®
BuscaLegis.ccj.ufsc.br
Os Regulamentos Disciplinares militares e
sua conformidade com a constituição federal
Jorge César de Assis *
1. INTRODUÇÃO AO TEMA
O recente ajuizamento de ação declaratória de inconstitucionalidade contra o
Regulamento Disciplinar do Exército, proposta pelo Procurador-Geral da
República, e o não conhecimento da mesma por parte do Supremo Tribunal Federal,
sugerem a necessidade de uma reflexão mais aguçada sobre o tema, principalmente
em decorrência de uma série de decisões em sentidos opostos que ocorrem na
Justiça Federal.
Este é nosso propósito: refletir e incentivar os estudiosos a debaterem a
questão.
Primeiramente, se diga em relação aos regulamentos disciplinares, que eles têm,
de forma indireta, uma previsão constitucional, calcada no art. 5º, inciso LXI,
que assegura que "ninguém será preso, senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos
casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em
lei".
Ao referir-se à transgressão militar, o dispositivo constitucional está
admitindo a existência de um Regulamento Disciplinar, já que são exatamente os
regulamentos que contém o rol das transgressões disciplinares militares.
Leciona Antonio Pereira DUARTE (2) que os regulamentos disciplinares ordenam e
classificam as transgressões ou contravenções disciplinares, dispondo sobre as
penas disciplinares e os recursos cabíveis contra as punições impostas.
Cada Força singular tem seu respectivo regulamento, onde se delineiam as
diferentes sanções disciplinares e modos de aplicação.
O Estatuto dos Militares, no entanto, impõe como limite às sanções
disciplinares de impedimento, detenção ou prisão, o prazo máximo de 30 dias.
Na Marinha, o atual Regulamento Disciplinar foi baixado pelo Decreto nº 88.545,
de 26.06.1983, com as alterações introduzidas pelo Decreto nº 1.011, de
22.12.1993.
O Exército regula as contravenções ou transgressões disciplinares praticadas
pelos seus componentes através do novel Decreto nº 4.346, de 26.08.2002 – que
revogou o Decreto nº 90.608, de 08.12.1984, sendo esta revogação o pomo de Adão
no tocante à questionada inconstitucionalidade do atual RDE.
Na Aeronáutica, o Regulamento Disciplinar foi instituído pelo Decreto nº
76.322, de 22.09.1975.
Para que se possa entender o questionamento da constitucionalidade dos
regulamentos disciplinares, interessante destacar que os regulamentos
disciplinares da Marinha, o anterior do Exército e o da Aeronáutica foram
editados sob a égide da Constituição Federal de 1969, e o novel regulamento da
Força Terrestre, veio à lume sob a égide da Carta Política de 1988.
Para Cláudio FONTELES, então Procurador-Geral da República, “o simples exame do
arcabouço normativo que regula a matéria em apreço é suficiente para demonstrar
a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002. Com efeito, se a Constituição
de 1988 determinou que os crimes e transgressões militares fossem definidas por
lei, não é possível a definição de tipos penais via decreto presidencial.
Assim, o ato normativo impugnado violou o art. 5º, inciso LXI, da Carta Magna.
A ofensa constitucional torna-se ainda mais clara a partir do exame do
princípio da recepção de normas pela Constituição. Segundo esse princípio, toda
a ordem normativa proveniente de regimes constitucionais anteriores é recebida
pela Carta Magna em vigor, desde que com ela materialmente compatível.
Considera-se, nesse caso, que a norma recepcionada passou a revestir-se da
forma prevista pelo texto constitucional para a matéria.
O elemento fundamental para a recepção da norma, nesse passo, é a sua
compatibilidade material. O clássico exemplo de recepção normativa pela
Constituição de 1988 é o Código Tributário Nacional, aprovado como lei
ordinária (Lei nº 5.172/1966), mas recebido com o status de lei complementar
(art.146 da Constituição c/c 34, § 5º, da ADCT).
Simulação similar ocorreu com o Decreto nº 90.608/1984.
Ao estabelecer o Regulamento Disciplinar do Exército, essa norma não colidiu
materialmente com a nova ordem constitucional. Houve, pois, sua recepção pela
Constituição de 1988, com força de lei, nos termos do artigo 5º, inciso LXI, da
Constituição, que fixou a reserva legal para dispor sobre transgressões
disciplinares e respectivas penas.
Assim, o Regulamento Disciplinar do Exército, muito embora aprovado por decreto
presidencial ganhou, com a Carta Magna vigente, o status de lei ordinária. Esse
paradoxo entre a força material (lei) e a forma infralegal (decreto) suscita a
grande dificuldade: qual o procedimento adequado para se alterar essa norma no
novo regime constitucional?
A doutrina é pacífica em admitir que o procedimento a ser seguido é o
estabelecido pela Constituição vigente. Assim, se uma norma é recebida como lei
pela nova ordem constitucional, deve prevalecer o procedimento por esta
estabelecido para a alteração legal, independentemente da forma com que
originariamente entrou em vigor. Em outros termos, se é recepcionada como lei
ordinária, somente poderá ser alterada contra lei de igual hierarquia.
Com essas considerações, constata-se que o Regulamento disciplinar do Exército,
estabelecido pelo Decreto nº 90.608/1984 e recepcionado como lei ordinária pela
Constituição de 1988, somente poderia ter sido alterado por outra lei de igual
hierarquia. O Decreto nº 4.346/2002, porém, revogou aquele ato normativo
(art.74), violando a reserva da lei estabelecida no artigo 5º, LXI, da
Constituição Federal.” (3)
O Supremo Tribunal Federal entretanto não conheceu da Ação Direta de
Inconstitucionalidade proposta contra o RDE, sendo que dentre os dez Ministros
presentes, sete decidiram não julgar o mérito da ação porque a petição inicial
não detalhou quais os dispositivos do decreto que seriam inconstitucionais.
No dia do julgamento (03/11/2005), o Advogado-Geral da União, Ministro Álvaro
Augusto Ribeiro Costa, fez a defesa do decreto na tribuna do STF. Segundo ele,
o decreto regulamentou o Estatuto dos Militares e não definiu crimes militares
como contestou a PGR. Na ação, a Procuradoria-Geral da República argumentou que
a definição de crimes só pode ocorrer por meio de uma lei.
O decreto, segundo o Ministro Álvaro Costa, não ofende o princípio da
legalidade porque não trata de crimes militares e sim de transgressões
miltiares. As transgressões, segundo ele, são ilícitos de natureza
adminsitrativa, não se tratando de crimes propriamente militares, como entendeu
a PGR na ADI. “Transgresões militares são ilícitos de natureza puramente
administrativa, tendo por escopo a defesa dos princípios sobre os quais se
baseia a organização das Forças Armadas: a hieraquia e a disciplina”, disse o
Ministro na tribuna. (4)
Partindo das ilações de Cláudio FONTELES ao ajuizar a ADI em relação ao novel
Regulamento Disciplinar do Exército, podemos então concluir em face do
instituto de recepção das normas pelo ordenamento constitucional vigente, que
os regulamentos da Marinha, da Aeronáutica, e de qualquer Polícia Militar ou
Corpo de Bombeiro Militar editados por decreto, anteriormente à Constituição de
1988, foram por ela recepcionados, estando vigentes com status de leio
ordinária.
À nível doutrinário (a discussão ainda é escassa), via de regra, prega-se a
inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares que não estejam fixados
por lei.
Todavia, antes mesmo da edição do Decreto n º 4.346/2002, Paulo Tadeu Rodrigues
ROSA já questionava a recepção dos regulamentos disciplinares pelo texto
constitucional atual, indagando ainda se ditos regulamentos se encontravam em
consonância com o disposto nos preceitos que tratam dos direitos e garantias do
cidadão. (5)
O autor se referia, especificamente ao Regulamento Disciplinar da Polícia
Militar de Goiás, Decreto Estadual nº 4.717/96, às alterações sofridas no
Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Minas Gerais, Decreto nº
88.545/83, feitas pelo Decreto nº 1.011, de 22.12.1993, lembrando que se os
regulamentos existentes à época da CF/88, foram recepcionados com status de lei
ordinária, não poderiam ser revogados e nem alterados por decreto, sendo
portanto inconstitucional a medida adotada. (6)
Tal posição é secundada por Eliezer Pereira MARTINS, para quem a questão que se
traz aqui à colação é da maior importância, dado que na atualidade todas as
transgressões militares estão definidas em decretos e não em lei, o que para o
autor – e no seu entender, a melhor doutrina importa na inconstitucionalidade
de todas as prisões por transgressões disciplinares. (7)
A bem da verdade – e curiosamente, Eliezer Pereira MARTINS se insurgiu apenas e
tão-somente contra as prisões disciplinares decorrentes de regulamentos
editados por decreto, já que admitiu a possibilidade, embora não recomendada
segundo ele, de que os regulamentos disciplinares sejam baixados por decretos,
desde que não definam condutas ensejadoras de prisão por transgressão
disciplinar .(8)
É uma posição curiosa, repetimos. Se aceita a tese de que, ao excepcionar a
prisão por transgressão disciplinar militar da necessidade da ordem escrita e
fundamentada da autoridade judiciária competente, o constituinte originária
fixou a reserva legal para todas as punições disciplinares, seria inaceitável,
em princípio, um regulamento disciplinar que contivesse transgressões puníveis
por penas outras que não a prisão, esse sim, passível de ser editado por
decreto.
Feitas estas considerações iniciais acerca da constitucionalidade dos
regulamentos disciplinares, necessário entretanto analisar, com muito vagar e
serenidade, os dispositivos constitucionais que garantem a disciplina e a
hierarquia como pilares básicos das Instituições Armadas para só então,
concluir-se sobre a constitucionalidade ou não do Regulamento Disciplinar do
Exército (9), ou de qualquer outra Força Armada ou Auxiliar.
Há que se aceitar a premissa de que a Carta Magna não possui dispositivos
antagônicos entre si, qualquer contradição aparente implica o esforço
necessário para a conciliação das normas estabelecidas em dispositivos
constitucionais diversos a serem considerados.
Desta forma, o princípio insculpido no art. 5º, LXI, segundo o qual é
excepcionada a necessidade de ordem judicial fundamentada à prisão nos casos de
transgressão disciplinar e crimes propriamente militares, definidos em lei
deve, em relação à transgressão disciplinar, ser analisado de forma restritiva,
já que outros princípios constitucionais incidem sobre a questão, como o da
estruturação das Forças Armadas com base na disciplina e hierarquia, e o da
submissão das Forças Armadas ao comando supremo do Presidente da República além
da competência deste, em editar decretos para a fiel execução das leis.
2. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL: CRIME PROPRIAMENTE MILITAR versus TRANSGRESSÃO
DISCIPLINAR
A previsão constitucional que assegura a reserva legal dos crimes propriamente
militares, encontrada no art. 5º, LXI, não é, no referido art. 5º, dispositivo
isolado.
Em que pese não se ter verificado ainda por parte da doutrina tal referência, é
possível, sem qualquer dificuldade, constatar que existe, em relação aos crimes
propriamente militares, considerável suporte em outro dispositivo do mesmo art.
5º, muito mais abrangente, qual seja o de seu inciso XXXIX, não há pena sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, princípio vigente
em todas as constituições democráticas, como corolário da precisa lição de
Feuerbach .(10)
Esta constatação nos permite indagar, onde, na Constituição, existe princípio
similar que dê suporte à pretensão de se admitir apenas transgressões disciplinares
estabelecidas por lei, ou seja, seria em um arremedo do dispositivo
anteriormente citado, algo como não há transgressão disciplinar sem lei
anterior que a defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Ressalte-se que não se pretende, de forma alguma, afrontar o dispositivo
constitucional do art. 5º, LXI, mas sim concluir, extreme de dúvida, qual a sua
melhor interpretação em face da finalidade das Forças Armadas e Auxiliares, e
dos instrumentos de garantia da regularidade de suas funções, que são os regulamentos
disciplinares.
Daí porque não nos parece haver dúvidas de que o constituinte originário, ao
inserir a vedação de habeas corpus na hipóteses contempladas pelo art. 5º, LXI
quis, primeiramente, fortalecer a hieraquia e a disciplina das Forças Armadas,
que são as vigas mestras dessas instituições.
Um passeio pelo direito comparado irá nos mostrar que na Espanha, o art. 25.1.
de sua Constituição formula assim o princípio da legalidade dos delitos e das
penas ( e das infrações e sanções administrativas): Ninguém pode ser condenado
ou sancionado por ações ou omissões que no momento de produzir-se não
constituam delito, falta ou infração administrativa, segundo a legislação
vigente naquele momento” (11). (o destaque é nosso)
José Luis Rodrígues-Villasante y Prieto, ao comentarem o dispositivo
constitucional espanhol ressaltam, todavia, que o direito disciplinar está
sujeito a reserva da lei (princípio da legalidade: art. 25.1. da CE), o que não
exclui a possibilidade de que as leis contenham remissões a normas
regulamentares e não impede a colaboração regulamentar da norma sancionada
.(12)
Assim, quer nos parecer que, ao contrário do direito constitucional espanhol, o
direito constitucional brasileiro não contemplou o princípio da legalidade
estrita da infração administrativa, a aceitar apenas regulamentos disciplinares
com base em lei formal resultante do devido processo legislativo brasileiro,
situado a partir do art. 59 de nossa Carta Magna, ainda que se possa pretender
identificá-lo no seu já tão referido art. 5º, inciso LXI.
Teríamos então, no Brasil, um princípio da legalidade ampla, a aceitar os
regulamentos que especificam infrações e penas administrativas também por
decretos, da mesma forma que na Espanha, onde o princípio da legalidade da
infração e da pena administrativa está expressamente previsto na Constituição,
se admite a existência e vigência de leis que contenham remissões a normas
regulamentares, p.ex., o art. 47 do Estatuto dos Militares em relação aos
Regulamentos das Forças Armadas brasileiras.
Discorrendo sobre a recepção das garantias penais e processuais para o âmbito
da esfera administrativa do direito espanhol, José Luis Rodríguez-Villasante y
Prieto aduzem que não se trata de preconizar um transplante de todas as
garantias penais e processuais para o âmbito sancionador administrativo. É
necessário buscar o adequado equilíbrio entre as garantias básicas do infrator
e as prerrogativas da Administração no exercício de sua potestade sancionadora
ou disciplinar. Caso contrário, advertem os autores, superada a etapa em que
eram possíveis os excessos no exercício de uma potestade sancionadora
incontrolada, poderemos cair no extremo oposto: enquanto as garantias do
infrator disparam, alçadas por um irreflexivo efeito mimético de transposição
em bloco do processo penal para o administrativo sancionador, as prerrogativas
da Admistração se reduzem até quase sua eliminação. Neste sentido, devemos
recordar que a potestade sancionadora da Administração se justifica – segundo a
doutrina constitucional espanhola – precisamente porque sua eficácia e
imediatidade é a melhor salvaguarda do interesse público, frente a possível
ineficácia da Administração da Justiça para reprimir ilícitos de gravidade
menor. (13)
2. ORGANIZAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS COM BASE NA HIERARQUIA E NA DISCIPLINA
Um outro ponto que não se pode descuidar, sob pena de se fazer uma análise
parcial da questão, é o de que as Forças Armadas e Auxiliares são instituídas
constitucionalmente (art.142 e 42) e em decorrência disso, seus valores maiores
– a disciplina e a hierarquia são, igualmente, constitucionalmente protegidos.
Esta circunstância elementar das Forças Armadas – constituição com base na
hierarquia e disciplina, pressupõe um dever de obediência, calcado
principalmente na obrigação que tem o subordinado de obedecer ao seu superior,
salvo quando a ordem deste for manifestamente ilegal.
Este dever de obediência está, ao longo do Estatuto dos Militares (14)
reforçado por inúmeros dispositivos, dentre os quais podemos citar:
“ Da Ética Militar
Art. 28. (...) IV- cumprir e fazer cumprir as leis, os regulamentos, as
instruções e as ordens das autoridades competentes; (...) VI- zelar pelo
preparo próprio, moral, intelectual e físico e, também, pelo dos subordinados,
tendo em vista o cumprimento da missão comum; (...) XIX-zelar pelo bom nome das
Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer
aos preceitos de ética militar”.
(...)
“Dos Deveres Militares
Art. 31. Os deveres militares, emanados de um conjunto de vínculos racionais,
bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao serviço, e compreendem,
essencialmente:
I- a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições
devem ser defendidas mesmo com o sacri[ício da própria vida; (...) IV- a
disciplina e o respeito à hierarquia; VI- o rigoroso cumprimento das obrigações
e das ordens.(...)” (15)
“Do Compromisso Militar
Art. 32. Todo cidadão, após ingressar em uma das Forças Armadas, mediante
incorporação, matrícula ou nomeação, prestará compromisso de honra, no qual
afirmará a sua aceitação consistente das obrigações e dos deveres militares e
manifestará a sua firme disposição de bem cumpri-los.”
(...)
“Do Comando e da subordinação
Art. 34. Comando é a soma de autoridade, deveres e responsabilidades de que o
militar é investido legalmente quando conduz homens ou dirige uma organização
militar. O Comando é vinculado ao grau hierárquico e constitui uma prerrogativa
impessoal, em cujo exercício o militar se define e se caracteriza como chefe.
(...)
Art. 35. A subordinação não afeta , de modo algum, a dignidade pessoal do
militar e decorre, exclusivamente, da estrutura hierarquizada das Forças
Armadas”.
(Os destaques são nossos)
Esta simples relação de alguns dos deveres militares é mais do que suficiente
para demonstrar a importância dos regulamentos disciplinares já que é por meio
deles que se mantém a disciplina nas organizações militares.
Conceitos especialíssimos como “comando”, “superior”, “subordinação”, “chefia”,
“dedicação e fidelidade à pátria”, “obediência devida”, “ética militar” e
“sacrifício da própria vida” seriam inócuos sem a existência de um regulamento
disciplinar que lhes garanta a existência.
Se os valores básicos das Forças Armadas estão protegidos constitucionalmente,
nos parece exagerado, taxar-se de inconstitucional um regulamento disciplinar
que seja expedido por decreto – e apenas por isso.
Tome-se por exemplo o questionamento do Regulamento Disciplinar do Exército. Ao
declarar-se a inconstitucionalidade do referido decreto, seja pela via difusa
ou concentrada do controle da constitucionalidade, inevitavelmente estará se
desarmando a Força, que poderá ficar submetida a um lapso temporal
indeterminado sem qualquer tipo de controle sobre seus integrantes, e com isso,
a inexorável derrocada da disciplina e da hierarquia.
3. SUBMISSÃO DAS FORÇAS ARMADAS À AUTORIDADE SUPREMA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Outro ponto extremamente importante na análise da constitucionalidade dos
regulamentos disciplinares das Forças Armadas, é a submissão das mesmas à
autoridade suprema do Presidente da República.
Essa circunstância está explícita no caput do art. 142 do Texto maior.
A expressão
A autoridade do Presidente da República em face das Forças Armadas é exercida
nos termos da própria Constituição, sendo competência exclusiva do mais alto
mandatário do país, dispor, mediante decreto sobre “a organização e funcionamento
da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou
extinção de cargos públicos”, além de “exercer o comando supremo das Forças
Armadas, nomear os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica,
promover seus oficiais generais e nomeá-los para os cargos que lhe são
privativos” ( conforme art. 84, incisos VI, letra a e; XIII, da CF). (16)
Bem por isso, os regulamentos disciplinares da Marinha (art.19, letra a ) e da
Aeronáutica (art.42, 1, letra a ) destinam inclusive a competência do
Presidente da República inclusive para aplicar punições disciplinares a todos
os seus integrantes. (17)
O Regulamento anterior do Exército também fazia essa previsão (art.9, nº 1),
mas o atual RDE, excluiu o Presidente da República do rol de autoridades com
competência para aplicar punição disciplinar.
Os decretos que editam regulamentos disciplinares das Forças Armadas
regulamentam dispositivo de uma lei específica, o art. 47 da Lei nº 6.880/1980,
o Estatuto dos Militares. (18)
São chamados de Decretos de Execução, passíveis de serem editados pelo
Presidente da República, naturalmente com amparo constitucional (art. 84, VI,
letra a, c/c inciso XIII).
Idêntica análise, guardadas as devidas proporções, deve ser feita em relação à
submissão das Forças Auxiliares à autoridade suprema dos Governadores dos
Estados e do distrito Federal.
A submissão das Forças Armadas ao mais alto mandatário do País é a regra nos
países democráticos.
Com efeito, na Espanha, a Lei nº 17, de 19 de julho de 1989, que regula a regra
do pessoal militar profissional, estabelece em seu art. 2º, que o mando supremo
das Forças Armadas corresponde a sua Majestade o Rei, que tem inclusive o posto
de Capitão General do Exército de Terra, da Armada e do Exército do Ar. (19)
Também em Portugal o Presidente da República exerce as funções de Comandante
Supremo das Forças Armadas. (20)
Na República Dominicana, o Presidente da República é o Chefe da Administração
Pública e o Chefe Supremo de todas as Forças Armadas da República, e dos Corpos
Policiais. (21)
Idêntica situação ocorre no Perú, onde de acordo com o art. 167 da
Constituição, o Presidente da República é o Chefe Supremo das Forças Armadas e
da Polícia nacional.
Pondera Enrique Bernales BALLESTEROS, que a potestade de Chefe Supremo que tem
o Presidente da República é de natureza essencialmente política e corresponde
ao princípio de que o Governo deve conduzir as Forças Armadas e a Polícia
Nacional, como a todas outras instituições do Estado integrantes do Poder
Executivo.
Se o Presidente da República como Chefe de Governo dirige a toda a
adminsitração pública, através dos ministros e chefes de organismos estatais,
no caso das instituições castrenses e policiais esta condição global não basta,
porque estão estruturadas hieraquicamente, debaixo do princípio da disciplina e
do acatamento da ordem superior. Para elas não é suficiente a condução política
global. Tem que haver mando supremo para que ditas decisões sejam acatadas. Por
isso, o Presidente da República não somente as conduz mas é seu Chefe Supremo;
em conseqüência, na linha de mando e sob o princípio da disciplina, ninguém
desobedecerá às ordens do Presidente dentro das Forças Armadas e na Polícia
Nacional. (22)
4. HIPÓTESES DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO REGULAMENTO DISCIPLINAR
DO EXÉRCITO
Uma análise de decisões emanadas do 1º grau da Justiça Federal brasileira, nos
permite destacar, com algumas variações, duas hipóteses pelas quais têm sido
decretada a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, por
via de habeas corpus, podendo se afirmar, inclusive, não existir uniformidade
quanto aos fundamentos adotados para decidir.
Antes de prosseguirmos convém lembrar, como fez Michel TEMER, que a
constituição vigente permite a identificação de controle preventivo e
repressivo. O primeiro é localizado quando se pensa em controle lato da
constitucionalidade: destina-se a impedir o ingresso, no sistema de normas que,
em seu projeto, já revelam desconformidade com a Constituição. Esse controle é
exercido tanto pelo Legislativo quanto pelo Executivo. Aquele é estruturado em
Comissões, como decorre do art. 58 da CF. Tais Comissões permanentes,
destinam-se, basicamente, a emitir pareceres sobre projetos de lei. Uma delas
se incumbe do exame prévio de constitucionalidade (23)
Além disso, existe igualmente o controle preventivo da parte do Chefe do
Executivo, previsto no § 1º, do art. 66, ao preceituar que “se o Presidente da
República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou
contrário ao interesse público, veta-lo-á, total ou parcialmente...”
Daí se infere que o controle prévio se refere a
Porém, ressalta TEMER, anote-se mais. Nem todos os projetos de atos normativos
se submetem, constitucionalmente, a esse controle preventivo. Inocorre, por
exemplo, no caso de medidas provisórias, resoluções dos tribunais e decretos.
Decretos são atos a cujo procedimento o constituinte não impôs fórmulas de apreciação
formal .(24)
Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas foram editados por decretos.
Já o controle repressivo da constitucionalidade é exercido pelo Poder
Judiciário, seja pela via de exceção (ou de defesa), seja pela via de ação,
direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade.
Anotamos, ainda, com TEMER, que a via de exceção (ou de defesa) tem as
seguintes peculiaridades: a) só é exercitável à vista do caso concreto, de
litígio posto em juízo; b) o juiz singular poderá declarar a
inconstitucionalidade de ato normativo ao solucionar o litígio entre as partes;
c) não é declaração de inconstitucionalidade de lei em tese, mas de exigência
imposta para a solução do caso concreto; d) a declaração, portanto, não é o
objeto principal da lide, mas incidente, conseqüência .(25)
Feitas estas considerações que consideramos necessárias, voltemos ao problema
em questão, para demonstrar duas hipóteses opostas de declaração de
inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, verificáveis pela
via de exceção (de defesa do militar que pretende impedir a aplicação de uma
punição disciplinar).
4.1. DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO Nº 4.346/2002, MAS GARANTE A
APLICAÇÃO DO DECRETO Nº 90.608/1984.
Há decisões que declaram a inconstitucionalidade do RDE vigente mas asseguram a
aplicação do regulamento anterior, como por exemplo a sentença datada de 05 de
junho de 2004, do Juiz da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do
Amapá (26), em que foi decretada a inconstitucionalidade do atual RDE, Decreto
nº 4.346/2002, por estar em contraposição ao disposto no art. 25 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, que expressamente revoga delegações
concedidas ao Poder Executivo em matéria de competência atual do Congresso
Nacional.
Para o magistrado prolator da sentença, a Constituição Federal estipulou uma
reserva legal, em face dos regulamentos disciplinares, porém o fez no art. 142,
inciso X, quando estabeleceu que “ a lei disporá sobre o ingresso nas Forças
Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de
transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres...”
Dessa forma, nos termos da decisão referida, não poderia o Presidente da
República editar novo Regulamento Disciplinar do Exército, pois essa é uma
matéria sujeita à competência do Congresso Nacional, sendo certo que, conforme
o art. 25 do ADCT, inexiste atualmente a possibilidade de regulamentação, por
decreto, da previsão constante no art. 47 da Lei nº 6.880/1980 .(27)
Interessante destacar que ao declarar a inconstitucionalidade do novo RDE, a
sentença salvaguardou o regulamento anterior, tendo o i. magistrado anotado o
seguinte:
“Há que se considerar, no entanto, que a inconstitucionalidade do Decreto nº
4.346/2002 não exime o impetrante/paciente de responder pela transgressão, pois
a sua conduta também era punida pelo revogado Decreto nº 90.608/1984, que fica
agora revigorado. Isso porque, se o atual regulamento disciplinar é nulo, nula
também é a revogação por ele promovida, o que restabelece a eficácia do antigo
Regulamento Disciplinar do Exército”.
Assim, a ordem de HC foi concedida em parte, tão-somente para determinar a
autoridade militar que promovesse o enquadramento da conduta do impetrante /
paciente com a imposição da respectiva pena, de acordo com as disposições do
Decreto nº 90.608/1984, abatendo-se os dias de detenção já cumpridos.
O interessante desta decisão de 1º grau é que ela não desarmou a Força
Terrestre (o que estaria fazendo de declarasse a inconstitucionalidade de um
regulamento e impedisse a aplicação do outro), ao tempo em que considerou que a
declarada inconstitucionalidade do atual Regulamento Disciplinar do Exército
não eximia o paciente de responder pela transgressão, prevista inclusive no
regulamento anterior.
Todavia, apreciando o recurso necessário, o egrégio Tribunal Regional Federal
da 1ª Região, por unanimidade conheceu e deu provimento ao recurso de ofício,
para cassar a decisão recorrida, determinando à autoridade impetrada que
reenquadrasse a conduta do paciente ao Decreto Presidencial nº 4.346/02,
conforme punição inicialmente imposta.
No corpo do v. acórdão, o i. relator afastou a tese de inconstitucionalidade do
Decreto nº 4.346/2002, por entender que o mesmo não afronta a Constituição Federal
nem tampouco a lei, estando em consonância com nosso ordenamento jurídico .(28)
4.1.1. REPRISTINAÇÃO DE REGULAMENTO DISCIPLINAR
Interessante anotar que a hipótese de eventual declaração de
inconstitucionalidade do RDE vigente, com a garantia de aplicação do
regulamento anterior poderia suscitar o debate acerca de eventual repristinação
do regulamento revogado (Decreto nº 90.608/84).
No dizer de Antonio CHAVES, citado por Maria Helena DINIZ, etimologicamente,
repristinação é palavra formada do sufico latino re (fazer de novo, restaurar)
e pristimus (anterior, antigo, primitivo), significando, pois, restauração do
antigo .(29)
A impossibilidade de repristinação, salvo disposição legal em contrário, está
prevista na Lei de Introdução ao Código Civil - LICC (30), que é “uma lei de
introdução às leis”, por conter princípios gerais sobre as normas sem qualquer
discriminação (31), aludindo portanto à aplicação de todas as normas jurídicas,
sejam elas da seara do direito privado ou do direito público.
Diz o § 3º, do art. 2º, da LICC:
“Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei
revogadora perdido a vigência”.
No magistério ainda de Maria Helena DINIZ, “deixando de existir a norma
revogadora, não se terá o convalescimento da revogada. A revogação põe termo à
lei anterior, que, pelo término da vigência da norma que a revogou, não
renascerá. Como se vê, a lei revocatória não voltará ipso facto ao seu antigo
vigor, a não ser que haja firme propósito de sua restauração, mediante declaração
expressa da lei nova que a restabeleça, restaurando-a ex nunc, sendo denominada
por isso repristinatória. Faltando menção expressa, a lei restauradora ou
repristinatória é lei nova que adota o conteúdo da norma primeiramente
revogada. Logo, sem que haja outra lei que, explicitamente a revigore, será a
norma revogada tida como inexistente. Daí, se a norma revogadora deixar de
existir, a revogada não se convalesce, a não ser que contenha dispositivo
dizendo que a lei primeiramente revogada passará a ter vigência. Todavia,
aquela lei revogada não ressuscitará, pois a norma que a restabelece, não a faz
reviver, por ser uma nova lei, cujo teor é idêntico ao daquela. A lei
restauradora nada mais é do que uma nova norma com conteúdo igual ao da lei
anterior revogada” .(32)
Por ora, suficiente que se diga que a declaração incidental de
inconstitucionalidade do RDE não é norma revogadora daquele regulamento, daí
porque a impropriedade em se falar de repristinação.
O poder de revogar uma lei é de outra lei, elaborada na forma que a
Constituição prevê para o devido processo legislativo. Já o poder de revogar
decretos é do Chefe do Executivo, que é quem pode editá-los.
4.2. DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO Nº 4.346/2004 E IMPEDE A
APLICAÇÃO DO DECRETO Nº 90.608/1984
Por outro lado, há decisões que declaram a inconstitucionalidade do RDE vigente
e impedem a aplicação do RDE anterior, como por exemplo a sentença datada de
28.09.2004, expedida pelo Juiz Federal da 1ª Vara Federal de Santa Maria / RS
(33), pendente de julgamento do recurso necessário, onde foi declarada a
inconstitucionalidade do atual Regulamento Disciplinar do Exército – Decreto nº
4.346/2002, por entender o magistrado que a edição do referido regulamento
ocorreu em violação ao art. 5º, LXI (reserva legal dos regulamentos
disciplinares) e também do art. 25 do Ato das disposições Constitucionais
Transitórias – ADCT.
Dessa forma, concluiu o magistrado que o art. 47 da Lei 6.880/80 (fonte
geradora dos regulamentos disciplinares) não foi recepcionada pela nova carta.
Interessante destacar que asseverou a r. sentença que “reconhecida a
inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002, não há que se falar em
repristinação do Decreto nº 90.608/1984. Este regulamento padece dos mesmos
vícios de validade de seu sucessor, quais sejam, fundamentam-se em norma não
recepcionada pela Constituição de 1988 e contrariam expressamente o art. 5º,
LXI, da Constituição, que preceitua que sejam os crimes e transgressões
militares previstos em lei”.
Necessário asseverar ainda que tanto a doutrina quanto a jurisprudência
majoritárias entendem que o Decreto nº 90.608/84 – RDE anterior, foi
recepcionado pela Constituição Federal de 1988 – a questão nos parece pacífica,
daí porque, a nosso sentir, a questão remanesce a eventual constitucionalidade
ou inconstitucionalidade tão-somente do decreto nº 4.346/2002.
Não há como olvidar, data venia, que a referida decisão deixou a Força
desarmada, já que não permitiu que fosse apurada a transgressão em tese
cometida, sendo então, possível questionar: Se as Forças Armadas são
estruturadas no binômio hierarquia e disciplina (valores previstos
constitucionalmente), resguardado este binômio tanto pela lei penal militar
quanto pelos regulamentos disciplinares, como é, então, que a Força Terrestre
vai manter sua disciplina e hierarquia, sem nenhum regulamento disciplinar a
lhe socorrer?
5. NOSSA POSIÇÃO ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DO
EXÉRCITO (DECRETO Nº 4.346/200)
Vamos nos ater somente à constitucionalidade do RDE vigente, Decreto nº
4.346/2002, por entendermos que em relação aos regulamentos das demais Forças
Armadas – anteriores à CF / 88, resta pacificado que os mesmos foram
devidamente recepcionados pelo ordenamento constitucional vigente, com status
de lei ordinária, em decorrência da reserva legal estatuída a partir do art.
5º, LXI.
Em que pesem os argumentos contrários e de todo respeitados, entendemos que o
Decreto nº 4.346/2002 é constitucional, em nada ofendendo a Carta Magna ou à
Lei, estando apto a produzir os efeitos a que se destina, fundamentando nossa
posição nos motivos abaixo relacionados:
a. O art. 5º, inciso LXI, da Carta Magna, na parte em que se refere a
transgressão disciplinar definida em lei, deve ser interpretado de forma ampla,
tendo em vista a situação peculiar das Forças Armadas e de seus integrantes,
cujos princípios de estrutura e manutenção também se encontram
constitucionalmente protegidos.
Dos princípios basilares da hierarquia e disciplina decorre um dever de
obediência, calcado na obrigação que tem o subordinado de obedecer ao seu
superior, salvo ordem manifestamente ilegal.
Um dos instrumentos para salvaguardar as instituições militares e zelar pela
regularidade de suas importantes funções constitucionais é, sem sombra de
dúvida o regulamento disciplinar, o qual, se declarado inconstitucional deixará
a Força Militar desarmada, sem ter como manter a disciplina e a hierarquia
(princípios constitucionais). Aliás, os defensores da inconstitucionalidade do
atual Regulamento Disciplinar do Exército não aludem sobre qual seria a maneira
de se manter e disciplina e a hierarquia sem o indispensável regulamento
disciplinar.
Da mesma forma, as Forças Armadas subordinam-se constitucionalmente à
autoridade suprema do Presidente da República. Este, também
constitucionalmente, detém competência para expedir decretos e exercer o
comando supremo das Forças Armadas.
A simples declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2002, faz
tábula rasa da estrutura organizacional das Forças Armadas, prevista na
Constituição Federal, além de passar ao largo da autoridade e da competência
constitucional do Presidente da República. (34)
b. A fonte direta do Decreto nº 4.346/2002 é o art. 47 da Lei nº 6.880/80 –
Estatuto dos Militares, que assevera que os regulamentos disciplinares das
Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões
disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das
penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e a interposição
de recursos contra as penas disciplinares. Portanto, o Decreto nº 4.346/2002 é
um decreto de execução, de competência exclusiva do Presidente da República.
A lei referida no inciso X do § 3º do art. 142, da CF, que disporá sobre o ingresso
nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de
transferência do militar para a inatividade, os direitos e os deveres, a
remuneração, as prerrogativas e outras situações específicas dos militares,
consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas
por força de compromissos internacionais e de guerra, é a Lei nº 6.880/1980 –
Estatuto dos Militares, que já possui, inclusive, esta estrutura sistemática,
estando as obrigações e os deveres dos militares tratados no seu Título II,
especificamente os deveres no art.31; já os direitos e prerrogativas dos
militares estão no Título III, especificamente os direitos entre os artigos 50
a 53.
Os termos direitos e deveres referidos não se confundem com os regulamentos
disciplinares, estes previstos a partir da autorização do art.47 do Estatuto.
O Decreto nº 4.346/2002 foi editado com o propósito de regulamentar o art. 47
da Lei nº 6.880/1980 – Estatuto dos Militares.
Eventual incompatibilidade ou extrapolação do texto do mencionado ato normativo
em face da lei sob cuja égide foi editado constitui verdadeira crise de
legalidade, estranha ao controle normativo abstrato, que limita-se apenas à
aferição de ofensa direta a dispositivos da Constituição Federal.
Nesse sentido é a jurisprudência reiterada do STF, destacando-se:
“Constitucional. Administrativo. Decreto regulamentar. Controle da
constitucionalidade concentrado. I- Se o ato regulamentar vai além do conteúdo
da lei, pratica ilegalidade. Neste caso, não há falar em inconstitucionalidade.
Somente na hipótese de não existir lei que preceda o ato regulamentar, é que
poderia este ser acoimado de inconstitucional, assim sujeito ao controle de
constitucionalidade. II- Ato normativo de natureza regulamentar que ultrapassa
o conteúdo da lei não está sujeito a jurisdição constitucional concentrada.
Precedentes do STF: ADINs nºs 311-DF e 536-DF. III- Ação direta de
Inconstitucionalidade não conhecida”. (ADI nº 589-DF, Relator Ministrto Carlos
Velloso, DJU de 18.10.1991)
c. Tanto o Supremo Tribunal Federal (35) como o Superior Tribunal de Justiça,
incidentalmente, já se manifestaram pela constitucionalidade do Decreto nº
4.346, de 26.08.2002. A propósito, conferir STJ: Mandado de Segurança nº
9.710-DF (2002.0066791-6), em que foi relatora a Ministra Laurita Vaz, denegada
a ordem, unânime, julgado em 25.08.2004, tendo sido consignado no corpo do v.
acórdão ante a alegação de inconstitucionalidade do RDE:...Tem-se portanto, a
possibilidade de punição administrativa por transgressões disciplinares,
prevista no Estatuto dos Militares, regulamentada pelo Decreto nº 4.346/2002,
com o fim de preservar a hierarquia e a disciplina nas Forças Armadas. Inexiste
ofensa à Constituição Federal ou à Lei. A medida constritiva, do ponto de vista
formal, está em consonância com o ordenamento Jurpídico Pátrio”.
Ou, a mais alta Corte do País, que corroborando com o entendimento de que o
Decreto 4.346/2002 é constitucional, consignou no voto proferido pelo Ministro
Sepúlveda Pertence no AgRegAg 402.493-1/SE, verbis:”Ressalto, ainda, que a
orientação do Tribunal já fora consagrada por lei superveniente (decreto 4.346,
de 26/08/2002, art. 35 e parágrafos), que revogou expressamente a norma objeto
dos autos (Decreto 90.608/84)”.
d. Por fim, uma questão lógica e prática. O Decreto nº 4.346, de 26.08.2002 –
que aprovou o atual RDE, trouxe a lume um regulamento moderno, mais flexível
que o diploma anterior por ele revogado (Decreto nº 90.608/1984), mas
consentâneos com os princípios constitucionais, inovando, em favor do militar,
em vários aspectos, dentre outros:
d.1. exclusão da aplicação de punição por uma ação ou omissão não especificada
(nº 2 do art. 13 do RDE revogado), motivo de vários questionamentos judiciais;
d.2. a inclusão da palavra disciplinar após os termos punição, prisão, detenção
e impedimento, não podendo ser confundida com as penas previstas nos Código
Penal e Penal Militar;
d.3. exclusão da prisão em separado (art.24 do RDE revogado), a qual tendo uma
conotação com procedimentos adotados em presídios comuns, como a maioria das
Unidades não dispõe de instalações adequadas, a prisão em separado tinha um
sentido figurativo, sendo utilizada amiúde com a finalidade de colocar a praça
no mau comportamento;
d.4. restrição das autoridades com competência para aplicação de prisão
disciplinar (art. 28);
d.5. criação da punição do impedimento disciplinar (art.26), que não consta das
alterações do punido.
d.6. obrigatoriedade de ser assegurado o contraditório e a ampla defesa (art.35
e anexo IV), com a finalidade de cumprir, efetivamente, o preceito
constitucional;
d.7. exclusão da possibilidade de agravação, por outra autoridade, da punição
aplicada (art.41), mantendo similaridade com a lei 9.784/1999 (Processo
Administrativo), destinada a evitar contestação judicial e valorizar a
autoridade que aplica a punição;
d.8. exclusão do Presidente da República e não inclusão do Ministro da Defesa
como autoridades competentes para aplciar punição disciplinar, que dar-se-á,
por itnermédio do Comandante do Exército ou do General de Exército mais antigo
em serviço no Minsitério da Defesa.
Fica difícil portanto, entender tanta insistência em declarar inconstitucional
um regulamento que é mais democrático e benéfico ao militar que o anterior.
NOTAS:
1 Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar lotado em
Santa Maria/RS. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar.
Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares. Integra o
Cadastro de Docentes da Escola Superior do Ministério Público da União.
Professor do Curso de Pós Graduação lato sensu de Especialização em Direito
Militar da Faculdade de Direito de Santa Maria-FADISMA (2005/2006). Articulista
e Palestrante. Autor de várias obras acerca do Direito Militar publicadas pela
Editora Juruá, de Curitiba/PR.
2 DUARTE, Antonio Pereira. Direito Administrativo Militar, Editora Forense, Rio
de Janeiro, 1995, p.51/52.
3 FONTELES, Cláudio. Inicial da ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº
3340 – Relator o Ministro Marco Aurélio, protocolada no Supremo Tribunal
Federal em 08.11.2004, atendendo solicitação do Procurador da República no
Estado do Rio de Janeiro Fábio Elizeu Gaspar.
4 Assessoria de Comunicação Social da AGU, acesso em 13/11/2005.
5 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo Militar – Teoria e
Prática. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2003, p. 57.
6 ROSA, ob. Citada, p. 60. Atualmente, a Lei Complementar mineira nº 14.310, de
19 Jun 2002 instituiu o Código de Ética e Disciplina - CEDM).
7 MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua
Processualidade, Editora do Direito, Leme, 1996, p. 87.
8 MARTINS, ob.citada, p. 88.
10 Nullun crimen, nulla poena sine lege.
11 José Luis Rodrigues – Villasante y Prieto. Principio de legalidad de las
infracciones y sanciones disciplinarias militares. Comentários a La Ley
Disciplinaria de las Fuerzas Armadas. Imprenta Ministerio de Defensa, Madrid,
junio 2000, p.46.
12 ob. Citada, p. 45.
13 José Luis Vallasante y Prieto, ob.citada, p.45.
14 Lei nº 6.880/1980.
15 A Lei nº 71, de 24.12.1980, estabelece a fórmula de juramento à bandeira na
Espanha: “¡Soldados! ¿Juráis por Dios o por vuestro honor y prometéis a
España, besando com unción su Bandera, obedecer y respetar al Rey y a vuestros
Jefes, no abandonarlos nunca y derramar, si espreciso, en defensa de la
soberanía e independencia de la Patria, de su unidad e integridad territorial,
hasta la última gota de vuestro sangre?”
Los soldados contestarán: “!Si, lo juramos!” El que tomó el juramento
replicará: “Si asi lo hacéis, la Patria os lo agradecerá y premiará, y si no,
merecereis su desprecio y su castigo, como indignos hijos de ella”, y añadirá:
“!Soldados!, Viva España! y ¡Viva el Rey!”, que será contestados com los correspondientes
“!Viva!”.
En la fórmula del juramento, la expresión “Soldados” podrá ser substituida por
la que convenga, de conformidad com la condición militar de los que juran”. (
apud GARRIDO, Antonio Millán. Ordenanzas
Militares, Editorial Trivium, AS, madrid, 1993, p. 25.
16 A nível dos Estados e do DF, a situação é a mesma, estando as Polícias
Militares e os Corpos de Bombeiros Militares subordinados diretamente aos
Governadores. Nesse sentido: Constituição do Estado do Paraná, art. 50, e
Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, art.129.
17 A nível dos Estados e do DF, encontramos regulamentos disciplinares dando
competência para o Governador aplicar punições a todos os integrantes das
corporações estaduais. Nesse sentido, o art. 11, inciso I, do Decreto Estadual
nº 37.042, de 06.11.1996, que aprovou o Regulamento Disciplinar da Polícia
Militar do Estado de Alagoas; Art.31, inciso I, da lei Complementar nº 893, de
09.03.2001, que aprovou o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de São
Paulo; art.20, inciso I, do Decreto Estadual nº43.245, de 19.07.2004, que
aprovou o Regulamento Disciplinar da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do
Sul; art. 45, inciso I, da Lei Estadual nº 14.310, de 19.06.2002, que aprovou o
Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais.
18 Estatuto dos Militares, art. 47: Os regulamentos disciplinares das Forças
Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões
disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das
penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e a interposição
de recursos contra as penas disciplinares.
19 GARRIDO, Antonio Millán e PRADOS, Santiago Prados. Régimen Jurídico
del Militar Profesional. Tecnos, Madrid, 1995, p.37.
20 Constituição da República
Portuguesa, de 2 de abril de 1976, revista pelas leis constitucionais nº 1/82,
1/89, 1/92 e 1/97: art. 134, letra ‘a’.
21 Constituição da República Dominicana, proclamada em 25.07.2002 em Santo
Domingo: art.55.
22 BALLESTEROS, Enrique Bernales. La Constitución de 1993. Análisis Comparado, 5ª Edición, Editora RAO
S.R.L., Lima, 1999, p.733/734.
23 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 10ª edição, Malheiros,
São Paulo, 1994, p.42.
24 TEMER, ob. Citada, p. 43.
25 TEMER, ob. Citada, p. 43.
26 HC nº 2004.31.00.001279-2, Juiz Federal Anselmo Gonçalves da Silva.
27 Estatuto dos Militares.
28 TRF/1ª Região: RHC nº 2004.31.00.001279-2-AMAPÁ, 3ª Turma, relator
Desembargador Federal Cândido Ribeiro, julgado em 12.04.2005, unânime, DJU de
29.04.2005.
29 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro
Interpretada, Editora Saraiva, São Paulo, 1997, p.83.
30 Decreto-Lei nº 4.657, de 04.09.1942.
31 DINIZ, Maria Helena, ob. Citada, p. 13.
32 DINIZ, Maria Helena, ob. citada, p.83.
33 HC nº 2004.71.02.005966-6, Juiz Federal Pedro Carvalho Aguirre Filho.
34 Vide análise do texto do art. 5º, inciso LXI, da CF, no ítem 3..5.1 deste
livro, para onde remetemos o leitor.
35 O Supremo Tribunal Federal, em data de 03.11.2005, não conheceu da Ação de
Declaração de Inconstitucionalidade nº 3340, porque a petição inicial não
detalhou os dispositivos do Regulamento Disciplinar do Exército que seriam
inconstitucionais.
*Promotor da Justiça Militar da União. Lotado em Santa Maria/RS.
Disponível em: < http://www.jusmilitaris.com.br/?secao=doutrina&cat=3
>. Acesso em: 10/10/06.