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A Redução da Idade de Maioridade Penal do Estigma à Subjetividade

 

 

Mário Luiz Ramidoff

 

 

“... cada artista verdadeiro se sente obrigado a repetir certas formas ou feitios característicos; se quisermos determinar a autoria de uma obra de arte, só poderemos fazê-lo através do reconhecimento destas formas fundamentais... E para identificar as formas características de um artista, precisamos nos remeter àquelas partes da pintura sobre as quais existam menos pressões convencionais...”

Morelli G.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. (RE)FUNDAÇÃO EPISTEMOLÓGICA; 2. (DES)MISTIFICAÇÃO DA CRIMINALIDADE JUVENIL; 3. DIREITOS HUMANOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE; 4. EMANCIPAÇÃO HUMANITÁRIA: A CAMINHO DA SUBJETIVIDADE; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

 

INTRODUÇÃO

 

            A temática abordada neste trabalho é, na verdade, um assunto já tratado na minha dissertação, então, defendida perante o Curso de Pós-Graduação em Direito, da Universidade Federal de Santa Catarina – CPGD/UFSC, na data de 16 de agosto de 2002, e, através da qual alcancei o pretendido grau de Mestre em Direito. Assim, até a presente data, continuo acompanhando o nem sempre legítimo movimento que se produz em torno do tema, com o fito de que seja mantido íntegro o teor do artigo 228, da Constituição da República de 1988, pois, congrega-se a inimputabilidade penal às pessoas com idade inferior a dezoito (18) anos, agora, por opção política, como um direito individual, de cunho fundamental, ao patrimônio personalíssimo das crianças e adolescentes brasileiros.

            E, assim, não sendo possível, pois, a supressão, e, sequer, restrição, de um direito individual, haja vista que a inimputabilidade penal deixa de ser considerado, então, um instituto jurídico próprio da dogmática-jurídico penal – até porque, não se operou um mero reenvio de tal instituto para o texto constitucional – para se constituir numa adesão particularmente própria à autonomia do povo brasileiro, à diretriz internacional dos Direitos Humanos, aqui, objetivada, em síntese, no artigo 227, da Constituição Federal de 1988, como Doutrina da Proteção Integral. Em virtude disto, trago a lume um resumo aproximativo de minha dissertação, a qual certamente, em breve, também restará levada a público pelo que desde já agradeço as críticas e contribuições, penitenciando-me pelos desvios e erros que são todos meus.

 

1. (RE)FUNDAÇÃO EPISTEMOLÓGICA

 

            Através do desenvolvimento epistemológico, busca-se demonstrar a (re) fundação de um novo paradigma jurídico que orienta toda uma nova seara jurídica, vale dizer, com a adoção da diretriz internacional da Doutrina da Proteção Integral, por opção política, tem-se que, mais do que um novel princípio travejado pela centralidade da pessoa humana, estabeleceu-se, sim, uma nova dimensão subjetiva de titularidade em direito, ou seja, de titulares de um também novo Direito da Criança e do Adolescente. A Doutrina da Proteção Integral constitui-se em novo paradigma epistemológico deste novel Direito da Infância e da Juventude. A transdisciplinaridade se torna necessária a partir de então, pois para que se possa verdadeiramente construir uma nova espacialidade jurídica, em perspectiva aberta e emancipatória, vale dizer, em condições de reconhecer e possibilitar a emergência do novo torna-se indispensável o abandono da arrogante postura que a maioria dos interpretes autênticos  assumem, isto é, pretendem (re)ordenar o mundo da vida vivida através tão-somente do viés jurídico-legal. Antes de tudo é imperativo, daqui para sempre não só nesta nova seara sócio-jurídica, mas, de maneira geral, uma postura de humildade diante das limitações pessoais, materiais, técnicas e científicas, em atenção mesmo à idéia de conhecimento mais rigoroso, falsificável e verificável.

 

2. (DES)MISTIFICAÇÃO DA CRIMINALIDADE JUVENIL

 

            Utilizando-se dos estudos da Criminologia Crítica, em especial, segundo o seu aspecto sociológico, precisamente, para desmistificar a crendice denominada “criminalidade juvenil” que se inseriu tanto na opinião pública, quanto no senso comum dos operadores/construtores jurídicos e sociais. Com isto, assevera-se a existência de diversos processos de vitimização, criminalização e estigmatização pelos quais passam crianças e adolescentes, principalmente, pertencentes às famílias mais empobrecidas, bem como a violência decorrente dos enraizados processos de controle social e as suas sofisticadas formas de manutenção do status quo das classes que detêm acesso aos bens que a riqueza proporciona. Pois, desvelar esses interesses nem sempre confessáveis não é tarefa fácil, pelo que, já se constitui num enorme passo – apesar do sempre presente risco do velamento de algo quando se desvela alguma “coisa”.

            Até porque, a verdadeira transformação que se deve operar ocorre precisamente na “disposição de espírito”, na voluntariedade em assumir como fundamento de validade os valores humanos, buscando-se, assim, conscientizar os construtores jurídicos e sociais para então convertê-los em facilitadores, isto é, agentes de promoção e defesa nem tanto dos direitos, mas, principalmente, da criança e do adolescente enquanto pessoa humana que se encontra na condição peculiar de desenvolvimento. A partir de uma perspectiva transdisciplinar se busca na dimensão crítica da Nova Criminologia outros aspectos e relações que não apenas jurídicas, para desmistificar o que se tem dito sobre a “criminalidade juvenil”, como, também, alicerçar parâmetros nos emergentes interesses difusos, coletivos e individuais que se caracterizam em direitos da criança e do adolescente.

            É possível dizer que o marco teórico encontra-se essencialmente delimitado pelas novas tendências do pensamento criminológico crítico. Tais aportes teóricos, enquanto instâncias tutelares servem de travejamento para a inflexão sobre a realidade estrutural – as complexas questões sociais, políticas e econômicas que histórica e culturalmente produzem violência estrutural, em decorrência mesmo das carências materiais – na explicação do comportamento dito desviado, para assim demonstrar que a pessoa denominada de criminoso nada mais é do que aquela pessoa que por diversos mecanismos tem sofrido um processo de criminalização negativo.

 

 

            A formatação de dimensões alternativas ao tradicional sistema de justiça penal, de início, certamente, perpassa pela revisão das raízes epistemológicas, pois, aqui, de forma clara, filia-se ao matiz abolicionista, a qual sustenta que seria um erro estratégico propor alternativas positivistas para as instituições e práticas repressivas existentes. A teoria de base, também, neste quadrante, permeia-se pela visão transdisciplinar, buscando-se nos estudos sociológicos, e, nas atitudes político-filosóficas de proteção especial e integral das pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento de suas personalidades, o fundamento argumentativo próprio e adequado de validade para que se evite a supressão de garantias constitucionalmente estabelecidas aos interesses e direitos individuais, difusos e coletivos da Criança e do Adolescente, em face mesmo das diversas propostas de emenda à Constituição da República de 1988 – em especial, relativas ao seu artigo 228. Impõe-se, pois, a manutenção do artigo 228, da Constituição da República de 1988, uma vez que já existem medidas capazes de auxiliar os infantes e os jovens no desenvolvimento de suas personalidades, bem como eficazes para que seja exigida do Poder Público a implementação de políticas permanentes para tal desiderato, não se necessitando, assim, da adoção dos institutos jurídicos penais de cunho repressivo-punitivo para tal desiderato.

            Através mesmo destas investigações preliminares, já se observa que não se pode perder de vista que o processo de criminalização seletiva recruta, de forma desigual uma espécie de “população criminal” então constituída em sua maior parte por pessoas sobre as quais se concentra a ação do Sistema de Justiça Penal, segundo Michel Foucault . E, isto se dá, a partir da comunhão do sistema de Direito Penal e os controles sociais informais – processos sociais de marginalização (instituições, mercado, escolas, etc...). Ademais, como se percebe, as variáveis não legais que sequer são pensadas pelas instâncias oficiais possuem um efeito considerável sobre os resultados seletivos do sistema jurídico penal, que, apesar de não se submeterem à obrigação de justificação e aos critérios das ações profissionais, indiscutivelmente, desenvolvem importante influência sobre tais aspectos. Na própria exposição de motivos da nova parte geral do Código Penal, a inimputabilidade penal às pessoas que possuem idade inferior a dezoito (18) anos de idade, constitui-se numa opção apoiada em critérios de Política Criminal, inclusive, colhendo-se da oportunidade para advertir os oposicionistas que, na verdade, todo e qualquer processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, e, não à penal criminal .

            Bem por isso, pode-se dizer, com Alessandro Baratta , que, na atividade jurisdicional, enquanto processo de criminalização secundário, em virtude mesmo dos efeitos surtidos da Ciência Penal, o âmbito discricionário é relativamente mais estreito em relação a outros segmentos do sistema jurídico-penal, pois, as decisões que tomam os juízes são programadas de antemão pelo legislador. Uma segunda questão fundamental é a relativa à concepção do fenômeno delitivo. A teoria crítica criminológica não pode mais validamente apenas identificar os delitos, enquanto situações negativas, então, criadas pelo sistema penal, como conflitos individuais, pura interação. O fenômeno delitivo é antes de tudo uma questão de poder, de estruturação das necessidades e sua satisfação . Os mecanismos seletivos funcionam, assim, de forma semelhante aos processos de seleção de classes sociais, e, atuam desde a criação da norma até a sua efetiva aplicação.

            Daí a importância capital da transposição da abordagem teórica do autor às condições objetivas, estruturais e funcionais que, na verdade, constituem-se na origem dos fenômenos de desvio, bem como a transposição do interesse cognoscitivo das causas de desvio criminal, aos mecanismos sociais e institucionais através dos quais se constrói a realidade social da conduta desviante e são criadas e aplicadas definições de tal conduta e da criminalidade, e são realizados os processos de criminalização. E isto somente será possível a partir de um salto qualitativo, vale dizer, com a superação do paradigma etiológico e de suas implicações ideológicas .

 

            É, pois, um fato indiscutível que, com a eventual redução da idade penal, através da criminalização primária – formação da legislação penal – será antecipado, como conseqüência, as mais diversas e variegadas formas dissimuladas de isolamento social, senão, o do próprio encarceramento que, na verdade, constituem-se no desfecho final de um processo mais amplo de estigmatização da juventude brasileira. É justamente sobre a legislação, enquanto segmento próprio do sistema que se concentra a ação da ciência jurídico-penal tendente a preparar a decisão, que se pretende fixar atenção, pois, indubitavelmente, no processo de criminalização, afigura-se como um dos mecanismos que se apresenta com a margem mais ampla de discricionariedade, devendo-se, então, advertir que – muito a gosto de Alessandro Baratta – “as investigações sobre a formação das leis penais mostram que a instância científica nas decisões legislativas não é de forma alguma onipotente e que ocupa uma posição de subordinação, apesar de algumas vezes desempenhar um papel digno de consideração” .

            Assim, sob os auspícios da moderna sociologia criminal, dirige-se, agora, o interesse cognoscitivo de caráter crítico social para a formação discricionária da legislação penal, assumindo, de um lado, uma postura crítica do sistema penal, e, de outro, abandonando, o papel auxiliar que desempenhava a criminologia em relação à política criminal oficial. Uma outra questão é justamente relativa à manutenção da materialização dos direitos individuais, coletivos e difusos relativos à infância e juventude. Pois, tal promoção, impõe uma permanente reflexão acerca do conteúdo ideológico das normas jurídicas, impedindo, senão, desnudando, pois, as funções declaradas ou não do sistema jurídico-penal que ensejam injustiças.

 

 

            Neste sentido, o pensamento criminológico crítico deve constituir-se num movimento de resistência e alerta, para, no mínimo, oferecer argumentos à manutenção da imputabilidade penal somente a partir dos dezoito anos de idade , de acordo com o disposto no artigo 288, da Constituição da República de 1988.

            As diversas propostas de emenda constitucional ao artigo 228 – aproximadamente quinze (15), até a presente data, em tramitação ou não no Congresso Nacional –, na essência, discorrem, com alguma variabilidade, sobre a imputabilidade penal para as pessoas maiores de dezesseis (16) anos e até mesmo de quatorze (14)  anos de idade, vale dizer, propõem não só a alteração do limite da idade para a responsabilidade penal, mas, sobremodo, buscam o afastamento da aplicação das normas da legislação especial, ou seja, da Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.

            Não longe disto, na data de 13 de fevereiro de 2001, foi apresentada uma Proposta de Emenda Constitucional ao referido artigo 228, pelo Deputado Federal Alberto Fraga do Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Distrito Federal – PMDB-DF, versando sobre o estabelecimento da maioridade penal mediante fixação em lei, ou seja, segundo a explicação da ementa, para o estabelecimento da maioridade penal, que deverá ser fixada em lei, propõe-se agora que serão observados os aspectos psicossociais do agente, aferindo-se em laudo emitido por junta de saúde que avaliará a capacidade de se autodeterminar e de discernimento do fato delituoso, permanecendo-se, por mais esta vez, no âmbito da criminologia acessória, nos moldes do paradigma etiológico.

 

           

 

           

            E tal concepção, encontra-se presente desde a primeira Proposta de Emenda à Constituição  relativa ao artigo 228, apresentada pelo, então, Deputado Federal Benedito Domingos, do PP-DF, cujo objetivo declarado é a atribuição de responsabilidade criminal às pessoas maiores de dezesseis anos, refutando o fundamento básico de presunção legal da menoridade e seus efeitos, na fixação da capacidade para entendimento do ato delituoso, sob os auspícios de uma avaliação tão somente pelo critério biológico, desprezando-se, pois, não só o desenvolvimento mental, mas, sobremodo, os diversos elementos e condições de formação da personalidade humana.

            É preciso, pois, diferenciar as diversas etapas na evolução e maturação daquelas pessoas na peculiar situação de desenvolvimento, até porque, ao se falar de juventude não se pode mais recorrer à falácia estatística dos distintos patamares de idade. Para tal desiderato, observa-se que, em comparação com as experiências alienígenas, o percentual dos infratores entre as idades de 21 e 25 anos supera em muito o percentual daqueles infratores entre 14 e 17 anos, e, entre 18 e 20 anos de idade . O sistema geral, como se sabe, permite a manutenção do sistema social, ensejando, por isto mesmo, a manutenção das desigualdades sociais e dos processos de marginalização das classes menos favorecidas, ou seja, sobre aquele grupo de pessoas que se encontram mais suscetíveis sócio-economicamente aos processos de estigmatização.

            Pois, como afirma Cezar Roberto Bitencourt , o fenômeno delitivo tem uma inevitável dimensão social, por essa razão é que a atitude e participação cidadã é decisiva, pois permitirá a conscientização dos processos variegados de estigmatização, quando, não, ensejará uma mudança radical, qual seja: a permanente luta pelos direitos humanos. Através de um processo discriminatório, o sistema penal, desintegra os socialmente frágeis, marginalizando-os, estigmatizando-os e, ao final, etiquetando-os, inviabilizando, desta maneira, uma possível concreção da solidariedade social, pois, na verdade, estabelece, sim, uma relação de exclusão.

 

            Assim, toda espécie de mecanismos de criminalização, tanto que se dê através de propostas de emenda à Constituição, quanto na elaboração legislativa ordinária para a criação de normas penais, deve considerar seriamente os problemas sociais que geram e mantém o fenômeno delitivo.

 

3. DIREITOS HUMANOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

 

            Com fundamento nos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente enquanto viés originário do jurídico a partir do qual decorrem os direitos fundamentais, por opções político-ideológicas próprias dos valores ético-morais, então, vigentes na formação da Constituição da República de 1988 que se operou pelo Poder Constituinte de 1987/1988, desenvolve-se a teoria de base desta virada epistemológica fundante em que se constitui a Doutrina da Proteção Integral. Ao se estabelecer um novo estatuto deontológico através da viragem epistêmica para este novel Direito da Criança e do Adolescente, na verdade, o que se pretende é proporcionar uma proteção diferenciada para este novo grupo de cidadãos, então, constituído por jovens – crianças e adolescentes – tornando-se imperiosa a manutenção do artigo 228, da Constituição da República de 1988, uma vez que é precisamente esta figura legislativa constitucional que define quem são os sujeitos desta nova titularidade jurídica, senão, subjetividade, em perspectiva emancipatória. Toda e qualquer temática relacionada – referencial – aos assuntos que “digam” a respeito da criança e ou do adolescente, por certo, interessa a todos.

            Pois, é precisamente na formação da personalidade e da cidadania das pessoas que se encontram na peculiar condição de criança e ou de adolescente que se podem estabelecer os marcos referenciais para o asseguramento das liberdades substanciais através da educação por valores humanos. A velocidade das informações e dos saberes tem ultimamente produzido uma sofisticação cada vez maior dos veículos de comunicação social – a “mídia” –, contudo, sem o asseguramento das condições mínimas de possibilidade de desenvolvimento das capacidades – potências – de crianças e adolescentes. A melhoria da qualidade de vida, aqui, particularmente, das crianças e dos adolescentes, demanda uma abordagem transdisciplinar e multifacetada, sem, contudo, abandonar as metas e os princípios estabelecidos na espacialidade própria da palavra e da ação – como bem afirma Hannah Arendt .

 

            Crianças e adolescentes surgem como novas subjetividades, a partir da opção política originária – constituinte de 1987/1988 – pela doutrina da proteção integral, enquanto vertente internacional dos direitos humanos para a infância e a juventude. A partir de então, busca-se não só universalizar tais valores, mas, também, internacionalizá-los, motivo pelo qual surge a Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) enquanto código deontológico protetivo especial e integral, e, como marco jurídico-legal da promoção e asseguramento dos direitos individuais e as garantias fundamentais da criança e do adolescente.

            Na verdade, o Estatuto da Criança e do Adolescente não só instrumentaliza as opções políticas legitimamente adotadas, mas, principalmente, estabelece uma metodologia organizacional das instâncias promocionais através da construção de uma rede integrada de sistemas de proteção – “rede de garantias”. Contudo, já não se pode esquecer que a responsabilidade pela assim denominada “matéria prima” das futuras gerações – crianças e adolescentes – é compartilhada entre a família, a sociedade e o Estado (art. 227, caput, da Constituição da República de 1988), motivo pelo qual importa dizer que todas as crianças e adolescentes independentemente de sua situação pessoal ou mesmo da eventual circunstância social em que se encontre são titulares de diferenciados direitos individuais de cunho fundamental – então, considerados “cláusulas pétreas” (art. 227; combinado com o art. 5º, § 2º, in fine; e, com o art. 60, § 4º, inc. IV, todos da Constituição da República de 1988) – que guardam orientação nos valores humanos.

            É preciso mais do que nunca construir projetos de vida responsável para o asseguramento das diversas e inúmeras dimensões da dignidade da pessoa humana. Em particular, dessas novas e emergentes subjetividades que se constituem as crianças e os adolescentes. A emancipação subjetiva, pessoal e humana, assim, muito bem poderá possibilitar o desenvolvimento de capacidades excepcionais para a resolução das questões inerentes ao mundo social, quando, não, a superação das dificuldades de acesso – falta de informação adequada – através do estabelecimento de relações comunicativas (liberdade de expressão), dialéticas (democráticas), comunitárias (solidárias) e respeitosas (reconhecimento do outro).

 

 

 

 

 

4. EMANCIPAÇÃO HUMANITÁRIA: A CAMINHO DA SUBJETIVIDADE

 

            A emancipação da juventude brasileira, enquanto promessa humanitária, pela qual, muitos se encontram envolvidos é o caminho apto, hábil e capaz de (re)personalizar-se as relações sociais – dentre elas as jurídicas – (re)colocando a pessoa no centro das atenções, (re)desenhando, num projeto de vida responsável, a subjetividade das crianças e adolescentes brasileiros. Um compromisso com a causa da infância e juventude brasileira, deve servir como norte orientativo da disposição de espírito – vontade e desejo – dos construtores jurídico-sociais. E isto deve restar impregnado profundamente na racionalidade e na cultura brasileira, patenteando-se, pois, a concepção de que este novo Direito da Criança e do Adolescente, então, fundado na Doutrina da Proteção Integral, é antes de tudo uma dimensão em aberto que enseja condições de possibilidade de efetivação dos direitos fundamentais desta nova cidadania, através mesmo da implementação de estratégias políticas – sobremodo, pela integração, articulação e municipalização das políticas públicas de atendimento – para tal desiderato. E isto, certamente, significa acreditar não só a Doutrina da Proteção Integral, então, sintetizada no artigo 227, da Constituição Federal de 1988, mas, sobremodo, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – como o novo Código Deontológico Protetivo, implementando as políticas públicas, utilizando seus institutos e instrumentais próprios, e, aplicando a sua sistemática para a promoção e defesa dos direitos próprios desta nova e diferenciada subjetividade. Bem por isso, entende-se que a sistemática jurídica infanto-juvenil, então, orientada pela síntese constitucional da Doutrina da Proteção Integral, articulada com o Estatuto da Criança e do Adolescente, e, as demais figuras legislativas pertinentes se constituem num conjunto próprio e suficientemente apto, coerente e compatível para a resolução das variegadas demandas infanto-juvenis que não só aquelas atinentes aos adolescentes autores de ações conflitantes com a lei.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Em resumo, tem-se que a partir do viés transdisciplinar, propõe-se uma construção epistemológica para (re)fundação de uma nova dimensão jurídica, qual seja, o Direito da Criança e do Adolescente. A seguir, trabalhou-se com a perspectiva sociológica, então, apreendida no discurso da Criminologia Crítica, procurando-se, assim, desvelar algumas das causas, pelas quais os adolescentes circunstancialmente praticam ações conflitantes com a lei.

 

            Não fosse isto, quando, não, evidenciar que a dita "criminalidade juvenil" é algo construído e (re)significado que mecanicamente é reiterado no senso comum e na opinião pública, reforçando, pois, no imaginário social, o discurso meramente performático e argumentativo, bem como as respectivas práticas recrudescedoras e estigmatizantes, operando eficazmente a circularidade do direito tão peculiar à dogmática jurídico-penal – seja ela qual for, inclusive, quando travestida de Direito Penal Mínimo, e, como quer alguns, Direito Penal Juvenil.

            Em decorrência mesmo disto, a origem humanitária é lembrada e realçada com a análise dos Direitos Humanos, pois este é o ponto central para a demonstração de que a dogmática jurídico-penal e as suas variantes não garantem nada, uma vez que sequer cumprem as suas promessas – digam-se, incompatíveis entre si – de segurança jurídica e emancipação da pessoa. Pois, agora, o fundamento de validade do Direito da Criança e do Adolescente baseia-se na diretriz internacional dos Direitos Humanos, a qual serve de sustentáculo dos direitos individuais, de cunho fundamental, das crianças e dos adolescentes, assegurando, desta forma, verdadeiramente, as pessoas que se encontram na peculiar condição de desenvolvimento. E isto se constitui, precisamente, um movimento que propõe a (re) personalização das relações sócio-jurídicas, com a nuclearização da pessoa, no centro das atenções, cuidados e proteções, mediante a preocupação com a sua dignidade, principalmente, quando se trata de uma criança ou de um adolescente – ainda que tenha praticado uma ação conflitante com a lei. O primeiro e grande passo que se deve dar é acreditar, de forma convincente, de que o novo Direito da Criança e do Adolescente, então, travejado pelo princípio da Doutrina da Proteção Integral, e, instrumentalizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – possui as condições necessárias de criação e crítica para a construção de possibilidades de efetivação e implementação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes brasileiros.

            Até porque, já se está neste mundo para sempre e como se sabe nem tudo é perfeito, e, justamente, o que não se desvela é que ele jamais o será. E isto não é um ponto fraco, mas, sim, forte. Pois, é precisamente esta tensão entre a norma, a convenção, a hipótese e o mundo fenomenológico, enfim, os fatos, que, proporcionará uma tessitura aberta de possibilidades para o futuro. O caminho é construído – ou não – segundo a credulidade que se tem nos modelos, no compartilhamento do paradigma e nas principais matrizes da teoria enquanto orientação capaz de possibilitar tal construção.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e política penal alternativa. Revista de Direito Penal, nº 23, jul./dez. de 1976, Rio de Janeiro (RJ): Forense: Instituto de Ciências Penais do Rio de Janeiro, 1978, p. 7-21.

BERISTAIN, Antonio. La criminologia entre la deontología y la victimología. Revista de Informação Legislativa, Volume 30, nº 117, Brasília, jan./mar. de 1993, p. 115-144.

BITENCOURT, Cezar Roberto. O objetivo ressocializador na visão da criminologia crítica. Revista dos Tribunais, Volume 79, nº 662, São Paulo, dezembro de 1990, p. 247-256.

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