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Afeganistão, Guantánamo, Iraque e a suposta
defesa de direitos humanos:
reflexões sobre o direito
internacional público atual e as lições de Nuremberg
Sérgio Augusto G. Pereira de Souza *
Sumário:
I – Introdução ; II – Preliminares , a) o contexto histórico. , b) a
jurisdição do Tribunal. ; III – Acusação, a) os tipos penais surgidos, b) o
indiciamento; IV – Questões Jurídicas Principais, a) a legalidade e a
retroatividade., b) as possíveis convenções de direito internacional
aplicáveis., c) a responsabilidade internacional do indivíduo., d) a hierarquia
funcional.; V – Considerações e Conclusões Finais; Bibliografia
I –
Introdução
No
cenário internacional atual é possível vislumbrar ocorrências que transcendem o
aspecto momentâneo a elas atribuído pelos meios de comunicação, uma vez que se
baseiam ou se confrontam com acontecimentos e paradigmas jurídicos já
estabelecidos com anterioridade pelo Direito Internacional.
Tal
é o que ocorre com o julgamento levado a cabo na Haya, no qual é apresentado
como indiciado o senhor Milosevic, assim como com as consequências dos atos
terroristas sucedidos em 11 de setembro de 2001, em especial com a intervenção
militar feita pelos Estados Unidos no Afeganistão, pela eventual nova
intervenção no Iraque e pela possibilidade de julgamento militar dos
prisioneiros detidos em Guantánamo, na base militar americana de Cuba.
O
objetivo deste estudo, então, é demonstrar a importância do Tribunal Militar de
Nuremberg para o desenvolvimento de conceitos relacionados ao direito
internacional atual que sustentam, influem ou confrontam, os acontecimentos
mencionadas no parágrafo anterior, em especial com respeito à proteção dos direitos
humanos e à responsabilização internacional individual das pessoas.
Neste
sentido, parte-se de uma pequena analise do contexto histórico antecedente ao
Tribunal de Nuremberg para, então, verificar-se a principal questão preliminar
do caso, ou seja, a jurisdição de tal Tribunal.
A
partir deste ponto, é feita uma verificação do estabelecimento formal da
acusação, com os tipos penais que tiveram que ser criados e o indiciamento
feito, para, depois, de uma forma conjunta, verificar-se as principais teses
plantadas pela defesa dos acusados e, também conjuntamente, as decisões do
Tribunal com respeito a cada uma dessas teses.
Necessário
deixar claro desde o principio que este estudo foi feito tendo em conta duas
premissas fundamentais e pessoais. A primeira se estabelece no sentido de que o
Tribunal desenvolveu suas funções estritamente baseado em critérios jurídicos,
como vai ser explicado mais a frente, ou seja, aqui se refuta, em princípio, a
função política do Tribunal, que seguramente também tem sua importância. A
segunda premissa diz respeito a uma concepção pessoal dos direitos humanos e,
por consequência, da possibilidade da pessoa humana vir a ser considerada como
um sujeito pleno de direito internacional.
Com
efeito, esta segunda premissa anterior e pessoal é colocada de maneira que,
para este estudo, o desenvolvimento dos ordenamentos jurídicos internacional,
supranacional e nacionais, hoje, não é possível sem uma perspectiva direta de
aplicação dos direitos fundamentais das pessoas, sejam quais sejam suas
gerações, até porque as gerações de direitos humanos não são compartimentos
estanques que não se meclam, mas são integradas e complementares umas das
outras e conduzem a uma verdadeira universalização dos direitos humanos, sob o
respeito fundamental à dignidade da pessoa humana (1). Este respeito
fundamental conduz, necessariamente, à consideração de que a pessoa humana deve
ser compreendida como um dos plenos sujeitos de direito internacional.
Sob
estas considerações, a questão final que deve ser respondida por este estudo é:
qual a importância do Tribunal de Nuremberg para o desenvolvimento do
ordenamento jurídico internacional e, especificamente, para a construção do
sistema internacional de proteção dos direitos humanos?
Pode
ser adiantado, desde já, que a hipótese que responde à questão antes
mencionada, e que será estabelecida na conclusão deste estudo, vai afirmar a
importância fundamental dos trabalhos do Tribunal de Nuremberg para o Direito
Internacional latu senso, tendo em conta os conceitos e fundamentos por
primeira vez explicitamente formulados pelo mesmo, fundamentais ao
desenvolvimento atual do Direito Internacional, como aqui será visto.
II –
Preliminares
a)
o contexto histórico -
É
possível dizer que os acontecimentos históricos que desembocaram na criação de
um Tribunal Militar Internacional como o de Nuremberg antecederam à própria
ocorrência da II Guerra Mundial.
De
fato, ao final da I Guerra Mundial, em face das diversas violações do ius in
bellun perpetradas pelo regime alemão, as Nações vencedoras da Guerra
fizeram constar do tratado de Versalhes (arts. 227 e 228) dispositivos que
possibilitariam o julgamento de dirigentes e pessoal militar alemão que
houvessem cometido atos de violação às "leis e costumes da guerra",
ou a "moralidade e santidade dos tratados".
Com
base en tais dispositivos, foi solicitada à Holanda a extradição do
"Kaiser Wilhelm II" para julgamento e, à Alemanha a extradição de
diversos lideres militares. Todas as solicitações foram negadas, havendo apenas
a condenação dos militares, de forma branda, pela própria Alemanha.
Tais
fatos provocaram repulsa internacional e motivaram a que, já no decorrer da II
Guerra Mundial, houvessem declarações das Nações Aliadas no sentido de que os
crimes de guerra e atrocidades cometidas seriam exemplarmente julgados (2).
O
Tribunal de Nuremberg foi estabelecido em 20/11/1945 e sob seus auspicios foram
julgados 22 membros de governo alemão e militares de comando.
A
formação do Tribunal de Nuremberg se deu através de um Convênio Internacional,
celebrado entre os EUA, o governo provisório da França, o Reino Unido e a URSS,
firmado em Londres em 08/08/1945 e aberto à adesão de todas as nações (3).
Desta forma a localização geográfica dos acusados não seria obstáculo à
realização da Justiça. Ademais, tal documento estabeleceu o fundamento legal
para o indiciamento dos acusados.
O
citado Convênio possuía, ainda, em seus anexos, os Estatutos do próprio
Tribunal através do qual se estabelecia os aspectos formais procedimentais. Em
quanto à sua composição, o Tribunal era formado por juízes do mais alto grau,
escolhido sob critérios de excelência e de supranacionalidade (4). A
sentença final foi prolatada em 30/09/1946 (5).
Após
o julgamento principal acima referido, outros 13 julgamentos foram realizados
por cortes sediadas em Nuremberg (6), baseadas nos estatutos do
Tribunal aqui discutido (7), mas conduzidas pelas forças de ocupação
da Alemanha sem um caráter de excelência supranacional em sua formação, como
estabelecido para a Corte principal (8).
Efetivamente
o Tribunal de Nuremberg representou um marco, tanto político quanto histórico e
jurídico. Seu estabelecimento e o desenvolvimento de suas atividades até hoje
sucitam criticas e elogios, seja no campo político, seja no campo jurídico.
Muitos
criticam o Tribunal compreendendo-o como tendo sido um palco de vencedores
contra vencidos; ou porque os Aliados teriam cometido práticas semelhantes às
dos integrantes do Eixo que não foram julgadas; ou ainda afirmando que o mesmo
nunca poderia ser considerado imparcial uma vez que os juízes eram das
potencias vencedoras (9).
Partindo
de uma opinião pessoal, contudo, neste estudo se considera que tais críticas
são dotadas de um caráter muito mais político que jurídico e estes dois
aspectos não podem ser mesclados.
Do
ponto de vista jurídico, que é a vertente deste pequeno estudo, o objetivo aqui
é conseguir demonstrar que o Tribunal de Nuremberg enfrentou todas as questões
passíveis de críticas jurídicas, dando soluções jurídicas às mesmas, o que, por
consecuência o trasformou en um fator de desenvolvimento e reconhecimento do
direito internacional então vigente, ainda aproveitável nos acontecimentos que
se ocorrem nete ano de 2002 e que já foram mencionados na introdução.
b)
a jurisdição do Tribunal –
Em
relação às questões enfrentadas pelo Tribunal, necessario dizer que a questao
preliminar, proposta pela defesa dos acusados, foi exatamente no sentido de
negar a legalidade da existencia do Tribunal e de sua jurisdição.
Assim,
questionou-se se as potencias vitoriosas teriam o direito de constituir tal
Tribunal, se havería suporte legal no direito internacional então vigente para
a sua criação e para a responsabilização individual de pessoas, ou seja, qual
seria a competência jurisdiccional do Tribunal.
No
mesmo sentido se baseia hoje a primeira linha de defesa do senhor Milosevic
perante a Carte de Haya, questionando a possibilidade jurídica dos países do
mundo, por meio das Nações Unidas e em especial por seu Conselho de Segurança,
estabelecerem um tribunal "ad hoc" para julgar os responsáveis pelas
barbaridades ocorridas na antiga Ioguslavia, tendo em conta as competencias
deste mesmo Conselho de Segurança.
A
tais questões o Tribunal de Nuremberg, ao seu tempo, repondeu exclusivamente
baseado em seu Convênio Constitutivo e no direito internacional então vigente
afirmando, específicamente, que é universalmente reconhecido que qualquer
nação, mesmo que isoladamente, tem o direito de constituir cortes especiais
para a correta e justa aplicação do Direito, estabelecendo suas regras de
funcionamento e de competência.
Também
afirmou o Tribunal, do ponto de vista do Direito Internacional relativo aos
tratados, que as nações celebrantes do Convênio Constitutivo do qual o mesmo se
originou tinham plena capacidade para celebrar tratados internacionais e, em
face da rendição incondicional da Alemanha, aliada à premissa acima afirmada,
também tinham a possibilidade jurídica de, conjuntamente, estabelecer um
tribunal com a jurisdição em tela.
Relativamente
a tal jurisdição, o Tribunal afirmou que a mesma foi definida e limitada nos
exatos termos do Convênio Constitutivo e, em especial no tocante à
responsabilidade dos individuos, estava expressada nos termos do artigo 6°
(10) deste Convênio, que nada mais era do que a expressão do Direito
Internacional Público existente, além de uma contribuição para o
desenvolvimento deste mesmo Direito Internacional, o que, por fim, afastou a
argumentação de que a criação do Tribunal seria um mero exercício de poder dos
vitoriosos.
De
fato, a simples leitura do art. 6° do Convênio permite verificar que são
descabidas as críticas antes referidas (11) relacionadas ao não
julgamento das suspostas violações também perpetradas pelas potências
vencedoras, uma vez que o Tribunal estava impossibilitado de julgar qualquer
outra violação que não fossem as cometidas pelos "membros europeus do
Eixo", por um expresso dispositivo legal que limitava sua competência, a
exemplo do que ocorre em qualquer ordenamento jurídico interno, que limita, em
função de suas próprias discricionariedades, as competências dos juízos
internos em relaç.o às pessoas, matérias ou valores, sem que venha a ser
alegada qualquer "causa de injustiça" em tais limitações.
III -
Acusação
a)
os tipos penais surgidos -
Afastadas
as questões premilinares acima referidas, cabe verificar quais as condutas que
foram atribuídas aos individuos acusados e como as mesmas poderiam vir a ser
tipificadas penalmente.
Nesse
sentido cabe, inicialmente, assinalar que o Convênio, também em seu artigo 6°
(12), trauxe a primeira definição positiva dos possíveis crimes de
responsabilidade internacional do indivíduo ao delimitar a jurisdição do
tribunal, dividindo-os em 3 classes básicas, a saber:
1.
Crimes Contra a Paz: compreendendo as ações correspondentes ao a)
Planejamento, preparação, início ou manutenção de uma guerra de agressão ou de
uma guerra em violação a tratados internacionais, acordos ou compromissos; e b)
Participação em um plano comum ou conlúio para a execução de qualquer dos atos
mencionados no item anterior;
2.
Crimes de Guerra: compreendendo as ações correspondentes as violações
das leis ou costumes da guerra, que incluem, não sendo limitados a tanto, o
assassinato, os maus-tratos ou a deportação para trabalho escravo ou para
qualquer outro fim de população civil de território ocupado, assassinato ou
maus-tratos de prisioneiros de guerra, de marinheiros, extermínio de reféns,
pilhagem de propriedade pública ou privada, destruição maliciosa de cidades ou
vilas ou devastação não justificados por necessidade militar.
3.
Crimes contra a Humanidade: compreendendo as ações correspondentes ao
assassinato, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos
contra uma população civil, ou perseguições nos terrenos político, racial ou
religioso, quando tais atos são perpetrados ou tais perseguições são levadas a
cabo na execução ou em conexão com qualquer crime contra a paz ou qualquer
crime de guerra.
Uma
questão clássica que surge ao verificar-se o dispositivo acima mencionado e as
classes básicas de delitos descritos é a ausência de um "tipo penal
fechado", sendo essa uma das críticas específicas da doutrina penalista,
supondo uma violação do princípio da legalidade.
Em
que pese o fato de que, por uma questão de método, tal argumentação seja aqui
refutada apenas ao cuidar-se especificamente das defesas propostas não
tribunal, convém, agora, fazer referência às conclusões que o próprio Juiz
DONNEDIEU chegou ao ministrar, posteriormente a seus ofícios no Tribunal, um
curso na Academia de Direito Internacional de Haya, segundo as quais, para o
Direito Internacional, mesmo que houvesse um "código penal
internacional" (como atualmente se projeta), este seria composto por
"tipos penais" essencialmente abertos, uma vez que o próprio Direito
Internacional é construído a partir de conceitos relativamente flexíveis, ou
seja, é um direito consuetudinario (costumeiro) (13).
b)
o indiciamento -
Com
a finalidade de configurar o indiciamento, restava, por tanto, verificar quais
as ações dos acusados que poderiam ser enquadradas nos "tipos penais"
supra-mencionados e como se daria tal enquadramento. Tal tarefa correspondeu
aos ofícios dos membros do corpo jurídico de acusação (14), tendo en
vista as diversas práticas perpetradas pelos acusados.
Neste
sentido, o indiciamento dos acusados foi feito tendo por base quatro acusações
principais, levando-se em conta as condutas dos mesmos e os tipos penais
discriminados no Convênio, a saber:
1a.)
acusação: plano comum de conspiração, na qual aos acusados era imputada
a participação conjunta na formulação e execução de planos e estratégias para
cometer crimes contra a paz, a humanidade e crimes de guerra, no seio do
Partido Nazista como um todo, cujos objetivos seriam a abrrogação dos
dispositivos e normas estabelecidos no Tratado de Versalhes, bem como a
aquisição, pela Alemanha, de novos territórios, en detrimento aos países
fronteiriços, o que se confirmaria pelas invasões que começaram en 07/04/1936
(15);
2a.)
acusação: guerra de agressão, na qual aos acusados era imputado o
planejamento e execução, en violação a inúmeros tratados e normas de direito
internacional, das guerras de agressão mencionadas na primeira acusação;
3a.)
acusação: crimes de guerra, conforme enumerados no artigo 6° do Acordo,
cometidos pelos acusados no período entre 01/09/1939 e 08/05/1945, tanto em
território alemão como nos territórios ocupados;
4a.)
acusação: crimes contra a Humanidade, cometidos pelos acusados nos anos
precedentes a 08/05/1945, tanto na Alemanha como nos territórios ocupados,
cujas ações incluíam assassinato e perseguição de indivíduos pertencentes a
grupos políticos, raciais ou religiosos, ou mesmo qualquer pessoa que fosse
suspeita de ser contrária ao plano comum de conspiração afirmado na acusação
01, bem como, os fatos mencionados na acusação 03, que além de crimes de guerra
também se constituíam em crimes contra a humanidade.
IV –
Questões Jurídicas Principais
Todos
os acusados foram defendidos por advogados alemães, dos quais alguns (16),
mesmo antes da instalação do Tribunal, realizaram uma moção de repúdio (19 de
novembro de 1945), sendo que a maioria das defesas foram centradas na premissa
de que a Corte Militar era um tribunal de exceção, constituído ex post facto
com a finalidade precípua de condenar - e não de julgar - os acusados, como
forma de vingança dos vencedores contra os vencidos, em frontal desrespeito
princípio básico "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".
Uma
vez mais, cabe aqui mencionar que também é esta uma das estratégias de defesa
do senhor Milosevic perante o Tribunal da Haya, que faz questão de a todo tempo
afirmar que este Tribunal é apenas uma representação teatral de uma
"vendetta".
Assim,
de forma a sistematizar este estudo, as principais teses de defesa serão
analisadas conjuntamente com a interpretação que o Tribunal fez das mesmas.
a)
a questão da legalidada e da retroatividade:
a
argumentação –
Para
os advogados de defesa o artigo 6º do Convênio Constitutivo era dotado de
enunciados vagos e tipos extremamente abertos, figuras delituosas inexistentes
quando da prática dos atos imputados aos réus, que por si só violariam o
principio "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".
Ademais,
segundo a defesa, a submissão "ex post facto" de penalidades
aos réus seria uma abominação a todas as nações civilizadas, sendo certo que
nenhuma soberania e nenhum acordo ou estatuto haviam fixado tais condutas como
criminosas, ou estabelecido claras penas contra as mesmas, anteriormente ao
momento em que foram cometidas. Tal argumentação, mesmo depois da prolação da
sentença do Tribunal, amealhou (e vem amealhando até hoje) boa parte da doutrina
(17).
decisão
do Tribunal –
O
Tribunal rejeitou essa linha de argumentação asseverando que, para o caso, o
princípio em tela, como apresentado, não seria aplicável.
De
fato, o que fez o Tribunal foi adotar um critério de interpretação do
consagrado princípio penal mais voltado à aplicação material da justiça do que
à mera "justiça formal", de forma a establecer uma jurisprudência de
resultados, ao invés de adotar uma interpretação dogmática mais tradicional
(18).
Assim
é que o Tribunal afirmou que o princípio discutido não estabelece qualquer tipo
de limitação à soberania dos Estados, no sentido de sua capacidade de
empreender os meios e instrumentos necessários na busca de Justiãa material
(como foi o Convênio, conforme verificou-se ao discutir-se a jurisdição do
Tribunal).
Ao
contrário, o Tribunal deixou calro que os princípios de direito penal devem
trabalhar em consonância com um princípio geral de justiça, segundo o qual é
injusto ficar impune aquele que sabe serem erradas as atitudes que perpetra, o
seja, não é necessário que exista um dispositivo legal explícito definindo como
criminosa uma conduta, é apenas necessário que o autor da conduta tenha ciência
inequívoca de que a mesma não se coaduna com os preceitos mínimos de justiça e
de direito.
O
Tribunal, pois, não afasta o princípio "nullum crimen, nulla poena sine
praevia lege", apenas o interpreta adequadamente ao contexto do
Direito Internacional então vigente e essa foi a lição que DONNEDIEU,
posteriormente, deixou expressa (19).
De
forma a deixar clara essa sua visão, o Tribunal mencionou, por exemplo, en
relação à primeira acusação imputada aos réus (crimes contra a paz) que
seria inaceitável pensar que os mesmos, dirigentes que eram do Estado Alemão,
não tivessem ciência dos acordos e tratados internacionais cuja Alemanha era
parte e que passaram a ser violados pela invasões e ocupações que os mesmos
determinaram.
Por
outro lado, com relação à guerra de agressão (segunda acusação) o
Tribunal asseverou, uma vez que a Alemanha era parte do Pacto Kellog-Briand, de
1928, que o mesmo era uma renúncia geral à guerra como meio de solução de
controvérsias, cujos dispositivos, analizados a luz dos princípios gerais de
justiça, dos costumes e leis das guerras (encontrados não apenas nos tratados,
mas também nas interpretações dadas aos mesmos pelas cortes militares),
deixavam nítido que a guerra de agressão não era apenas ilícita, mas também
criminosa, sendo tal dedução perceptível aos réus.
Também
com relação a terceira e a quarta acusações (crimes de guerra e crimes
contra a Humanidade), o Tribunal demonstrou, por meio de vários dispositivos da
Conveção de Haia de 1907 e da Convenção de Genebra de 1929, que as condutas
atribuidas aos réus, no momento em que foram realizadas, já eram consideradas
pelo direito internacional como passíveis de serem punidas, sendo certo, nas
palavras do próprio Tribunal que "war crimes were commited when and
wherever the Fuehrer and hs close associates thought them to be advantageous. They were for the most part the
result os cold and criminal calculation…".
Ademais,
novamente aquí podem ser feitas referências as lições de DONNEDIEU, já
mencionadas anteriormente, no sentido de que, para o direito internacional, em
face da flexibilidade do mesmo, é incabível imaginar-se um sistema penal de
tipos absolutamente fechados.
b)
a questão das possíveis convenções de direito internacional aplicáveis:
argumentação
–
Com
relação às diversas acusações, os advogados de defesa argumentaram ser
inaplicáveis dispositivos de convenções internacionais que, por um lado, haviam
sido denunciadas tempestivamente pela Alemanha ou, por outro lado, não haviam
sido ratificadas pelos Estados vítimas da Alemanha.
No
primeiro caso se enquadraria o Pacto entre a Alemanha e Polonia, que foi
denunciado en 1934. No
segundo, estariam as disposições da Convenção de Haia de 1907, tendo en vista o
dispositivo de seu artigo 2, segundo o qual: "The provisions contained
in the regulations (Rules of Land Warfare) referred in Article I as web as in
the presente Convention do not apply except between contracting power, and then
only if all the beligerents are parties to the Convention."
Assim,
a invasão da Polonia, ponto chave da acusação de conspiração, não poderia ser
considerada como illegal, e muito menos como uma "guerra de agressão".
Por sua vez, os crimes de guerra e contra a humanidade previstos na Convenção
de Haia não poderiam ser imputados aos acusados, uma vez que os beligerantes
não eram partes da mencionada Convenção.
decisão
do Tribunal –
Também
essa argumentação foi rebatida pelo Tribunal, tendo en vista princípios de
direito internacional e a verificação concreta dos fatos ocorridos.
Em
relação a primeira vertente da argumentação, denúncia do pacto que prevía a
manutenção permanente da paz com a Polonia, o Tribunal acertadamente observou
que o ato internacional firmado entre as duas nações em 26/01/1930 foi
explícitamente fundando no Pacto Kellog-Briand, de 27/08/1928, firmado entre 63
Estados, entre os quais se incluía a Alemanha (bem como Itália e Japão) e que
estabelecia como ilegal o uso da força por um período de 10 anos.
Tal
Pacto deixava claro que as nações a ele vinculadas não poderíam, de forma
legal, fazer uso da força como instrumento de política internacional, sob pena
de violação do mesmo.
Para
o Tribunal, com base nas provas e relatos oferecidos pela acusação, ficou claro
que a guerra iniciada contra a Polonia em 01/09/1939 foi planejada como uma
guerra de agressão pelos acusados e que a denúncia do tratado, em falsas bases,
em 1934, nada mais foi que um dos atos preparatórios de tal plano, que
nítidamente demonstravam a intenção da Alemanha de fazer do uso da força um
instrumento de política internacional, em violação ao Pacto Kellog-Briand.
Quanto
à segunda vertente, inaplicabilidade da Convenção da Haia de 1907, o Tribunal
enfrentou a questão dando nítidas indicações de que, avançado em relação a
própria doutrina de seu tempo, estava pronto a dar ao direito internacional uma
dimensão mais forte e vinculante, em relação aos termos de proteção da pessoa
humana, antevendo como a sociedade internacional, numa tendência que se
reforçaria posteriormente, iría cuidar das questões relativas aos direitos
humanos.
Nesse
sentido, o Tribunal entendeu não ser relevante o fato de determinados Estados
estaren vinculados ou não à Convenção de Haia, sendo desnecessário
pronunciar-se a respeito do cabimento da "cláusula de participação
geral" (art. 2) da Convenção, uma vez que a mesma, no entender do
Tribunal, indubitavelmente representou um avanço sobre o direito internacional
existente ao tempo de sua adoção.
O
Tribunal levou em conta, também, como a própria Convenção de Haia expressava,
que a mesma devería ser considerada como uma tentativa de revisar as leis
gerais e costumes de guerra (direito consuetudinário), já reconhecidos como
existentes em 1907.
Ademais,
passados mais de 30 anos desde sua adoção, em 1939 as regras ali postas eram
reconhecidas por todas as nações civilizadas como declaração positiva de normas
e costumes de guerra, ou seja, com carácter de obrigatoriedade (jus cogen).
Assim, não havia que se falar em Estados partes ou não da Convenção de Haia
(20), e a referência desta no contexto do artigo 6° do Convênio
Constitutivo seria a expressão do sentimento da comunidade internacional nesse
sentido (21).
Por
tanto, o Tribunal aceitou como crimes de guerra e contra a humanidade, as
condutas descritas no artigo 6° do Convênio em referência à violação dos
artigos 46, 50, 52 e 60 da Convenção de Haia de 1907 e dos artigos 2, 3, 4, 46
e 51 da Convenção de Genebra de 1929, que por si só enquadravam as condutas dos
réus, independentemente do fato dos Estados aos quais pertencíam as vítimas
serem Estados Partes das mencionadas Convenções (22), afastando a
pretensão da defesa.
c)
a questão da responsabilidade do individuo:
argumentação
–
Outro
dos pontos principais da argumentação da defesa era a conceituação que a mesma
tinha dos sujeitos de direito internacional, segundo a qual o direito
internacional era concernente apenas às relações existentes entre diversas
soberanias estatais.
Assim,
tal ordem normativa conferiría direitos e obrigações exclusivamente aos Estados,
afastando qualquer possibilidade de que os indivíduos pudessem ser
responsabilizados por atos que, no plano internacional, eram cometidos pelos
Estados.
Para
a defesa, sendo os atos de responsabilidade do Estado, o indivíduo que os pratica,
em última análise, estão protegidos pela soberania deste Estado, cabendo no
máximo a resposabilização deste e nunca a dos indvíduos (teoria dos atos de
governo).
decisão
do Tribunal –
Tal
argumentação foi enfrentada pelo Tribunal essencialmente em duas bases.
A
primeira no sentido de demonstrar que historicamente o direito internacional
impõe obrigações e deveres aos indivíduos, assim como para os Estados, através
da enumeração de diversos precedentes judiciais estatais (jurisprudência
interna de diversos países) onde indivíduos foram processados e considerados
culpados por violações do "direito das nações", e particularmente do
"direito da guerra".
Assim
o Tribunal tinha o objetivo de deixar claro que esforço em julgar um indivíduo,
fazendo-o responsável internacionalmente, era uma conduta uniforme e aceita
como "conforme o direito" pela maioria das nações civilizadas, já
naquele tempo, constituindo um direito consuetudinário internacional plenamente
aplicável ao caso.
O
segundo pilar de sustentação da decisão do Tribunal en relação a essa questão
estabeleceu-se nas disposições já existentes no Tratado de Versalhes
(especialmente art. 228), que explícitamente afirmavam a possibilidade de
responsabilização internacional do indivíduo por violações ao direito
internacional, além de afastar categoricamente a "teoria dos atos de
governo", afirmando ser inaceitável que os autores de atos relevantes
contra o direito internacional pudessen esconder-se por de tráz de suas
"posições oficiais" para se tornarem impunes.
De
forma extremamente veemente o Tribunal fêz questão de deixar claro que somente
a punição das pessoas, e não dos Estados, entes abstratos conduzidos pelas
pessoas, podería conferir efetividade aos preceitos de direito internacional.
Nesse sentiddo, vale transcrever
algumas palavras da Sentença: "Crimes against international law are
commited by men, not by abstract entities, and only by punishing individuals
who commit such crimes can the provisions of international law be
enforced".
Por
fim o Tribunal afirmou que o princípio geral de direito internacional que torna
imunes os representantes dos Estados não podería ser aplicado ao caso uma vez
que as Potências, ao firmarem o Convênio Constitutivo que deu origem ao
Tribunal, reconheceram um princípio superior a esse, que é exatamente a
essência de tal Convênio (23), ou seja, que os indivíduos tem
responsabilidades internacionais que transcêndem o próprio dever de obediência
imposto aos indivíduos pelos Estados.
Também
neste ponto o Tribunal, mais uma vez, tomou posição avançada en relação à
doutrina de seu tempo, deixando clara a dimensão internacional do indivíduo.
Tal
postura firme do Tribunal, posteriormente confirmada por DONNEDIEU (24)
no já citado curso ministrado na Academia de Direito Internacional de Haia, em
verdade, foi a "pedra fundamental" da construção do sistema
internacional penal, com responsabilização internacional do indivíduo, que hoje
permite tornar efetivos dispositivos como os da Convenção contra o Genocídio,
ou possibilita a instalação de Tribunais Penais Internacionais "ad
hoc", como os de Ruanda e Ioguslávia.
O
mesmo pode ser dito com relação a importância da postura do Tribunal de
Nuremberg quando se têm em conta o Tribunal Penal Internacional Permanente,
cuja instalação hoje se aguarda, em que pese as vozes sempre discordantes que
ainda não aceitam o indivíduo como um sujeito de direito internacional (25).
d)
a questão da hierarquía funcional:
argumentação
–
Como
última das argumentações chaves da defesa, pleiteou-se a absolvição de vários
dos acusados em face dos mesmos apenas estarem atuando sob ordens de Hitler,
eventual único responsável individual por todas as atrocidades cometidas.
decisão
do Tribunal –
Esta
argumentação foi sumariamente repelida pelo Tribunal, tendo em vista as
diposições do art. 8° do Convênio Constitutivo, que expressamente afastava a
irresponsabilidade do agente pelo cumprimento de ordens superiores, admitindo
apenas a mitigação da pena (26).
Asseverou
o Tribunal que tal dispositivo estava em consonância com a legislação interna
de todas as nações e que, em geral, os ordenamentos internos consideravam, para
efeitos de mitigação da pena, as reais possibilidades de escolhas morais que,
diante da ordem manifestamente ilegal, tería o agente imputado pela conduta.
Nesse
sentido específico, o Tribunal reafirmou sua intenção de atuar com firmeza em
face das atrocidades cometidas, uma vez que considerou inaplicáveis quaisquer
mitigações de pena, tendo en vista o caráter chocante e extensivo das condutas
realizadas, que foram cometidas concientemente e sistematicamente, sem qualquer
excúsa ou justificação militar.
V -
Considerações e Conclusões Finais:
No
contexto geral da Sentença algumas outras considerações expressadas pelo
Tribunal podem ser citadas como relevantes.
Assim,
o Tribunal afasta os argumentos concernentes à invasão de um território de
outro Estado como forma de prévia defesa militar, supostamente admissível como
legal, em face de eminente ataque de terceiro Estado (invasão da Noruéga e
Dinamarca como forma de proteção contra ataque da Inglaterra).
Veja-se
que tal postura tem uma importância transcedental, como um verdadeiro
"mandamento ao futuro" (nossa atualidade), tendo em conta as ações
perpetradas pelos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001
contra o Afeganistão, e a agora pretendida intervenção contra o Iraque.
Mesmo
admitindo-se a invasão do Afeganistão como um exercício de legítima defesa
posterior a um ataque prévio (o que por sí só já tem sua dose de incerteza
considerando a forma como ocorreram os ataques e seus perpetradores), de
nenhuma maneira pode ser admitida pelo direito internacional, sob a premissa
estabelecida pelo Tribunal de Nuremberg, a possibilidade de novas ações
militares americanas em prévia defesa de seus "interesses nacionais"
e contra um suposto "eixo do mal".
Um
eventual ataque unilateral ao Iraque pelos Estados Unidos, sem a devida
autorização do Conselho de Segurança da ONU, pode e deve ser considerado pelo
Direito Internacional Público como um crime de guerra e contra os direitos
humanos, tendo em conta a lição de Nuremberg. Aliás, é muito provável que as
autoridades norteamericanas estejam cientes de tal fato e, por isso, se
esforcem tanto para fixar a "imunidade americana" perante o Tribunal
Penal Internacional, estabelecido a poucos meses.
Por
otro lado, e voltando ao julgamento de Nuremberg, o Tribunal explícitamente
reconheceu o comportamente reprovável da Inglaterra ao armar seus návios
mercantes no Canal da Mancha, atitude que dotou de legitimidade a guerra
submarina perpetrada pela Alemanha contra tais naves.
Aqui
também reside outra lição do Tribunal de Nuremberg para a atualidade, qual
seja, que os fins não justificam os meios e que o emprego de meios
injustificados por uma parte pode legitimar a reação da outra. Asim que, por
mais honrosa e justificavel que seja a defesa dos direitos humanos e das
liberdades contra a "ameaça terrorista", tão alardeada, deve-se
utilizar dos meios aceitáveis pelo direito internacional, seja nas supostas
ações preventivas, seja nas ações repressivas e de responsabilização das
pessoas supostamente culpáveis dos feitos terroristas.
Tal
afirmação, por suposto, predica a que aos presos de Guantánamo sejam
aplicados julgamentos públicos, civis ou militares, onde estejam presentes
todas as garantias de ampla defesa, mesmo tendo em conta que estes
julgamentos possan ser utilizados pelos terroristas como plataformas ou palcos
de acesso à opinião pública internacional, como faz o senhor Milosevic com
relação a seu julgamento na Haia. Desafortunadamente, isto não é o que, até
agora, se planeja para estas pessoas que já estão presas a mais de um ano, em
condições semelhantes às dos campos de concentração nazistas.
Deve
ser lembrado, ainda, que conjuntamente com os individuos submetidos a
julgamento perante o Tribunal de Nuremberg, seis organizações/associações foram
também analizadas pelo Tribunal, sendo que a Sentença declarou o caráter
criminoso de três dessas entidades (SD-Gestapo, as SS e o Corpo de Líderes do
Partido Nazista), o que permitiu a ocorrência dos julgamentos posteriores
(mencionados quando das considerações quanto ao entorno histórico).
Este
ato, desde um ponto de vista jurídico, configurou o principal equívoco do
Tribunal, uma vez que possibilitou que os indivíduos submetidos a tais
julgamentos, que fossem participantes dessas entidades, no período a partir de
1939 até o final da guerra, com voluntariedade na adesão e ciência do caráter
imoral das atividades da mesma, tivessem contra si prova pré-constituída da
ilicitude de suas atividades. Asim, o Tribunal permitio o estabelecimento
posterior de um sistema de responsabilidade objetiva dos acusados, o que, ainda
hoje, não pode ser aceitado como em conformidade com qualquier sistema jurídico
penal e, por consequência, alimenta aos críticos do Tribunal com argumentos
fortes e corretos.
Este
erro pode estar sendo, agora, repetido com os presos de Guantánamo e a única
forma de garantir sua não ocorrência e por meio da realização de julgamentos
públicos para estas pessoas, como já foi afirmado acima.
Contudo,
o equívoco do Tribunal de Nuremberg antes referido não tem a força necessária
para invalidar seus trabalhos e a importância do mesmo para o Direito
Internacional.
De
uma maneira geral, o Tribunal aceitou como válidas as quatro acusações feitas
contra os réus, condenando-os ou absolvendo-os individualmente, em todas ou
algumas das mesmas, conforme as circunstâncias pessoais dos feitos de cada um.
Deve
ser ressaltado, por fim, que a aceitação da acusação de crimes contra a
humanidade se fez em conexão com os crimes de guerra, em função das condutas
ilícitas previstas nas Convenções de Haia e Genebra e da jurisdição que lhe foi
atribuída pelo Convênio Constitutivo. Assim, o Tribunal somente considerou as
condutas perpetradas pelos réus no período posterior à deflagração da guerra
(01/09/1939), afastando a punibilidade das condutas ocorridas antes de tal
data, apesar de reconhecer-lhes o caráter ilícito, por sua própria falta de
competencia jurisdicional.
Tal
fato determinou que, para os julgamentos que se seguiram, acima referidos, o
Convênio Constitutivo fosse ligeiramente modificado, de forma que a descrição
dos crimes contra a humanidade fosse reformulada, desvinculando-se
essencialmente dos crimes de guerra, para então abarcar também as condutas
relativas ao período precedente a 1939.
A
conclusao final deste estudo é de que a importancia do Tribunal de Nuremberg
para o desenvolvimento do Direito Internacional Publico é incontestavel.
A
nosso ver, conforme já afirmamos acima, a partir de construções jurídicas
avançadas para a doutrina de seu tempo, o Tribunal pode elaborar, na sentença
que prolatou, premissas, conceitos e teses que, hoje, encontram-se arraigados
nas bases de todo o Direito Internacional Público, que na última metade do século
XX passou a compreender o ser humano sob uma dimensão diferenciada da
tradicional.
Efetivamente
o Tribunal contribuiu enormemente para a construção da premissa segundo a qual
o Direito Internacional Público tem seu fundamento no reconhecimento
incondicional dos direitos fundamentais da pessoa humana e na proteção da
dignidade intrísica ao ser humano.
Noções
e conceitos como a subjetividade jurídica do indivíduo na ordem internacional,
formação do jus cogen, jurisdição universal ou relatividade dos
princípios de direito em face de valores humanos mais relevantes, mesmo que
ainda não aceitas com unanimidade pela doutrina (como fizemos questão de deixar
consignado), inegavelmente estão presente no atual Direito Internacional Público.
Estes conceitos encontraram seu primeiro arrimo explícito, incluso com consequências pragmáticas, nos trabalhos levados a efeito pelo Tribunal de Nuremberg, que longe de ser um instrumento político de vencendores contra vencidos, foi uma instituição séria e moderna, cujo fundamento era absolutamente jurídico e cujas razões de decidir se pautaram, sem sombra de dúvida, em parâmetros jurídicos absolutamente defensáveis e afastados dos imperativos de ordem política ou moral presentes em tal mometo histórico.
A
lição maior e final que se pode extrair do trabalho do Tribunal de Nuremberg
para a atualidade, é a de que mesmo em um contexto histórico impregnado de
pressões políticas e morais, como o de hoje, é possvel estabélecer parámetros
jurídicos que condicionem as ações dos Estados de forma a que não solapem as
normas de direito internacional e o valor da dignidad humana, em seu suposto
anseio de fazer justiça ou proteger os direitos humanos (27).
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SANCHÍS, Luis Prieto. Ideología
e interpretación jurídica. Editorial Tecnos S.A., Madrid –1993
(Reimpresión).
Notas
1.
Esta premissa pessoal foi desenvolvida e explicitada em nosso livro Os
Direitos da Criança e os Direitos Humanos. Sergio Antonio Fabris Editor,
Porto Alegre, Brasil – 2001.
2.
a) Declaração de St. James (13/01/1942) dos governos no exílio,
estabelecidos em Londres; b) Formação da Comissão das Nações Unidas para
os Crimes de Guerra (17/10/1943); c) Declaração das 3 potências em
Moscou (30/10/1943)- EUA, URSS e Reino Unido, em nome das 35 nações aliadas.
3.
Vale mencionar que no momento da publicação da Sentença peol Tribunal, 30
nações já tinham aderido ao mencionado Convênio.
4.
A presidência do Tribunal foi atribuida ao Lord Justice Sir Geoffrey Lawrence
(Reino Unido); os outros membros foram: o Attorney-General Francis Biddle
(USA); o Professor Donedieu de Vabre (France); e o General J.T. Nikitkenko da
Corte Suprema Soviética (URSS).
5.
Foram 3 pessoas não condenadas, 12 condenações a morte, 3 prisões perpétuas, 2
prisões de 20 anos, uma condenação de 15 anos e uma de 10 anos.
6.
Nestas cortes, 36 pessoas foram condenadas a morte, 38 foram absolvidas, 23
foram condenadas a penas perpétuas e as outras sentenças foram de
aprisionamento entre um ano e meio e 25 anos, totalizando 177 acusados
processados.
7.
Tais julgamentos tiveram por fundamento legal, em especial, os artigos 09, 10 e
11 do Estatuto do Tribunal, em face da declaração de "caráter
criminoso" de associações e pessoas jurídicas feita pela corte principal
com base na jurisdição que lhe foi atribuída pelo art. 6° do Acordo.
8.
Exemplificativamente, basta dizer que as Cortes levadas a efeito pelas forcas
norte-americanas eram compostas principalmente por juízes de tribunais
intermediários americanos, todos civis.
9.
Nesse sentido, vale transcrever as opiniões de alguns juristas, a saber:
"...
os julgamentos dos criminosos de guerra de Nuremberg e Tóquio...
constituiram-se en uma aberração... seja pela ausencia de preceito legal
anterior aos fatos ilícitos (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege
penali), quer pela parcialidade da Corte, integrada pelos vencedores da
guerra, ao ferir o princípio de que nemo iudex in causum suum".
PINTO, Fernando. A presença do costume e sua força normativa, Rio de
Janeiro, 1982, pgs. 83 e 84.
"Temos
que o Tribunal Militar Internacional que funcionou en Nuremberg, bem assim o
seu similar de Tóquio, foi de encontro ao direito vigente. Com efeito,
inexistia qualquer norma jurídica que considerasse crime os atos práticados
pelos que foram julgados e, além disso, como poderia esse Tribunal julgar
apenas os vencidos, dado que os vencedores praticaram atos idénticos (bomba
atómica en Hiroshima e Nagasaki), sem esquecer que a URSS dividiu com a
Alemanha, nao início da guerra, a partilha da Polônia." ARAÚJO,
Luis Ivani de Amorim. Direito Internacional Penal. Ed. Forense, Rio de
Janeiro –2000, pg. 73.
Além
disso, outras críticas de caráter absolutamente político/ideológico podem ser
encontradas no "site" http://www.heretical.com/supps/nganport.html.
10. "article 6- The Tribunal
established by the Agreement referred to in Article I hereof for the trial and
punishement of the major war criminals of the European Axis countries shal have
the power to try and punish persons who, acting in the interests of the
European Axis countries, whether as individuals or as members of organisations,
committed any of following crimes.
The
following acts, or any of them, are crimes coming within the jurisdiction of
the Tribunal for wich there shall be individual responsibility:
Leaders,
organisers, instigators and accomplices participating in the formulation or
execution of common plan or conspiracy to commit any of the foregoing crimes
are responsible for all acts performed by any persons in execution of such
plan."
11.
Em especial as críticas de Luis Ivani de Amorim ARAÚJO.
12. "article 6-...
The
following acts, or any of them, are crimes coming within the jurisdiction of
the Tribunal for wich there shall be individual responsibility:
a)Crimes
against peace:
namely, planning, preparation, initiation or waging of a war of aggression, or
a war in violations of international treaties, agreements or assurances, or
participation in a common plan or conspiracy for the accomplishment of any of
the foregoing;
b)War
crimes:
namely, violations of the laws or customs of war. Such violations shall
include, but not be limeted to, murder, ill-treatment or deportation to slave
labour or for any other purpose of civilian population of or in occupied
territory, murder or ill-treatment of prisioners of war or persons on the seas,
killing of hostages, plunder of public or private property, wanton destruction
of cities, towns or villages, or devastation not justified by military
necessity;
c)Crimes
against humanity: namely, murder, extermination, enslavement, deportation, and other
inhumane acts committed against any civilian population, before or during the
war, or persecutions on political, racial, or religious grounds in execution of
or in connection with any crime within the jurisdiction of the Tribunal,
whether or not in violation of the domestic law of the country where
perpetrated."
13.
Vale transcrever uma parte dessas conclusões:
"Est-ce
à dire que les incriminations et les sanctions d’un tel Code puissent revêrtir
la précision et la fixité d’une législation interne? Nous ne le pensons pas. Les facteurs divers
qui ont déterminé jusqu’ici la mobilité, l’instabilité de la société des Etats,
et qui expliquent les formes chageantes de la délictuosité internationale n’ont
pas arrêté leur action, depuis le jugement de Nuremberg. Il est de l’essence du
droit international d’être, en partie, un droit coutumier." DONNEDIEU DE VABRES, Henri. "Les
process de Nuremberg devant les principes modernes du droit penal". Recueil
des Couers, 70, vol. I. - 1947. Acadêmie de Droit International de La Haye. Martinus Nijhoff Pablishers,
Dordrecht/Boston/London, pg. 575
14.
Faziam parte desse corpo jurídico o então juiz da Suprema Corte dos
Estados-Unidos, ROBERT H. JACKSON (um dos idealizadores do próprio Tribunal de
Nuremberg), NORMAN BIRKETT (também do grupo norte-americano, redator final da
sentença e dos votos dos julgadores) e MURRAY C. BERNAYS, igualmente dos EUA,
que havia tido papel primordial no convencimento dos demais países quanto à
necessidade de um julgamento dos criminosos de guerra, em vez da tese da
execução sumária, que, a princípio, havia sido adotada pelos ingleses
(inclusive por Churchill) e pelos soviéticos (inclusive por Stalin).
15.
07/03/1936 – Rhineland foi reocupada e fortificada; 12/03/1938 – invasão da
Austria; 15/03/1939 - ocupação da maior parte da Czechoslovakia; 01/09/1939 -
invasão da Polonia; 09/04/1940 – invasão da Dinamarca e Noruega; 10/05/1940 –
invasão da Belgica, Holanda e Luxemburgo; 06/04/1941 – invasão da Grécia e da
Iuguslavia; 22/06/1941 – invasão da Rússia;
16.
Os advogado Doutores Hans Marx, Otto Stahmer, Fritz Sauter e Gunther Von
Rohscheidt.
17.
Nesse sentido as observações de Luis Jimenez de ASÚA, (Tratado de Direito
Penal, 1950, tomo II, Buenos Aires, págs. 999 e seguintes), bem como, Andre
GONçALVES PEREIRA e Fausto QUADROS (Manual de direito internacional público,
3ª. ed., Coimbra, 1993, pg. 383) que chegaram a afirmar a respeito do Tribunal
de Nuremberg:
"...
é decerto duvidosa a sua legalidade, pois, se não consegue demonstrar que tais
crimes estavam previstos pelo Direito Internacional comum, tem se de concluir
que se violou a regra nullum crimen, nulla poena sine lege".
18.
É curioso que seja esse o critério interpretativo que afasta tão forte
princípio de direito penal uma vez que, conforme ensina Luis Prieto SANCHÍS,
esse tipo de critério interpretativo foi adotado e desenvolvido ao extremo
pelas cortes alemãs e pelo sistema do Reich, como forma de adequar a lei e a
aplicação da justiça aos anseios do povo (naquele momento representado pelo
Reich). Vale verificar
que:"En el capítulo que aquí nos interesa, la doctrina
nacionalsocialista nao se conformó con estímulos teóricos, sino que alento el
judicialismo en el ámbito más sagrado e indiscutible del principio de
legalidad. La Ley de 28 de junio de 1935 modificó en el sentido seguiente el
parágrafo 2° del Código Penal del Reich: <<Será castigado el que comete
un acto que la ley declara punible o que merezca serlo de acuerdo con el
pensamiento fundamental de uma ley penal y el sano sentir del pueblo. Si ante un
hecho nao ecuentra inmediata aplicación ningún precepto penal concreto, aquél
será castigado con arreglo a la ley cuyo pensamiento fundamental resulte más
adecuado>>. Sin duda, la admisión de la analogía penal constituía la más
palmaria negación de los valores del racionalismo iluminista y del positivismo
liberal que cimentaban la cultura jurídica moderna." (SANCHÍS, Luis
Prieto. Ideología e interpretación jurídica. Editorial Tecnos S.A.,
Madrid –1993 (Reimpresión) pg. 44).
19.
Afirmou DONNEDIEU:
"Le
Tribunal n´exclut pas du droit international la règle nullum crimen, nulla
poena sine lege. Mais il s´assouplit pour l´adapter aux variations multiples
que des facteurs sociaus, téchniques, etc., impriment aux relations entre
Etats. Ainsi entendue, la règle exige la connaissance, par l´agent, du
caractère delitueux des faits imputés. Mais elle n´implique ni une définition
rigoureuse de l´infraction, ni l´énonciation précise deis peines encourues. Les
auteurs de la guerre d´agression ont reçu des avertissements suffisants pour en
être rendus pénalement responsables." DONNEDIEU DE VABRES, Henri. "Les process de Nuremberg
devant les principes modernes du droit penal". Recueil des Couers, 70, vol.
I. - 1947. Acadêmie de Droit International de La Haye. Martinus Nijhoff Pablishers,
Dordrecht/Boston/London, pg. 574.
20.
Tal solução, ainda hoje, não foi aceita por parte da doutrina, que como
Francisco REZEK, atualmente Juiz da Corte Internacional de Justica, afirma que:
"Por
outro lado, é ilusória a idéia de que o indivíduo tenha deveres diretamente
impostos pelo direito internacional público, independentemente de qualquer
compromisso que vincule seu Estado patrial, ou seu Estado de residência. Numa
circunstância excepcionalíssima – o segundo pós-guerra -, o Tribunal
Internacional de Nuremberg entendeu de estatuir o contrário, para levar a cabo
o julgamento e a condenação de nazistas. Ali, a tese de que os indivíduos podem
cometer crimes suscetíveis de punicao pelo direito internacional, sem embargo
da licitude de sua conduta ante a ordem jurídica interna a que estivessem
suberdinados, não foi a única a merecer crítica, em doutrina, por sua falta de
base científica. Nuremberg não constitui jurisprudência, em razao de sua exemplar
singularidade. O produto daquele Tribunal não prova o argumento de que o
direito das gentes imponha diretamente obrigações ao indivíduo. Prova apenas
que, em determinadas circusntâncias, a correta formulação do raciocínio
jurídico pode resultar sacrificada em face de imperativos de ordem ética e
moral. No caso de Nuremberg nunca se poderá negar o peso do imperativo ético
que impôs o sacrifício de certos princípios elementares de direito penal."
(REZEK, Francisco. Direito Internacional Público – curso elementar. Ed.
Saraiva, Sao Paulo, Brasil – 2000. pg.147)
21.
Verifique-se que esse mesmo tipo de construção jurídica doutrinaria é utilizada
posteriormente, pela ONU e pela Corte Internacional de Justica, para conferir
obrigatoriedade aos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como
expressão de direito consuetudinário e verdadeiro "jus cogen", e
fundar na mesma a base de todo o sistema internacional de proteção dos direitos
humanos, estruturado em diversos Pactos, Convenções e Declarações. Tanto é
assim que Vicente MAROTTA RANGEL, consignou "a extrema interdependência
da Declaração para com as duas outras fontes de Direito Internacional: os
princípios gerais de direito, de que ela é, em grande parte, testemunho e
porta-voz, e de cuja natureza não pode deixar de participar... ; e os costumes
internacionais, de que ela seria instrumento de explicitação" (Rangel,
Vicente Marotta. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e o seu
vigésimo aniversário in Estudo dos problemas brasileiros nº 70.
São Paulo, 1969, pg. 12.). Tal assentiva também se confirma pela Corte
Internacional de Justiça, que em diversos julgados fundamentou suas decisões em
artigos específicos da Declaração Universal. Exemplificativamente podem ser
tomadas as decisões prolatadas nos casos Peruano-Colombiano de Asilo - 1950,
fundada nao artigo 14 da Declaração Universal, relativo ao direito de asilo; da
Companhia de Petróleo Anglo-Iraniana - 1952, fundada na proclamação do
direito de propriedade estabelecida nao artigo 17 da Declaração Universal; e Nottenbohm,
fundada nao direito à nacionalidade, conforme previsto nao artigo 15 da
Declaração Universal.
22.
Também nesse ponto, em particular, pode-se dizer que o Tribunal agiu de forma
avançada em relação à doutrina de seu tempo uma vez que, além de confirmar a
reponsabilidade internacional do indivíduo, de forma indireta prescreveu a
assunção pelo indivíduo de direito e proteção diretamente decorrentes de
tratados internacionais, como a antever uma faceta até hoje debatida da
subjetividade jurídica internacional do indivíduo.
23.
Tal postura do Tribunal também encontra-se alicerçada no artigo 7 do acordo,
que explicitava:
"article 7 – The official
position of defeands, whether as Heads of State or responsible officials in
Government Departaments, shall not be considered as feeing them from
responsability or mitigating punishment."
24.
Nesse sentido o professor francês concluiu que o Tribunal "se reconnaît
une vocation universelle à l’effet de juger les grands crimninels de guerre qui
ont violé certains droits fondamentaux de l’homme. Il prend ouvertement parti
pour le droit international public nouveau qui pour sujet, non seulement
l’Etat, mais l’individu." DONNEDIEU DE VABRES, Henri. "Les process de Nuremberg
devant les principes modernes du droit penal". Recueil des Couers, 70, vol.
I. - 1947. Acadêmie de Droit International de La Haye. Martinus Nijhoff Pablishers,
Dordrecht/Boston/London, pg. 576.
25.
Ressalte-se, nesse sentido, novamente, a opinião de Francisco REZEK, segundo a
qual: "Não tem pessoalidade jurídica de direito internacional os
indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas. A proposição, hoje
frequente, do indivíduo como sujeito de direito das gentes pretende fundar-se
na assertiva de que certas normas internacionais criam direitos para as pessoas
comuns, ou lhes impõe deveres. É preciso lembrar, porém, que os indivíduos –
diversamente dos Estados – não se envolvem, a título próprio, na produção do
acervo normativo internacional, nem guardam qualquer relação direta e imediata
com esse corpo de normas. (REZEK, Francisco. Direito Internacional
Público – curso elementar. Ed. Saraiva, Sao Paulo, Brasil – 2000. pg.146)
26. "article 8 – The fact that
the defedant acted persuant to order of his Government or of a superior shall
not free him from responsability, but may be considered in mitigation of
punishment if the Tribunal determines that justice so requires."
27.
Nesse sentido também são as afirmações de Antonio CASSESE em "Terrorism
is also disrupting some crucial legal categories of international law"
in European Journal of International Law, vol. 12, n° 5, pgs. 993/1001,
november 2001, Oxford University Press, Glasgow, Great Britain.
* Procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito Internacional pela USP, doutorando em Estudos Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona (Espanha)
Disponível em : < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3440 >. Acesso em : 18 de setembro de 2006.