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A figura do insubmisso no ordenamento jurídico
brasileiro
Luiza Vieira Sá *
1. Introdução; 2. O tipo penal; 3. O processo e julgamento do insubmisso; 4. A prisão
do insubmisso; 5. A prescrição do crime; 6. Conclusão; 7. Bibliografia
O crime de insubmissão, capitulado no art. 183 do Código Penal Militar, é um
dos mais peculiares delitos previstos neste diploma repressivo penal. Isso
porque, embora seja um crime militar, com previsão apenas no Código Penal
Militar, somente pode ser cometido por civil. Trata-se de crime próprio (2), na
medida em que o sujeito ativo é o civil, convocado à incorporação na
Organização Militar, que deixa de se apresentar na data prevista ou ausenta-se
antes do ato formal de incorporação. Mas para que o civil seja processado
perante a Justiça Militar é necessário que ele seja incorporado às fileiras das
Forças Armadas. Vale dizer que a condição de militar é indispensável para que seja
instaurada a ação penal contra o insubmisso. Em suma: apenas o civil pode
cometer o crime e apenas o militar pode ser processado pelo crime de
insubmissão.
Nos tópicos seguintes, analisar-se-á o delito de forma pormenorizada, de modo a
melhor conhecer e compreender as peculiaridades que envolvem o tipo penal, bem
como a ação penal em desfavor do insubmisso. Outrossim, apontar-se-ão duas
questões que envolvem o delito e merecem maior atenção: a prisão do insubmisso
e a prescrição do crime.
2. O TIPO PENAL
O delito já era previsto no artigo 116 do Código Penal da Armada (1891).
Segundo Soares (apud LOBÃO, 2004, p. 341), de acordo com o mencionado diploma
legal, cometia o crime de insubmissão “[...] o sorteado ou designado,
voluntário e engajado que deixarem de apresentar-se, sem causa justificada,
dentro do prazo que lhes for marcado”.
No diploma repressivo posterior, qual seja, o Código Penal Militar de 1944, o
delito estava capitulado no artigo 131, ao qual era cominada pena de detenção
de quatro meses a um ano.
No atual Código Penal Militar (1969), o crime de insubmissão está previsto em
capítulo próprio (Capítulo I), inserido no Título III, dos Crimes Contra o
Serviço Militar e o Dever Militar, in verbis:
Art. 183. Deixar de apresentar-se o convocado à incorporação, dentro do prazo
que lhe foi marcado, ou, apresentando-se, ausentar-se antes do ato oficial de
incorporação:
Pena – impedimento, de três meses a um ano.
§ 1º. Na mesma pena incorre quem, dispensado temporariamente da incorporação,
deixa de se apresentar, decorrido o prazo de licenciamento.”
§ 2º. A pena é diminuída de um terço:
a) pela ignorância ou a errada compreensão dos atos da convocação militar,
quando escusáveis;
b) pela apresentação voluntária dentro do prazo de um ano, contado do último
dia marcado para a apresentação.
Observa-se que com o Código Penal Militar de 1969 introduziu-se nova modalidade
de pena privativa de liberdade, prevista única e exclusivamente para o crime em
comento, o impedimento (art. 55, alínea d do Código Penal Militar), que sujeita
o condenado a permanecer no recinto da unidade, sem prejuízo da instrução
militar, conforme exposição de motivos n. 8 e artigo 63 do mencionado diploma
legal. (3)
Importante frisar que o impedimento é modalidade de pena privativa de
liberdade. Apesar de ser um tipo de pena ex celam, ou seja, não há recolhimento
à cela, o condenado tem sua liberdade restringida, na medida em que pode
locomover-se somente dentro dos limites da unidade militar, não podendo dela
ausentar-se. E, como não tem ainda adestramento militar, ele fica sujeito à
instrução militar durante o cumprimento da pena.
O bem jurídico que se pretende tutelar é o serviço e o dever militar. Nos
dizeres de Assis (2003a, p. 122), “a tutela pretendida pela Lei Penal Militar é
a normalidade, regularidade e obediência ao serviço militar e ao dever militar
a que todo brasileiro está obrigado por força da Constituição Federal”.
Trata-se de crime formal, na medida em que se consuma com a não apresentação do
convocado na data, local e prazo determinados pela autoridade militar ou
apresentando-se, retira-se do local antes do ato formal de incorporação, ou
ainda, em sua forma equiparada, deixa de se apresentar após o decurso do prazo
de licenciamento. Nesse sentido, os julgados do Superior Tribunal Militar:
CRIME DE INSUBMISSÃO. Crime omisso, de mera conduta, instantâneo e de natureza
formal, que se consuma com a não apresentação do convocado à incorporação na
data e no local determinado, constantes no seu Certificado de Alistamento
Militar (CAM). Argumentos defensórios incapazes, in casu, de ilidir a acusação.
Crime perfeitamente caracterizado em todos os seus contornos. Aplicação dos
verbetes das Súmulas nºs 03 e 07, desta Corte. Apelo não provido. Decisão
unânime. (STM – Apelação n. 1999.01.048281-6-PR, julgado em 01/06/1999,
publicado no DJ em 14/07/1999).
INSUBMISSÃO. Delito de mera conduta que se consuma pela não apresentação do
convocado no local e no prazo previamente determinados, para prestação do
serviço militar obrigatório. O elemento subjetivo insere-se na omissão de fazer
o que estava por lei obrigado. Incidência do verbete sumular nº 07/STM. Recurso
improvido. Decisão majoritária. (STM – Apelação n. 2000.01.048562-9-DF, julgado
em 12/06/2001, publicado no DJ em 23/08/2001).
O elemento subjetivo do crime é o dolo, consubstanciado na vontade livre e
consciente do civil de furtar-se ao serviço militar obrigatório. Já decidiu o
Superior Tribunal Militar que não comete o crime em comento o convocado que se
apresenta em unidade militar diferente da qual fora designado.
O crime de insubmissão somente se tipifica quando o convocado revela o
propósito de não prestar o serviço militar a que está obrigado. A apresentação
do convocado à CR do local em que passou a residir e a sua incorporação em
unidade diversa daquela na qual deveria se incorporar não tipifica o crime de
insubmissão, pois evidencia a vontade do convocado em prestar o serviço militar
a que estava obrigado [Apelação n. 34.627, STM] (LOBÃO, 2004, p. 346).
O Regulamento da Lei do Serviço Militar (Decreto n. 57.654/1966), em seu artigo
3º, item 22, define como insubmisso o
[...] convocado, selecionado e designado para incorporação ou matrícula, que
não se apresentar à organização militar que lhe for designada, dentro do prazo
marcado ou que, tendo-o feito, ausenta-se antes do ato oficial de incorporação
ou matrícula.
Necessário mencionar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
pacificou-se no sentido de que o convocado à incorporação em tiro de guerra que
não se apresenta não comete o crime em comento. (4) Portanto, o conceito de
insubmisso constante do Regulamento da Lei do Serviço Militar aplica-se somente
ao convocado à incorporação, excluindo o convocado à matrícula em tiros de
guerra.
Lobão (2004, p. 346-347) explica com propriedade o posicionamento do Supremo
Tribunal Federal:
[...] a incriminação restringe-se à falta de apresentação para incorporação,
mas não para a matrícula [...]. A conduta incriminadora do art. 183 é deixar de
apresentar-se o convocado à incorporação e não, também à matrícula. Quanto à
primeira, não corresponde à realidade da descrição típica do dispositivo penal.
Com efeito, é elemento estranho ao tipo, a espécie de organização militar. O
que importa é a incorporação [...]. Há órgãos de formação de reserva no qual os
matriculados são incorporados, enquanto outros, como o Tiro de Guerra, não
ocorre a incorporação porque a instrução militar é dada em períodos
descontínuos, horários limitados, apenas o ‘suficiente para o exercício de funções
gerais básicas de caráter militar’ (art. 157, caput, do Dec. 57.754).
E mais adiante, conclui Lobão (2004, p. 348): “Portanto, o aluno do Tiro de
Guerra não comete o crime de insubmissão, única e exclusivamente porque não é
incorporado ao órgão de formação de reserva (Tiro de Guerra) no qual se
encontra matriculado”.
O § 1º do artigo em comento prevê forma equiparada ao caput. Assim, aquele que
for dispensado temporariamente da incorporação e deixar de se apresentar após
decorrido o prazo de licenciamento, também incide no crime em tela. As
situações de dispensa de incorporação estão expressamente previstas no artigo
30 da Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375/1964) e artigos 104 e 105 do
Regulamento da Lei do Serviço Militar (Decreto n. 57.654/1966).
O § 2º traz duas hipóteses que ensejam a diminuição da pena, ambas não
contempladas pela legislação anterior. Na primeira hipótese, a ignorância ou a
errada compreensão dos atos da convocação militar, quando escusáveis, fazem
incidir a redução da pena. A escusabilidade deve ser aferida no caso concreto.
Oportuno mencionar que, nos dias atuais, com o avanço dos meios de comunicação
em massa e as campanhas feitas pelo Ministério da Defesa acerca das obrigações
militares, especialmente na televisão, é cada vez mais difícil o reconhecimento
da incidência deste dispositivo. Ademais, na ocasião da designação, o convocado
deve assinar um termo, a fim de comprovadamente tomar ciência do local e da
data de sua apresentação para incorporação. Se ele se recusar a assinar tal
documento, a autoridade militar competente faz constar a recusa em documento
próprio.
Na segunda hipótese legal, o insubmisso que se apresentar voluntariamente
dentro do prazo de um ano, a contar do último dia marcado para a apresentação,
terá sua pena reduzida em 1/3. Romeiro (1994) assevera que pouco importa as
razões que motivaram o insubmisso a apresentar-se e ressalta que a lei não
exige que a apresentação seja espontânea e sim voluntária.
A jurisprudência tem descaracterizado o ilícito quando há erro da autoridade
militar, nulidades no termo de insubmissão, ou ainda, quando se verifica a
ausência de dolo por parte do conscrito. Nesse sentido, os julgados abaixo
colacionados:
Termo de insubmissão lavrado indevidamente. Desconhecimento pelo conscrito da
data e local para incorporação. Vício da ação administrativa militar. Condição
de refratário do paciente e não de insubmisso. HC conhecido. Concessão da
ordem, anulado o termo de insubmissão. Imediata soltura do paciente, em face da
ilegalidade da prisão. Decisão unânime. (STM - HC n. 33.022-4).
Termo de insubmissão lavrado indevidamente tendo em vista não ter sido o
paciente cientificado do local e da data em que deveria se apresentar para ser
incorporado à fileira do Exército. Inexistência, pois, da conduta típica
descrita no art. 183 do CPM, conhecido o writ e concedida a ordem para anular o
Termo de Insubmissão por falta de justa causa, com o conseqüente trancamento da
Instrução Provisória. Decisão unânime. (STM - HC n. 32.959-5).
Termo de Insubmissão. Erro administrativo. Anulação. Constatada falha de
comunicação entre a 7ª CSM e o 1º RCGd, sem qualquer culpa do Paciente,
porquanto este tinha a sua incorporação adiada, havendo se apresentado
regularmente na Junta, impõe-se a anulação do Termo de Insubmissão
indevidamente lavrado pela Administração Militar. Ordem concedida. Decisão
unânime. (STM – HC n. 2001.01.033639-7).
Oportuno salientar que o crime de
insubmissão é previsto somente em tempo de paz.(5) O delito similar à
insubmissão, em tempo de guerra, seria a falta de apresentação, prevista no
artigo 393 do Código Penal Militar, in verbis:
Art. 393 - Deixar o convocado, no caso de mobilização total ou parcial, de
apresentar-se, dentro do prazo marcado, no centro de mobilização ou ponto de
concentração:
Pena - detenção, de um a seis anos.
Parágrafo único. Se o agente é oficial da reserva, aplica-se a pena com aumento
de um terço.
3. O PROCESSO E JULGAMENTO DO INSUBMISSO
A ação penal do crime de insubmissão possui rito especial, previsto nos artigo
463 a 465 do Código de Processo Penal Militar. Pode-se afirmar que o processo e
julgamento do insubmisso possuem duas etapas: uma administrativa, cujos atos
são presididos pelo militar comandante da Organização Militar e têm como
objetivo reunir documentos para eventual denúncia do sujeito ativo; e outra
judicial, que é a ação penal propriamente dita.
Conforme se depreende do art. 463 do mencionado diploma legal, para viabilizar
eventual propositura da ação penal militar, faz-se necessário um procedimento
prévio, realizado no âmbito da Organização Militar e de competência da
autoridade militar, normalmente o comandante da Organização Militar. É a
chamada instrução provisória de insubmissão (IPI), que tem como peça prefacial
o termo de insubmissão.
Consumado o crime, o comandante ou autoridade correspondente da unidade para
qual fora designado o insubmisso fará lavrar o termo de insubmissão, com a
indicação de nome, filiação, naturalidade e classe à qual pertencer o
insubmisso e a data em que deveria se apresentar. O termo é assinado pelo
comandante ou autoridade correspondente e por duas testemunhas.
O termo de insubmissão é acompanhado por outros documentos, todos de
responsabilidade da autoridade militar, quais sejam, parte de ausência do
conscrito, cópia do boletim interno que publicou o termo de insubmissão, ficha
de cadastro do serviço militar e cópia autêntica do documento que comprova o
conhecimento, pelo conscrito, do local e data de sua apresentação. Tais
documentos constituem a instrução provisória de insubmissão (IPI), que seria
uma espécie de inquérito policial (IPL), pois se destina a fornecer elementos
necessários à propositura da ação penal. Difere do inquérito, no entanto,
quanto à sua dispensabilidade: a IPI é indispensável e o IPL dispensável à
propositura da ação.
A instrução provisória de insubmissão deverá ser remetida à Auditoria Militar
da circunscrição do local em que o insubmisso deveria ter se apresentado.(6)
Uma vez autuada, será dado vista ao representante do Ministério Público
Militar, pelo prazo de cinco dias. Em não sendo requerida nenhuma diligência, o
processo ficará em cartório até a captura ou apresentação voluntária do
insubmisso.
O insubmisso que se apresentar voluntariamente ou for capturado terá direito ao
quartel por menagem(7) , vale dizer que ele não ficará recluso em uma cela, mas
sua liberdade restringir-se-á ao recinto do quartel. O insubmisso deve ser
submetido à inspeção de saúde por uma junta médica. Se considerado incapaz para
o serviço militar, ficará isento da inclusão nas fileiras das Forças Armadas e,
conseqüentemente do processo penal militar, sendo os autos arquivados. Se for
considerado apto para o serviço militar, o insubmisso será imediatamente
incorporado à Organização Militar.
A ata da inspeção de saúde, assinada por dois médicos, bem como o documento
comprobatório da incorporação do insubmisso devem ser remetidas á Auditoria
Militar e juntadas aos autos em cartório. Após, abre-se vista para o
representante do Ministério Público Militar, que poderá requerer o
arquivamento, as diligências que entender necessárias ou oferecer denúncia.
Importante ressaltar que a qualidade de militar é condição de procedibilidade
da ação penal. Vale dizer que, se o insubmisso não for incorporado à Força para
a qual havia sido designado, não poderá ser oferecida denúncia. O crime
subsiste, mas a ação penal não pode ser proposta porque lhe falta uma condição
específica de procedibilidade.
Tourinho Filho (2001, p. 477) ensina que:
[...] das condições de procedibilidade ou da ação, umas são exigidas sempre, e
outras tornam-se necessárias num ou noutro caso. Isto posto, podemos
distingui-las em condições genéricas e condições específicas. As primeiras são
aquelas sempre indispensáveis ao exercício da ação penal e que devem coexistir
(possibilidade jurídica do pedido, legitimidade ad causam e interesse de agir).
As específicas, como a própria denominação está a indicar, são aquelas a que
fica subordinado, em determinadas hipóteses, o direito de ação penal.
Com efeito, a qualidade de militar não integra o tipo, mas constitui condição
de procedibilidade específica, prevista no artigo 464, caput e §§ 1º e 2º do
Código de Processo Penal Militar.
Durante o curso do processo penal, o insubmisso permanece no recinto do
quartel, recebendo instrução militar. A lei estipula um prazo máximo para a
menagem: se o réu não for julgado dentro de 60 dias, a contar de sua captura ou
apresentação voluntária, sem que para isto tenha dado causa, será posto em
liberdade (art. 464, § 3º do Código de Processo Penal Militar).
Conforme já mencionado, o insubmisso, por não ter ainda adestramento militar,
fica sujeito à instrução militar durante o curso do processo e o cumprimento da
pena. O cômputo do tempo da prestação do serviço militar obrigatório inicia-se
somente ao término daquela. Vale dizer que o insubmisso condenado prestará o
serviço militar inicial pelo tempo da pena cominada e, após o cumprimento
desta, será posto em liberdade e terá início o cômputo dos 12 meses da prestação
do serviço militar propriamente dito. O insubmisso tem direito à detração(8) da
pena imposta em relação ao período em que ficou sob menagem no quartel no curso
da ação penal.
O Regulamento da Lei do Serviço Militar (Decreto n. 57.654/66) excetua,
contudo, a prestação do serviço militar inicial pelo insubmisso em algumas
situações, dentre elas, o insubmisso que, após a absolvição ou cumprimento da
pena, tenha adquirido a condição de arrimo de família(9) . Constatada a
condição de arrimo, ele será desincorporado, não prestando o serviço militar
inicial (art. 140, §§ 1º e 5º) e recebendo o Certificado de Dispensa de
Incorporação. Caso já tenha prestado parte do serviço militar, fará jus ao
Certificado de Reservista, de acordo com o grau de instrução alcançado.
É vedada a suspensão condicional da pena ao condenado pelo crime de insubmissão
(art. 617, II, a, do Código de Processo Penal Militar), o que se justifica em
razão da espécie de pena cominada ao delito, qual seja, o impedimento.
Em sede de insubmissão, não existe condenação por revelia. É indispensável,
para o início do processo especial, a presença física do insubmisso. Até
porque, a inspeção de saúde e incorporação do convocado às fileiras é condição
de procedibilidade da ação penal.
Por fim, oportuno mencionar que o artigo 266 do Código de Processo Penal
Militar, que autoriza a cassação da menagem pela autoridade militar, por
conveniência da disciplina, tornou-se inaplicável em razão do disposto no
artigo 464 do mesmo diploma legal, com redação dada pela Lei n. 8.236/1991.
Vale dizer que, com a apresentação ou captura do insubmisso, este passa à
disposição da autoridade judiciária. Por isso, somente o magistrado pode cassar
a menagem, de ofício, mediante representação da autoridade militar ou a requerimento
do Ministério Público Militar.
4. A PRISÃO DO INSUBMISSO
Os termos de insubmissão, lavrados pela autoridade administrativa com fulcro no
art. 463, § 1º, do Código de Processo Penal Militar têm sido reconhecidos como
título válido para a captura e privação da liberdade dos insubmissos, na medida
em que se tem entendido como permissivo constitucional a ressalva para os
crimes propriamente militares, contida no art. 5º, LXV, in verbis: “Ninguém
será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de
autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou
crime propriamente militar, definidos em lei”.
Essa, inclusive, é a posição do Superior Tribunal Militar, consubstanciada no
julgado que abaixo se transcreve:
HABEAS CORPUS. NULIDADE DE TERMO DE INSUBMISSÃO. A não apresentação do
conscrito decorreu de força maior, por se encontrar preso em distrito policial,
desde data anterior à designada para apresentação, cujo fato era do
conhecimento do Comandante da Unidade, mesmo antes da lavratura do equivocado
Termo de Insubmissão. Embora não se inspire justa causa para a ação penal,
continua o Termo referido a ensejar receio de prisão, por ser o
"instrumento legal autorizador da captura do insubmisso" (artigo 463,
§1º, CPPM). Pedido conhecido. Ordem concedida. Decisão unânime. (STM - HC n.
1998.01.033370-3-SP).
A questão que se coloca é que o Código Penal Militar definiu os crimes
militares em tempo de paz e em tempo de guerra (art. 9º e 10, respectivamente),
mas não definiu o crime propriamente militar.
Diante da lacuna legal, socorre-se à doutrina.
Segundo a mais antiga doutrina clássica, baseada no Direito romano, crime
propriamente militar seria aquele que somente por militar poderia ser
praticado, pois consistia na violação de deveres restritos, próprios dos
militares. Seria o crime funcional da profissão militar.(10) Uma outra
corrente, baseada na legislação italiana, considera como crimes propriamente
militares os definidos com exclusividade pela lei penal militar, sem
correspondência na lei penal comum. Para essa corrente, não é necessária a
condição de militar para que o crime propriamente militar se configure.
O direito pátrio, desde os primórdios da legislação repressiva castrense,
manteve-se fiel às suas origens romanas (doutrina clássica), segundo a qual o
crime propriamente militar é aquele que tem como sujeito ativo exclusivamente o
militar. Na legislação penal militar brasileira, a qualidade militar do agente
sempre integrou o tipo, seja explícita, seja implicitamente, através dos
vocábulos comandante, oficial, subordinado, inferior, superior, comando, dentre
outros.
Para Costa (1978), são militares, por natureza, os crimes que atentam contra os
fundamentos das instituições armadas, que constituam uma violação do dever
militar, que ofendam o serviço militar. Assevera, ainda, que puramente militar,
essencialmente militar, exclusivamente militar e propriamente militar são
expressões que se referem às infrações funcionais do militar.
Nonato (apud LOBÃO, 2004) conceitua delito essencialmente militar como sendo
aquele que constitui uma infração do dever funcional do soldado, do dever
específico da condição do soldado e Bandeira (apud LOBÃO, 2004) afirma que
crimes propriamente militares são os que consistem nas infrações específicas e
funcionais da profissão do soldado.
Teixeira (1946, p. 46) assevera que “são chamados crimes propriamente militares
aqueles cuja prática não seria possível senão por militar, por que essa
qualidade do agente é condição essencial para que o fato delituoso se
verifique”.
Para Romeiro (1994, p. 74) são crimes propriamente militares os “definidos
somente nas leis militares, por violarem deveres exclusivamente militares,
turbando a organização das Forças Armadas”.
Lobão (2004, p. 78), por sua vez, conceitua crime propriamente militar como a
“infração prevista no Código Penal Militar, específica e funcional do ocupante
do cargo militar, que lesiona bens ou interesses das instituições militares, no
aspecto peculiar da disciplina, da hierarquia, do serviço e do dever militar”.
Observa-se, pois, que a doutrina predominante no ordenamento pátrio é a que
reconhece o crime propriamente militar como aquele que somente o militar pode
cometer; aquele que é inerente à função e ao cargo militar. Nesse diapasão, a
insubmissão não é crime propriamente militar, uma vez que somente pode ser
cometida por civil, vale dizer, o convocado à incorporação que não se apresenta
no prazo determinado ou ausenta-se antes do ato formal de incorporação.
Considerando o posicionamento doutrinário majoritário no sentido de que a
insubmissão é crime impropriamente militar, à este delito não se estenderia a
permissão constitucional do artigo 5º, LXI. Como explicar, então, a captura do
insubmisso pela autoridade militar, com a conseqüente restrição de sua
liberdade às dependências da Organização Militar?
Para Romeiro (1994), a prisão do insubmisso não decorreria da conceituação do
crime como propriamente militar, mas sim da situação de flagrância do crime. A
prisão decorreria, pois, do próprio Código de Processo Penal Militar (art. 243
e 244, parágrafo único), na medida em que se trata de crime permanente que
autoriza, por si só, a prisão em flagrante delito. No mesmo sentido também se
posiciona Lobão (2004, p. 350): “[...] por tratar-se de delito permanente,
sujeita o insubmisso à prisão em flagrante”. Esta parece ser a justificativa
mais acertada para a prisão do insubmisso.
Ressalta-se que a definição da insubmissão como crime própria ou impropriamente
militar é necessária e importante porque, além do permissivo constitucional
para a prisão nos crimes propriamente militares (art. 5º, LXV), há também os
antecedentes para efeito de reincidência, que não são considerados no caso de
crime militar próprio (art. 64, II, do Código Penal).
5. A PRESCRIÇÃO DO CRIME
A prescrição do crime de insubmissão é diferenciada dos demais crimes militares
e frise-se, bem mais severa.
A prescrição em geral regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade
cominada ao crime e começa a correr no dia em que o delito se consumou (art.
125 do Código Penal Militar). Mas em relação à insubmissão, a prescrição começa
a correr no dia em que o insubmisso atinge a idade de trinta anos (art. 131 do
Código Penal Militar). Como o crime do artigo 183 prevê uma pena de impedimento
fixado entre três meses e um ano, sua prescrição, consoante a regra do artigo
125, VI, ocorrerá em quatro anos.
Observa-se, assim, que a regra especial imposta pelo artigo 131 para a
prescrição do crime sub examine, independe da data em que o crime foi cometido,
pois estabelece como termo inicial da contagem do prazo prescricional a data do
30º aniversário do insubmisso para, a partir desta, conjugar-se com a regra do
artigo 125, inciso VI, do Código Penal Militar.
Destarte, o prazo prescricional para o crime de insubmissão tem como termo
inicial, independente de qualquer outro fator, o aniversário de 30 anos do
insubmisso e a extinção da punibilidade em decorrência da prescrição dar-se-á
no dia em que ele completar 34 anos, por força do disposto no art. 125, inciso
VI, combinado com o art. 131, ambos do Código Penal Militar.
Assim já decidiu o Superior Tribunal Militar:
Ementa Hábeas Corpus – Crime de insubmissão – Extinção da Punibilidade – Regra
especial do art. 131, c/c o art. 125, VI, do CPM. Sendo a insubmissão crime de
natureza permanente, a prescrição, em relação a ele, começa a correr na data em
que cessa a permanência, ou seja, quando o insubmisso que se furtou à
incorporação no devido tempo comparece voluntariamente à unidade militar ou é
capturado (Regra geral do art. 125, § 2º, letra ‘c’ do CPM). No entanto, a
partir do momento em que o insubmisso completa 30 anos, a prescrição tem início
mesmo durante a consumação do referido crime (Regra especial do art. 131 do
CPM). Nesta situação o prazo prescricional só se configura com o advento da
idade. Se a partir deste momento o prazo da prescrição se concretiza, a
punibilidade estará extinta. Decisão unânime. (STM – HC nº 2003.01.033868-3-RS,
Relator Ministro Olympio Pereira Júnior, julgado em 19/02/04).
Assis (2003b, p. 123) afirma que não existe razão, de ordem social ou
institucional, que justifique este rigorismo acentuado na ocorrência do
consagrado instituto da prescrição em relação ao crime de insubmissão:
O lapso temporal para a ocorrência da prescrição – tanto no direito penal comum
como no Direito Penal Militar, está diretamente relacionado com o máximo da
previsto para a pena privativa de liberdade, em cada crime; significa dizer:
quanto maior a pena privativa de liberdade, maior o lapso temporal para a
ocorrência da prescrição.
Observa-se que a regra da prescrição diferenciada para o insubmisso (art. 131
Código Penal Militar) está em visível descompasso com a própria sistemática do
Código Penal Militar ao regular a matéria, o que gera desproporcionalidades
inusitadas, pois, o prazo prescricional para o insubmisso que comete o delito
aos 18 anos de idade acaba por ser maior ou igual ao de diversos crimes
militares muito mais graves, como lesão corporal grave (art. 209, §1º),
seqüestro ou cárcere privado (art. 225), estupro (art. 232), apropriação
indébita (art. 248), estelionato (art. 251), incêndio (art. 268), tráfico de
entorpecentes (art. 290), corrupção passiva (art. 308), falsificação de
documento (art. 311), falsidade ideológica (art. 312), dentre outros.
Assis (2003b) propõe a elaboração de um projeto de lei que revogue o mencionado
dispositivo legal, a fim de que a prescrição do crime de insubmissão (bem como
da deserção, à qual também é dado tratamento prescricional diferenciado e mais
severo) flua no lapso temporal do artigo 125 do Código Penal Militar, conforme
demais crimes militares. Tal medida é, sem dúvida, salutar e necessária a fim
de sanar os descompassos da lei penal militar, adequando o mencionado instituto
à sistemática do Código Penal Militar e do Direito Penal como um todo.
6. CONCLUSÃO
A seara do Direito Penal Militar é um tanto complexa, pois se situa em uma área
híbrida, na qual normas jurídicas regulam relações militares. E embora o
Direito Penal Militar seja uma ciência jurídica, não se pode olvidar que a vida
na caserna é sustentada por princípios próprios. Nesse diapasão, o grande
desafio da Justiça Militar é justamente conseguir equilibrar os valores
jurídicos e os militares, de modo a não permitir que a balança penda mais para
um dos lados.
A sociedade militar é peculiar, possui modus vivendi próprio, calcado,
sobretudo, na hierarquia e na disciplina. Todavia submete-se aos Princípios
Gerais do Direito, amoldando-se ao Ordenamento Jurídico Nacional (Assis, 2005).
E para que as duas questões suscitadas em relação ao crime de insubmissão
amoldem-se ao ordenamento jurídico brasileiro é necessário que sejam discutidas
e revistas.
É necessária a manifestação do Poder Legislativo, no sentido de editar uma lei
que defina quais os crimes propriamente militares, regulamentando, assim, o
art. 5º, LXI da Constituição Federal, de modo a pacificar a questão da
legalidade da prisão do insubmisso. Somente a lei é capaz de uniformizar decisões
nos tribunais militares de maneira absoluta. Se assim não for, o insubmisso
estará sujeito a tratamento diferenciado conforme o entendimento de cada
Tribunal. E esta situação vai diametralmente de encontro ao preceito
fundamental da igualdade, consagrado no caput do art. 5º da Carta Magna.
Igualmente necessária a manifestação do Poder Legislativo na edição de uma lei
que revogue o art. 131 do Código Penal Militar, que está em visível descompasso
com a sistemática do Código Penal e do próprio Código Penal Militar.
Mas isto somente será possível se os operadores do direito insurgirem-se nesse
sentido. O Direito é uma ciência dinâmica, que deve acompanhar a evolução e os
anseios da sociedade, sob pena de tornar-se inócuo, quiçá arbitrário.
7. BIBLIOGRAFIA
ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar - parte especial. 2.
ed. Curitiba: Juruá, 2003a.
______. Direito Militar: aspectos penais, processuais penais e administrativos.
Curitiba: Juruá, 2003b.
______. Os regulamentos disciplinares e o respeito aos direitos fundamentais.
Disponível em:
COSTA, Álvaro Mayrink da. Crime militar. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978.
DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. São Paulo: Forense, 2002.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo dicionário Aurélio da
língua portuguesa.
LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004.
ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar - parte geral. São
Paulo: Saraiva, 1994.
TEIXEIRA, Sílvio Martins. O novo código penal militar do Brasil – Decreto-Lei
n. 6277, de 24 de janeiro de 1944. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 23. ed. São Paulo: Saraiva,
2001. v. 1.
NOTAS:
2 Crime próprio é todo aquele que exige determinada condição ou qualidade do
agente para sua realização típica (DOTTI, 2002).
3 Exposição de motivos ao Código Penal Militar (Decreto-lei n. 1.001, de 21 de
outubro de 1969) n. 8: No capítulo das penas principais, o Projeto introduziu
nova modalidade de pena privativa de liberdade: o impedimento, para o crime de
insubmissão, sujeitando o condenado a permanecer no recinto da unidade, sem
prejuízo da instrução militar.
4 STJ - RHC n. 77272: [...] crime militar. insubmissão. Falta à matrícula em
Tiro de Guerra: inexistência do crime, dada a revogação pelo C. Pen. Militar do
art. 25 da Lei do Serviço Militar (L. 4.735/64), de modo a reduzir a
incriminação à falta de apresentação do convocado para incorporação, mas não
para a matrícula. DJ. 06/11/98.
5 Os crimes militares em tempo de guerra estão elencados no livro II do Código
Penal Militar, mais precisamente nos artigos 355 a 408.
6 A Lei de Organização Judiciária Militar (lei n. 8457, de 04/07/92), em seu
art. 2º, divide o território nacional para efeito da administração da Justiça
Militar em tempo de paz em 12 Circunscrições Judiciárias Militares. São elas:
1ª - Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo; 2ª - Estado de São Paulo; 3ª -
Estado do Rio Grande do Sul; 4ª - Estado de Minas Gerais; 5ª - Estados do
Paraná e Santa Catarina; 6ª - Estados da Bahia e Sergipe; 7ª - Estados de
Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas; 8ª - Estados do Pará, Amapá
e Maranhão; 9ª - Estados do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso; 10ª - Estados do
Ceará e Piauí; 11ª - Distrito Federal e Estados de Goiás e Tocantins; 12ª -
Estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia. A cada Circunscrição Judiciária
Militar corresponde uma Auditoria, excetuadas as primeira (4 Auditorias),
segunda (2 Auditorias), terceira (3 Auditorias) e décima primeira (2
Auditorias).
7 A menagem está prevista nos artigos 263 a 269 do Código de Processo Penal
Militar. No curso do processo penal, ao invés de recolher-se à prisão, o
acusado aguarda o pronunciamento da Justiça Militar em seu domicílio, em
quartel ou em estabelecimento ou sede de organização militar. Via de regra, é
concedida pelo juízo nos crimes cujo máximo da pena privativa de liberdade não
exceda 4 anos, levando em conta também a natureza do crime e os antecedentes do
acusado. Mas o insubmisso, consoante determinação expressa no art. 266, terá o
quartel por menagem. A menagem cessa com a sentença condenatória, independente
do trânsito em julgado.
8 Detração é instituto de direito penal e consiste no abatimento do tempo em que
o sentenciado esteve preso no curso do processo na pena privativa de liberdade
que lhe foi imposta por ocasião da sentença condenatória. Está prevista no art.
42 do Código Penal.
9 Pessoa que ampara uma família, ministrando-lhe os meios de subsistência (FERREIRA,
1986).
10 Dentre as classificações doutrinárias para os crimes previstos no Código
Penal está a do crime funcional, que, consoante ensinamentos de Dotti (2002, p.
174), é aquele cometido por funcionário público no exercício de suas funções.
Trata-se de crime próprio, na medida em que são praticados por aqueles que
detém uma qualidade especial, qual seja, a de funcionário público. Assim, os
crimes propriamente militares seriam crimes funcionais do militar, praticados
por militar no exercício de suas funções.
* Graduada em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul;
advogada militante; defensora dativa do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB,
seccional MS; doutoranda pela USP.
Disponível em: < http://www.jusmilitaris.com.br/?secao=doutrina&cat=2
>. Acesso em: 10/10/06.