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ALGUMAS
HIPÓTESES DE CABIMENTO E DESCABIMENTO EM
MANDADO DE
SEGURANÇA INDIVIDUAL
José Andrade
Soares Neto- Acadêmico em Direito da Universidade Federal da Bahia (9º
semestre).
SUMÁRIO: 1) Introdução;
2) Direito líquido e certo; a)
Critério residual; b) Natureza jurídica do direito líquido e certo; c) Conceito
de direito liquido e certo; 3)
Ilegalidade e abuso de poder (abuso de poder; excesso de poder; desvio de
poder); Ato inconstitucional; 4)
Autoridade pública e agente de empresa privada com atribuições delegadas do
poder público. 5) Hipóteses Legais
de descabimento e algumas exceções (art. 5º, I, II, III, Lei 1533/51); 6) Conclusão; 7) Bibliografia.
1)
Introdução
Não há, na legislação que rege o mandado de segurança (Lei 1.533/51) ou na Constituição Federal, nenhuma norma enumerando, seja de forma exemplificativa ou taxativa, os casos em que é cabível a sua impetração. Diferente do que ocorre com alguns casos de descabimento que estão expressos na citada lei, art. 5º, I, II, III, os quais serão elucidados adiante.
Para que se saiba quando é viável ou não a impetração do “remédio heróico”, deve-se observar, a priori, alguns requisitos extraídos da norma contida no art. 5º, inciso LXIX[1] da nossa Carta Constitucional , quais sejam[2];
1) a existência de um direito líquido e certo violado ou na iminência de sê-lo, desde que não amparado por habeas corpus ou habeas data;
2) que a violação (ou ameaça) seja oriunda de um ato de ilegalidade ou abuso de poder;
3) o coator que pratica a ilegalidade ou abuso de poder deve ser uma autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público;
2)
Direito líquido e certo não amparado por habeas
corpus ou habeas data
a)
Critério residual do objeto do mandado de segurança
Ao estabelecer
o objeto do mandado de segurança, o Legislador Constituinte assim o fez
utilizando um critério residual, sendo abarcada pelo instituto toda matéria que
não seja objeto do habeas corpus ou habeas data.
Isto se deu
não pelo acaso. Era uma necessidade, pois durante muito tempo o habeas corpus teve o seu objeto
estendido, tendo sido o meio (im)próprio para atacar toda ilegalidade e abuso
de poder praticados por autoridades, além das violações ao direito de ir e vir.
Após
a reforma constitucional de 1926, que delimitou o objeto do habeas corpus, tornou-se imprescindível
à criação de um instituto (ou de institutos) que protegessem os cidadãos dos
abusos praticados pelas autoridades.
Foi criado,
pois, com positivação fundamental primeira na Constituição de 1934, o mandado
de segurança para a proteção de outros
direitos que não o de livre locomoção, este já bem garantido pelo habeas corpus; e com a Constituição de
1988 foi implantado em nosso ordenamento o habeas
data -para que não fossem repetidas as atrocidades cometidas no regime
ditatorial (1964-1987) - sendo assegurado por esta garantia o direito à
informação pessoal, antes também tutelado pelo mandado de segurança.
Deve-se,
entretanto, atentar quanto ao objeto tutelado, pois confusões ainda são feitas
na escolha do remédio adequado.
Por exemplo,
entende-se que negada emissão de certidão por autoridade de órgão público, tal
ato, se ilegal ou abusivo, deve ser reprimido por meio de mandado de segurança
e não por habeas data, como querem
alguns. Por mais que o conteúdo da certidão seja de informações pessoais, não
há que se pensar no habeas data, pois
o direito à informação é distinto do direito de certidão, sendo este último,
por exclusão, garantido via mandado de segurança (RT 701/129); Ou ainda, como
exemplo de confusão entre os remédios, quando ocorrida prisão civil ilegal de
depositário infiel, “a garantia adequada para preservar a liberdade do
depositário, no caso, seria o habeas
corpus” (TJMG-RMS-3.334/9; Rel. Min. Cláudio Santos). Incabível o mandado de segurança para tratar do direito de
locomoção, mesmo em se tratando de prisão civil.
b) Natureza jurídica do direito líquido e
certo
Abandonada está a posição de Carlos Maximiliano que ao interpretar a expressão “direito líquido e certo” no texto da Constituição democrática de 1946 - em substituição ao direito “certo e incontestável” que preceituava a Carta de 1934 - como sendo o direito que “(...) o magistrado logra reconhecer rapidamente sem necessidade de exame demorado e pesquisas difíceis”.
Na atualidade, o direito líquido e certo, seria uma condição de admissibilidade do mandado de segurança, não importando o grau de complexidade fatídico ou doutrinário[3].
Afirma o jurista Heraldo Garcia Vitta (2000:18): “Se o magistrado não analisar o mérito, mas simplesmente decidir pela inexistência do direito líquido e certo, ante a sua não demonstração, pelo impetrante, dos fatos e do seu direito... será fator de ‘carência da ação´ não impedindo assim nova impetração, desde que se obtenham novas provas para a demonstração do direito do autor”.
Portanto, na visão do referido doutrinador, a ausência do direito líquido
e certo, levará à extinção do mandamus
sem julgamento do mérito.
Dessa forma -caso o autor não possa tentar nova impetração pela insuficiência de provas documentais para tanto- é possível o mesmo pleito pelas vias ordinárias, onde o autor se valerá de uma maior variedade probatória como a testemunhal, depoimentos pessoais, dentre outras vedadas no mandado de segurança no intuito de preservar o seu rito célere e a sua eficiência.
Sérgio Ferraz (1996:25), em contrapartida,
afirma ser a sentença que extingue o mandado de segurança por falta do direito
líquido e certo, por vezes, uma decisão de mérito, não sendo possível nova
demanda caso o impetrante julgue haver, agora, material que demonstre a
liquidez e certeza do seu direito.
Parece,
a princípio, ser mais coerente a primeira tese, pois poderia haver um afronte à
norma processual considerar que sendo o direito líquido e certo uma condição da
ação, a sua falta levará ao Julgamento do mérito da questão. A inexistência de
certeza e liquidez do direito, de acordo com grande parte da doutrina, é falta
de Interesse jurídico, condição da ação que enseja a extinção do processo sem
julgamento do mérito pelo art. 267, VI do atual CPC; assim sendo, nada impede
que haja nova impetração se novas provas que garantam a certeza do direito
forem utilizadas.
Porém, mais à
frente, quando feita distinção meticulosa entre liquidez e certeza, veremos que
há grande coerência na posição do prof. Sérgio Ferraz, no sentido de que pode
haver julgamento do mérito na sentença que acusa ausência do direito líquido e
certo.
c) Conceito de direito liquido e certo
O conceito de direito líquido e certo é algo muito discutido na doutrina, sendo geralmente transmitido de forma una, ou seja, sem a analise fragmentada da liquidez e da certeza, dificultando o entendimento de cada um dos elementos separadamente.
No dizer de Othon Sidou
(2000:143):
Direito líquido e certo
consiste apenas em significar que, do modo como se apresentam as coisas (um
direito agravado por ilegalidade ou abuso de poder, por parte de autoridade),
tal agravo terá reparação pela via específica, enquanto os outros direitos não
evidenciados desta forma, isto é, sem o título de líquido e certo podem ter
reparação por via das ações em geral (...)
O conceito aqui é dado de forma ampla, em verdade com maior intenção de clarificar a necessidade do uso da expressão dentro do remédio, do que conceituá-la.
Já Heraldo Garcia Vitta
(2000:17), ao ratificar o pensamento de Sálvio Figueiredo Teixeira, estabelece
que direito liquido e certo é aquele “demonstrado de plano, mediante documentos
comprobatórios de fatos alegados, da violação do direito da parte, ou de ameaça
de lesão”.
Para o Min. Sepúlveda Pertence
existe o direito líquido e certo quando há uma “(...) situação de fato
incontroversa, na qual o autor possa comprovar documentalmente com a própria
petição inicial”.
No entanto para melhor conceituar
o direito líquido e certo no âmbito do mandado de segurança, necessária se faz
a análise do seu conteúdo separadamente, o que passamos a enfrentar, para ao
fim chegarmos a um conceito sólido e bem definido da presente condição do mandamus.
Percebe-se, ao analisar as mais diversas correntes doutrinárias além das citadas, que por mais divergências que existam quanto ao atual conceito de direito liquido e certo, algo é comum entre os mais difundidos: deve existir para que o direito seja líquido e certo clareza nos fatos, os quais deverão ser provados de plano (já na inicial e através de documentos) e, ainda pleno amparo pelo ordenamento dos fatos narrados.
Quanto aos conceitos específicos de liquidez e certeza, encontram-se poucas referências doutrinárias que se preocupam em segmentar estes dois elementos.
O Prof. Marcus Cláudio Acquaviva (1990:9) explicando que “no âmbito do mandado de segurança, a idéia de liquidez não é a mesma da execução de um débito ou do requerimento de falência” e citando Alfredo Buzaid conceitua como líquido o direito “extremado de dúvida e isento de controvérsia”. Quanto à certeza, diz que “certo é o direito existente objetivamente, cuja valoração será apurada”.
Ainda na distinção entre liquidez e certeza no mandado de segurança encontramos a posição de Sérgio Ferraz, que nos pareceu ser a mais sólida e clarividente que conceitua, ao contrário de Buzaid, como direito líquido “o que se apresenta, em tese, com alto grau de plausibilidade”; sendo certo “aquele que se oferece configurado de plano, documentalmente sempre, sem recurso a dilações probatórias”.
Pensamos que é plenamente válida doutrinariamente -apesar de pouco observada na prática forense- esta distinção, pois além de mais didático torna-se possível identificar quando o mandado de segurança foi denegado por iliquidez ou por incerteza, distinção importante em razão dos efeitos que produz.
Retomando aqui a discussão anterior, travada no tópico “b” denominado “natureza jurídica do direito líquido e certo”, entre os entendimentos de Heraldo G. Vitta e Sérgio Ferraz, pode-se perceber que é muito perigoso estabelecer que na falta direito líquido e certo (considerado sem a disjunção de seus dois elementos) haverá sempre carência da ação, decisão sem julgamento de mérito e possibilidade de nova impetração, como quer o primeiro autor.
Quando houver apenas ausência de certeza no direito (segundo a conceituação de Ferraz), é válido se falar em carência de ação e possibilidade de nova impetração caso seja incrementada a provada documental; ou ainda alternativamente, postulação pelas vias ordinárias.
Mas em se tratando de direito ilíquido, não sobrevirão as mesmas conseqüências e faculdades, pois, nesta situação, o juiz propala que os fatos apresentados não se encontram nem em tese amparados pelo ordenamento jurídico, julgando portanto o mérito da questão, perfazendo-se a coisa julgada, salvo interposição de recurso ou proposição de ação rescisória tempestivos.
Eis a importância da referida distinção.
3) Ilegalidade e abuso de poder:
A ilegalidade
atacável por mandado de segurança consiste em qualquer ato que desrespeite
norma constitucional ou infraconstitucional, cometido por autoridade pública ou
autoridade privada no exercício de atribuições do poder público.
Portanto,
basta que a autoridade atue contra legem,
no exercício de função pública que o seu ato será passível de repressão por
mandado de segurança.
No cotidiano,
são inúmeros os atos de ilegalidade praticados por autoridades, atacáveis por
mandado de segurança. Uma das situações bem freqüentes, a título
exemplificativo, ocorre na aplicação dos exames psicotécnicos por vezes
realizados na admissão de funcionários por meio de concurso público. Estes
exames são admitidos pela lei, porém devem ser realizados e apurados com critérios
científicos bem definidos.
Não é o que
vem ocorrendo.
O
Excelentíssimo Min. Francisco Resek, assim se pronunciou a respeito destes
exames em voto que concedeu a segurança a um candidato reprovado na fase de
avaliação psicológica de concurso para agente da Polícia Federal:
Efetivamente, a lei do Congresso autoriza a realização de um exame
psicotécnico no contexto das provas de acesso à carreira policial federal. Não
pode a Administração, entretanto, travestir o significado curial das palavras.
Entende-se por exame uma aferição necessariamente marcada pelo rigor
científico. Jamais uma entrevista em clausura, de cujos parâmetros técnicos não
se tenha notícia, e onde a possibilidade teórica do desmando, do arbítrio, do
capricho, do preconceito, não conheça limites. (RE- 112.676-MG / Rel. Min. Francisco Resek; JSTF- 113/182).
Já o abuso de poder, para Othon Sidou, é categoricamente subdividido em excesso de poder e desvio de poder.
O excesso de poder é ato praticado por autoridade incompetente, mesmo que esteja seguindo norma legal que prescreva a conduta. Ocorre que mesmo sendo o ato praticado previsto pela lei, não compete a qualquer autoridade executa-la, mas, em respeito à Legalidade, tão somente às autorizadas pela própria norma. Portanto, atuando uma autoridade fora da sua competência, estará cometendo excesso de poder; o que não deixa também de ser um ato ilegal (em sentido amplo), pois haverá desrespeito à norma que prescreve o ato e a autoridade competente para executa-lo.
Já o desvio
de poder, para o mesmo autor, ocorreria sempre que a autoridade, agindo
aparentemente aos passos da lei, estar-lhe-ia desrespeitando quanto à
finalidade.[4]
Contudo,
havendo excesso ou desvio de poder, estaríamos sempre nos deparando, com uma
espécie de abuso de poder genérico, não ocorrendo nenhuma dessas hipóteses
temos, por exceção, um nítido caso de abuso de poder especifico. Todas estas
espécies de abuso de poder são reprimíveis por mandado de segurança, desde que
os outros requisitos e condições do “remédio heróico”, tais como direito
líquido e certo, autoridade pública, etc. sejam devidamente observadas.
Resta falar que além dos atos comissivos, não deixam de ser atacáveis por mandado de segurança as omissões de autoridades.
José Cretella Jr. assevera que “a lesão pode constituir também uma omissão (...) não é necessário, pois, que se trate de ato executório porque o ato omissivo, em que não há esse caráter, também enseja a impetração do mandado de segurança”.
Assim decidiu o TJSP na Apelação Cível 133.287-1, ao julgar procedente o
mandado de segurança contra ato omissivo da Prefeitura Municipal de Santos
quanto ao fechamento de farmácia que foi posta em funcionamento sem a devida
autorização, em desrespeito a Lei municipal: “Cabível o mandado de segurança contra
ato omissivo da Administração Pública, sendo desnecessário o seu caráter
executório, desde que ilegal e ofensivo de direito individual ou coletivo
líquido e certo do impetrante”.[5]
Ato
Inconstitucional:
Como é de se esperar, até por ser o mandado de segurança uma ação constitucional, cabe a sua impetração contra ato Inconstitucional, havendo ou não infração a norma inferior.Ou seja, pode ser reprimida pela referida ação tanto uma inconstitucionalidade reflexa que atinge primeiramente lei inferior e indiretamente norma constitucional, quanto um ato diretamente inconstitucional, em não havendo norma inferior que preceitue sobre o tema.
Como exemplo de atos de
inconstitucionalidade vale lembrar os casos de Vinculação de Liberação do
pagamento do Licenciamento anual de Veículos automotores ao pagamento de multas
de trânsito, independentemente da pendência de julgamento de Recurso
administrativo que ainda ocorrem com freqüência; ou
ainda aos tantos casos de desrespeito à ampla defesa e contraditório, constantes
nos processos disciplinares de apuração de indisciplina de servidores
militares.
A explicação é valida pois serviu para dirimir o princípio de dúvida que pairou sobre os operadores do direito à época da promulgação da carta constitucional de 1988, posto que no seu art. 5º, LXIX, que trata do mandado de segurança, fala-se apenas em “ilegalidade e abuso de poder”, sendo omissa quanto aos atos diretamente inconstitucionais, ao contrário da Constituição de 1934, por exemplo, na qual a repressão a estes atos estava expressamente delineada.
Contudo, hodiernamente, pacíficas são doutrina e jurisprudência a respeito da matéria, no sentido de que cabe mandado de segurança contra atos inconstitucionais. A omissão constitucional existiria apenas pela obviedade.
É possível ainda impetração de mandado de segurança para cessar os efeitos de ato realizado por autoridade com fulcro em lei inconstitucional. Aqui, diferentemente do que foi exposto acima, a autoridade pratica um ato conforme determinação legal, porém maculado por ter fulcro em norma flagrantemente inconstitucional.
É, contudo,
afastada a possibilidade de ser concedida a segurança contra a lei em tese, sem que esta tenha gerado
efeito concreto prejudicial ao impetrante. Como é cediço na doutrina , o
mandado de segurança deve ser concedido contra o efeito prático da lei, não
contra a lei em si. A revogação é que representa o ataque à lei, mas esta
incumbência é, sobretudo, legislativa.
3)
Autoridade Pública e Agente de Empresa Privada com atribuições Delegadas do
Poder Público.
É preciso que
fique bem claro que não é qualquer ato ilegal ou abusivo que viole direito
líquido e certo, passível de repressão por mandado de segurança.
O ato deve ser
praticado por uma autoridade pública
(pessoa física no exercício de função pública responsável em último grau pela
prática do ato. Ex: Governador, Prefeito, Secretário, Diretor de entes
públicos,etc), ou por agente privado
delegado do poder púbico (agentes de pessoas jurídicas de direito privado
que exercem função tipicamente pública através de delegação. Ex: Diretor de
universidades privadas, representante de concessionárias, dentre outros).
Agora,
ainda que seja a coação realizada por autoridade pública ou por delegados do
poder público, deve-se atentar também
para a natureza do ato praticado: observa Heraldo Garcia Vitta que sendo o
ato de caráter público tal como a prestação de serviços púbicos, será passível
de repressão por mandado de segurança. Porém, em sendo o ato de caráter
privado, como atuação na ordem econômica, não importa se partindo de autoridade
delegada ou propriamente pública, não será caso de ataque pelo “remédio
constitucional”.
Vale dizer que se representantes
de Autarquia ou Fundação Pública praticarem atos de caráter eminentemente privado,
estes não serão reprimíveis por mandado de segurança. Acontece que na grande
maioria os atos praticados pelas autoridades vinculadas a tais entes são de
caráter público, afinal têm natureza de direito público portanto passíveis de
ataque pelo referido “remédio”; Ao contrário das Empresas Públicas e Sociedades
de Economia Mista que apesar do caráter público são pessoas jurídicas de
direito privado, por isso tendem a praticar mais atos de caráter privado.
Porém,
se qualquer das autoridades citadas realizar, por exemplo, um procedimento
licitatório eivado de vício, caberá impetração da Segurança, pois se trata de
ato com natureza pública.
Já
quanto às pessoas jurídicas de direito privado delegadas do poder público,
percebemos que a atenção quanto a natureza do ato deve ser redobrada. Veja-se
que apenas quando o ato ilegal for
relativo às funções públicas delegadas pelo poder público ao ente privado, será
possível o uso do mandado de segurança; sendo que os atos praticados por
autoridades em razão de mera autorização do poder público como seguradoras,
bancos, consórcios, etc. não ensejam a proteção do aludido “remédio”.
A
Súmula 510 do STF ratifica o mesmo entendimento ao asseverar que “Praticado o
ato por autoridade, no exercício de
competência delegada, contra ela cabe o mandado de segurança ou medida
judicial”
Aproveitamos
também exemplo do doutrinador Heraldo Garcia Vitta para ilustrar a situação ao
relatar que impossível seria a impetração se “um aluno de entidade privada de
ensino superior quisesse diminuição de mensalidade, pois nada tem que ver com delegação da atividade feita pelo poder
público à entidade”.
Porém,
esclarece o Ministro Oscar Correa em voto proferido no Recurso Extraordinário
de nº 108.636-0/PR:
Se o diretor do estabelecimento privado de ensino superior pratica ato
de autoridade quando em razão de suas funções, como longa manus do Estado. É
que este não tendo condições de promover o ensino à exaustão, em todo
território nacional, liberou-o à livre iniciativa particular, ficando as
escolas em referência, ipso facto, alçadas, do nível das entidades de direito
público(...) (JSTF 113/153).
Concluímos
que se deve atentar também para a natureza do ato para que não haja carência de
ação, pois apenas a classe da autoridade não legitima a impetração da
Segurança.
4
–Hipóteses legais de descabimento e suas exceções:
Feita uma breve explanação a
respeito da possibilidade genérica de cabimento do mandado de segurança,
baseada num processo de dedução da norma constitucional prescrita no art. 5º,
LXIX da Carta, agora serão analisadas as hipóteses legais de descabimento da
referida Ação Constitucional, expressas no art. 5º I, II e III da Lei 1.533/51.
De
acordo com o art. 5º da Lei do mandado de segurança, não é possível a impetração
quando se tratar:
I-
de ato que
caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução;
Devemos ter
cuidado ao interpretar a citada norma, sob pena de fazê-lo incorrendo em
inconstitucionalidade.
Seguindo o
pensamento de Norberto Bobbio, manifestado em sua Teoria do Ordenamento
Jurídico (1999:76), o mais correto em caso de antinomia é recorrer a uma
interpretação sistemática que é, nas palavras do jurisfilósofo italiano:
Aquela forma de interpretação
que tira os seus argumentos do pressuposto de que as normas de um ordenamento,
ou, mais exatamente, de parte de um ordenamento(...) constituam uma totalidade
ordenada(...) mesmo indo contra aquilo que resultaria de uma interpretação
meramente literal”. Devemos, portanto, interpretar as normas não isoladamente
mas em concordância com o “espírito do sistema” que, sem dúvida tem seu âmago
na constituição federal.
Estabelece o
inciso XXXV do artigo 5º da nossa atual Carta Constitucional que “a lei não
excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito”. Daí
infere-se, conforme doutrina do jurista Heraldo Garcia Vitta, algumas
situações:
a) Quando o
recurso administrativo é concedido com efeito suspensivo e sem a exigência de
caução contra ato comissivo de
autoridade: aqui, de fato não há que se falar na concessão da segurança, pois
haveria carência por falta de interesse jurídico em razão do direito já ter
sido plenamente assegurado pelas vias administrativas;
b) Porém, não
podemos dizer que é impossível à impetração, sob pena de ferir a
supramencionada norma constitucional, em ocorrendo a preclusão do recurso
administrativo mesmo que este exista em tese. Há autores que vão mais além:
Hely Lopes Meireles (1999:22) afirma ser possível optar a qualquer tempo pela
impetração do mandado de segurança ou do recurso administrativo. Oposto a isso,
Sávio de Figueiredo Teixeira e Milton Flanks apontam para o dever de exaustão
das vias administrativas visão esta atualmente superada pela doutrina e
jurisprudência.
Como melhor caminho entendemos, no rastro de
Hely Lopes Meireles, que a possibilidade de pleito através das vias
administrativas em que possa ser conferido efeito suspensivo ao ato praticado,
não impede a propositura do mandado de segurança; tal circunstância por mais que
esteja positivada no art. 5º, I da Lei 1533/51, fere frontalmente o,
supramencionado art. 5º, XXXIV da Constituição Federal, que repele a exclusão
da apreciação do poder judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito.
Assim,
interposto ou não recurso administrativo, caberá a impetração de mandado de
segurança, desde que atendidos os seus requisitos constitucionais. O alcance da
norma referida norma infraconstitucional, restringe-se, ao nosso ver, aos casos
em que seja interposto o recurso administrativo e lhe tenha sido conferido o
efeito suspensivo a tempo de assegurar o direito violado, pois nesta
circunstância verifica-se manifesta falta de interesse processual na impetração
do mandamus.
Por
último, resta mencionar a súmula que acabou com a polêmica dos atos omissivos de autoridade. Pois
quando o ato é desta natureza de nada adianta um recurso administrativo com
efeito suspensivo. Aqui o que se pretende é exatamente a realização de ato para
o qual autoridade se omitiu. Através da Súmula 429 o STF dirimiu as dúvidas a
respeito do tema, preceituando que “A existência de recurso administrativo com
efeito suspensivo não impede o uso do mandado de segurança contra omissão de
autoridade”.
II-
de despacho ou
decisão judicial quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser
modificado por via de correição;
Também, sob
pena de carência de ação, não se deve utilizar o mandado de segurança quando há
algum meio mais específico para atacar a ilegalidade de ato judicial, com o
qual se obterá os mesmos efeitos do “remédio heróico”.
Pretende a Lei
evitar o que ocorreu, por exemplo, no México com o Judicio de Amparo, fonte de inspiração do mandado de segurança, que
acabou funcionando como sucedâneo de recurso judicial.
A determinação
legal foi reforçada pela Súmula 267 da Suprema Corte onde se coaduna que “não
cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou
correição”.
Vê-se que as
possibilidades de impetração do mandado de segurança contra ato judicial ficam,
pois, restritas aos casos em que não houver recurso adequado ou, como vinha
sendo reiterado pela jurisprudência, para dar efeito suspensivo ao recurso
quando a este não fosse dado tal efeito.Vejamos as duas hipóteses:
Em não havendo
recurso adequado para combater a ilegalidade praticada por autoridade judicial
(e sendo a correição ineficaz pela natureza da situação), cabe a impetração
para fazer valer o direito líquido e certo do coagido.
Uma
hipótese seria a da impetração para atacar decisão liminar prolatada em mandado
de segurança, para os que sustentam ser incabível recurso de agravo contra
em tal situação. Assegura o Ministro do STJ Dr. Milton Pereira, “Não se
pode em situações excepcionais(...)deixar de conhecer do mandado de segurança
impetrado contra despacho em outro mandado de segurança , posto ser contra
aquele ato cabível nenhum recurso, inclusive agravo de instrumento” (RMS-
5248-6/RJ).
Quanto a
impetração do mandado de segurança para
dar efeito suspensivo em sede de recurso, aconteceu que a Lei 9139/95, que alterou
o art. 558 do CPC, permite ao relator suspender o cumprimento da decisão até o
pronunciamento definitivo da Turma ou Câmara, impossibilitando com isso, o uso
de mandado de segurança ou de Cautelar para dar efeito suspensivo em decisão
interlocutória agravada.
Se o efeito
suspensivo não for dado pelo Relator por abuso de poder ou ilegalidade, caberá
Agravo Regimental ao órgão colegiado para atacar tal ato omissivo. O que
assevera a jurisprudência atual é a impossibilidade de impetração direta para
dar o efeito suspensivo ao recurso sem utilização do meio específico, qual seja
requerimento ao Relator do agravo.
Outra
circunstância se evidência na seara dos Juizados Especiais, onde também não
cabe qualquer recurso contra as decisões interlocutórias, salvo pedido de
reconsideração que tecnicamente não se configura como recurso. É cabível, pois
a impetração do mandado de segurança para repelir eventual ilegalidade ou abuso
de poder praticado pela autoridade judicial.
III-
de ato
disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou por
inobservância de formalidade essencial.
Esta hipótese
de descabimento está relacionada com a impossibilidade da impetração de mandado
de segurança para atacar o mérito de ato administrativo discricionário, pois a mobilidade
deste é de manuseio exclusivo do administrador.
No dizer de
Milton Flanks (1980:187):
Exclui-se da censura judicial, e, por conseguinte, do campo de aplicação
do mandado de segurança, desde que não eivados de vícios que o nulifiquem, o
ato discricionário, resultante da faculdade que se reconhece à administração de
apreciar o valor dos motivos e determinar o seu objeto.
Ao ato
disciplinar, que é o ato de punição à indisciplina de servidor público, pelo
conteúdo discricionário que resguarda, é vedada a revisão através de mandado de
segurança; tal hipótese de descabimento, para que não haja divergências, vem
expressa em Lei (art. 5, III, Lei 1.533/51).
Contudo,
apesar da proibição legal, existem as ressalvas instituídas pelo próprio inciso
em estudo, segundo o qual é possível repressão ao ato disciplinar por meio do
mandado de segurança quando ocorrer ilegalidade ou, mais precisamente, quando praticado por autoridade
incompetente ou em desacordo com
formalidade essencial.
Veja-se que aí não se estaria adentrando no
poder exclusivo da Administração de análise do mérito administrativo, mas
apenas cumprindo o dever constitucional do controle judicial da legalidade dos
atos administrativos.
Como já foi
elucidado acima dentro das hipóteses genéricas de cabimento, em havendo
qualquer ilegalidade praticada por
autoridade caberá a impetração do mandado de segurança. Não seria diferente com
o ato disciplinar. Se a autoridade que aplicar a sanção ao servidor
indisciplinado o fizer infringindo a lei, seja por aplicar pena inexistente ou
ainda de proporcionalidade tão incoerente a ponto de atingir a legalidade do
ato disciplinar, caberá mandado de segurança para atacar a ilegalidade
genérica.
Quando o ato disciplinar é praticado por autoridade incompetente, por mais que
se trate de uma hipótese específica de descabimento não deixa de atingir a
legalidade do ato já que a competência é definida por lei. Assim, também é
cabível a impetração do mandado de segurança.
Como exemplo,
cita o Prof. Cretella Jr. (1980:162) a situação em que um Prefeito Municipal
aplica sanção disciplinar para punir um funcionário estadual; ou um Governador
de Estado que aplica pena disciplinar em funcionário municipal. Nas referidas
hipóteses os atos são anuláveis, desde que não convalidados, e, assim sendo,
passíveis de repressão por mandado de segurança.
Por último,
afirma a lei ser possível a impetração de mandado de segurança quando o ato
disciplinar for praticado em descordo
com formalidade essencial do processo disciplinar administrativo. Como as
formalidades dos atos administrativos são determinadas pela lei, este também
acaba sendo um caso de ilegalidade.
É importante
observar que, sob o âmbito do direito administrativo, os atos objetos desta
norma do inciso III do art. 5º da Lei do mandado de segurança, quais sejam os
praticados por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade
essencial, são vícios que atingem dois pressupostos genéricos de validade do
ato administrativo: respectivamente o sujeito
e a forma. Por serem pressupostos de anulabilidade, são convalidáveis. Isto
significa que se, por exemplo, um Secretário de Estado demite um funcionário
público estadual, praticando com isso uma ilegalidade já que a competência para
tal prática é do Governador, o ato pode ser convalidado pela autoridade
competente. Aí sua eficácia jurídica será mantida, sendo impossível desfaze-lo
através de mandado de segurança.
Da mesma
maneira ocorreria se o vício fosse na forma, como editar norma através de
portaria em sendo meio adequado o decreto[6].
Assim o ato também pode ser convalidado.
6) CONCLUSÃO:
Mesmo diante
de uma breve explanação, de mera superfície acerca do tema cabimento e
descabimento em mandado de segurança, fica, senão esclarecida, ao menos
reforçada a necessidade de especificação e individualização dos requisitos
constitucionais e legais para uma adequada impetração do citado remédio
constitucional.
Não atento a
tais requisitos, por se tratar o mandado de segurança de uma via específica e
especial, poderá o operador do direito, dada urgência que normalmente acompanha
a impetração, mitigar as possibilidades do impetrante de resguardar os seus
direitos e garantias constitucionais que lhes seriam plenamente assegurados, em
não havendo qualquer equívoco.
Além da atenção
aos requisitos próprios à concessão da segurança, como dito e é valido
reprisar, deve-se conhecer também, em razão do caráter residual do objeto do
mandado de segurança, sobre a tutela dos demais remédios constitucionais, como
habeas data, habeas corpus, ação popular, etc., que por vezes fazem fronteira
com o remédio heróico, evitando com isso a extinção por falta de interesse de
agir.
Assim, desde
que corretamente utilizado, é o mandado de segurança uma verdadeira arma às
mãos do cidadão para defesa dos seus direitos constitucionais que lhes são, a
todos os instantes, violados pelas autoridades públicas quando atuam em
desatenção às normas jurídicas do nosso sistema.
7- BIBLIOGRAFIA
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Disponível
em: <http://www.direitoufba.net/artigos/artigo001.doc>. Acesso em:
18/07/2006.
[1] Dispõe o Art. 5º em seu inciso LXIX
inciso: “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e
certo, não amparado por habeas corpus ou
habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for
autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do
poder público”.
[2]
O presente elenco de requisitos foi inspirado na
classificação de Sérgio Ferraz, sendo que, para melhor didática, achamos
conveniente destacar a autoridade coatora num terceiro requisito, ao invés de
aglutiná-la junto à ilegalidade e abuso de poder, como fez o douto jurista.
[3] Nesse sentido, dentre inúmeros julgados, TRF1ª
Região, Relatora Eliana Calmon, AMS- 90.01.16327-0, DJ 05/09/94.
[4] No mesmo sentido André de Laubadire, 1970, pg. 502.
[5]
No caso citado a impetrante foi
outra farmácia que se sentiu prejudicada pelo funcionamento de estabelecimento
irregular, do mesmo gênero, nas proximidades de sua sede, desrespeitando os
limites (de 200m), estabelecidos em Lei. Por isso há, neste caso, legitimidade
para impetração de mandado de segurança.
[6] O prof. Cretella Jr. distingue forma e
formalidade do ato administrativo ( Obra: Comentários à Lei de mandado de
segurança, 1a edição, pg. 163). Aqui, como a maioria da doutrina não
iremos tecer tal distinção, pela sua pouca utilidade prática no âmbito de
mandado de segurança . Pois, como assume o próprio jurista ambos os casos cabe
a impetração.