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A Emenda
Constitucional nº 45 e a jurisdição penal da Justiça
do Trabalho: uma polêmica que já não pode ser ignorada
João Humberto Cesário *
"A anomia, longe de representar,
sociologicamente, a simples rejeição nilista de toda
e qualquer norma, denuncia a polarização de novos projetos de positivação
normativa, conquanto ainda existentes ou somente implícitos. (...) A anomia representa o prenúncio da mudança iminente na
estrutura institucionalizada, quando esta entra em décalage
com a corrente histórica." [01]
1 – BREVE ADVERTÊNCIA.
Logo no início do presente estudo, devo advertir que não me move a
pretensão de ser original ou exauriente. Embora a
maior parte das ponderações que adiante trarei sejam oriundas
das minhas reflexões, outras tantas não passam de argumentos que tenho lido e
ouvido, dos quais me apropriarei na perspectiva da re-elaboração
dialética, de modo a organicamente contribuir para a construção de novos e mais
avançados modos de se enxergar o Direito.
Assim, como não poderia deixar de ser, cumpre-me agradecer aos amigos
de caminhada que me têm subsidiado com as suas argutas observações, vazadas em
muitos textos já publicados sobre o assunto. Agradeço-os principalmente pelos
reptos que me lançaram nas nossas listas internas de debates na Internet
(especialmente na da AMATRA XXIII), neles reconhecendo uma poderosa instigação ao
aperfeiçoamento deste arrazoado. [02]
Enfim, esclareço que tenho a plena consciência de que todas as vezes
que nos lançamos a um debate intelectual, corremos o risco de defender idéias
que não acolham o aplauso dos estudiosos da matéria tratada. Com efeito, nem de
longe nutro a tola pretensão de me arvorar em guardião supremo da razão.
Como itinerário do estudo proposto, vou primeiramente explicitar os
argumentos que me levam a concluir pela competência penal da Justiça do
Trabalho, para depois elencar e buscar superar os
raciocínios contrários à tese. Ao final, como não poderia deixar de ser, trarei
algumas conclusões sobre o assunto.
2 - ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À COMPETÊNCIA CRIMINAL
DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
2.1 – O Artigo 114, I, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho
Para as Ações Oriundas da Relação de Trabalho.
Estabelece o novel artigo 114, I, da CRFB que "compete à
Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da
relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da
administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios".
Para uma exata compreensão do incomensurável alcance da disposição
contida na aludida formulação constitucional, faz-se necessária uma remissão à
sua antiga redação (do artigo 114 da CRFB), outrora a dizer que competia "à
Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos
entre trabalhadores e empregadores (...)".
Pois bem. Mesmo me arriscando a propalar mera máxima acaciana, devo
rememorar que a E.C 45 ampliou substancialmente a
competência jurisdicional da Justiça do Trabalho. Mas não foi só...
Ocorre que a par do notável fortalecimento do aparelho judicial
trabalhista, a E.C. 45 incrementou uma esplendorosa, porém silenciosa (e por
isso pouco notada) revolução nas balizas competenciais
da Justiça do Trabalho, transportando-as do campo subjetivo para o objetivo.
Assim, ao estabelecer no passado que à Especializada Laboral incumbia tão-somente o julgamento das ações que
envolvessem empregados e empregadores, a CRFB estava a vedar, implicitamente, a
competência penal deste ramo do Poder Judiciário, já que as ações criminais,
ainda que imantadas de conteúdo trabalhista, não se desenvolveriam entre
trabalhadores e patrões.
Todavia a questão ganha contornos substancialmente distintos com a E.C 45, na medida em que a Constituição rompe com os
estreitos limites subjetivos da matéria, para decididamente abraçar os
dilatados contornos objetivos do assunto, passando a dizer que compete à Justiça
do Trabalho julgar não apenas as causas entre empregados e empregadores, mas
todas as ações decorrentes da relação de trabalho [03], sem
qualquer distinção de natureza (trabalhista de sentido estrito, civil ou
penal).
Absolutamente defensável, pois, a jurisdição penal da Justiça do
Trabalho a partir de então.
2.2 – O Artigo 114, II, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho
Para as Ações que Envolvam o Exercício do Direito de Greve. [04]
Estabelece hodiernamente o artigo 114, II, da CRFB, que "compete
à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações que envolvem o exercício do
direito de greve".
Sublinhe-se, assim, que a previsão de competência remete o operador justrabalhista para as ações, sem distinção de natureza
(mais uma vez), que envolvam exercício do direito de greve.
Portanto, não sem antes ressaltar o preceito comezinho de hermenêutica
constitucional, a ditar que a Constituição deva ser interpretada sob o enfoque
da máxima efetividade, com os olhos tão-somente voltados aos limites da concordância
prática, será paradoxalmente necessária a remessa do leitor, num primeiro
momento, à legislação infraconstitucional, a fim de se estabelecer a grandiosa
abrangência do preceito à balha.
Cumprindo tal desiderato, é necessário se destacar que o artigo 15 da Lei
7.783-89 (Lei de Greve), apregoa que "a responsabilidade pelos atos
praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso da greve, será apurada,
conforme o caso, segundo a legislação trabalhista, civil ou penal".
Ora, se a Constituição dirige a competência da Justiça do Trabalho, sem
distinções, para a cognição e julgamento das ações oriundas do direito de
greve, e se o direito de greve nos termos de sua lei
própria será analisado pelos primas trabalhista, civil e penal, não se pode
concluir de modo diverso, senão para se entender que a atribuição especializada
será ampla.
Somente uma visão aferrada a dogmas do passado, incompatível com a atual
quadra competencial traçada pela EC 45, é que será
capaz de restringir esta possibilidade, pelo que me parece sensato proclamar
que doravante estão reservadas à competência do Judiciário Laboral
todas as ações que envolvam o exercício do direito de greve, independentemente
do objeto trabalhista stricto, civil ou penal
de que possam estar impregnadas.
2.3 - O Artigo 114, III, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho
Para as Ações Sobre Representação Sindical.
Aqui, a bem da verdade, a questão é um tanto mais intrincada.
Ocorre que o inciso III do artigo 114 da CRFB, lastreado numa visão
mais subjetiva do fenômeno competencial trabalhista,
somente faz alusão às ações sobre representação sindical entre sindicatos,
entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores.
Ainda assim, diante da lógica abrangente e objetiva do sistema
constitucional emergido da E.C 45, não chega a ser
difícil de se enxergar a competência penal da Justiça do Trabalho no
pertinente, desde que os nossos olhos estejam voltados ao tipo
lógico-sistemático de hermenêutica.
Tanto é verdade, que até mesmo a Justiça Federal já se pronunciou
dentro desta diretriz, fazendo-o, diga-se de passagem, a requerimento do
Ministério Público Federal:
"Vistos, etc...
Trata-se de notícia crime onde o Ministério Público Federal requereu a
remessa dos presentes autos à Justiça do Trabalho, entendendo ser esse o juízo
competente para processar e julgar as irregularidades, em tese, na fundação do
Sindicato dos Empregados do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios, Tecidos
e Vestuário de Brusque.
Como aduziu o Parquet Federal, a Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 8°, inciso I, garantiu
a liberdade para a formação de associações sindicais, sendo vedada a intervenção estatal em sua organização, litteram:
"Art. 8°. É livre a associação
profissional ou sindical, observado o seguinte:
I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de
sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;
(...)"
Entretanto, o inciso II deste dispositivo legal veda a criação de mais
de uma organização sindical representativa de categoria profissional ou
econômica na mesma base territorial, conforme teria ocorrido, em tese, no caso
dos autos.
Todavia, tal irregularidade apontada pelo Parquet
Federal não se constitui crime cujo processamento caiba à Justiça Federal, mas
sim à Justiça do Trabalho, nos termos do art. 114, III, da CF/88 (Inciso
incluído pela Emenda Constitucional n° 45/2004).
Assim, acolho as razões do Ministério Público Federal, e determino a
remessa dos autos à Justiça do Trabalho de Brusque/SC, competente para
processar e julgar o feito." [05]
Com efeito, embora a redação do preceptivo invocado (artigo 114, III,
da CRFB) possa gerar alguma discussão, diante do vetusto viés subjetivo que
aparentemente a inspira, não chega a ser impossível, também a partir dela, se
reconhecer a competência criminal da Justiça do Trabalho.
2.4 - O Artigo 114, IV, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho
Para o Conhecimento de habeas corpus.
De outra vertente, parece-me ainda que o inciso IV do artigo 114 da
CRFB, que estabelece a competência do Judiciário Laboral
para conhecimento dos "mandados de segurança, habeas
corpus e a habeas data, quando o ato questionado
envolver matéria sujeita à sua jurisdição", seja capaz de garantir a
jurisdição penal aqui discutida.
Muito embora não se afigure adequado discutir sobre a natureza
jurídica do habeas corpus neste breve
ensaio, acredito que uma vez considerado tão-somente o ponto de vista do Supremo
Tribunal Federal sobre a matéria [06], será forçoso concluir
que o inciso IV do novo artigo 114 da CRFB trouxe competência criminal à
Justiça do Trabalho.
Em tal diapasão, é de se ver que em recente decisão, datada de
28.06.2005 (portanto já ao tempo da E.C. 45), a ementa do julgamento ocorrido
no âmbito da 1ª Turma do STF ficou assentada na seguinte pilastra:
"(...) firme a jurisprudência do Tribunal em que, sendo
o habeas corpus uma ação de natureza penal, a
competência para o seu julgamento será sempre de juízo criminal, ainda que
a questão material subjacente seja de natureza civil (...)".
[07] (sem destaque no original)
Sem dúvida alguma, o mencionado julgamento é paradigmático, na medida
em que traz no seu bojo contundentes indícios de que o STF poderá reconhecer a
jurisdição penal da Justiça do Trabalho, já que por certo manterá coerência
futura para com a sua firme jurisprudência, no sentido de que sendo o habeas corpus uma ação de natureza penal, seu
julgamento sempre se dará em órgãos revestidos de competência criminal.
3 – SUPERANDO OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À
COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Muitos daqueles que relutam em reconhecer a hodierna competência
criminal da Justiça do Trabalho, arrimam seus pontos de vista em três argumentos
básicos, a saber: a) que não teria sido intenção do constituinte derivado,
por via da EC 45, atribuir esta competência à Justiça do Trabalho; b) que a
função jurisdicional da Justiça do Trabalho não é a de se imiscuir nas questões
criminais, devendo se restringir à pacificação das relações capital-trabalho;
c) que o artigo 109, VI, da CRFB outorga essa competência expressamente à
Justiça Federal, na medida em que este é o órgão ali indicado para o julgamento
dos crimes contra a organização do trabalho.
Ao meu ver, embora ponderáveis e
dignos de respeito, tais argumentos, data venia,
não se sustentam. Será isso o que demonstrarei doravante.
3.1 – O Texto da Lei versus o Conteúdo da Norma: O Juiz é
Somente a Boca da Lei?!
Não nego, de modo algum, que o constituinte derivado jamais esteve
preocupado em atribuir jurisdição criminal ao Judiciário Trabalhista.
Todavia, à guisa de provocação, relembro que
durante o processo de Reforma do Judiciário a questão da competência para julgamento
das ações envolvendo acidente do trabalho foi expressamente discutida e votada,
tendo o Poder Legislativo rechaçado a atribuição da Especializada Laboral para a cognição da matéria.
Nada obstante, tal fato não se constituiu em empecilho para que o
pleno do STF, passado alguns meses de vigência da novel redação do artigo 114
da CRFB, reconhecesse, à unanimidade, que a competência para tais ações
iniludivelmente pertence à Justiça do Trabalho.
Tal provocação não deve causar perplexidade ao operador jurídico
contemporâneo, já que de há muito foi rompida a vetusta máxima liberal
francesa, no sentido de que o juiz deveria se contentar em ser a boca da lei.
Aliás, todos aqueles que se embrenham pelo estudo da hermenêutica
sabem que a lei, enquanto texto, é muito menor do que
a norma, enquanto ideal de justiça. Vale dizer: é da interpretação do texto que
se extraí o conteúdo da norma!
Não se trata de pregar o desrespeito ao constituinte derivado, mas de
trabalhar pela ruptura de uma lógica arcaica, preocupada em amesquinhar o Poder
Judiciário, a ponto de reduzi-lo ao precário papel de despachante do
Legislativo.
Não por outra razão, ensina-nos o Ministro EROS ROBERTO GRAU, digno
integrante do Supremo Tribunal Federal:
"A norma encontra-se em estado de potência, involucrada no texto. Mas ela se
encontra assim nele involucrada apenas parcialmente,
porque os fatos também a determinam – insisto nisso: a norma é produzida, pelo
intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo
do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela
aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser).
Interpreta-se também o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade –
no momento histórico no qual se opera a interpretação – em cujo contexto serão
eles aplicados.
A norma encontra-se em estado de potência, involucrada
no texto e o intérprete a desnuda. Neste sentido – isto é, no
sentido do desvencilhamento da norma de seu
invólucro: no sentido de fazê-la brotar do texto, do enunciado – é que afirmo
que o intérprete produz a norma." [08]
No mesmo sentido, porém ainda mais enfáticas, são as palavras de
AMILTON BUENO DE CARVALHO, com remissões aos juristas DALMO DE ABREU DALLARI e
ANTÔNIO CARLOS WOLKMER:
"Se a função do Juiz é buscar a vontade do
legislador, qual a razão de ser do Judiciário? Simples
seria deixar ao próprio legislador a tarefa da aplicação, que o faria
administrativamente. O intermediário Judiciário seria mera formalidade, a não
ser que sua existência tivesse por fim a hipótese levantada por Dallari:
esconder o legislador, o verdadeiro interessado, cabendo ao Judiciário fazer
"um papel sujo, pois é quem garante a efetivação da injustiça".
Ora, "a função jurisdicional transcende a modesta função de
servir aos caprichos e à vontade do legislador..." (Antônio Carlos Wolkmer, Revista Ajuris, 34/95).
O Judiciário é Poder do Estado e a ele cabe o compromisso, tão
sério quanto o do Legislativo, de buscar o que é melhor para o povo. A lei é
apenas um referencial, o mais importante, mas apenas referencial. A não ser que se dê a ela o condão de estancar o mundo."
[09]
Dessarte, dentro de uma perspectiva
mais ampla e arejada, não me parece que a vontade de constituinte derivado seja
óbice instransponível ao reconhecimento da hodierna competência penal da
Justiça do Trabalho.
3.2 – A Jurisdição Penal da Justiça do Trabalho Será Poderoso
Instrumento de Fomento ao Respeito de Obrigações Trabalhistas Básicas Pelos
Empregadores.
Atrevo-me ainda a discordar dos que asseveram que as questões penais-laborais não influenciariam
diretamente na relação capital-trabalho, haja vista que não tenho dúvidas em
afirmar que a impunidade penal nesta área, oriunda da pouca atenção que a
Justiça e o Ministério Público comuns têm devotado à questão (obviamente que
por razões de vocação, formação, tempo e prioridades; jamais de desídia),
constitui-se no maior estímulo ao descumprimento de obrigações trabalhistas
elementares por parte dos empregadores, abrindo ensanchas
até mesmo à existência da vergonhosa prática do trabalho escravo no Brasil, em
pleno século XXI.
Para exercício de comprovação do afirmado, basta-me relatar que nos
últimos dias recebi a notícia da morte de dois trabalhadores rurais, que
faleceram em virtude de terem manejado defensivos agrícolas sem contarem com a
proteção de EPIs, que não
lhes foram ofertados por pura omissão de seus empregadores, caso que configura,
ao meu ver, hipótese típica de homicídio culposo.
Quero crer que se tais empregadores padecessem do receio de suportarem
a partir daí uma condenação penal, muito provavelmente teriam cumprido com a
obrigação contratual básica de garantir aos seus empregados um meio-ambiente de
trabalho hígido, o que por certo teria preservado a vida de tais camponeses.
Com efeito, não sem antes solicitar vênias aos que pensam de modo
diferente, creio que por via de condenações penais a Justiça do Trabalho poderá
fazer muito pelo cumprimento da legislação trabalhista, interferindo
positivamente na relação capital-trabalho.
E não se venha argumentar que para o cumprimento das regras de
segurança e medicina do trabalho bastaria a imposição de pesadas punições
cíveis, pois como é palmar em nosso pobre país, não são poucos os
"empregadores" quase tão miseráveis quanto o próprio trabalhador, não
havendo para eles, portanto, qualquer efeito pedagógico numa condenação
pecuniária inexeqüível.
Assim, embora adepto das teses que propugnam pela existência de um
direito penal mínimo, decididamente não fecho meus olhos para a perturbadora
constatação de que a ciência criminal pode contribuir em muito para a
civilização da selvagem relação capital-trabalho, até mesmo poupando vidas de
operários.
Demais disso parece-me, sem que nisso vá qualquer desdouro aos
Magistrados Comuns, que o Juiz do Trabalho, louvado na sua incomensurável
experiência dos meandros insondáveis do mundo laboral,
esteja mais apto a julgar, por exemplo, os ilícitos criminais supostamente
cometidos durante o exercício do direito de greve, de modo a impedir que a
aplicação fria do direito penal venha a inibir o exercício de um direito
fundamental coletivo dos trabalhadores previsto na Magna Carta.
Aliás, no mundo civilizado europeu, principalmente na Itália, Espanha
e França, ganha cada vez mais prestígio o estudo do "direito penal do
trabalho", encarado enquanto ramo autônomo da ciência jurídica, sobretudo
preocupado com a repressão de condutas anti-sindidicais.
Todas essas ponderações justificam, com efeito, o reconhecimento da
competência criminal da Justiça do Trabalho.
3.3 – Os Ilícitos Penais-trabalhistas
Não se Esgotam Nos Crimes Contra a Organização do Trabalho - O Artigo 109, VI,
da CRFB Deve Ser Interpretado à Luz da Súmula 115 do TRF.
Enfim, hei de redargüir o argumento de que o artigo 109, VI, da CRFB
embaraçaria a competência penal da Justiça do Trabalho, na medida em que, pela
sua literalidade, os crimes contra a organização do trabalho são de atribuição
cognitiva da Justiça Federal.
Por uma questão que tangencia a trivialidade, talvez seja esse o mais
frágil argumento daqueles que pelejam contra a jurisdição penal do Judiciário Laboral.
Ocorre que nem todos os ilícitos penais-trabalhistas
estão tipificados no titulo IV do Código Penal, que arrola os crimes contra a
organização do trabalho somente a partir dos artigos 197 e seguintes.
À guisa de exemplo, aduzo que o
principal dos crimes trabalhistas da atualidade, "Redução a Condição
Análoga à de Escravo", está tipificado no artigo 149 do CP, que por sua
vez está situado no título II do codex
criminal, que trata dos "Crimes Contra a Pessoa", mais
especificamente no seu capitulo VI, que abarca os "Crimes Contra a
Liberdade Individual".
Logo, o artigo 109, VI, da CRFB nem de longe outorga competência à
Justiça Federal para julgamento do crime de "Redução a Condição Análoga à
de Escravo", sequer quando encarado o caso pelo prisma da grave violação
dos direitos humanos, já que para tanto seria necessário que, nos termos do §
5º do mesmo artigo 109 do Diploma Maior, "o Procurador-Geral da
República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações
decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte", suscitasse, "perante
o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo,
incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal", não
sendo desmesurado lembrar que a Justiça Especializada do Trabalho é tão federal
quanto a sua congênere comum.
Mas os exemplos não morrem por aí. Dizem os artigos 1º e 2º da Lei
9.029-95:
Art. 1º Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória
e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por
motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade,
ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor
previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.
Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias:
I - a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado,
declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado
de gravidez;
II - a adoção de quaisquer medidas, de iniciativa do empregador,
que configurem;
a) indução ou instigamento à
esterilização genética;
b) promoção do controle de natalidade, assim não considerado o
oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento familiar, realizados através de instituições públicas ou privadas, submetidas
às normas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pena: detenção de um a dois anos e multa.
Parágrafo único. São sujeitos ativos dos crimes a que se refere
este artigo:
I - a pessoa física empregadora;
II - o representante legal do empregador, como definido na
legislação trabalhista.
III – O dirigente, direto ou por delegação, de órgãos públicos e
entidades das administrações públicas direta, indireta e fundacional
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios.
Ora, às escâncaras tais crimes possuem inquebrantável natureza
trabalhista, não estando, contudo, elencados no
título do Código Penal que trata dos "Crimes Contra a Organização do
Trabalho", até porque tipificados em legislação extravagante, sendo
manifestamente equivocada, pois, a defesa da competência da Justiça Federal
para deles conhecer.
Questão muito parecida é a prevista no inciso X, do artigo 7º, da
Constituição, que prevê a "proteção do salário na forma da lei,
constituindo crime a sua retenção dolosa".
Aqui, a bem da verdade, é existente plausível discussão em relação aos
limites de eficácia da regra, não sendo poucos, entrementes,
aqueles que defendem a sua plenitude. Transcrevo, no pertinente, as
palavras de MAURÍCIO GODINHO DELGADO:
"(...) De fato, a Carta de 88 estipula que a
retenção dolosa de salário constitui crime (art. 7º, X, CF/88).
A norma insculpida na Constituição obviamente não
pode merecer interpretação extensiva – como qualquer norma fixadora
de ilícito ou punição. Desse modo, deve-se compreender no sentido da norma
constitucional a idéia de retenção do salário stricto
sensu. Nessa linha, excluem-se dessa noção de salário
retido (para fins penais) as parcelas salariais acessórias e ainda as verbas
salariais controvertidas (a controvérsia sobre o débito exclui o próprio dolo
em tais casos).
Feitas tais ressalvas, não há por que se considerar ineficaz tal
preceito constitucional. É que o tipo penal da apropriação indébita (art.
168, Código Pena) ajusta-se plenamente à hipótese (limitado, evidentemente, às
situações de dolo), conferindo absoluta e cabal tipificação ao ilícito, nos
casos de retenção dolosa do salário base incontroverso,
por exemplo." [10] (sem destaque no original)
Com efeito, admitido o enquadramento da retenção dolosa de salários no
tipo da apropriação indébita, previsto no artigo 168 do CP, topologicamente
inserido no título II do codex respectivo, a
tratar dos crimes contra o patrimônio, consoante
apregoa o abalizado magistério do Professor GODINHO DELGADO, o argumento do
artigo 109, VI, da CRFB se torna, mais uma vez, manifestamente estéril para
neutralizar a competência penal da Justiça do Trabalho.
Em suma, os exemplos são infindáveis, razão pela qual não prosseguirei
na enumeração, haja vista me conformar com o truísmo da impossibilidade de exaurimento das possibilidades, que por certo se
multiplicarão na prática forense.
Por outra vertente, ad argumentandum, ainda que na dogmática criminal todos os
ilícitos penais-trabalhistas
fossem considerados como crimes contra a organização do trabalho, creio que nem
mesmo assim a jurisdição criminal da Justiça do Trabalho estaria
definitivamente afastada, já que no caso seria de se aplicar o critério da
súmula 115 do TFR a dizer que "compete à Justiça Federal processar e
julgar os crimes contra a organização do trabalho quando tenham por objeto a
organização geral do trabalho, ou os direitos dos trabalhadores considerados
coletivamente" (sem destaque no original).
Vale dizer, portanto, que somente quando o crime ofende coletivamente
os direitos dos trabalhadores é que a competência da Justiça Federal se
justifica. Caso contrário, a atribuição cognitiva que outrora pertencia à
Justiça Estadual (e não à Federal), passa com o advento da E.C. 45 à Justiça do
Trabalho.
Em tal diapasão, o escólio de JOSÉ EDUARDO DE
RESENDE CHAVES JÚNIOR:
É importante sublinhar, ainda, que o disposto no art. 109, VI, da
Constituição da República, que dispõe expressamente a competência da Justiça
Federal para os crimes contra a organização do trabalho, não inibe as
conclusões ora expedidas, senão vejamos.
É que a despeito da literalidade de tal dispositivo, a jurisprudência,
consolidada na Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, consagrou
que a competência da Justiça Federal, para essas hipóteses, somente se
configura quando se trate de lesão penal de transcendência coletiva e com
repercussão geral na organização do trabalho, concebida como sistema.
Em face disso, o que se sustenta aqui é que apenas os crimes contra a
organização do trabalho, de aspecto individualizado, é que se deslocariam da
competência da Justiça Estadual, para a Justiça do Trabalho.
Em face, contudo, da própria "adequação legítima" já
acenada, é fundamental que o constituinte desloque ou revogue o mencionado
inciso VI do art. 109 da Constituição, a fim de que o fenômeno trabalho tenha
um tratamento penal holístico, inclusive do ponto de vista coletivo. [11]
Com efeito, excetuadas as condutas criminais de transcendência coletiva e
com repercussão geral na organização do trabalho que estejam tipificadas nos
artigos 197 e seguintes do CP, todos os demais ilícitos de cunho
penal-trabalhista deverão ser doravante processados e
julgados perante a Justiça do Trabalho.
4 – ÚLTIMAS PALAVRAS
Como já adverti alhures, em momento algum do presente articulado
pretendi ser original ou exauriente. De outro tanto,
como também asseverado, tenho a exata noção de que todas as vezes que nos
lançamos a um debate intelectual, corremos o risco de defender idéias que não
acolham o aplauso dos estudiosos da matéria tratada.
Ainda assim, contudo, me jogo com gosto à defesa da bandeira
desfraldada. Sei que essa posição não é fácil de ser defendida, mas o fato é que
as tarefas fáceis não fascinam o ser humano. Ademais, essa luta não me parece
vã, já que começam a despontar os seus frutos, oriundos de precedentes
jurisprudenciais emanados da primeira instância dos TRTs da 12ª e da 2ª Região.
Um dia foi difícil defender a competência da Justiça do Trabalho para
as ações que envolviam a discussão de dano moral, mas hoje ela é uma realidade.
Por igual, foi árduo esgrimar a competência
do Judiciário Trabalhista para as ações de indenização por danos morais,
materiais e estéticos oriundos de acidente do trabalho, mas hoje ela é uma
realidade.
Também não foi tranqüilo o debate acerca da pertinência das ações
civis públicas no processo do trabalho, mas hodiernamente elas estão cada vez
mais presentes no nosso cotidiano.
A vida profissional é mesmo assim. Cheia de desafios estimulantes.
Alguns superamos, outros não. Mas o fundamental é que nós, operadores do
direito, assumamos com entusiasmo o nosso papel de notáveis agentes
políticos, comprometidos com a construção de um verdadeiro Estado Democrático
Direito, onde prevaleçam os fundamentos republicanos da cidadania, da dignidade
da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da função social da
propriedade.
NOTAS
01 Roberto Lyra Filho, apud Wilson Ramos Filho, in
Lições de Direito Alternativo do Trabalho, 1ª ed., São Paulo: Editora
Acadêmica, 1993, p. 41.
02 Em especial agradeço ao
Procurador do Trabalho Marcelo José Ferlin D’Ambroso, pioneiro na provocação jurisdicional da Justiça do
Trabalho na esfera criminal, e aos juízes José Eduardo de Resende Chaves
Júnior, Nilton Rangel Barreto Paim, Rodrigo Dias da
Fonseca, Ivan José Tessaro, Ângelo Henrique Peres Cestari e Jorge Luiz Souto Maior.
03 Não é demasiado lembrar aqui, que
todos aqueles que possuem alguma intimidade com a ciência juslaboral,
mínima que seja, sabem que a expressão "relação de trabalho" é um
gênero, do qual o termo "relação de emprego" é mera espécie.
04 Cumpre-me esclarecer aqui, que as
reflexões que agora trago sobre o tema estão originalmente traçadas em artigo
da minha lavra, intitulado "COMPETÊNCIA PARA AS AÇÕES QUE ENVOLVAM O
EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE", publicado em livro coordenado pelo meu
dileto amigo ALEXANDRE AUGUSTO CAMPANA PINHEIRO, denominado COMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA DO TRABALHO: Aspectos Materiais e Processuais, 1ª ed., São Paulo: LTr, 2005, pp. 83/95.
05 Decisão proferida na data de 01 de
fevereiro de 2005, nos autos do Processo nº
2004.72.05.004394-8.
06 Não posso deixar de lembrar que,
ao fim e ao cabo, quem dirimirá a celeuma instaurada sobre a competência
criminal da Justiça do Trabalho será o STF.
07 HC 85096 / MG - MINAS GERAIS, Relator: Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE, Julgamento em 28/06/2005, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação:
DJ 14-10-2005 PP-00011 EMENT VOL-02205-2 PP-00307.
08 Ensaio e Discurso Sobre a
Interpretação/Aplicação do Direito, 3ª ed., São Paulo: Malheiros Editores,
2005, p.28.
09 Magistratura e Direito
Alternativo, 5ª ed., Rio de Janeiro: Luam, 1997, pp.
30/31.
10 Curso de Direito do Trabalho, 2ª
ed., São Paulo: LTr, 2003, p.763.
11 Nova Competência da Justiça do
Trabalho, 1a ed., São Paulo: LTr, 2005, p.
233.
* Juiz do
Trabalho substituto da 23ª Região, vice-presidente da Associação dos
Magistrados Trabalhistas da 23ª Região (AMATRA XXIII), professor da Escola Superior
da Magistratura Trabalhista da 23ª Região (ESMATRA XXIII), pós-graduado em
Direito do Estado, Direito Processual Civil e Direito Processual do Trabalho.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7917>. Acesso em: 23 ago. 2006.