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Globalização, Pinochet e o Tribunal Penal Internacional
Introdução
Vivemos
em um mundo globalizado. É fato. Quer queiramos ou não esta é a realidade.
Globalização
deriva da palavra globo, obviamente entendida aqui como planeta,
especificamente o nosso planeta Terra. Poderíamos falar então em
"planetarização" ou "terrarização", porém a "intelligentsia"
preferiu globalização e, mal ou bem, cá estamos.
Pelo
"peixe" que se vende, entenderíamos globalização como uma espécie de
extinção das fronteiras nacionais, ou, para não ser tão radical, uma diminuição
considerável de suas barreiras. Afinal, somos todos humanos.
Os
benefícios de tal importante processo são tão óbvios que nem precisariam ser
expostos, porém, se assim o fazem, é para simplesmente alcançar aqueles menos
privilegiados que nem o óbvio conseguem atingir: será o fim das diferenças
econômicas, ocorrerá uma maior aproximação das diversas culturas, haverá uma
grande melhoria de qualidade de vida dos nacionais pelo acesso a produtos de
"ponta", fantástico melhoramento das relações comerciais, aumento
considerável do fluxo de recursos financeiros e tecnológicos aos países menos
desenvolvidos, a supressão, enfim, de inimizades históricas, o fim de todos
conflitos e, quem sabe, um dia, o fim de todas as guerras. O paraíso será aqui.
E
para levar a cabo tamanha revolução, nenhuma gota de sangue deverá ser
derramada. Basta que os representantes das diversas nações, homens íntegros e
iluminados, sentem à mesa, conversem seriamente por algumas horas, assinem
tratados, obedeçam a algumas poucas regras comunitariamente estabelecidas e
necessárias ao bom funcionamento do futuro sistema (regras que nem ao menos
estipulam, dada sua distinta natureza, sanções ao seu descumprimento) e pronto:
da mistura mágica nascerá uma nova raça, habitando um novo mundo, o "homo
globalizatus".
A
realidade, no entanto, apresenta diversas outras faces, cada uma delas bem
menos brilhante do que a descrita acima.
Um
pouco de Ciência Política
Não
vamos aqui nos perder em um emaranhado de conceitos, contra-conceitos,
polêmicas, críticas, etc. Vamos ao básico, vamos àquilo que nos é necessário
para melhor entendermos o que aqui se pretende responder, sem nenhuma
necessidade de grandes debates. Entende-se por Poder a qualidade que um
indivíduo ou um grupo de indivíduos possui para impor a outrem ou a outro grupo
a sua vontade, mediante coação real ou potencial. Surge o Estado, na medida em
que um indivíduo ou um grupo de indivíduos assume perante a sociedade o controle
deste poder, poder este suficiente para resolver questões que a todos afetam,
assegurando a imposição de sua vontade através de um conjunto de regras
pré-estabelecidas, executadas e fiscalizadas por uma organizada rede de
instituições – o Governo. Porém, sob o aspecto que aqui nos interessa,
falta-lhe ainda um elemento essencial: a Soberania; a qualidade de que, naquele
determinado território, este poder – o poder do Estado - não se submeta a
nenhum outro.
Neste
momento, a promessa inicial do parágrafo acima de não polemizar será quebrada;
porém por motivos relevantes. Ao introduzir o Estado na realidade social, a
nossa grande e esquecida mestra, "a História", rompeu com uma
ditadura absoluta: a ditadura do poder privado. Foi criada uma dicotomia eterna
e, até agora, insuperável, que dada a sua complexidade, se apresenta sob
diversas formas. Recorramos ao portentoso Norberto Bobbio em seu "Estado,
Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da política" e analisemos
esta grande cisão. Para o professor italiano, a oposição público/privado pode
gerar outras tantas dicotomias:
a. sociedades
de iguais e sociedades de desiguais;
b. lei
e contrato;
c. justiça
comutativa e justiça distributiva;
d. política
e economia.
Quebrando
de vez a promessa de evitar o debate, faz-se mister ressaltar as duas soluções
históricas, e antagônicas, apresentadas por Bobbio aos dilemas acima propostos:
uma primeira solução que ressalta a supremacia do privado sobre o público –
pensamento que se impõe, principalmente, através da difusão do Direito Romano
no Ocidente -; a segunda solução, "a contrario sensu",
confirmava a primazia do público sobre o privado – que surge como forte reação,
desde o final do século passado, à concepção liberal do Estado (não obstante o
poderoso golpe liberalizante desferido pelo Consenso de Washington, um século
mais tarde). Os ventos globalizantes tentam levar para longe a idéia de um
Estado grande e economicamente ativo. Limitá-lo, sob qualquer aspecto, é o
objetivo a ser atingido.
Há
limites internos ao Poder do Estado?
Sim,
e não precisamos ir muito distante para descobri-los.
Após
uma ditadura militar de 20 anos, o Brasil encerra a década de 80 com um governo
democraticamente eleito e uma Constituição também democraticamente promulgada
em 5 de outubro de 1988, chamada por muitos de a
"Constituição-Cidadã". A falta de liberdade durante os anos do regime
de exceção provocou uma violenta reação por parte da sociedade. Apesar de
elaborada com fortes traços estatizantes, bem a gosto da cultura nacional, a
Carta Magna estabeleceu amplas e, tal como consideradas por vários juristas,
inaplicáveis garantias individuais e sociais. Exemplo para todo o mundo
jurídico, os artigos 5º, 6º e 7º, de nossa Lei Maior, estabelecem um rol fenomenal
de garantias, princípios e remédios constitucionais, que visam a uma só meta:
frear o poderoso "Leviatã", estabelecendo um limite claro ao
poder público, preservando o indivíduo em seus direitos fundamentais:
igualdade, liberdade de expressão, inviolabilidade de sua casa, liberdade
religiosa, devido processo legal, trabalho e salário dignos, para dizer o
mínimo.
A
Constituição de 88, em seu primeiro artigo, em seu primeiro inciso, impõe como
fundamento da República Federativa do Brasil a soberania. Sim, o Brasil é uma
nação soberana. Nenhum outro ordenamento jurídico (em uma visão bastante
"kelsiana" leia-se, no lugar de ordenamento jurídico,
"Estado") poderá impor suas regras de conduta em nosso território;
não obstante o desejo de "cooperação entre povos para o progresso da
humanidade" (CF/88, art. 4º, IX) e a previsão expressa de que outros
direitos e garantias poderão surgir "(...) dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte" (CF/88, art. 5º,
§2º). O Congresso Constituinte mantém em níveis absolutos a soberania nacional,
subordinando grande parte dos tratados e acordos realizados entre o Brasil e
outros países ao crivo do Congresso Nacional (CF, art. 49, I) e,
principalmente, estabelecendo uma rígida pirâmide hierárquica, com nossa
Constituição em seu ápice, agindo em conjunto com uma fé cega e inabalável no
Princípio da Legalidade (CF, art. 5º, II "ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei").
Contudo,
já se vão quase 12 anos desde a promulgação de nossa "Carta-Cidadã" e
para seu azar, o sonho da globalização, naqueles anos, era ainda...um
"sonho". Envelheceu, tornou-se obsoleta. Não, porém, sem submeter-se
a uma grande "cirurgia plástica", onde podemos incluir uma grande
Revisão Constitucional de 1993, prevista no art. 3º dos ADCT, e 26
"modificações" de tamanhos variados: desde a minúscula EC n.º 26,
"moradia...", até a vultosa EC n.º 19, "Reforma
Administrativa". Modificações que, em sua maior parte, são frutos da
árvore da tal Globalização.
Nossa
Soberania permanece intacta. A Nação Brasileira não se curvará jamais frente a
qualquer "ameaça" legiferante internacional. Nossa lei é nosso credo,
nossa fé; é algo quase mítico, o Mito da Lei. Sem ela mergulharíamos em um caos
tão profundo que toda a sociedade se desmoronaria. Como então permitir que uma
lei feita no estrangeiro, longe de nossas casas, de nossos costumes, de nossa
vida, possa ser uma boa lei? Nossos constituintes derivados, representantes
deste sentimento, assim não permitiram.
O
Direito Internacional
À
luz do Direito Internacional, ainda temos uma Constituição não globalizada e,
portanto, ultrapassada. Vamos às provas.
Viremos
levemente nossos pescoços para a esquerda e prestemos todos atenção no que diz
a Lei Maior de nossa vizinha Argentina: desde 1994, com a reforma
constitucional, está positivada a supremacia do tratado em relação ao
ordenamento jurídico interno (art. 75, incisos 22 e 24). Nas palavras do Prof.
Dr. Jorge Fontoura, em recente artigo, tal fato "constitui formidável
exemplo de superação dogmática, em que a hegemonia das idéias e a necessidade
de abertura e inserção internacionais prevaleceram em relação ao anacrônico e
insustentável isolamento jurídico". Conclui nosso Professor, no mesmo
artigo, mas agora virando-se para o Brasil: "No momento em que ainda
avaliamos se a famosa convenção dos tratados, tramitando desde os anos 60 no
Congresso Nacional, é compatível ou não com o nosso ordenamento jurídico – como
também o fazemos em relação à Lei de Arbitragem, argüida no STF – já que não
dilucidamos certos mistérios pétreos de nossa Lei Maior, os ventos que sopram
do Rio da Prata são sempre benfazejos".
No
entanto, data maxima venia, como iniciante do assunto que sou, prefiro
olhar com olhos um pouco mais tímidos do que o faz meu caro Professor. Acredito
que, para ter tamanha certeza da necessidade de tão profundas modificações em
nosso ordenamento jurídico, é preciso acreditar em algumas conclusões
inevitáveis:
a. é
necessário, ao Estado, abrir mão de certa porção de sua soberania (uma visão
bastante "hobbesiana" do Direito Internacional);
b. caso
isto não ocorra, o país poderá vir a ser bastante prejudicado, já que
tornar-se-á um país, na âmbito da sociedade internacional, isolado;
c. nenhum
país consegue superar suas dificuldades isoladamente em um mundo globalizado;
d. a
inexorabilidade de um Direito "realmente" Internacional como regra de
conduta em face da globalização, obrigando seus membros – Estados – à cessão de
parte de sua soberania. Fecha-se o círculo.
A
linha de raciocínio apresentada acima, nos dias atuais, parece-nos
absolutamente verdadeira. Basta olharmos as dificuldades enfrentadas por países
que não aderem razoavelmente a este sistema de relações internacionais (Cuba e
Iraque por motivos políticos, os países extremamente pobres, que não possuem
sequer condições para se desenvolver como parceiros de relações internacionais de
comércio). Em pólo oposto, vemos o enorme esforço empreendido pela China que,
mesmo sob a égide de um fechado regime marxista-maoísta, procura aperfeiçoar
seus mecanismos de trocas e relações internacionais.
Contudo,
em minha modestíssima opinião, parece que escapa um pequeno detalhe às
irrefutáveis conclusões: salvo raras exceções, e acentuo o "raras",
não há nenhum país que tenha atingido um índice razoável de melhorias internas,
principalmente no que diz respeito às condições de vida de suas populações, por
efeito de uma maior "abertura" – em um sentido verdadeiramente amplo
– às regras de Direito Internacional. Ao contrário, somente notamos tal
linearidade em países que já possuem um nível de vida de seus nacionais
bastante desenvolvido, ou de alguns países europeus, como Espanha e Portugal,
por exemplo, que têm experimentado grandes mudanças sócio-econômicas, assumindo
um novo papel no cenário internacional (principalmente os espanhóis, vide
Telefónica). Do resto, nada de novo.
Mas
é o caso espanhol o que parece melhor espelhar e propagar o seu reflexo para os
demais Estados. Após 40 anos de ditadura franquista, ao final dos anos setenta,
a Espanha era, junto com seu vizinho ibérico e a Grécia (para ficarmos fora da
Cortina de Ferro), um país extremamente pobre e desigual. Como pôde superar
tamanhas dificuldades em tão pouco tempo? A resposta não é simples, mas os
passos dados estão bem registrados: 1º) restabelecimento da democracia, através
de uma monarquia parlamentar, com eleições diretas e livres; 2º) o Pacto Social
de Moncloa; 3º) estabilidade/continuidade do grupo político dominante no poder
(foram 15 anos de governo socialista); 4º) sua entrada para o então MCE,
posteriormente CEE, hoje União Européia. Estes foram alguns dos "pequenos"
passos dados pela Espanha antes de aderir de maneira aberta à globalização.
Podemos, em síntese, esquematizar o processo: primeiro o fortalecimento
político interno, depois um fortalecimento político localizado ou regional e,
somente então, o pote de ouro.
A
pergunta a ser feita é: haverá condições para um país que não tenha dado nenhum
desses passos aderir incondicionalmente às regras liberalizantes do Direito
Internacional atual, com um forte viés redutor da soberania do Estado? Poderia
o Brasil simplesmente confiando na capacidade de seus atuais dirigentes
entregar-se pacificamente às praticas e costumes de uma sociedade internacional
que se apresenta extremamente desigual? Alguns países assim fizeram, e.g. os
chamados Tigres Asiáticos, porém, ao final de 1997 vieram à tona todas as suas
enormes fragilidades. Sua aparente recuperação agora dá-se quase que
exclusivamente em função de aporte de recursos norte-americanos, fruto de um
fantástico desempenho da economia dos E.U.A. no últimos anos.
O Caso
Pinochet
O
Direito Internacional se apresenta, sob muitos aspectos, substancialmente
diferente do Direito Interno. Existe algo que o torna bastante característico:
é supor um Direito que não possua a sanção como algo necessário, como elemento
inerente ao seu funcionamento. Pois assim é, ou deveria ser, o Direito
Internacional.
Para
nós estudantes, seres praticamente leigos na Ciência Jurídica, algo se
apresenta bem mais ilógico: imaginar um Direito sem Justiça.
As
decisões arbitrais, típicas do Direito Internacional, são em sua grande maioria
decisões que primam pela técnica quase matemática, são resultados de um caráter
marcadamente comercial do moderno Direito Internacional. Como conciliar
interesses comerciais/financeiros com Justiça?
Recentemente
surgiu uma "luz no fim do túnel", ou melhor, parecia que era um
verdadeiro "holofote". Tudo agora ficava mais claro. Recordemos os
fatos passo a passo:
·
16/10/98: o ex-ditador chileno Augusto Pinochet é detido
em Londres, para onde tinha ido realizar uma operação nas costas. A detenção é
feita a pedido da Justiça Espanhola, que solicitou ao Reino Unido sua
extradição para julgá-lo por crimes durante o seu governo (1973-1990);
·
25/11/98: a comissão jurídica da Câmara dos Lordes
decide que Pinochet não tem direito à imunidade por ser senador vitalício em
seu país;
·
09/12/98: o ministro do Interior britânico, Jack Straw,
rejeita os pedidos de libertação do governo chileno;
·
24/03/99: a Câmara dos Lordes decide que Pinochet não
tem direito à imunidade e será julgado por crimes cometidos após 1988, quando o
Reino Unido aderiu a uma convenção internacional sobre tortura;
·
Setembro/99: a Espanha rejeita um pedido do Chile para
que haja uma arbitragem internacional no caso. Pinochet envia uma carta ao
Senado chileno pedindo desculpas pelas morte ocorridas durante o seu governo;
·
08/10/99: a Justiça autoriza a extradição. A defesa
recorre;
·
11/01/00: exames médicos indicam que Pinochet não teria
condições físicas de enfrentar um processo prolongado na Espanha;
·
24/01/00: entidades de direitos humanos e a Bélgica
entram com recurso pedindo novos exames;
·
15/02/00: a Alta Corte ordena que o governo britânico
apresente o resultados à Bélgica, França, Espanha e Suíça; os países têm uma
semana para apresentar recursos;
·
02/03/00: o ministro do Interior britânico decidiu que
Pinochet não seria extraditado. O ex-ditador embarca de volta ao Chile;
·
03/03/00: Pinochet desembarca no Chile, é recebido com
festa pelas Forças Armadas chilenas.
Não
se queria puni-lo por crimes contra a humanidade, ou crimes de guerra, ou de
genocídio. A acusação contra Pinochet baseava-se nas mortes de nacionais
espanhóis ocorridas nos "estádios nacionais" da ditadura chilena.
Pesava sobre o ex-ditador a responsabilidade sobre estes homicídios. A questão,
portanto, não envolveria a princípio atos contrários à soberania do Estado
chileno. Tal seria verdade não fosse um pequeno detalhe: Pinhochet era Senador
vitalício, membro do Poder Legislativo chileno, um agente político, pairava
sobre sua cabeça o véu da imunidade. É aqui que entra o Direito Internacional.
O
Juiz espanhol Baltazar Garzón queria vingança, digo Justiça. A Bélgica, a
França e a Suíça também a queriam. Milhares de pessoas por todo o mundo também.
Desejava-se que o Direito Internacional assumisse o seu lado
"Direito" e colocasse o criminoso na cadeia, pois lá era o seu lugar.
Afinal foram 3.085 pessoas mortas, dentre elas 1.102 ainda desaparecidas. Havia
necessidade não de uma decisão técnica, necessitava-se de uma decisão justa.
Seria uma espécie de aviso a ex-ditadores "de plantão", que ainda
habitam este, agora, novo mundo, globalizado e justo. Além de decisões sobre
práticas de dumping, disputa sobre ilhas perdidas no meio de oceanos, ou
sobre quem recebeu mais dinheiro público para fazer aviões, os operadores do
Direito Internacional agora avisavam aos quatro cantos do mundo que se iria
fazer justiça.
Corroborando
esta idéia, há poucos meses da detenção de Pinochet foi criado, aos 17 dias do
mês de julho de 1998, o Tribunal Penal Internacional, como instituição
permanente, com jurisdição sobre indivíduos e tendo por missão punir crimes
mais graves, de transcendência internacional. Criado pela Conferência de Roma,
figurando o Brasil como país signatário, é, nas palavras de nossa ilustre
representante em sua Comissão Preparatória na ONU, a Desembargadora. Federal
Dr.ª Sylvia Helena Steiner, "fruto da evolução do sistema internacional
de proteção e repressão a crimes de guerra, crimes de genocídio, crimes contra
a humanidade e crimes de agressão". Mas não será assim tão simples.
Existem particularmente dois pontos que, de plano, tornam uma adesão
incondicional, para o Brasil, juridicamente inaceitável: a) há previsão em seu
estatuto da pena de prisão perpétua; expressamente proibida – condição esta
imutável - em nossa Lei Magna, art. 5º, XLVII; b) há previsão em seu estatuto
de que os Estados serão obrigados a proceder a entrega de pessoas à Corte,
contra às quais haja ordem de prisão emanada do próprio TPI; ora, também claro
está na CF/88, mais uma vez em seu art. 5º, agora em se inciso LI, que "nenhum
brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum,
praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei". Ficam aí as
polêmicas e suas soluções para nossos grandes doutrinadores.
A
detenção de Pinochet e a criação do TPI são indícios da derrota final do
Direito Internacional como o conhecemos atualmente? Enfim a Justiça se juntará
a este ramo "bastardo" do Direito e triunfará? A essas regras de
comportamento comercial e questões protocolares serão agregados elementos
jurídicos tradicionais: tipo, tipicidade, sanção, processo, decisão, sentença
condenatória, reparação, vingança. Enfim, a Panacéia.
São limites claros que se impõem agora. É preciso proteger a humanidade de seus
filhos ingratos. A abstração "Sociedade Mundial", a exemplo do que
ocorre nas sociedades nacionais, demanda a punição daqueles que a agridem de
maneira tão vil.
Pinochet
foi um desses filhos. Instaurou uma sangrenta ditadura militar da qual, em 27
de junho de 1974, se tornou o principal responsável. Em 1980, após um
plebiscito, visto como "fraudulento", fez aprovar uma Constituição
com previsão expressa que os Chefes das Forças Armadas não podiam ser
destituídos, além de abrir para si próprio a possibilidade de tornar-se senador
vitalício no dia em que deixasse de ser chefe de Estado e comandante do
Exército (o que ocorreu efetivamente após o "Não" do referendo de
05/10/98).
Como
seria o julgamento do General: Jurídico ou Político?
Há
algumas linhas, escrevi que a criação do TPI significava uma tentativa de se
transpor soluções de uma sociedade interna, regida basicamente pelo princípio
da submissão de todos à lei, para uma realidade internacional, onde seus
membros não são regidos por um ordenamento que se assente sobre este pilar: seus
membros são Estados soberanos e sua principal fonte legislativa é o costume e
os acordos. Não obstante esta primeira observação, faço uma outra que talvez
seja mais contundente: sabemos da falibilidade do sistema penal como ordenador
de condutas futuras, pelo singelo argumento de que a repressão aos atos
ilícitos, mesmo em níveis absurdos como se observa hoje em países ditos
desenvolvidos, não fez diminuir sua ocorrência.
Vamos
recorrer a um famoso penalista argentino, Raúl Zaffaroni, que tem feito
verdadeiros "estragos" na elite jurídica brasileira com suas idéias
bastantes reformistas: "é indiscutível que em toda sociedade existe uma
estrutura de poder e segmentos ou setores mais próximos – ou hegemônicos – e
outros mais alijados – marginalizados do poder. Obviamente, esta estrutura
tende a sustentar-se através do controle social e de sua parte punitiva,
denominada sistema penal. Uma das formas mais violentas de sustentação é o
sistema penal, na conformidade da comprovação dos resultados que este produz
sobre as pessoas que sofrem os seus efeitos e sobre aquelas que participam nos
seus segmentos estáveis. Em parte, o sistema penal cumpre esta função,
fazendo-o mediante a criminalização seletiva dos marginalizados. E
também em parte, quando os outros meios de controle social fracassam, o sistema
não tem dúvidas em criminalizar pessoas dos próprios setores hegemônicos,
para que estes sejam mantidos e reafirmados no seu rol, e não desenvolvam
condutas prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem".
Conclui, mais adiante, nosso mestre: "Em síntese, o sistema penal
cumpre uma função substancialmente simbólica frente aos marginalizados
ou aos próprios setores hegemônicos. A sustentação da estrutura do poder social
através da via punitiva é fundamentalmente simbólica".
Qual
é a garantia de que a escolha de tal via não viria a reproduzir, em níveis
internacionais, esta mesma estrutura de manutenção de poder e marginalização de
segmentos sociais (poderíamos substituir, para fins de nossa análise,
"segmentos sociais" por "grupos específicos de nações")
observada nos ordenamentos jurídicos internos? Afinal, quando o assunto é crime
contra a humanidade, quais os criminosos que serão julgados? Todos eles?
Acredito que não. Podem ficar tranqüilos os líderes das grandes potências
mundiais, pois genocidas, cruéis generais e seus prepostos são espécies nativas
de nações subdesenvolvidas. Nada terão a temer futuros oficiais estadunidenses,
franceses, ingleses, canadenses, russos, japoneses; poderão eles derramar suas
bombas onde quiserem, pois a "Justiça" sempre estará ao seu lado.
Tirante a trágica ironia, não tenhamos dúvidas de que assim ocorrerá.
Em
recente artigo publicado em site da World Wide Web "Jus
Navigandi", o Prof. Ives Gandra Martins nos coloca a seguinte pergunta:
"Pode um membro do poder legislativo de um país ser julgado, num país
estrangeiro, por fatos ocorridos em seu país de origem, sem que a soberania
seja atingida?". A resposta dada pelo ilustre professor é negativa.
Não percamos de vista que Pinochet seria julgado por homicídio cometido contra
cidadãos espanhóis no Chile, portanto é o pedido juridicamente possível. Porém
romper com a imunidade parlamentar do ex-ditador e sobrepujar as barreiras
impostas pelo próprio Direito Internacional é quase como um retorno ao
imperialismo imposto à toda a banda latino-americana durante séculos de
colonização. Nas palavras do Prof. Gandra Martins: "Estou convencido de
que o preconceito aristocrático dos países europeus em relação à América do Sul
permanece, apesar de seu desumano colonialismo, praticado do século XVI ao
começo do século XX, já não ter espaço nos dias atuais. Continuam, todavia,
agindo como se o mundo fosse dividido entre raça superior, que são os europeus
e os norte-americanos, e a plebe inferior que reside na América do Sul, na
África e na Ásia".
Observem
a semelhança entre as palavras de Zaffaroni e os fatos narrados acima. São
assustadoras.
Sim,
teríamos um julgamento político de Pinochet. Seria reafirmada a supremacia
européia sobre os pobres latino-americanos, tão dependentes da Justiça desses
povos tão sábios...
Conclusão
Apesar
da aparente vitória do general Pinochet quando do seu retorno ao Chile, não
obstante um certo trunfo também dos governos inglês e espanhol, que do alto da
suas complacências "libertaram" o doente ex-ditador, algumas
discussões devem ser trazidas à tona, principalmente no que concerne à
redefinição do conceito de soberania nacional.
Primeiramente
deverá ser estabelecido em que termos se dará tal redefinição, isto é, em que
foro, jurídico ou político, serão estabelecidas suas novas bases. Se
juridicamente, não haverá diferenças entre as nações; ex-ditadores ou
criminosos não possuirão nacionalidade, serão julgados e punidos. Esta talvez
seja a versão globalizada (e fictícia) desta nossa história.
Politicamente,
teremos outra solução. As grandes potências mundiais ditarão o ritmo e o rumo
desta "nova justiça". Cabe lembrar que os E.U.A. não são signatários
do Pacto de Roma. Cabe lembrar que os E.U.A. são a maior potência bélica do
mundo. Cabe lembrar que revendo as soluções adotadas pelos norte-americanos nos
últimos 40 anos (Vietnã, Granada, Panamá, Irã, Iraque, Iugoslávia) não restam
muitas esperanças de submissão daquele país a decisões de organismos
internacionais. Talvez as nações européias se mostrem um pouco mais
"civilizadas". Mas, não serão menos autoritárias.
Cabe
lembrar que nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer coisa para
vivermos em um mundo um pouco menos desigual. Cabe lembrar que nenhum destes
países, nos últimos 100 anos, fez qualquer coisa para vivermos em um mundo com
menos fome. Cabe lembrar que nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer
coisa para vivermos em um mundo um pouco mais justo.
Não
parece-me ser o meio escolhido, o mais indicado para atingir todos estes
objetivos.
Bibliografia
1. Bastos,
Celso Ribeiro. "Curso de Direito Constitucional". Editora Saraiva.
São Paulo. 1999;
2. Bobbio,
Norberto. "Estado, Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da
política". Editora Paz e Terra. São Paulo. 1999;
3. Constituição
da República Federativa do Brasil. Coleção Saraiva de Legislação;
4. Fausto,
Boris. "O general venceu?". Artigo publicado no jornal Folha de São
Paulo, de 13/03/00;
5. Folha
de São Paulo. Diversas matérias. Caderno Mundo, 13/03/00, página 13;
6. Fontoura,
Jorge. "O avanço constitucional argentino e o Brasil". Artigo
publicado no jornal Correio Braziliense, Caderno Direito&Justiça, de
06/03/00, página 5;
7. Martins,
Ives Gandra da S. "A soberania da América do Sul e Pinochet". Texto
publicado no site jurídico "www.jus.com.br";
8. Mello,
Celso D. de Albuquerque. "Direito Internacional Público". Editora
Livraria Freitas Bastos S.A., Rio de Janeiro e São Paulo;
9. Steiner,
Sylvia Helena F. "O Tribunal Penal Internacional". Artigo publicado
no IBCCrim, Outubro/1997, n.º 83, Ano 7, página 12;
10. Souza, Carlos Fernando
M. "O Tribunal Penal Internacional". Artigo publicado no jornal Correio
Braziliense, Caderno Direito&Justiça de 29/11/99, página 6;
11. Zaffaroni, Eugenio Raúl
e Pierangelli, José Henrique. "Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte
Geral". Editora RT. São Paulo.
* Servidor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, acadêmico de Direito no UniCEUB
Disponível em : < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1641 >. Acesso em : 18 de setembro de 2006.