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A Crise da Modernidade e as suas Conseqüências no Paradigma Penal (Um breve excurso sobre o Direito Penal do Risco)




Fabio Roberto D'Avila*

 


*Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Mestre em Ciências Criminais – PUCRS, Especialista em Ciências Penais - PUCRS, Bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal, Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.          



            A história atesta momentos em que a própria concepção do real parece diluir-se em si mesma, gerando a mais absoluta perplexidade. A ciência transmuta-se em fé e esta acaba por ser, muitas vezes, o inacreditável esteio de passagem para um novo momento. Hegel, em sua obra Fenomenologia do Espírito, descreve, com singular perfeição, o advento de uma nova era: “Não é difícil ver que o nosso tempo é um tempo de nascimento e de passagem para um novo período. O espírito rompeu com o que era até agora o mundo da sua existência e representação e está a ponto de afundar no passado, está a operar a sua transfiguração... A frivolidade e o tédio que vão minando o que ainda existe, o vago pressentimento de um desconhecido são prenúncios de que se prepara algo de diferente. Este esboroar gradual... é interrompido pelo nascer do sol que, qual um relâmpago, revela de súbito a imagem do mundo novo” . Ora, em que pese a fluidez do novo, torna-se impossível assistir a história sem atestar o que se apresenta de mais visível: não vivemos um tempo como qualquer outro, algo de inusitado parece ser responsável pela bancarrota de todas as crenças, ciência e fé parecem misturar-se em um inapreensível emaranhado de convicções. Por certo, Hegel poderia ter vivido hoje e, com mais razão ainda, indicaria a relevância do presente para a proeminência do tempo que desponta.  
Diversamente da cosmovisão medieval que, fundada nas concepções de estratificação, esfericidade e finitude , encontrou seu fim na aurora da racionalidade, no denominado paradigma da razão , a modernidade parece ter encontrado seu fim, paradoxalmente, em si mesma. Aficionada pelo imaginário de um mundo perfeito e ordenado, como um imenso mecanismo em que tudo tem o seu lugar e a sua função, a modernidade acreditava ser capaz de desvendar as premissas desta suposta lógica, para, então, dominá-lo. Afinal, se de fato houvesse ordem haveria necessariamente leis para rege-lo, e o seu conhecimento apresentar-se-ia como a ambicionada chave deste grandioso mecanismo. Como fruto deste pensar, desenvolveu-se a idéia de uma razão técnico-instrumental, voltada para o domínio da natureza ; ou, na expressão de Bacon, a pessoa humana como “senhor e possuidor da natureza” , o que, indubitavelmente levou a um progresso incomensurável da técnica, mas que parece ter, finalmente, encontrado o seu limite em um contexto chamado por muitos, entre outras designações, nunca isentas de crítica, de “pós-modernidade” ou “modernidade tardia” .         
A crise do paradigma moderno, bem leciona Boaventura de Souza Santos, teve seu início nas descobertas de Einstein acerca da relatividade e simultaneidade dos acontecimentos, e nos experimentos de Heisenberg e Bohr, no âmbito da mecânica quântica . Enquanto Einstein, no campo da astrofísica, põe por terra a concepção de um espaço e tempo absolutos propugnada por Newton, Heisenberg provoca transformações no universo da microfísica, ao questionar a idéia de causalidade, face ao princípio da indeterminação . Em um cenário absolutamente surreal, as concepções de espaço, tempo e causalidade, fundamentais de tal forma à modernidade que Kant chegou a considerá-las exemplos da mais pura forma de saber, o conhecimento a priori , caracterizado pela universalidade e independência da experiência sensível, são postas em xeque, desestabilizando toda uma estrutura de certeza que então era viabilizada a partir da sua existência.      
Dado o primeiro passo, novos estudos e pesquisa começam a delinear o paradigma emergente ante a perplexidade do império da razão. Como bem aduz Ruth Gauer, “a ciência moderna baseada no dogma de um determinismo universal desabou, enquanto lógica, chave mestra da certeza do raciocínio, revelou incertezas na indução, impossibilidades de decisão e limites no princípio do terceiro incluído. Assim, o objetivo do pensamento complexo é ao mesmo tempo unir (contextualizar e globalizar) e aceitar o desafio da incerteza” . A incerteza e a possibilidade começam a substituir a certeza e a probabilidade como fatores indispensáveis em toda e qualquer análise científica. A matemática como modelo paradigmático das ciências em geral , dá lugar às até então marginalizadas ciências sociais, tornando possível o tráfego livre de conceitos como auto-organização, complexidade, espontaneidade, contingência, historicidade, desordem, entre outros .           
A realidade é que, independente do lastro científico em que se embasa a crítica, esta, por si só, subsiste, revelando ao homem moderno as ruínas de sua aspirada dominação. O próprio ser cognoscendi esfacelou-se no ato de conhecer. Primeiro a inapreensão de si mesmo, como bem demonstra, entre outros, Antônio Damásio , depois a inapreensão dos limites de sua própria técnica, de que nos fala, com propriedade, Anselmo Borges . O desolamento humano tornou-se claro ao perceber que no ambiente marcado pela instabilidade de não se conhecer, vive a glória e terror do ápice da sua técnica: pode destruir o mundo se assim o desejar, mas pode igualmente fazê-lo, sem sequer perceber.          
Neste emaranhado de concepções emergentes, em que pese a indubitável relevância das questões relativas ao ser e o mundo, representações do real e do simbólico, no que tange ao direito penal, a crise do paradigma moderno parece apresentar-se ainda mais claramente no que poderíamos chamar “esgotamento da razão técno-instrumental, como projeto de desenvolvimento controlável”, e delineamento da denominada “sociedade do risco” .        
O risco, testemunhado por Ulrich Beck, parece ter defraudado as expectativas de inúmeros cientistas, que, aguardando o fim da modernidade em guerras, revoluções ou outro evento qualquer de profundo impacto social, foram surpreendidos pelo invisível, pelo inesperado, que, silenciosamente, transformou o próprio êxito da ciência, estampado no progresso tecnológico, no mais implacável dos seus inimigos, na marca de um novo tempo .       
Como bem destaca Beck, no final do século XX, a natureza, esgotada e submetida ao homem, deixa de ser um fenômeno externo, para constituir-se um fenômeno interno, transforma-se de fenômeno dado, para fenômeno produzido . Os processos avançados de produção passam a constituir-se fontes geradoras de graves riscos ao meio ambiente e, por conseqüência, a própria vida na terra. Os riscos que hoje surgem, distintos daqueles que assolavam a humanidade na época do medievo , são, em sua invisibilidade, caracterizados pela globalização e irreversibilidade de sua ameaça, além e nomeadamente da sua “causa moderna” .
O homem moderno, no afã de tudo dominar, constrói o real através do prisma do utilitarismo exacerbado, ao mesmo tempo em que ele se esvai na penumbra da sua ignorância. “A experiência viva do pré-reflexivo, a consciência encarnada, a liberdade que se realiza no mundo, o facto paradoxal da intersubjectividade, o plano ético e religioso, a consciência da inevitabilidade de morrer, questão do sentido último da pessoa e da história” , destaca Anselmo Borges, passam desapercebidos ao homem, fazendo com que desconheça o mundo concreto, deixe escapar o essencial .      
No entanto, parece que curiosamente, o “essencial”, por via transversa, chama a atenção para os limites da racionalidade. Os danos ao meio ambiente, a manipulação genética, a instabilidade econômica na interdependência dos mercados, demonstram que a razão técno-instrumental, em sua glória artificial, está absolutamente fora de controle. Transformou-se em uma fonte geradora de riscos inimagináveis, ameaçando a continuidade da vida na terra e própria existência do planeta. O risco, abruptamente, retira do tapete do projeto da modernidade, revelando a inapreensão do real verdadeiro, que ironicamente sempre acompanhou o desenvolvimento da tecnociência.           
A tomada de consciência desta nova conjuntura, exige, por óbvio, medidas urgentes. A elaboração de estratégias para a contenção dos riscos gerados pela própria humanidade, torna-se condição para a sua existência futura. Aqui já não há diferenças de nacionalidade, cultura, padrão social; todos, indistintamente, tornam-se objetos da nova ameaça, que, nas palavras de Anselmo Borges, lança um desafio que deve ser aceito: “se impõe que a humanidade, se quiser ter futuro, se tem de tornar sujeito comum da responsabilidade pela vida” .
Ante tal cenário, não surpreende o anacronismo vivido pelo direito penal. Fundamentado nos princípios liberais do iluminismo e de cunho marcadamente antropocêntrico, o direito penal foi elaborado para tutelar bens jurídicos tradicionais como a vida, a integridade física, a saúde, o patrimônio, de agressões humanas próximas e definidas , enquanto que, no atual universo pós-moderno, as ações humanas, potencializadas pelo desenvolvimento da razão técnico-instrumental, alcançam novas dimensões, em relação de espaço-tempo peculiares, em que os riscos globalizam-se e geram danos muitas vezes diferidos, atingindo novos bens jurídicos e cuja lesividade pode atingir a gravidade extrema da extinção da vida no planeta.           
A disparidade de tais universos apresenta-se de forma muito clara nos problemas enfrentados pela dogmática penal. São evidentes as inúmeras deficiências que vem atestando em sua tentativa de acompanhar a pretensão político-criminal nestes novos âmbitos de tutela, uma vez que preparada para atender uma demanda absolutamente diversa daquela que ora é proposta. O direito penal liberal elaborado tendo por base o paradigmático delito de homicídio doloso, no qual há marcante clareza na determinação dos sujeitos ativo e passivo, bem como do resultado e de seu nexo de causalidade, defronta-se com delitos em que o sujeito ativo dilui-se em uma organização criminosa, em que o sujeito passivo é difuso, o bem jurídico coletivo, e o resultado de difícil apreciação. Sem falar, obviamente, do aspecto transnacional destes novos delitos, em que tanto a ação como o resultado normalmente ultrapassam os limites do Estado Nação, necessitando, por conseguinte, da cooperação internacional para a elaboração de propostas que ambicionem uma parcela qualquer de eficácia.
Não bastassem as dificuldades que se colocam em âmbito dogmático, a própria atuação do direito penal neste novo universo tem sido objeto de acirrados debates políticos e doutrinários. Entre discursos extremados e moderados, há desde quem defenda o afastamento do direito penal em prol de instâncias administrativas, como quem sustente, em um funcionalismo extremado, um direito penal voltado à promoção de valores . No entanto, distante dos extremismos, negar espaço ao direito penal para a contenção de riscos de tal magnitude significa, como bem afirma Figueiredo Dias em referência a Stratenwerth, “a confissão resignada de que ao direito penal não pertence nenhum papel na proteção das gerações futuras” .      
Por outro lado, deve-se atentar que a simples substituição do status quo moderno, pelos paradigmas da atual sociedade do risco, seguido de todas as suas derivações, é tão pernicioso, quanto a sua total desconsideração. O problema não está em um mero renovar a leitura do social, mediante nova percepção. O horizonte que se abre perante os nossos olhos, aponta novos e diferentes problemas, para os quais o ainda não esgotado Aufklärung parece não apontar respostas razoáveis, mas, no entanto, os problemas então vividos e trabalhados segundo os critérios tradicionais, persistem. Ou seja, a questão está em saber conciliar universos diversos, mas igualmente necessários; ou, nas acertadas palavras de Anselmo Borges, em referência a Hegel: superação (Aufhebung) . Por certo, esta convivência só é possível mediante a referida idéia de superação, eis que a difícil aproximação de leituras tão dispares como estas, importa, necessariamente, a transformação de ambas, demarcando-se novos contornos, delineando-se os respectivos universos de aplicação e, principalmente, delimitando-se alcance e responsabilidade. Não faz qualquer sentido o abandono de premissas construídas pelo pensamento humano ao longo de séculos, sob pena de cairmos em um irracionalismo despótico, em um fundamentalismo qualquer que seja.    
O Iluminismo, evidentemente, ainda não se esgotou e, como se denota, presenteou a humanidade com princípios e valores irrenunciáveis , sob pena de perder-se o que há de mais valioso, precipuamente em momentos de transformação: a própria identidade. No esteio das ciências jurídicas, tal evidência é ainda mais gritante. A Revolução Ilustrada marcou de tal forma o pensamento jurídico, que este se identifica com ela, socorrendo-se continuamente em suas premissas e mandamentos. Bem afirma Faria Costa, “o ordenamento jurídico se não resume à soma, por mais articulada que seja, de todas as normas positivas. Ele enquanto multiversum, contém princípios e regras. Princípios e regras que, muito embora não estejam positivados, são parte integrante de todo o múltiplo que a ordem jurídica representa” . Por conseguinte, não resta dúvida que a nova leitura, imposta pelos desafios que apontam, implica, verdadeiramente, a difícil tarefa de caminhar sobre a linha tênue da temperança, do bom senso, buscando no passado o que há de indispensável para reconhecer-se a si mesmo, e no presente, as marcas de uma nova feição.

 

 

 

 

D'Avila, Fabio Roberto. A Crise da Modernidade e as suas Conseqüências no Paradigma Penal (Um breve excurso sobre o Direito Penal do Risco). Disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=70. Acesso em 24 de agosto de 2006.