativo. Decreto regulamentar. Controle da constitucionalidade concentrado. I- Se o ato regulamentar vai além do conteúdo da lei, pratica ilegalidade. Neste caso, não há falar em inconstitucionalidade. Somente na hipótese de não existir lei que preceda o ato regulamentar, é que poderia este ser acoimado de inconstitucional, assim sujeito ao controle de constitucionalidade. II- Ato normativo de natureza regulamentar que ultrapassa o conteúdo da lei não está sujeito a jurisdição constitucional concentrada. Precedentes do STF: ADINs nºs 311-DF e 536-DF. III- Ação direta de Inconstitucionalidade não conhecida”. (ADI nº 589-DF, Relator Ministrto Carlos Velloso, DJU de 18.10.1991)

c. Tanto o Supremo Tribunal Federal (35) como o Superior Tribunal de Justiça, incidentalmente, já se manifestaram pela constitucionalidade do Decreto nº 4.346, de 26.08.2002. A propósito, conferir STJ: Mandado de Segurança nº 9.710-DF (2002.0066791-6), em que foi relatora a Ministra Laurita Vaz, denegada a ordem, unânime, julgado em 25.08.2004, tendo sido consignado no corpo do v. acórdão ante a alegação de inconstitucionalidade do RDE:...Tem-se portanto, a possibilidade de punição administrativa por transgressões disciplinares, prevista no Estatuto dos Militares, regulamentada pelo Decreto nº 4.346/2002, com o fim de preservar a hierarquia e a disciplina nas Forças Armadas. Inexiste ofensa à Constituição Federal ou à Lei. A medida constritiva, do ponto de vista formal, está em consonância com o ordenamento Jurpídico Pátrio”.
Ou, a mais alta Corte do País, que corroborando com o entendimento de que o Decreto 4.346/2002 é constitucional, consignou no voto proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence no AgRegAg 402.493-1/SE, verbis:”Ressalto, ainda, que a orientação do Tribunal já fora consagrada por lei superveniente (decreto 4.346, de 26/08/2002, art. 35 e parágrafos), que revogou expressamente a norma objeto dos autos (Decreto 90.608/84)”.

d. Por fim, uma questão lógica e prática. O Decreto nº 4.346, de 26.08.2002 – que aprovou o atual RDE, trouxe a lume um regulamento moderno, mais flexível que o diploma anterior por ele revogado (Decreto nº 90.608/1984), mas consentâneos com os princípios constitucionais, inovando, em favor do militar, em vários aspectos, dentre outros:
d.1. exclusão da aplicação de punição por uma ação ou omissão não especificada (nº 2 do art. 13 do RDE revogado), motivo de vários questionamentos judiciais;
d.2. a inclusão da palavra disciplinar após os termos punição, prisão, detenção e impedimento, não podendo ser confundida com as penas previstas nos Código Penal e Penal Militar;
d.3. exclusão da prisão em separado (art.24 do RDE revogado), a qual tendo uma conotação com procedimentos adotados em presídios comuns, como a maioria das Unidades não dispõe de instalações adequadas, a prisão em separado tinha um sentido figurativo, sendo utilizada amiúde com a finalidade de colocar a praça no mau comportamento;
d.4. restrição das autoridades com competência para aplicação de prisão disciplinar (art. 28);
d.5. criação da punição do impedimento disciplinar (art.26), que não consta das alterações do punido.
d.6. obrigatoriedade de ser assegurado o contraditório e a ampla defesa (art.35 e anexo IV), com a finalidade de cumprir, efetivamente, o preceito constitucional;
d.7. exclusão da possibilidade de agravação, por outra autoridade, da punição aplicada (art.41), mantendo similaridade com a lei 9.784/1999 (Processo Administrativo), destinada a evitar contestação judicial e valorizar a autoridade que aplica a punição;
d.8. exclusão do Presidente da República e não inclusão do Ministro da Defesa como autoridades competentes para aplciar punição disciplinar, que dar-se-á, por itnermédio do Comandante do Exército ou do General de Exército mais antigo em serviço no Minsitério da Defesa.
Fica difícil portanto, entender tanta insistência em declarar inconstitucional um regulamento que é mais democrático e benéfico ao militar que o anterior.


NOTAS:
1 Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar lotado em Santa Maria/RS. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares. Integra o Cadastro de Docentes da Escola Superior do Ministério Público da União. Professor do Curso de Pós Graduação lato sensu de Especialização em Direito Militar da Faculdade de Direito de Santa Maria-FADISMA (2005/2006). Articulista e Palestrante. Autor de várias obras acerca do Direito Militar publicadas pela Editora Juruá, de Curitiba/PR.
2 DUARTE, Antonio Pereira. Direito Administrativo Militar, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p.51/52.
3 FONTELES, Cláudio. Inicial da ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 3340 – Relator o Ministro Marco Aurélio, protocolada no Supremo Tribunal Federal em 08.11.2004, atendendo solicitação do Procurador da República no Estado do Rio de Janeiro Fábio Elizeu Gaspar.
4 Assessoria de Comunicação Social da AGU, acesso em 13/11/2005.
5 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo Militar – Teoria e Prática. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2003, p. 57.
6 ROSA, ob. Citada, p. 60. Atualmente, a Lei Complementar mineira nº 14.310, de 19 Jun 2002 instituiu o Código de Ética e Disciplina - CEDM).
7 MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade, Editora do Direito, Leme, 1996, p. 87.
8 MARTINS, ob.citada, p. 88.
9 ADI nº 3340.
10 Nullun crimen, nulla poena sine lege.
11 José Luis Rodrigues – Villasante y Prieto. Principio de legalidad de las infracciones y sanciones disciplinarias militares. Comentários a La Ley Disciplinaria de las Fuerzas Armadas. Imprenta Ministerio de Defensa, Madrid, junio 2000, p.46.
12 ob. Citada, p. 45.
13 José Luis Vallasante y Prieto, ob.citada, p.45.
14 Lei nº 6.880/1980.
15 A Lei nº 71, de 24.12.1980, estabelece a fórmula de juramento à bandeira na Espanha: “¡Soldados!
¿Juráis por Dios o por vuestro honor y prometéis a España, besando com unción su Bandera, obedecer y respetar al Rey y a vuestros Jefes, no abandonarlos nunca y derramar, si espreciso, en defensa de la soberanía e independencia de la Patria, de su unidad e integridad territorial, hasta la última gota de vuestro sangre?”
Los soldados contestarán: “!Si, lo juramos!” El que tomó el juramento replicará: “Si asi lo hacéis, la Patria os lo agradecerá y premiará, y si no, merecereis su desprecio y su castigo, como indignos hijos de ella”, y añadirá: “!Soldados!, Viva España! y ¡Viva el Rey!”, que será contestados com los correspondientes “!Viva!”.
En la fórmula del juramento, la expresión “Soldados” podrá ser substituida por la que convenga, de conformidad com la condición militar de los que juran”. ( apud GARRIDO, Antonio Millán.
Ordenanzas Militares, Editorial Trivium, AS, madrid, 1993, p. 25.
16 A nível dos Estados e do DF, a situação é a mesma, estando as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares subordinados diretamente aos Governadores. Nesse sentido: Constituição do Estado do Paraná, art. 50, e Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, art.129.
17 A nível dos Estados e do DF, encontramos regulamentos disciplinares dando competência para o Governador aplicar punições a todos os integrantes das corporações estaduais. Nesse sentido, o art. 11, inciso I, do Decreto Estadual nº 37.042, de 06.11.1996, que aprovou o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Alagoas; Art.31, inciso I, da lei Complementar nº 893, de 09.03.2001, que aprovou o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de São Paulo; art.20, inciso I, do Decreto Estadual nº43.245, de 19.07.2004, que aprovou o Regulamento Disciplinar da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul; art. 45, inciso I, da Lei Estadual nº 14.310, de 19.06.2002, que aprovou o Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais.
18 Estatuto dos Militares, art. 47: Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e a interposição de recursos contra as penas disciplinares.
19 GARRIDO, Antonio Millán e PRADOS, Santiago Prados. Régimen Jurídico del Militar Profesional. Tecnos, Madrid, 1995, p.37.
20 Constituição da República Portuguesa, de 2 de abril de 1976, revista pelas leis constitucionais nº 1/82, 1/89, 1/92 e 1/97: art. 134, letra ‘a’.
21 Constituição da República Dominicana, proclamada em 25.07.2002 em Santo Domingo: art.55.
22 BALLESTEROS, Enrique Bernales. La Constitución de 1993. Análisis Comparado, 5ª Edición, Editora RAO S.R.L., Lima, 1999, p.733/734.
23 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 10ª edição, Malheiros, São Paulo, 1994, p.42.
24 TEMER, ob. Citada, p. 43.
25 TEMER, ob. Citada, p. 43.
26 HC nº 2004.31.00.001279-2, Juiz Federal Anselmo Gonçalves da Silva.
27 Estatuto dos Militares.
28 TRF/1ª Região: RHC nº 2004.31.00.001279-2-AMAPÁ, 3ª Turma, relator Desembargador Federal Cândido Ribeiro, julgado em 12.04.2005, unânime, DJU de 29.04.2005.
29 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Editora Saraiva, São Paulo, 1997, p.83.
30 Decreto-Lei nº 4.657, de 04.09.1942.
31 DINIZ, Maria Helena, ob. Citada, p. 13.
32 DINIZ, Maria Helena, ob. citada, p.83.
33 HC nº 2004.71.02.005966-6, Juiz Federal Pedro Carvalho Aguirre Filho.
34 Vide análise do texto do art. 5º, inciso LXI, da CF, no ítem 3..5.1 deste livro, para onde remetemos o leitor.
35 O Supremo Tribunal Federal, em data de 03.11.2005, não conheceu da Ação de Declaração de Inconstitucionalidade nº 3340, porque a petição inicial não detalhou os dispositivos do Regulamento Disciplinar do Exército que seriam inconstitucionais.

 

 

*Promotor da Justiça Militar da União. Lotado em Santa Maria/RS. 

 

 

Disponível em: < http://www.jusmilitaris.com.br/?secao=doutrina&cat=3 >. Acesso em: 10/10/06.