® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

 

 

A prescrição no crime de deserção

                                                                                                                                      

Jorge César de Assis *


1. INTRODUÇÃO AO TEMA

O Código Penal Militar previu a ocorrência da prescrição, como uma das causas de extinção da punibilidade do agente, ao lado da morte deste, da anistia ou indulto, da retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso, da reabilitação e do ressarcimento do dano no peculato culposo ( art.123, I a VI ).
De um modo geral, sem discrepância, a prescrição é definida como a perda do poder de punir do Estado, causada pelo decurso do tempo fixado em lei.
Daí falar-se em prescrição da pretensão punitiva ( in abstrato ) – que ocorre antes de transitar em julgado a sentença final e, prescrição da pretensão executória ( in concreto ) – que tem por base a pena aplicada ao réu. A fórmula do art. 124 do CPM, “ a prescrição refere-se à ação ou à execução da pena”, não foi a mais feliz, apontando DAMÁSIO E. de Jesus ( 1997:118 ) 3 que “ a expressão empregada pelo CPM dá a entender que a prescrição atinge a própria ação penal, o que é incorreto”.
É que a ação penal, como leciona Fernando CAPEZ ( 1997:89 ) 4, é um direito autônomo, que não se confunde com o direito material que pretende tutelar; abstrato, que independe do resultado final do processo; subjetivo, pois o titular pode exigir do Estado-Juiz a prestação jurisdicional; público, pois a atividade jurisdicional que se pretende provocar é de natureza pública .

A prescrição da ação penal ( melhor seria dizer-se prescrição antes do trânsito em julgado da sentença ), está prevista no art.125, verbis:

“ Art.125. A prescrição da ação penal, salvo o disposto no § 1o deste artigo, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:
I- em trinta anos, se a pena é de morte;
II- em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
III- em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito e não excede a doze;
IV- em doze, se o máximo da pena é superior a quatro e não excede a oito;
V- em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois e não excede a quatro;
VI- em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ou, sendo superior não excede a dois;
VII- em dois anos, se o máximo da pena é inferior a um ano.”

Temos portanto, no art. 125, incisos I a VII a regra geral da prescrição, aplicável a qualquer crime pelo Código Penal Militar.
Todavia, quis a lei penal militar dar tratamento diferenciado à ocorrência da prescrição em dois casos de crimes propriamente militares, quais sejam a insubmissão e a deserção.
Especializando a prescrição no caso da insubmissão, o art. 131 do CPM declara, taxativamente, que esta “ só começa a correr, no dia em que o insubmisso atinge a idade de trinta anos”. Significa dizer que independentemente do prazo previsto no art.125, inciso VI ( regra geral ) existe uma condição resolutiva, a ocorrência da idade de trinta anos, e desde que o insubmisso permaneça foragido, somente a partir daquele termo etário é que a prescrição começa sua contagem inexorável.
Já em relação ao crime de deserção o legislador castrense manteve a especialidade da regra da prescrição, mas com redação diversa, que se vê no art.132:
“ Art. 132. No crime de deserção, embora decorrido o prazo de prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de quarenta e cinco anos, e, se oficial, a de sessenta.”
Ou seja, mesmo decorrido o prazo do art.125, VI, do CPM, aguardar-se-á, estando o desertor foragido, a idade de 45 anos se ele for praça, ou 60 se Oficial, para que se extinga a punibilidade.
Há que se ter em mente porém, que existe uma coexistência e conciliabilidade entre a regra geral e a regra especial, bem como não se pode olvidar que a análise da ocorrência da prescrição deve ser feita, não só com os dispositivos isolados do art. 125, VI e 132 do CPM, mas – e principalmente tendo-se atenção para outros dispositivos complementares, igualmente importantes, como o termo inicial da prescrição ( art.125, § 2o. ); os casos de concurso de crimes ou de crime continuado ( art. 125, § 3o. ); a suspensão da prescrição ( art. 125, § 4o. ) e; os casos de interrupção da prescrição ( art.125, § 5o. )


2. COEXISTÊNCIA E CONCILIABILIDADE DAS REGRAS DOS ARTS. 125, INCISO VI, E 132 DO CÓDIGO PENAL MILITAR.

À toda evidência existe uma coexistência e conciliabilidade das regras postas nos artigos 125, inciso VI, e 132 do CPM.
Ninguém duvida que o art. 132 do CPM “no crime de deserção, embora decorrido o prazo de prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de quarenta e cinco anos, e, se oficial, a de sessenta” dirige-se aos trânsfugas, aos que estão ausentes, foragidos. Isto é óbvio.
Todavia, o militar mesmo passando à condição de desertor sobre o qual pairava a regra do art. 132 do CPM, sendo ele reincluído e tendo passado à condição de réu do processo por crime de deserção (o que pressupõe o recebimento da denúncia), a partir da data em que foi capturado e reincluído é que começará a correr o prazo da prescrição, do art. 125, VI, do CPM, na exata dicção do art. 125, §2º, letra “c”, do mesmo Código, que tem seu correspondente no art. 111, inciso III, do CP Comum.
Não existe amparo legal para a contagem do prazo prescricional da deserção, retroagindo-se à data de sua consumação ( leia-se, da data em que fluiu o prazo de graça e lavrou-se o respectivo Termo de Deserção ), quando o prazo prescricional ainda não começara a correr, como o intérprete menos avisado poderia supor.
O TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO DA AÇÃO PENAL, somente começa a correr, nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência, vale dizer, do dia em que foi o desertor capturado ou apresentou-se, e foi reincluído na corporação militar, já que o status de militar é condição de procedibilidade do processo, entendimento inclusive já sumulado pelo Egrégio Superior Tribunal Militar ( verbetes n° 8 e 12 ).
O Superior Tribunal Militar já se manifestou sobre o tema – que já andou pela Suprema Corte, v.g., na Apelação (FE) nº1994.01.047213-6/PR, relator o Ministro Antônio Joaquim Soares Moreira e revisor o Ministro Paulo Cesar Cataldo; e na Apelação (FE) 1991.01.046492-3/AM, com o mesmo revisor e relator o Ministro Cherubim Rosa Filho, julgados esses que por si só esclarecem a diferença: Existe um “tratamento necessariamente diferenciado do militar reincorporado às Forças Armada, que passa à qualidade de réu do crime de deserção, a quem é aplicável a regra geral fixada no art. 125, VI, do CPM.”

Ora, o que os acórdãos dizem - e é o entendimento correto do E. STM, é que, uma vez capturado o trânsfuga, sendo ele reincluído na Força Armada, recebida a denúncia, a partir daí começa a contar o prazo do art. 125, VII, do CPM, para a frente, e não para trás o que seria uma excrescência jurídica.


3. NATUREZA DO CRIME DE DESERÇÃO

Quanto à natureza do crime de deserção, os autores se alternam, ora entendendo ser crime formal, ora de mera conduta. Alguns entendem ser formal e de mera conduta ao mesmo tempo e há quem diga ser crime “formal, instantâneo e de mera conduta”.
Não há dúvida entretanto, tratar-se de um crime permanente, cuja consumação se prolonga no tempo.
Já no início do século passado, Chrysólito de GUSMÃO ( 1915:97 ) 5 asseverava:

“A deserção é um crime continuado e não instantâneo, cujos elementos formadores e consumativos continuam sucessiva e ininterruptamente a existir, uma vez passado o prazo de graça, quando existente.”

Um pouco à frente no tempo, Raul MACHADO ( 1930: 135 ) 6 reafirmava:

“Para a deserção são estabelecidas regras especiais de prescrição (art. 67). Sendo a deserção um delito permanente, visto que persiste enquanto a ausência se verifica, a prescrição da ação não deveria correr senão da data em que a permanência cessasse, isto é, da data da captura ou da apresentação do desertor” .

Modernamente, Célio LOBÃO ( 1999:229 ) 7 sintetiza “crime de mera conduta e permanente, ensejando, por este último motivo, a prisão do desertor em flagrante” .
Tenho por mim, atualmente, que esta é a melhor classificação: É permanente porque a consumação se prolonga no tempo e somente cessa quando o desertor se apresenta ou é capturado. E é de mera conduta ( ou de simples atividade ) porque se configura com a ausência pura e simples do militar, além do prazo estabelecido em lei, sem necessidade que da sua ausência decorra qualquer resultado naturalístico. A lei contenta-se com a simples ação ( deserção ) ou omissão ( insubmissão ) do agente.
Eventual classificação da deserção como delito instantâneo é absurda, visto que o crime instantâneo, conforme leciona Júlio Fabbrine MIRABETE 8, “é aquele que, uma vez consumado, está encerrado, a consumação não se prolonga. Isso não quer dizer que a ação seja rápida, mas que a consumação ocorre em determinado momento e não mais prossegue”. São exemplos, dentre outros, o homicídio e a lesão corporal, que consumam-se no exato momento da morte ou da ocorrência do ferimento, pouco importando o tempo decorrido entre a ação e o resultado.


4. TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO DA DESERÇÃO

Ora, independentemente da regra do art. 132 do CPM, para que se possa falar em início da contagem do prazo prescricional é necessário que o desertor tenha se apresentado ou sido capturado. Mais ainda, tenha sido submetido à inspeção de saúde , julgado apto e sido reincluído na Unidade Militar de origem.
Com efeito, o § 2º do art. 125, do CPM, assevera:

“A prescrição da ação penal começa a correr:
a. omissis
b. omissis
c. nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência”.

Ora, a deserção é crime permanente, somente cessando a permanência com a captura do acusado, ou com sua apresentação voluntária.
No Magistério de Julio Fabbrine MIRABETE 9, “nos crimes permanentes, o reconhecimento da prescrição é condicionada à cessação da permanência, de cuja data começa a fluir o prazo. Isso porque, no crime permanente, a ação é contínua, indivisível e o estado violador da lei se prolonga enquanto durar a consumação, dependente da vontade do agente”.
Não é outro o entendimento de DAMÁSIO E. de Jesus, para quem “enquanto não cessa a conduta criminosa do sujeito não começa a correr a prescrição” .
No mesmo sentido, Alloysio de Carvalho Filho, nos Comentários ao Código Penal, Vol. IV, Forense, 1944. 10 .


5. CONTAGEM PRÁTICA DO PRAZO PRESCRICIONAL

O saudoso Ministro JORGE ALBERTO ROMEIRO 11, em lúcida lição esclarece de forma irrefutável:

“A ratio legis é impedir, com o art. 132, a imprescritibilidade dos crimes de deserção, além das idades nele mencionadas, quando começa a declinar a validez exigida para os servidores militares.
Inexistisse o art. 132 e seria imprescritível o crime do desertor, que não fosse capturado ou se apresentasse durante toda sua vida, com evidente ônus para as Forças Armadas.
Exemplifiquemos:
a) Uma praça deserta aos 43 anos. O prazo da prescrição da pretensão punitiva da deserção, levada em conta a pena máxima de 2 anos de detenção cominada para esse crime (art. 187), é de 4 anos (art. 125, VII). Atingindo a praça a idade de 47 anos sem se apresentar ou ter sido capturado, extingue-se a punibilidade de seu crime de acordo com o art. 132.
b) Outra praça deserta aos 22 anos. O prazo da prescrição punitiva de seu crime é o mesmo do exemplo anterior. Aos 30 anos é ela capturada. Apesar de, durante a permanência do crime, haverem decorrido 8 anos, o dobro do tempo da prescrição do exemplo anterior, não há extinção da punibilidade, ainda de acordo com o art. 132. Mas a prescrição da pretensão punitiva, desprezada durante o prazo da permanência da deserção, ex vi do art. 132, começa, entretanto, a correr a partir da cessação dela, ou seja, com a captura da praça.
Esta, submetida a inspeção de saúde, é considerada apta para o serviço militar, nele reincluída e denunciada por deserção (art. 157, §§ 1º e 3º, do CPPM). Recebida a denúncia, é interrompido o prazo da prescrição, que recomeça a correr (arts. 125, §5º, I, do CPM e 35 do CPPM, combinados).” * O grifo e o negrito são nossos.


6.CONCLUSÃO

Após este breve ensaio, e com base nos dispositivos legais existentes, forçoso concluir o seguinte:
- O crime de deserção, por possuir previsão abstrata de uma pena máxima de dois anos de detenção, tem como regra geral de prescrição o art. 125, inciso VI, do CPM, impondo um lapso temporal de quatro anos.
- Além da regra geral, o Código Penal Militar possui uma regra específica, a do art. 132, segundo a qual, a extinção da punibilidade do desertor, mesmo decorrido o prazo do art. 125, VI, irá ocorrer somente aos 45 anos se praça e, aos 60 se oficial. É óbvio que tal regra dirige-se àqueles desertores que estão foragidos – os trânsfugas .
- Sendo a deserção um crime de natureza permanente, cuja consumação se prolonga no tempo, o termo inicial da prescrição somente é contado do dia em que cessou a permanência, vale dizer, do dia em que o desertor foi capturado ou apresentou-se voluntariamente. Mas ainda, do dia em que foi reincluído na Unidade Militar de origem. Uma vez denunciado, desde que recebida a inicial, o prazo prescricional interrompe-se e , naturalmente , recomeça a correr a partir dali.
- Estando reincluído o desertor – e assim denunciado, não existe amparo legal para a contagem do prazo prescricional da regra geral retroagindo-se à data da consumação do delito, quando o prazo da prescrição ainda não começara a correr.

NOTAS:

1.Artigo publicado na Revista Jurídica Consulex, n° 127, Brasília, 30/04/2002.
2.Promotor da Justiça Militar da União. Lotado em Santa Maria/RS.
3.Prescrição Penal, 11ª edição. Editora Saraiva, 1997, p.118.
4.Curso de Processo Penal. Editora Saraiva, 1997, p.89.
5.Direito Penal Militar. Editor Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915:97.
6.Direito Penal Militar. F. Brigniet e Cia-Editor, 1930, p.135
7.Direito Penal Militar. Brasília Jurídica, 1999, p.229.
8.Manual de Direito Penal – Parte Geral. Editora Atlas, 1989, p.129.
9.ob. citada, p. 404.
10.Apud Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, ERT, 5ª edição, 1995,p.1334
11.Curso de Direito Penal Militar - Parte Geral, Editora Saraiva, 1994, p.311/312

 

 


 

*Promotor da Justiça Militar da União. Lotado em Santa Maria/RS. 

 

 

Disponível em: < http://www.jusmilitaris.com.br/?secao=doutrina&cat=2 >. Acesso em: 10/10/06.