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Aborto
anencefálico: exclusão da tipicidade material
Luiz Flávio Gomes *
O tipo penal nos crimes dolosos (de acordo com a teoria
constitucionalista do delito que adotamos) é a soma da tipicidade formal (ou
objetiva) + tipicidade material (ou normativa) + tipicidade subjetiva. Da
tipicidade material fazem parte três juízos valorativos distintos: juízo de
desaprovação da conduta, juízo de desaprovação do resultado jurídico e juízo de
imputação objetiva do resultado. O resultado jurídico (lesão ou perigo concreto
de lesão ao bem jurídico), para ser desvalioso (desaprovado), precisa reunir
quatro características: (a) concreto; (b) transcendental; (c) grave (não
insignificante) e (d) intolerável.
A quarta exigência que advém do resultado jurídico desvalioso é a
intolerabilidade da ofensa. A ofensa, portanto, além de real, transcendental e
grave, deve ser também intolerável (desarrazoada). Seja por força da exigência
de que relevante somente pode ser a ofensa intolerável (princípio da
fragmentariedade do Direito penal), seja em razão da teoria da adequação
social, o fato é atípico quando não perturba (ou não perturba seriamente ou não
perturba desarrazoadamente) o convívio social justamente porque a ofensa ou é
tolerada (aceita) pela (quase) unanimidade da comunidade ou não é desarrazoada.
Do exposto, cabe concluir que não há resultado jurídico desvalioso quando
o resultado não é desarrazoado (ou arbitrário ou injusto). Esse é o fundamento
jurídico para não se reconhecer crime (fato típico) na conduta de quem pratica
o chamado aborto anencefálico, que gera uma morte, porém, não desarrazoada ou
arbitrária.
Pela relevância do tema, que se encontra sub judice no STF (ADPF
54), vale ponderar o seguinte:
1. "Status quaestione": ação proposta, liminar e cassação da
liminar pelo STF
Nos termos dos artigos 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, todo atentado
abortivo contra o feto é crime. Apenas em duas situações é permitido o
abortamento no nosso país: quando há risco para a gestante (CP, art. 128, I:
aborto necessário) ou quando a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II:
aborto humanitário ou sentimental). Como se vê, o aborto anencefálico (aborto
de feto com crânio mal formado ou no caso de hidroanencefalia) não está
expressamente autorizado. Pela letra fria da lei, constitui (constituiria)
delito. De cada 10.000 nascimentos no Brasil, oito são anencefálicos. Muitas
gestantes e sua família, assim como alguns médicos, mesmo correndo risco de
serem processados, praticam o aborto anencefálico. Literalmente há
crime.Vive-se uma situação de insegurança jurídica muito aflitiva. A exceção
somente acontece quando o Judiciário, em cada caso concreto, concede
autorização para o ato do abortamento.
Para tentar buscar uma solução para essa complicada questão, no princípio
de
Convém enfatizar desde logo que não se pretende, por meio da referida
ação, que o STF crie uma nova norma jurídica para autorizar o aborto
anencefálico (isto é, aborto do feto com má formação craniana). Criar norma
jurídica o Judiciário não pode. Por força da tradicional teoria da tripartição
dos poderes (Montesquieu), a tarefa de legislar é do legislador. A questão,
entretanto, posta na citada ADPF, é outra: é saber se o aborto anencefálico
acha-se ou não inserido no âmbito da proibição legal (isto é: esse tipo aborto
está ou não enquadrado na norma proibitiva derivada dos arts. 124, 125 e 126 do
CP?). Não se pede ao STF para "legislar", sim, para decidir (conforme
as normas e princípios constitucionais) se o aborto anencefálico é ou não um
fato típico, ou seja, um fato adequado ao tipo penal do aborto. É uma questão
de tipicidade penal, não de "ativismo judicial".
O Ministro Marco Aurélio, na mencionada ADPF, em julho de 2004, deferiu
liminar que passou a amparar, com eficácia erga omnes, todos os casos de aborto
anencefálico no nosso país. Em outubro do mesmo ano o Pleno do STF (por sete
votos contra quatro) cassou a liminar, sob o argumento (principal) de que era
satisfativa (leia-se: uma vez feito o aborto, caso o mérito da ação não fosse
julgado procedente, a situação seria irreversível; a vida, quando eliminada,
não tem retorno).
Na ocasião em que o STF cassou a liminar duas questões ficaram pendentes:
(a) a via da ação de descumprimento de preceito fundamental é adequada para se
discutir o tema proposto? (b) no mérito, qual é a posição definitiva dos
Eminentes Ministros da Corte Suprema sobre o aborto anencefálico?
2. Pertinência jurídica da ADPF
A argüente (CNTS) apontou como violados, em sua ação de descumprimento de
preceito fundamental (que nada mais é que uma nova modalidade de controle de
constitucionalidade, que recai sobre o chamado direito pré-constitucional), os
preceitos dos artigos 1º, IV (dignidade da pessoa humana); 5º, II (princípio da
legalidade, liberdade e autonomia da vontade); 6º, caput, e 196 (direito à
saúde), todos da CF. Como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto
normativo ostentado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código
Penal.
Como se percebe, de um lado está o interesse público na proteção do bem
jurídico vida (do feto); de outro está o interesse individual e geral de
liberdade, que, em última instância, se sintetiza na dignidade da pessoa
humana. Qual deve preponderar? Qual tem maior valor? Algum desses interesses
seria absoluto?
Pediu-se, na inicial, em última análise, a interpretação conforme à
Constituição dos referidos dispositivos do CP, a fim de explicitar que os
mesmos não se aplicam aos casos de aborto de feto anencéfalico. Pretende-se a
declaração do STF no sentido de que o aborto anencefálico não se enquadra no
âmbito da proibição penal. Que não é um fato (materialmente) típico.
Em 27.04.2005 o Pleno do STF, por sete votos a quatro, concluiu pela
admissibilidade (e adequação) da ação de descumprimento de preceito
fundamental. Resta agora o exame do mérito da questão.
Múltiplas foram as razões invocadas para o positivo juízo de
admissibilidade da ADPF: (a) que a questão do aborto anencefálico é muito
relevante; (b) que no atual estágio há muita insegurança nessa área; (c) que
são muito relevantes os direitos e interesses envolvidos (vida do feto,
liberdade da gestante, dignidade etc.); (d) que há muitas decisões discrepantes
sobre a matéria; (e) que não há outro meio jurídico mais idôneo para se discutir
o tema; (f) que é incabível qualquer outra ação constitucional de controle de
constitucionalidade por se tratar de direito pré-constitucional etc.
Vários Ministros do STF já deram evidências, em julgamentos ou
entrevistas, de que votarão a favor do direito da mulher de optar por
interromper a gravidez se for detectada a anencefalia.
Por ocasião da concessão da liminar (julho de 2004) o Ministro Marco
Aurélio de Mello, relator da ação, autorizou a antecipação do parto nesses
casos em todo o país. Sublinhou-se que não se trata de aborto porque não há
chance de sobrevivência do feto fora do útero.
Os quatro votos pelo arquivamento da ação (ADPF) foram de Eros Grau,
Cezar Peluso, Ellen Gracie Northfleet e Carlos Velloso. Eles disseram que o STF
substituirá o Congresso na tarefa de legislar porque estará criando uma
hipótese de aborto não prevista no Código Penal. Mas, com a devida venia, não é
disso que se trata.
3. Fundamento dogmático do aborto anencefálico
Também existe muita polêmica sobre o exato enquadramento dogmático do
aborto anencefálico: haveria exclusão da antijuridicidade, da punibilidade ou
da tipicidade?
Nosso Código Penal, no art. 128, como já sublinhado, prevê duas hipóteses
de aborto permitido: o necessário, quando há risco de vida para a gestante (CP,
art. 128, I) e o humanitário ou sentimental (quando a gravidez resulta de
estupro – CP, art. 128, II). Não se pretende que o STF crie uma terceira
modalidade de exclusão de punibilidade em relação ao aborto. Não é isso que se
pede na ADPF citada. Sim, que ele declare que o aborto anencefálico não se
enquadra nos tipos legais desse crime (contemplados nos artigos 124 e ss. do
CP).
Mas sob qual fundamento isso seria possível?
A resposta só pode ser encontrada no âmbito da tipicidade material, que
exige três juízos valorativos distintos: 1º) juízo de desaprovação da conduta
(cabe ao juiz verificar o desvalor da conduta, ou seja, se o agente, com sua
conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante); 2º) juízo de
desaprovação do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado que consiste
na ofensa desvaliosa ao bem jurídico) e 3º) juízo de imputação objetiva do
resultado (o resultado deve ser a realização do risco criado ou incrementado).
4. O aborto anencefálico não é um fato materialmente típico
A essa conclusão se chega quando se tem presente a verdadeira e atual
extensão do tipo penal, que abrange (a) a dimensão formal-objetiva (conduta,
resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação típica formal à letra
da lei); (b) a dimensão material-normativa (desvalor da conduta + desvalor do
resultado jurídico + imputação objetiva desse resultado) e (c) a dimensão
subjetiva (nos crimes dolosos). O aborto anenfálico elimina a dimensão
material-normativa do tipo (ou seja: a tipicidade material) porque a morte,
nesse caso, não é arbitrária, não é desarrazoada. Não há que se falar em
resultado jurídico desvalioso nessa situação.
A base dessa valoração decorre de uma ponderação (em cada caso concreto)
entre o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo
de conduta perigosa relevante) e o interesse geral de liberdade (que procura
assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal).
No aborto anencefálico parece não haver dúvida que o resultado jurídico
(lesão contra o bem jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente.
Todas as normas e princípios constitucionais invocados na ação de
descumprimento de preceito fundamental (artigos 1º, IV - dignidade da pessoa
humana -; 5º, II - princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade -;
6º, caput, e 196 - direito à saúde -, todos da CF) conduzem à conclusão de que
não se trata de uma morte (ou antecipação dela) desarrazoada (ou abusiva ou
arbitrária).
Não há dúvida que o art. 5º da CF assegura a inviolabilidade da vida, mas
não existe direito absoluto. Feliz, portanto, a redação do art. 4º da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida
arbitrariamente. O que se deve conter é o arbítrio, o abuso, o irrazoável.
Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem
jurídico vida, não há que se falar em resultado jurídico desvalioso (ou
intolerável). Ao contrário, trata-se de resultado juridicamente tolerável, na
medida em que temos, de um lado, uma vida inviável (todos os fetos
anencefálicos morrem, em regra poucos minutos após o nascimento), de outro, um
conteúdo nada desprezível de sofrimento (da mãe, do pai, da família etc.).
Pode-se afirmar tudo em relação ao aborto anencefálico, menos que seja um
caso de morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida,
aliás, está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito em respeito a
outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica,
dignidade, liberdade etc.). Não se trata, portanto, de uma morte arbitrária. O
fato é atípico justamente porque o resultado jurídico (a lesão) não é
desarrazoado (desarrazoada). Basta compreender que o "provocar o
aborto" do art. 124 significa "provocar arbitrariamente o
aborto" para se concluir pela atipicidade (material) da conduta. Esse, em
suma, é o fundamento da atipicidade do aborto anencefálico.
Mas é preciso que se constate, com toda clareza, a inviabilidade do feto.
Porque é essa inviabilidade (cientificamente certa) aliada a vários outros
interesses relevantes em jogo (sofrimento da gestante, angústia, afetação de
sua saúde mental e psicológica, dignidade humana etc.) que torna a antecipação
do parto uma medida razoável. Fora das hipóteses de inviabilidade certa da
vida, jamais se pode conceber o aborto.
Por isso mesmo, fetos deformados, fetos com doenças mentais, mongais
etc., não podem ser eliminados arbitrariamente. Só se justifica a morte
(antecipada) do feto cuja vida está totalmente anulada. Aborto anencefálico não
é aborto profilático. Ninguém pode, por razões de profilaxia (de depuração da
raça, por eugenia etc.), matar qualquer outra pessoa. Aborto profilático é
crime. Já o anencefálico exclui a tipicidade material. Neste a vida do feto é
inviável; naquele a vida do feto (extra-uterina) é viável. Nisso reside uma
grande diferença entre tais situações.
Pouco importa o fato, bastante excepcional, de alguns raros fetos
anencefálicos não morrerem dez ou vinte minutos depois do nascimento. Há casos
em que o nascido dura semanas, às vezes um ou mais meses. Isso, entretanto, não
invalida a premissa de que jamais qualquer um desses fetos veio a sobreviver. A
inviabilidade da vida quanto ao anencefálico é absoluta e cientificamente
certa. Essa é a razão de se não vislumbrar arbitrariedade na antecipação do
parto.
Argumenta-se ainda que o melhor seria deixar a criança nascer, aproveitar
dela alguns órgãos vitais importantes (para transplantes) e só depois esperar a
sua morte. Essa é uma questão delicada, porque a extração de órgãos vitais só é
permitida após a morte cerebral. O feto anencefálico conta com má formação do
cérebro, mas não se pode afirmar a sua morte cerebral. Feto anencefálico tem
vida cerebral. O cérebro é mal formado, mas funciona. Não é possível, destarte,
enquanto o feto tenha vida, retirar-lhe qualquer órgão. Deve-se aguardar a
morte cerebral para a extração de órgãos.
* Doutor
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8561>. Acesso em: 26 jun. 2006.