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A lei de armas e a liberdade provisória
Sumário: 1- O Problema das Armas. 2- Liberdade é Regra -
Prisão é Exceção. 3- O flagrante e o artigo 310, parágrafo único, do CPP. 4-
Infrações Afiançáveis. 5- Infrações Inafiançáveis com possibilidade de
liberdade. 6- Vedação de Liberdade Provisória. 7- Análise dos Argumentos. 8-
Conclusões
1- O PROBLEMA DAS ARMAS
A questão das armas de fogo é uma das mais debatidas nos últimos tempos no
País, tendo sido, inclusive, objeto de consulta em plebiscito recentemente. A
consulta plebiscitária foi precedida de período de campanha, onde as duas
frentes expuseram variada gama de argumentos favoráveis e contrários ao
comércio de armas de fogo e munições.
O Brasil é hoje o país onde as armas de fogo produzem maior número de vítimas.
Mas seria efetivamente o número de armas e o seu comércio os responsáveis pela
inadmissível cifra de mais de 30.000 mortes por ano? Se o número de armas de
fogo fosse o principal responsável pelo número de vítimas, como poderíamos
explicar que os Estados Unidos tenham mais de 200.000.000 de armas de fogo
(pelo menos sete vezes mais que o Brasil) e tenham um terço das mortes
ocorridas no Brasil?[1]E o que dizer do Canadá, com aproximadamente 7.000.000
de armas de fogo em 10.000.000 de lares e com menos de duas centenas de mortes
anuais.
Seria uma questão histórica a responsável? Não me parece. Muitas outras nações
têm histórias muito mais violentas que a nossa e não enfrentam problema tão
grave em relação a mortes causadas por armas de fogo. Tivemos poucos conflitos
armados externos, e os internos não chegam nem perto à situação de guerra civil
de décadas em países africanos ou asiáticos ou a uma Guerra de Secessão, por
exemplo. E os países europeus, que vivenciaram duas guerras devastadoras e
conflitos étnicos graves no decorrer do século passado? Na Inglaterra o número
de mortes não chega a cem por ano. Na Alemanha, não chega a 300.
Seria a situação econômica a causadora? Certamente que a situação de pobreza
generalizada e falta de perspectivas influencia a criminalidade e por
conseguinte a criminalidade armada, mas se ela fosse a principal causa, o que
poderíamos dizer de alguns dos países da África, Ásia e leste europeu, onde a
difusão de armas é muito maior e há igualmente pobreza?
Na verdade, uma das grandes causas do elevado número de mortes por arma de fogo
sequer está relacionada diretamente com elas ou com a legislação a elas
relativa. Tal causa reside na forma branda com que o delito de homicídio é
tratado em nossa legislação e com os múltiplos benefícios que existem a bem de
uma propalada ressocialização.
Embora a restrição ao porte e posse de arma de fogo tenha reduzido o número de
homicídios, eles ainda continuam a ocorrer em número inaceitável. Então, a
posse e a circulação de armas de fogo estão relacionadas ao número de vítimas,
mas não é o principal fator do número de vítimas, assim como não são a situação
econômica ou o número de armas.
A questão é que um homicídio pode redundar em apenas dois a anos de prisão se o
seu autor for primário e tiver sido condenado com pena mínima, pois poderá
obter livramento condicional cumprindo um terço da sanção. Poderá estar na rua
ainda antes disso, gozando de saídas temporárias com um sexto de pena cumprido,
ou progredindo de regime com igual fração cumprida, quando poderá sair
diariamente para o trabalho.
E se o homicídio for qualificado, ou mesmo se for caso de latrocínio, não
faltarão aqueles (muitos) que, ignorando a lei (a opção expressa do legislador
que legitimamente representa o povo), dirão que o regime integralmente fechado
é inconstitucional, por violar a individualização da pena (?), e permitirão a
progressão de regime ao condenado. Condenado a 12 anos, passará ao semi-aberto
em dois, e depois, com mais vinte meses estará em regime aberto.
Esta a verdadeira questão que passou ao largo do plebiscito do desarmamento. As
armas de fogo facilitam a execução do delito, mas o seu maior estímulo é a
impunidade, que é alimentada por um deturpado “garantismo”, o qual observa
somente o delinqüente. E o garantimo social, onde fica?. Não é a segurança um
direito do cidadão (artigo 6º da CF/88)? Não está obrigado o Estado a provê-la?
Todos podem alcançar uma noção profana do injusto e do comportamento indevido.
Se o indivíduo opta pelo comportamento vedado, a prioridade passa a ser o
direito da sociedade, ainda que implique em privação de seus direitos
individuais. O criminoso é cidadão. É ser humano e como tal, continua a
titularizar direitos fundamentais intangíveis, mas tem de sofrer uma sanção que
seja minimamente apta a desestimular práticas semelhantes, seja por parte dele
ou de outros (prevenção geral e especial).
A capacidade intimidatória é a função, a essência e a razão do Direito Penal.
Educar e ressocializar é função de outros mecanismos ainda que possa ser um
objetivo secundário da execução da pena, até porque o que pode ser exigido é um
comportamento, e não uma determinada forma de pensar ou de valores.
Isto invalida a tratativa pontual da questão? Não. A acredito que o
enrigecimento da legislação de armas observado a partir de 1997 caminha no
sentido correto. Se a legislação penal não gera intimidação alguma, não passa
de papel, porque descumpre sua principal finalidade.
O que se pode afirmar, contudo, é que talvez excessos tenham sido cometidos,
gerando incongruências e pontos de fratura onde a razoabilidade não é
observada.
A Lei n 10.826/03 trouxe inovações em relação à Lei nº 9.437/97. Objetivamos
fazer um apanhado da questão da liberdade provisória no novo diploma, com
ênfase aos apontamentos da doutrina e da jurisprudência na interpretação dos
dispositivos pertinentes.
2- LIBERDADE É REGRA - PRISÃO É EXCEÇÃO
Após a Constituição de 1988, dúvida alguma pode haver acerca do caráter
excepcional da privação de liberdade que não decorra de sentença condenatória
irrecorrível, vale dizer, da custódia cautelar.
Isto não significa que as formas de custódia cautelar sejam inconstitucionais
por afronta ao princípio da inocência.[2] Este argumento, genericamente
invocado não é correto. As formas de custódia cautelar não são
inconstitucionais e não representam execução antecipada de pena.[3]
O que há é uma inversão de paradigmas, de modo que a prisão ou sua manutenção é
que precisam ser justificadas, e não a liberdade.
Esta constatação traz à lume um apontamento bastante pertinente no tocante ao
termo “liberdade provisória”. É que sendo a liberdade a regra ela não é
provisória. Provisória é a prisão.
De fato, no decorrer do processo a condenação a uma pena privativa de liberdade
impassível de substituição por restritiva de direitos é uma mera expectativa.
O réu ou acusado[4] poderá ou não ser privado definitivamente de sua liberdade.
Logo, a liberdade não é provisória, porque a custódia não só não é a regra como
não passa de uma mera virtualidade.
Desta forma, este termo, instituído quando a situação era inversa, ou seja, a
regra era o flagrado continuar preso até a condenação, hoje se afigura
equivocado.
Melhor é não pedir a “liberdade provisória”, mas a concessão de liberdade,
apenas, pois em linha de princípio, é a custódia que é provisória e
excepcional.
É interessante observar, ainda, que esta inversão já foi estabelecida antes
mesmo da CF/88, embora este seja o diploma apontado como divisor de águas. É
que as alterações estabelecidas no artigo 310, parágrafo único, do CPP uma
década antes já condicionavam a manutenção da prisão decorrente de flagrante
aos mesmos requisitos da prisão preventiva, deixando de ser uma regra
automática e absoluta.
3- O FLAGRANTE E O ARTIGO 310, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPP
Com a Lei nº 10.826/03, os delitos relacionados à arma de fogo ali previstos,
refogem à competência dos juizados especiais, sendo possível a prisão em
flagrante, e neste caso duas hipóteses podem surgir, conforme estejam ou não
presentes os requisitos da prisão preventiva.
Se estão presentes os requisitos da prisão preventiva (artigos 311 e 312), não
poderá ser deferida a “liberdade provisória”, seja afiançável ou não a
infração, incidindo na hipótese os artigos 310, parágrafo único (contrario sensu)
e 324, inciso IV, do CPP. Nesta hipótese, o acusado será mantido preso por
força do flagrante, sendo desnecessária a decretação da prisão preventiva.
O que houve é que a prisão por flagrante passou a ser condicionada pelos mesmos
requisitos da prisão preventiva, mas a prisão decorrente de flagrante continua
plenamente vigente[5].
Se não estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva, cumprirá
analisar-se a afiançabilidade da infração.
4- INFRAÇÕES AFIANÇÁVEIS
Afiançáveis, segundo a Lei nº 10.826/03 são somente as infrações capituladas
nos artigos 12, 13 e 14, neste último caso somente se a arma tiver registro.
Os artigos 12 e 13 correspondem à posse de arma de fogo, acessório ou munição
de uso permitido no interior de residência ou local de trabalho em desacordo
com determinação legal ou regulamentar e falta de cautela em relação arma no
que tange a sua entrega ou posse por menores de 18 anos ou deficientes mentais.
O parágrafo único do artigo 13 também abarca a falta de comunicação, por parte
de proprietário ou responsável por empresas de segurança, de roubo, furto ou
extravio de armas de fogo sob sua custódia em 24 horas à Policia Federal.
Estas infrações são apenadas com detenção, e, portanto, a fiança pode ser
fixada, observados os requisitos próprios, pela autoridade policial
O artigo 14, caput, diz respeito ao “porte” de arma de fogo de uso
permitido.[6] Se a arma tiver registro, mas não porte, a infração estará
configurada, mas a infração será afiançável. Por tratar-se de crime punido com
reclusão, sua fixação será, se presentes os requisitos (artigos 321 a 324 do
CPP) e ouvido o Ministério Público, atribuição exclusiva do magistrado.
Hoje, diante da redação do artigo 310, parágrafo único, do CPP, gera-se, como
já apontei em outra oportunidade, uma grave incongruência na qual no delito
inafiançável, e presumivelmente mais grave, o acusado se livra solto, sem ônus
algum, se não estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva, ao passo
que nos delitos afiançáveis, deverá, não obstante a ausência dos requisitos da
preventiva, pagar fiança ou prestar compromisso em caso de dispensa desta.[7]
5- INFRAÇÕES INAFIANÇÁVEIS COM POSSIBILIDADE DE LIBERDADE
Há infrações na Lei nº 10.826/03 que são inafiançáveis, mas para as quais não
há vedação de “liberdade provisória”. São os delitos dos artigos 14, parágrafo
único e 15.
O primeiro corresponde ao “porte” de arma de fogo de uso permitido e sem
registro. O segundo diz respeito ao disparo de arma de fogo em local habitado,
suas adjacências, ou via pública, se não tiver como finalidade crime mais
grave.
Nestas hipóteses, tem aplicação exatamente o artigo 310, parágrafo único, do
CPP. Se estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva não será
possível a concessão de liberdade. Caso ausentes, o acusado se livra solto, sem
ônus.
6- VEDAÇÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA
Há infrações paras as quais há expressa vedação de liberdade provisória, as
quais estão previstas no artigo 21, e correspondem aos artigos 16, 17 e 18.
Aqui verificamos que apesar da previsão expressa há divergências na aplicação
da vedação automática.
Alguns argumentos têm sido esgrimidos contra o artigo 21 da Lei nº 10.826/03,
afirmando-se que estaria sendo usurpada a atribuição do Poder Judiciário de
julgar, em violação à separação de poderes. Diz-se que somente nos delitos
previstos no artigo 5º, inciso XLIII, da CF se poderia cogitar de tamanha
restrição. Invoca-se, ainda, o princípio da proporcionalidade que deve orientar
a resposta penal.[8]
Restrições semelhantes foram observadas na doutrina em relação à Lei dos Crimes
Hediondos[9]. A jurisprudência, embora ainda existam julgados (muitos)
contrários, concluiu, de forma geral, pela constitucionalidade da vedação
prevista nesta lei.
No caso da lei nº 10.826/03, a vedação tem sido mitigada, acrescendo-se o
argumento de que os delitos comportam penas substitutivas à privação de
liberdade, constituindo contra-senso manter-se o acusado preso em vista da
simples capitulação do fato e vedação legal. No julgamento do Recurso em
Sentido Estrito nº 70011198330[10], no TJRS, Rel. Des. Marcelo Bandeira
Pereira, assentou-se que: “A insuscetibilidade de liberdade provisória,
prevista na Lei 10.826/03, há de ser encarada como peça integrante de um
sistema, impondo-se relativizada quando destoar das circunstâncias específicas
do caso examinado. Assim, se o crime imputado, pela pena mínima cominada, não
exclui a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de
direito, caso advenha a esperada condenação, a prisão provisória só se
justifica quando indicado, pelas circunstâncias específicas da espécie ou do
agente, que tal substituição não teria mesmo cabimento. Sem sentido, de fato,
manter-se alguém preso, pela expectativa de condenação, e, depois, advindo essa
condenação, colocar-se esse alguém em liberdade”
Já no julgamento do Habeas Corpus nº 70008198756, Quinta Câmara Criminal do
TJRS, Relator: Aramis Nassif, firmou-se posição segundo a qual: “1. A liberdade
provisória é garantia constitucional (art. 5º, LXVI c/c LIV), pois reserva ao
cidadão não julgado e condenado, o seu status libertatis, que, na extensão
interpretativa, leva ao reconhecimento do princípio da presunção da inocência
(art. 5º, inc. LVII). Dessa filtragem constitucional, inevitável concluir que a
norma agride preceitos da Carta que invalidam o dispositivo
infra-constitucional que obsta a liberdade provisória. 2. Para manter a prisão
em, flagrante, necessários são os requisitos do Art. 312, CPP. Liberdade
provisória concedida, vez a ausência de fundamentos específicos a respeito de
sua presença”[11]
Também o STJ indica trilhar este caminho, não só em relação aos delitos da Lei
nº 10.826/03, mas também em relação aos delitos hediondos. No HC 43164 / SP,
Relator o Ministro Paulo Gallotti, estabeleceu-se que “a fundamentação das
decisões do Poder Judiciário, tal como exigido pelo inciso IX do artigo 93 da
Constituição da República, é condição absoluta de sua validade” sendo que “a
imposição da manutenção da prisão cautelar exige a demonstração inequívoca de,
pelo menos, um dos requisitos constantes no art. 312 do Código de Processo
Penal.”[12]
Especificamente no que tange à aplicação do artigo 21 da Lei de Armas, decidiu
o Ministro Gilson Dipp no REsp 721416 / SP que “exige-se concreta motivação
para a decretação da prisão preventiva, com base em fatos que efetivamente
justifiquem a excepcionalidade da medida, atendendo-se aos termos do art. 312
do CPP e da jurisprudência dominante”, sendo que “a possibilidade de abalo à
ordem pública não pode ser sustentada por circunstâncias que estão subsumidas
na gravidade do próprio tipo penal.”[13]
No mesmo norte, na ementa do REsp 704903 / SP, Relator o Ministro Félix
Fischer, consta: “A exemplo do entendimento firmado na Quinta Turma desta Corte
a respeito da necessidade de o indeferimento do pedido de liberdade provisória
feito em favor de quem foi detido em flagrante na prática de delito tido por
hediondo ser, em regra, concretamente fundamentado, tem-se que o enquadramento
da conduta como a prevista no art. 16, parágrafo único, IV, da Lei 10.826/03
não dispensa a exigência de fundamentação concreta para a denegação da
liberdade provisória. (Precedente). Recurso desprovido”.[14]
Calha façamos uma análise dos argumentos contrários à vedação.
7- ANÁLISE DOS ARGUMENTOS
O argumento de que o legislador estaria usurpando atribuição do Poder
Judiciário não merece acolhida. Ora, é o legislador que estabelece os limites,
dentro dos quais o Poder Judiciário pode deliberar validamente. Ao Poder
Judiciário cumpre, antes de mais nada, aplicar e fazer cumprir as leis. Não é o
legislador que abstratamente comina as sanções e estabelece os requisitos, por
exemplo, da liberdade provisória ou da fiança? Está ele, nestes casos,
usurpando atribuição do Poder Judiciário? Certamente que não, assim como não
está quando veda liberdade provisória em determinado caso. Esta ele agindo
dentro de sua esfera de atribuições. Somente se pode encontrar validade neste
argumento de usurpação se concebêssemos um poder individual e subjetivo do
julgador, o que não existe.
O mesmo destino é reservado para a argumentação de que somente nos delitos
previsto na Constituição seriam cabíveis restrições quanto à liberdade
provisória. A Constituição não regula minudentemente institutos como a fiança
ou a liberdade provisória. Esta tarefa fica a cargo do legislador ordinário,
que se não pode desconsiderar por completo o instituto, anulando-o, também não
está obrigado a regulá-lo de forma absolutamente ampla e irrestrita.
Além do mais, se é possível afirmar-se que a especificação de delitos nos quais
seria defesa a liberdade provisória tinha por escopo assegurar que esta vedação
não fosse ampliada para outros delitos, também é possível afirmar-se (e de
forma muito mais lógica) que a previsão nestes casos tem por fito assegurar um
tratamento obrigatoriamente mais severo a estes delitos, sem interferir na
possibilidade de que o mesmo regime fosse estendido para outros.
Quanto ao princípio da inocência, como já referido (mas é sempre bom, repetir)
a custódia cautelar não é, (e nunca foi), execução provisória da pena[15].
Aliás, execução provisória da pena somente pode ser admitida em favor do
réu[16]. Dir-se-á que o efeito prático é o mesmo. É o mesmo também da prisão
civil, digo eu. Não se pode tomar o efeito dos institutos jurídicos no mundo
empírico para classificá-los, mas sim sua natureza jurídica, sob pena de
reduzirmos coisas diametralmente diversas a uma mesma dimensão. Enquanto não
houver alternativa para a prisão cautelar, ela é a única saída.[17]
O argumento de que as decisões devem ser fundamentadas também não grassa
acolhida pelo simples fato de que a decisão que veda a liberdade provisória é
expressamente fundamentada em um dispositivo de lei. Fundamentação válida há.
Há, contudo, dois argumentos válidos para algumas hipóteses. O primeiro deles
reside em se considerar a possibilidade de substituição de pena privativa de
liberdade por restritivas de direitos para penas de até quatro anos. O outro
reside na aplicação do princípio da proporcionalidade.
De fato, nos casos em que a pena em perspectiva não ultrapassa quatro anos,
salvante a hipótese de concurso de delitos (seja material ou formal), e
considerados os dados favoráveis ao acusado disponíveis no momento, tem-se que
a pena privativa de liberdade eventualmente aplicada seguramente será
substituída por restritiva de direitos.
Ressoa, então, incongruente e desproporcional manter-se alguém preso
cautelarmente, de forma precária e provisória, quando é certo que não haverá
privação de liberdade por ocasião da decisão definitiva.
No que diz respeito à proporcionalidade, impende considera que o artigo 21 da
Lei nº 10.826/03 abarca um largo espectro de condutas de gravidade bastante
diversa. O artigo 16, por exemplo, versa sobre o uso de armas de uso restrito
ou proibido, posse de explosivos etc..., mas também versa sobre a posse de
armas de uso permitido com numeração ou sinal identificador suprimido ou
alterado ou recarregamento de munição.
O artigo 17 trata, resumidamente, de condutas relacionadas a atividade
comercial ou industrial, e o artigo 18 versa sobre condutas que caracterizam
contrabando.
Como se observa, há uma variada gama de condutas que podem representar desde
condutas de menor periculosidade e mesmo usuais até atividades típicas de
organizações criminosas. Em síntese, pode se enquadrar no artigo 21 desde a
conduta do interiorano que, em um rincão longinqüo entregou arma para um filho,
o que para ele é natural[18], até a ação das quadrilhas que alimentam o tráfico
com armamento militar.[19]
Se a privação de liberdade é uma medida excepcional, ela somente se justifica
em situações excepcionais, graves. Em algumas das situações elencadas nos
artigos 16, 17 e 18 da Lei nº 10.826/03 temos efetivamente hipóteses de inquestionável
risco social, de onde a necessidade de custódia verte in re ipsa. Em outras, o
legislador, sem dúvida movido pelos melhores sentimentos, exagerou, havendo
fundamento para a concessão da liberdade “provisória”, mesmo ante a vedação
expressa.
Nesta ordem de idéias, “a vedação de liberdade provisória contida no art. 21 da
Lei nº 10.826/03 não configura inconstitucionalidade, devendo este artigo ser
interpretado conforme a Constituição e o ordenamento jurídico. Vale dizer,
portanto, que é a regra a ser observada, à qual também cabem exceções a serem
aferidas em casos concretos e reconhecidas, fundamentadamente, pelo Juiz”[20].
Esta conclusão, grafe-se, não é válida, no entanto, para a Lei dos Crimes
Hediondos, a qual elenca uma série de delitos graves, não obstante recentes
julgados do STJ apontem em sentido inverso.[21]
A impunidade e a ausência de uma repressão esmagadora é que estão por trás a
criminalidade, e a própria lei de armas demonstra isso, porque hoje as pessoas
pensam duas vezes em sair de casa armadas.
7- CONCLUSÕES
O número de delitos envolvendo armas de fogo no Brasil, em especial homicídios
e latrocínios, é absolutamente intolerável. As causas não são somente sociais.
Se desenvolvimento e riqueza afastassem esta espécie de crime, eles ocorreriam
muito menos nos Estados Unidos, ainda que se possa afirmar que lá esta espécie
de infração ocorre em número muito menor do que em nosso País, mormente tendo
em conta o número de armas de fogo bem superior. Também não se trata de um
problema exclusivamente cultural. Há países em que a violência está muito mais
presente culturalmente e onde não se verifica tamanho número de vítimas.
Correndo o risco da simplificação, ouso dizer que a problemática da violência
tem múltiplas causas, mas a principal delas é a impunidade, decorrente de uma
polícia que tenta denodadamente fazer o máximo com os parcos recursos que tem e
de uma aplicação da lei que é feita a partir de uma ótica distorcida, que
olvida o que efetivamente é a finalidade de uma sanção penal.
É claro que agravar punições (melhor seria fazer cumprir as que já existem) não
irá, de forma isolada, resolver a questão. Mas o inverso também é falso, ou
seja, não é só atacando a pobreza e a marginalização que se produzirá queda
significativa da criminalidade armada. E ainda que esta seja uma colaboração
importante, isto demorará décadas. Que fazer por ora? Elaborar leis eficazes,
que não descuidem da finalidade e do “princípio ativo” do direito penal
(intimidação), e fazer cumpri-las.
Isto dá certo? Basta ver o exemplo da iniciativa tomada no ABC paulista onde há
expressiva redução da criminalidade através de medidas de controle como
fechamento de bares e ações policiais coordenadas.
Se a lei penal não mais intimidar, não for eficaz, não incutir receio, é melhor
não tê-la, pois o dano é menor, dano este que ocorre quando a sociedade as
sanções se esfumaçarem em benefícios de execução e visões “garantistas”, que,
deturpadamente, observam somente a ótica do delinqüente. O acusado e o apenado
são cidadãos e titulam direitos fundamentais, mas a sanção tem possuir alguma
eficácia intimidativa, caso contrário de nada vale.
Excessos são cometidos? Sem dúvida. E decorrem da forma atabalhoada e por vezes
oportunista com que alguns diplomas foram criados. Nas Leis nº 8072/90 e
10.826/03 há acertos e erros.
Ao intérprete e aplicador cumpre, dentro do seu espectro de atuação legítima,
que encontra arrimo, sobretudo, no texto constitucional, corrigir os equívocos
sem se arvorar em verdadeiro legislador.
Lembremo-nos que a lei é condensa o coeficiente de objetivação mínima. Quando
as leis começam a ser esquecidas ou ignoradas a bem de um dos interesses em
jogo, caímos no subjetivismo e logo depois está a tirania, que é não é menos
nefasta quando provem do Poder Judiciário do que do Poder Executivo.
Baseado nesta perspectiva, acredito inócua a discussão da aplicação da Lei nº
8.072/90, seja no que tange ao regime de cumprimento integralmente fechado (que
felizmente resgatou uma fração do poder de prevenção da norma penal) ou quanto
à liberdade provisória. O legislador, no exercício de suas prerrogativas
constitucionais e dentro de bases razoáveis, legitimamente escolheu delitos
graves e lhe gravou com maior carga de repressão. Tollitur quaestio!
Diversamente, em alguns aspectos relativos à concessão de liberdade provisória
na Lei nº 10.826/03, a razoabilidade e a proporcionalidade não foram
observadas.
É o caso do artigo 16, inciso IV, abarcado pela vedação do artigo 21 do
referido diploma.
Aqui sim, há um fundamento para modulações na aplicação da vedação de liberdade
provisória se ausentes os requisitos da prisão preventiva e se as condições do
acusado forem favoráveis.
O que se espera é que exista mais atenção e consciência por parte do legislador
e de nós, operadores jurídicos, acerca da importância de um texto legal, ao
qual devemos sempre buscar dar inteligente e razoável aplicação, sem olvidar
que é a baliza fundamental de nosso sistema jurídico.
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[1] Cumpre referir, observadas as peculiaridades da legislação de cada Estado
Federado, que nos Estados Unidos não há limitações ao calibre das armas, mas
somente em relação à capacidade de funcionamento e automaticidade de seu ciclo.
Logo, é possível comprar armas em calibre militar (projéteis de alta energia)
com funcionamento semi-automático. Mesmo as armas automáticas, embora de
aquisição mais difícil, podem ser obtidas, e refiro-me aqui até mesmo a
metralhadoras pesadas
[2] Como assentado Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 8432/SP, 5ª Turma do
STJ, Rel. Min. Gilson Dipp. j. 27.04.1999, Publ. DJU 24.05.1999, p. 182: “A prisão
cautelar pode ser decretada sempre que necessária e mesmo por cautela, não
caracterizando afronta ao princípio constitucional da inocência.” Firmando esta
posição, foi editada a Súmula 09 do STJ. No âmbito do STF, consta no julgamento
do HC 71.169, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 16/09/94: “Já se firmou a
jurisprudência desta Corte no sentido de que a prisão cautelar não viola o
princípio constitucional da presunção de inocência, conclusão essa que decorre
da conjugação dos incisos LVII, LXI e LXVI, do artigo 5º da Constituição
Federal.”
[3] A prisão civil do depositário infiel e do devedor de alimentos também
subtrai a liberdade ambulatória e, no entanto, jamais poderá ser comparada em
termos jurídicos à execução de uma sanção de natureza penal. Na prática, uma
execução fiscal não difere de uma execução de pena multa. Em síntese o feito
concreto idêntico não autoriza a aproximação dogmática e conceitual dos
institutos.
[4] O termo réu deve ser utilizado após instaurado processo, ou seja, após
recebimento da denúncia. Antes há o acusado ou investigado.
[5] A propósito, sugiro uma consulta ao meu “Descortinando a Custódia Cautelar:
dos pressupostos à cessação”, disponível nos sites http://www.ufsm.br/direito,
http://www.jurid.com.br e http://www.jus.com.br, além do CD Jurisplenum, edição
nº 84, v. 2.
[6] Hoje, os maiores calibres permitidos são o .38 e o 380, também conhecido
como .38 auto. Calibres como o .44 Magnum, 357 Magnum, 9mm Parabellum (9x19mm),
.40, .45 e 10mm, são proibidos ou de uso restrito a órgão policiais ou forças
armadas, pois já se enquadram dentro da categoria de calibres de alta energia.
Todos os calibres de fuzis são também de uso restrito. Embora seus projéteis
possam ter menor espessura, e peso (uma munição 7,62 pesa aproximadamente 158
grains, ou seja, o mesmo peso de um .38, aproximadamente oito gramas) a
velocidade elevada (acima de 800 m/s até mais de 1.100 m/s) lhes atribui
elevada energia cinética e alcance letal superior a 2km ou mais.
[7] A propósito, ver o meu “Um panorama da fiança criminal à luz do parágrafo
único do artigo 310, do CPP”, disponível nos sites http://www.jurid.com.br e
http://www.ufsm.br/direito.
[8] Argumentos elancados por Fernando Capez, Estatuto do Desarmamento, São
Paulo, Saraiva, 2003, p. 173-174.
[9] Ver, ad exemplum, Alberto Silva Franco, Leis Penais Especiais e sua
Interpretação Jurisprudencial, 7a edição, 2a tiragem, São Paulo, RT, 2002, v.
1, p. 1.298.
[10] Julgado em 07/07/2005.
[11] Julgado em 10/03/2004.
[12] Julgado em 06/09/2005.
[13] A ementa integral é a seguinte: “Criminal. Resp. Art. 16, parágrafo único,
IV, da lei 10.826/03. Liberdade provisória. Vedação do art. 21 do Estatuto do
Desarmamento. Gravidade do delito. Ausência de concreta fundamentação.
Circunstâncias subsumidas no tipo penal. Necessidade da custódia não
demonstrada. Presença de condições pessoais favoráveis. Recurso desprovido. I.
Hipótese em que o recorrido foi denunciado nas penas do inciso IV do parágrafo
único do art. 16 do Estatuto do Desarmamento. II. Exige-se concreta motivação
para a decretação da prisão preventiva, com base em fatos que efetivamente
justifiquem a excepcionalidade da medida, atendendo-se aos termos do art. 312
do CPP e da jurisprudência dominante. III. A possibilidade de abalo à ordem
pública não pode ser sustentada por circunstâncias que estão subsumidas na
gravidade do próprio tipo penal. IV. Condições pessoais favoráveis, mesmo não
sendo garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, devem ser
devidamente valoradas, quando não demonstrada a presença de requisitos que
justifiquem a medida constritiva excepcional. V. Recurso desprovido.”
[14] Julgado em 16/06/2005.
[15] A possibilidade de detração não converte a custódia cautelar em execução
de pena. É apenas um benefício para o apenado.
[16] A respeito, ver o meu “A Execução Provisória da Sentença Penal”,
disponível nos sites http://www.forense.com.br, http://www.ufsm.br/direito,
http://www.jus.com.br, http://:www.jurid.com.br e no CD Jurisplenum, nº 84, v.
2.
[17] Já existem experiências com dispositivos eletrônicos que permitem
controlar movimentos, sabendo-se onde o indivíduo esta. Isto seria uma
alternativa útil para algumas das hipóteses de prisão preventiva. Certamente
não faltaram os baluartes dos direitos humanos (do delinqüente exclusivamente)
e os “garantistas” (não do garantismo social) de plantão para encontrar alguma
pecha de inconstitucionalidade nestas medidas. É aguardar para ver.
[18] Imagine-se os confins da Amazônia onde uma arma é uma necessidade.
[19] Hoje não só fuzis e pistolas, mas metralhadoras, granadas, explosivos e
lançadores de foguetes antitanque, além de variada munição, inclusive
perfurante (com núcleos de aço capazes de perfurar até 08 ou 09 mm de aço) e
traçantes (comumente vistos nas imagens de televisão como pontos vermelhos).
[20] Habeas Corpus nº 3756/RJ (200402010126121), 1ª Turma do TRF da 2ª Região,
Rel. Juiz Abel Gomes. j. 16.03.2005, unânime, DJU 01.04.2005.
[21] Podemos citar como exemplos: Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº
16475/MG (2004/0114011-0), 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Gilson Dipp. j.
28.09.2004, unânime, DJ 03.11.2004; Recurso Especial nº 351889/AM
(2001/0110931-6), 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Laurita Vaz. j. 24.06.2003, DJU
04.08.2003, p. 356; Habeas Corpus nº 21223/SP (2002/0028742-5), 6ª Turma do
STJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves. j. 20.08.2002, DJ 09.09.2002, p. 247.
MEZZOMO,
Marcelo Colombelli. A lei de armas e a liberdade provisória. Disponível em < http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=744>.
Acesso em 14 de agosto de 2006.