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A Belíndia, as testemunhas e o art. 366 do
CPP
Josemar Dias Cerqueira*
A
redação do art. 366 do CPP visa proteger os direitos constitucionais do réu
citado por edital e sem constituição de um advogado, sendo que algumas decisões
recentes têm gerado controvérsias quanto à possibilidade de produção de provas
neste momento processual. Este trabalho abordará, contudo, a ouvida de
testemunhas na situação delimitada pelo art. 366 do CPP:
(...)Se
o acusado, citado por edital, não comparece nem constitui advogado, pode o
juiz, suspenso o processo, determinar produção antecipada de prova testemunhal,
apenas quando esta seja urgente nos termos do art. 225 do Código de Processo
Penal(STF. RHC 83709 / SP - SÃO PAULO. Relator(a): Min. JOAQUIM
BARBOSA.Rel. Acórdão Min. CEZAR PELUSO.Julgamento: 30/03/2004 1ªTurma. Publicação:
DJ 01-07-2005 PP-00056 EMENT VOL-02198-02 PP-00279)
Por
diversas vezes, ao meditar sobre a produção legislativa do Brasil, inclusive
quanto à alteração do art. 366 do CPP, recordo da afirmação de um político
conhecido, que certa vez comparou nosso país a um misto da Bélgica com a Índia:
Belíndia. Destaque-se que na época da frase a Índia ainda não tinha o
desenvolvimento atual.
Mostrando
um lado belga de ser, o art. 366 do CPP visa a proteção dos direitos do
denunciado, determinando, como regra geral, a suspensão do processo, e até do
curso da prescrição, desde que o réu, citado por edital, não tenha constituído
advogado. Garantiu-se, assim, aparentemente, os direitos dos acusados, muitas
vezes condenados sem sequer saber da existência do processo, ainda que tal
situação acontecesse pela ineficácia estatal em localizá-los. A regra admite,
entretanto, a produção de provas urgentes, preocupação compatível com a
finalidade do processo criminal, sempre premido pela proteção do acusado e pelo
resguardo da paz social, abalada pelo crime ocorrido. Norma com preocupações de
primeiro mundo. Norma que poderia estar no direito belga, sem desvalor.
Ressaltando
nosso nível de desenvolvimento, o país, em pleno século XXI, não dispõe de
tradição de prova pericial nos feitos criminais. Quantos operadores do direito
já encontraram fotos e diagramas do local do delito? Quantos bancos de dados
policiais existem que mereçam o nome? Quantos já manusearam um processo com
exames de DNA de material relacionado ao crime? Quantos já viram a cena do
crime devidamente preservada nos termos da legislação (art. 6º,I do CPP)?
Quantos estudaram um reconhecimento de digital devidamente anexado aos autos?
Recentemente
assisti a um episódio de uma série de televisão sobre peritos forenses. Pensei
que estava em Marte. Não, vou escolher um planeta mais distante: me senti em
Plutão. Os peritos encontravam manchas de secreções humanas em locais
imperceptíveis, das quais extraíam material para exame de DNA. As digitais eram
recolhidas aos pedaços, de vários locais, para serem unificadas em programas de
computador. As balas eram comparadas em um banco de dados que informava outros
crimes onde a arma já havia sido utilizada. Com uma simples foto de marca de
pneu de carro se identificava o veículo e seu ano de fabricação. Com um estudo
das marcas dos pés do criminoso se descobria sua altura e peso. Vou parar por
aqui.
Temos
um país pobre e não podemos fingir o contrário. Nesta nação de extensão quase
continental, e todos que militam na área criminal sabem, a prova que condena é
a testemunhal. Gostando-se ou não, esta é a realidade.
Na
visão de alguns, a prova testemunhal só pode ser produzida na situação do art.
366, se obedecer aos requisitos do artigo 225, ambos do CPP. Para estes,
inferindo-se uma demora do processo, o depoimento deve ser efetivado logo,
quando a testemunha vai ausentar-se ou é arriscado esperar sua oitiva, por ser
enferma, por exemplo. Para outros, a prova testemunhal pode ser produzida
antecipadamente sempre, pois os artigos 92 e 93 do CPP a qualificam como de
natureza urgente (os dispositivos tratam da suspensão do processo "após
a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza
urgente."). Para o primeiro grupo, os artigos 92 e 93 do CPP tratam de
réu que foi citado e participa do processo. Para o segundo grupo, se assim
fosse, o artigo 225 do CPP também só se aplicaria ao réu que foi citado, não
podendo ser usado para interpretação do art. 366 do CPP. Mais ainda: para o
primeiro grupo, mesmo quando o réu está presente, o processo já demora e não se
cogita a antecipação da prova testemunhal, enquanto que o segundo grupo
sustenta que com o réu presente tem-se uma perspectiva próxima de realização do
ato, ausente na suspensão do processo, daí se antecipar a oitiva.
Não
se encontrará a solução pela leitura isolada dos dispositivos do nosso vetusto
CPP. De fato, a prova testemunhal é de natureza precária, se esmaecendo com o
decurso do tempo, fato de muito conhecido por todos. Se o legislador, contudo,
considerasse esta prova como especial em caso de suspensão por força do art.
366 do CPP, teria destacado sua produção, o que não fez, embora já não se
espere tanto esmero de nossos congressistas.
A
questão se exaure na necessidade de proteção do réu ausente, quanto aos
princípios constitucionais aplicados ao processo e as regras pertinentes às
providências de natureza cautelar.
Em
primeiro lugar, não considero o artigo 225 do CPP como exaustivo. A prova
testemunhal se justifica em outros casos, como, aliás, se verifica na produção
regida pela medida cautelar do art. 847 do CPC, análoga por similitude:
Produção
antecipada de prova. Exegese mais liberal do art. 847 do CPC, viabilizando-se o
pedido de produção antecipada de provas, consistente na oitiva de testemunha e
depoimento pessoal, não só fulcrada no critério de urgência e necessidade, mas
acrescendo o de conveniência. (Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
APC2784792 DF ACÓRDÃO: 59142. 3a Turma Cível. RELATOR: NANCY ANDRIGHI. Diário da
Justiça do DF: 26/08/1992 Pág: 25.792)
Em
segundo lugar, a antecipação da prova no caso do art. 366 do CPP acontece em
situação especial e far-se-á com a presença de defensor designado para tal fim.
Essa situação não é nova no dia-a-dia forense. Se o defensor do réu, por
exemplo, não comparece, nomeia-se um advogado dativo para acompanhar o ato processual,
nos termos do art. 265 do CPP. Muitas vezes, tanto o réu como seu advogado não
comparecem às audiências e nem por isso se deixa de produzir a prova. Alguns
dirão que foi opção do réu, que não pode optar no caso do art. 366 do CPP, mas
o que falar das testemunhas que são ouvidas por carta precatória? Os tribunais
superiores entendem que é dever do réu comparecer diariamente ao cartório para
procurar saber quando o ato será praticado (Súmula 273 do STJ):
Não
há necessidade de nova intimação do advogado do réu da data da audiência de
inquirição de testemunha, a ser realizada no juízo deprecado, se ele foi
intimado da expedição da carta precatória. Caberia a ele acompanhar a
tramitação da precatória e certificar-se do dia designado pelo juízo deprecado
para a realização da referida audiência(STJ.RHC 10.451-SP, Rel. Min. José
Arnaldo da Fonseca, julgado em 3/10/2000)
O
papel do defensor nomeado (art. 366§1° do CPP), inclusive, é o de indicar
provas não requeridas pela acusação, já que inexiste defesa prévia. Surge daí a
possibilidade de que seja ouvida uma testemunha não arrolada pela acusação e
que pode beneficiar o réu, materializando o caráter singular desta produção
antecipada de provas, a exigir, também, uma apreciação singular.
Em
terceiro lugar, toda e qualquer prova pode ser repetida, ou seja, o réu sempre
pode requerer, fundamentadamente, nova prova e mais ainda neste caso: a
prova deverá ser repetida, se factível e desejada. Por que? Porque não
sendo caso de revelia, o réu não recebe o processo no estado em que se encontra
(art. 366§2° do CPP). Aconteceu, apenas, uma produção antecipada de prova, à
semelhança do art. 846 do CPC. E mais: o réu não acompanhou sua produção e pode
ter interesse em instruir seu defensor para determinados pontos, desconhecidos
do advogado dativo. Imaginemos a situação: o feito é suspenso e acontece a
produção de alguma prova urgente, tipo oitiva de uma testemunha da acusação.
Dois anos depois o réu é localizado. O processo segue de onde? Do
interrogatório! Depois vem a defesa prévia, testemunhas de acusação e de
defesa, de regra. Neste caso, deve o magistrado questionar a defesa se deseja
repetir a oitiva da testemunha, caso isto ainda seja possível. A medida
proporciona ampla defesa, direito constitucional do réu. Podem surgir
divergências entre os dois depoimentos? Claro que devem surgir, e isto é
salutar! O réu traz elementos novos que podem, por exemplo, concluir pela
veracidade ou não do testemunho, viabilizando a eterna busca da verdade real.
Por
último, várias provas são produzidas sem o conhecimento do réu, ainda na fase
inquisitorial e as mesmas são aceitas como válidas para futura condenação
(apreensões, perícias, etc..), restando ao réu questiona-las posteriormente, no
chamado "contraditório diferido"("As nulidades no
Processo Penal", Malheiros, 1993. p.129 – citado pelo TACRIM-SP na AP
905.243/4 – 16ªCam. Rel. Dyrceu Cintra). Relembro, ainda, a posição já
manifestada pelo STF quanto às testemunhas ouvidas apenas no inquérito
policial, hábeis a lastrear uma condenação(STF. HC 73.513-4. 1ª Turma. Rel
Min Moreira Alves. J 26.03.1996. RT 740/527), ainda que seja uma posição
constitucionalmente questionável.
Na
verdade, a situação de urgência colocada no artigo 366 do CPP pode até guardar
alguma relação com outros dispositivos do Código de Processo Penal, mas não há
uma sobreposição ou prevalência de regras para a sua realização. A simples
ausência do depoente, mencionada no art 225 do CPP, não justifica a antecipação
da produção da prova. A testemunha, por exemplo, pode até mudar de domicílio e
o fato não caracterizar urgência na realização da prova. Por outro lado, a
testemunha pode permanecer na mesma comarca e ainda assim justificar sua oitiva
antecipada. Diga-se, por exemplo, que foi arrolada uma testemunha, que pela
fundamentação no requerimento da parte, possa ser adjetivada como de
canonização, isto é, daquelas que só sabem que o réu ou vítima é semelhante à
falecida Madre Teresa de Calcutá: pessoa angelical, pura e sem defeitos.
Sustente-se, ainda, que essa testemunha vai residir em outro município. Não se
justifica a produção antecipada da prova nos termos imaginados para o artigo
366 do CPP: a prova não é urgente, o depoimento, colhido hoje ou daqui a cinco
anos, não interfere no processo, pois tem natureza acessória ao mérito da lide.
Para aqueles que enxergam nas decisões do STF uma rigidez plena, a prova se
justifica, segundo o art. 225 do CPP.
Sob
outro prisma, imagine-se uma testemunha visual, que presenciou os atos, viu e
ouviu o disparar da arma e o grito da vítima. Essa testemunha comparece e
afirma que já sofreu dois atentados e que corre risco de vida, mas que não está
disposta a desaparecer de sua comunidade, ingressando nos ainda parcos
programas de proteção à testemunha. Se formos adeptos da rigidez das recentes
interpretações, a testemunha não será ouvida antecipadamente. Não parece crível
garantir que a testemunha será protegida pela atuação regular do Estado quanto
à segurança pública.
Fico
feliz que não se tenha defendido, ainda, a aplicação do artigo 224 do CPP(obrigação
da testemunha comunicar ao juízo mudança de endereço, sob "as penas de seu
não comparecimento"), que nivela a testemunha ao criminoso.
Inobstante
tudo o que foi dito, juízes, promotores e advogados devem ser criteriosos na
oitiva de testemunha sob o manto do artigo 366 do CPP. Não é qualquer
testemunha. É a testemunha relevante, significativa para a comprovação da
autoria e/ou da materialidade, ou, ainda, negativa de ambas, que esteja cercada
de alguma característica que justifique sua oitiva antecipada, devendo tal
circunstância ser obrigatoriamente declarada no requerimento para sua oitiva.
Uma testemunha com 20 anos não pode ser ponderada da mesma forma que uma
testemunha com 70 anos. Uma testemunha que não conhecia as partes e só viu a
vítima sair do prédio com uma faca nas costas não pode ser igualada àquela
outra que ouviu o diálogo e viu o homicídio em seguida. Não existe regra e não
existe exceção. O que deve existir é bom senso e ponderação na análise de cada
caso, de cada testemunha e de cada processo.
Extraem-se
duas cautelas na produção de provas no termos do art. 366 do CPP: a primeira é
que o pedido exige contraditório. Se a acusação quer a prova, o defensor
nomeado tem que se manifestar sobre ela e vice-versa. A segunda regra é que o
deferimento deve ser acompanhado da ressalva quanto à sua futura repetição, se
possível, para complementação dos interesses do réu.
Resumidamente
falando, não se pode generalizar a produção da prova testemunhal, mas não se
pode cristalizar a sua proibição, sob pena de se prejudicar a busca da verdade
e os interesses do próprio réu na obtenção da medida certa da sua participação
no que lhe é imputado.
*Juiz de Direito em Rio Real (BA)
CERQUEIRA, Josemar Dias. A Belíndia, as testemunhas e o art. 366 do CPP . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1195, 9 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9028>. Acesso em: 09 out. 2006.