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A criminologia crítica e a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no HC nº 81.611-8
Manuella Mazzocco*
*Advogada em Concórdia (SC), pós-graduanda em Direito Tributário
1.INTRODUÇÃO
O
presente trabalho visa fazer uma breve análise, com auxílio das idéias
defendidas pela criminologia crítica contemporânea, da posição adotada pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento do habeas corpus nº 81.611-8,
publicado no Diário da Justiça em 13.05.2005.
A
Casa, por maioria, entendeu que, embora não esteja a denúncia condicionada à
representação da autoridade fiscal, falta justa causa para a ação penal pela
prática do crime tipificado no art. 1º da Lei 8.137/90 enquanto não haja
decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, uma vez que se
trata de crime de resultado e que o crédito tributário só existe a partir do
lançamento definitivo.
2.O
JULGAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HABEAS CORPUS Nº 81.611-8
–
O objeto do habeas corpus
O
writ constitucional em comento foi impetrado em favor do empresário Luiz
Alberto Chemin, sócio majoritário e gerente da Cohapro Consultoria de Imóveis
S/C Ltda. e diretor vice-presidente da Chemin Construtora S.A., com o objetivo
de trancar ação penal contra ele movida pelo Ministério Público Federal, cuja
denúncia relatava a ocorrência de crime previsto no art. 1º, incisos I e II da
Lei 8.137/90 combinados com o art. 71 do Código Penal.
Argumentou
o impetrante que a existência do débito tributário estava sendo discutida na
esfera administrativa e que o crime constante no art. 1º da Lei 8.137/90 é
crime de resultado, motivo pelo qual não haveria justa causa para a ação penal
enquanto não houvesse decisão administrativa definitiva determinando se houve
de fato redução ou supressão do tributo.
–
Os argumentos levantados pelos Ministros do STF
O
julgamento teve início com o voto do relator Min. Sepúlveda Pertence que, de
início, reconheceu ser o delito tipificado no art. 1º da Lei 8.137/90 crime de
resultado. Em razão disso, entendeu ser indispensável para a propositura da
ação penal o término do procedimento administrativo fiscal, onde se estaria
discutindo a existência, ou não, do débito tributário. Defendeu, ainda, a
titularidade do Ministério Público para instaurar a ação penal nos crimes desta
natureza, sendo a ação penal pública incondicionada, embora dependa da
implementação do que chamou de "condição objetiva de punibilidade",
ou seja, a certeza da supressão ou redução do tributo. Por fim, concedeu a
ordem para trancar a ação penal. Foi acompanhado pelo Ministro Gilmar Mendes.
A
Ministra Ellen Gracie, após pedir vista dos autos para análise, apresentou uma
análise crítica do caso em debate. Ressaltou aos colegas que o paciente se
valeu de todos os direitos que lhe assegura a legislação, tendo adiado por
todas as formas as definições que permitiriam dar andamento à ação penal.
Enfim, fez uso de todos os recursos possíveis até chegar à Suprema Corte com o
pedido de habeas corpus.
Discordando
do voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence, a Ministra afirmou não se
filiar à corrente que entende ser o delito do art. 1º da Lei 8.137/90 crime de
resultado, defendendo a tese de que não há necessidade de se apurar resultado
certo ou líquido para que o Ministério Público tenha justa causa para a
instauração da ação penal. Asseverou que não seria razoável imaginar que o
legislador que ampliou a penalidade para o delito em questão tenha, no mesmo
ato, inviabilizado a persecução criminal, condicionando a ação penal ao término
do processo administrativo fiscal. Negou a ordem pleiteada pelo impetrante.
Seguindo
o entendimento do voto do relator, o Ministro Nelson Jobim ressaltou a
existência do direito de defesa constitucional e, de outro lado, a
não-dependência do Ministério Público da requisição, da denúncia ou da
representação feita pelo Fisco, além da extinção da punibilidade com o
pagamento antes do recebimento da denúncia. Defendeu a conciliação na aplicação
das três regras, assegurando a prevalência à norma constitucional da ampla
defesa. Concedeu a ordem.
O
Ministro Joaquim Barbosa, após pedir vista dos autos, teceu alguns comentários
acerca dos votos proferidos pelo Min. Sepúlveda Pertence e Min. Ellen Gracie.
Afirmou ser do entendimento que o delito imputado ao paciente se trata de crime
material, não concordando, no entanto, com o Min. Pertence, quando este atribui
ao lançamento definitivo a natureza jurídica de condição objetiva de
punibilidade.
Defendeu
o argumento de que a decisão da autoridade administrativa acerca da impugnação
do contribuinte poderá ter duas naturezas distintas: se indeferir a impugnação
e confirmar a existência do débito, constituirá um elemento adicional de
comprovação da materialidade do crime; se julgar procedente a impugnação,
excluirá a tipicidade. A solução está prevista no art. 93 do CPP, consistindo em
questão prejudicial heterogênea. Dessa forma, o Ministério Público poderá
oferecer a denúncia e o juiz, diante da questão prejudicial, determinar a
suspensão do processo e do prazo prescricional até que se resolva a questão na
esfera administrativa. Acrescentou que o pagamento ou a decisão administrativa
que nega a existência ou exigibilidade do tributo, a qualquer momento da ação
penal, extingue a punibilidade nos crimes tributários, por força do §2º do art.
9º da Lei 10.684/2003, em nada prejudicando o impetrante. Nessa linha de
raciocínio, negou a ordem.
O
Min. Carlos Ayres Britto, seguindo os votos proferidos pela Min. Ellen Gracie e
Joaquim Barbosa, negou a ordem. Todos os demais a concederam, resultando no
trancamento da ação penal instaurada pelo Ministério Público Federal. O acórdão
restou assim ementado:
"Crime
material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo
pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa
para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a
sua propositura pela falta do lançamento definitivo.
1.Embora
não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571),
falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º
da L 8137/90 – que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão
definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o
lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento
normativo do tipo.
2.Por
outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela
satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95,
art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que,
pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que
a lei mesma lhe propicia pra questionar, perante o Fisco, a exatidão do
lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às
agruras de toda sorte do processo criminal.
3.No
entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo
administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a
ordem tributária que dependa do lançamento definitivo".
3.A
CRIMINOLOGIA CRÍTICA E A POSIÇÃO DO STF NO HC 81.611-8 – DIREITO PENAL DESIGUAL
Embora
a matéria tratada seja objeto de muita polêmica – de um lado a doutrina
tributarista e os interesses político-econômicos dos "senhores do
momento" [01], e de outro os defensores da titularidade
exclusiva do Ministério Público para propor a ação penal nos crimes contra a
ordem tributária – entendo que a posição tomada pelo Supremo no julgamento do
HC 81.611-8, longe de traduzir aspectos jurídico-filosóficos da teoria do
direito penal, reforçou a tese defendida pela criminologia crítica de que o
sistema punitivo está organizado com o objetivo de defender a classe dominante.
A
Suprema Corte conseguiu, adotando "inédita ginástica hermenêutica em prol
dos sonegadores e em detrimento da coletividade" [02],
criar empecilhos à atuação do Ministério Público em relação aos chamados
"crimes do colarinho branco". Condicionou o oferecimento da denúncia
ao término do processo administrativo fiscal – ao chamado "lançamento
definitivo" – sem definir ao certo se este consiste em condição objetiva
de punibilidade ou elemento normativo do tipo.
Embora
tenha reconhecido que os crimes previstos na Lei 8.137/90 são de ação penal
pública incondicionada (conforme julgamento na ADIn MC 1571), a Corte
reconheceu a ausência de justa causa para a ação penal enquanto não tiver sido
encerrado o processo administrativo fiscal, vinculando a atuação do Ministério
Público, titular da ação penal, à atuação nem sempre eficiente dos Órgãos
Fazendários.
Ao
frear a atuação do Ministério Público, e ainda que tenha se posicionado pela
suspensão do prazo prescricional, a decisão da Corte Suprema concretizou,
através do acórdão citado, as idéias defendidas pela criminologia crítica,
deixando explícito que o sistema penal não é igual para todos.
Nessa
linha, Roberto da Silva Passos [03] sintetizou, com brilhantismo, os
princípios norteadores do pensamento da criminologia crítica ao afirmar que:
"A
Nova Criminologia parte da idéia de sociedade de classes, entendendo que o
sistema punitivo está organizado ideologicamente, ou seja, com o objetivo de
proteger os conceitos de interesses que são próprios da classe dominante.
(...). O sistema destina-se a conservar a estrutura vertical de dominação e
poder, que existe na sociedade, a um tempo desigual e provocadora de
desigualdade. Isso se demonstra pelo caráter fragmentário do Direito Penal,
que pune intensamente condutas que são típicas dos grupos marginalizados e
deixa livre de pena comportamentos gravíssimos e socialmente onerosos, como,
por exemplo, a criminalidade econômica, só porque seus autores pertencem a
classe hegemônica e por isso devem ficar imunes ao processo de criminalização.",
grifei.
Alessandro
Baratta, um dos mais brilhantes criminólogos da atualidade, nos traz os fatores
que explicam a escassa medida em que a criminalidade do colarinho branco é
perseguida [04]:
"Trata-se,
como se sabe, de fatores que são ou de natureza social (o prestígio dos autores
das infrações, o escasso efeito estigmatizante das sanções aplicadas, a
ausência de um estereótipo que oriente as agências oficiais na perseguição das
infrações, como existe, ao contrário, para as infrações típicas dos extratos
mais desfavorecidos), ou de natureza jurídico-formal (a competência de
comissões especiais, ao lado da competência de órgãos ordinários, para certas
formas de infrações, em certas sociedades), ou, ainda, de natureza econômica (a
possibilidade de recorrer a advogados de renomado prestígio, ou de exercer
pressões sobre os denunciantes, etc.)."
O
autor apresenta algumas proposições, ao fazer uma crítica ao direito penal, que
constituem a negação radical do mito do direito penal como direito igual,
concluindo que [05]:
"a)
o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão
igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens
essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;
"b)
a lei penal não é igual para todos, o ´status´ de criminoso é distribuído de
modo desigual entre os indivíduos;
"c)
o grau efetivo de tutela e a distribuição do ´status´ de criminoso é
independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei,
no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação
criminalizante e da sua intensidade.
"A
crítica se dirige, portanto, ao mito do direito penal como o direito igual por
excelência. Ela mostra que o direito penal não é menos desigual do que os
outros ramos do direito burguês, e que, contrariamente a toda aparência, é o
direito desigual por excelência."
Tem
razão o autor quando afirma que o status de criminoso independe da
proporção do dano causado e da gravidade das infrações. Infelizmente, a
sociedade se sensibiliza muito mais diante de um caso de assassinato, e cultiva
um ódio muito maior pela Susane von Richthofen, do que por uma notícia de crime
de sonegação fiscal, onde um empresário deixa de recolher, de forma
fraudulenta, milhões de reais, o que, por via transversa, acaba matando
milhares de pessoas através da falta de assistência social não prestada pelo
Estado em razão da baixa arrecadação.
A
decisão da Corte Suprema no HC 81.611-8, ao postergar a ação do Ministério
Público para momento muito posterior à ocorrência do crime, deixou evidente que
a norma penal não mais se presta como meio de prevenção geral e especial. Um
lapso temporal, que pode chegar a mais de dez anos entre a conduta do agente e
a denúncia, torna a reprimenda inútil, retirando o caráter também punitivo da
pena.
O
entendimento dos Ministros, salvo algumas lúcidas cabeças, demonstra que a
Corte Suprema, apesar de, estruturalmente, fazer parte do Poder Judiciário,
está se afastando das teorias do direito, utilizando-se, nas suas decisões, de
critérios político-econômicos, que acabam por contribuir, cada vez mais, com a
impunidade que assola o país.
4.CONCLUSÃO
A
partir desta brevíssima análise crítica da posição do Supremo Tribunal Federal
no julgamento do HC 81.611-8, a conclusão a que se chega é de que o país está
sendo dominado por uma parcela ínfima da população que detém o poder econômico
e, por isso, não "pode" ser tachada de criminosa. A simples
existência do texto da Lei nº 8.137/90 não é suficiente para deter os
sonegadores se a operacionalização da norma encontra entraves na própria
jurisprudência do Supremo.
O
Ministério Público, titular da ação penal, vem demonstrando ser um órgão
extremamente comprometido com a busca da verdade real e muito eficiente nas
investigações que lhe competem. Tolher o exercício da ação penal, condicionando
o mesmo à boa vontade da Administração Pública, com todo o interesse político
que a permeia, é inviabilizar a aplicação da lei penal àqueles que cometem os
crimes de maior gravidade no país.
5.
BIBLIOGRAFIA
AREND,
Márcia Aguiar; LONGO, Analú Librelato. O Supremo Tribunal Federal e os Novos
Cenários de Mitigação do Poder Jurisdicional no Brasil: o Direito Penal
Tributário Aplicado pela Administração Tributária. Revista Jurídica do
Ministério Público Catarinense, n. 5, jan/abr. 2005, p. 63.
BARATTA,
Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed.,
Freitas Bastos, 1999, p. 102.
PASSOS,
Roberto da Silva. Elementos de Criminologia e Política Criminal. São
Paulo, Edipro, 1994.
PIMENTEL,
Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. São Paulo, RT, 1983, p.
41.
NOTAS
01
PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. São Paulo, RT,
1983, p. 41.
02
AREND, Márcia Aguiar; LONGO, Analú Librelato. O Supremo Tribunal Federal e
os Novos Cenários de Mitigação do Poder Jurisdicional no Brasil: o Direito
Penal Tributário Aplicado pela Administração Tributária. Revista Jurídica
do Ministério Público Catarinense, n. 5, jan/abr. 2005, p. 63.
03
In Elementos de Criminologia e Política Criminal. São Paulo, Edipro, 1994.
04
In Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed., Freitas
Bastos, 1999, p. 102.
05 Ob. Cit., p. 162
MAZZOCCO, Manuella. A criminologia crítica e a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no HC nº 81.611-8. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8952. Acesso em: 20 set. 2006.