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A segurança por meio da estruturação da ponderação: critérios
para ponderação em matéria penal
Thiago Bottino do Amaral*
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Gênese do conceito de
ponderação na teoria do direito; 3 - Critérios para ponderação em matéria
penal; Apêndice.
I – INTRODUÇÃO
O Poder Judiciário Brasileiro, ao resolver colisões
normativas, tem prescindido do apuro teórico essencial ao controle da atuação
jurisdicional, caracterizando um protagonismo judicial que, em matéria penal,
tem se revelado um instrumento a serviço da ampliação dos poderes punitivos e
persecutórios do Estado, justamente onde se dá a intervenção mais violenta
sobre a liberdade individual. Pretende-se nesse texto, após uma breve digressão
doutrinária para apresentar o conceito de ponderação de normas, estabelecer
critérios para orientar a ponderação em matéria penal.
II – GÊNESE DO CONCEITO DE PONDERAÇÃO NA TEORIA DO
DIREITO
O pensamento jurídico na primeira metade do século XX foi
marcado pelo predomínio da filosofia positivista (daí o nome "positivismo
jurídico") e pretendia incorporar à teoria do direito o mesmo rigor
metodológico do raciocínio demonstrativo da ciência matemática. Enquanto nas
ciências exatas afastou-se do conhecimento toda a metafísica, no direito a
busca por uma pretensa objetividade e neutralidade do teórico resultou na
separação radical entre o direito e a moral, dissociando o direito de qualquer
juízo de valor (como eqüidade, tolerância e justiça).
Porém, ao afastar-se dos valores que lhe são
indissociáveis (afinal, a pretensão do direito não é apenas regular relações
públicas e privadas, mas regulá-las com pretensão de realizar justiça) o
direito foi incapaz de impedir o surgimento de Estados que reproduziram, em
poder e em ações, o absolutismo, o totalitarismo e a obscurantismo que o
positivismo jurídico buscara combater.
Afinal, o direito legislado não possui uma capacidade
intrínseca de se fazer válido ou legítimo. As teorias pós-positivistas
[01] criticam o viés formalista do positivismo normativista que
privilegiava a supremacia da regra, colocando o texto literal da lei como
superior aos fundamentos que a inspiram, pois o formalismo extremado repercute
na atuação jurisdicional, transformando o juiz num aplicador burocrático das
leis, amesquinhando seu mister de distribuir justiça. Se, por um lado, a
limitação da atividade jurisdicional impedia a transformação do juiz em
legislador (combinação de poderes extremamente perigosa para o estado de
Direito a democracia e os direitos fundamentais), essa mesma limitação
tornou-lhe incapaz de realizar sua função de garante dos direitos do indivíduo
quando o Estado se torna tirânico ou iníquo.
Para corrigir essa limitação que o positivismo impôs ao
judiciário, as teorias pós-positivistas propugnam que a regra não seja
considerada como inquestionável e superior aos valores que a inspiram. Esses
valores poderiam ser apreendidos dos princípios gerais do direito que animam o
ordenamento jurídico, estejam eles expressamente enunciados ou não.
Essa a reação ao positivismo jurídico foi responsável pelo
surgimento e crescimento de um fenômeno sócio-jurídico responsável pela
assunção, pelo Poder Judiciário, de responsabilidades do Estado que caberiam
aos Poderes Legislativo e Executivo desempenharem [02],
consubstanciada numa atuação política com preocupações morais e com a pretensão
de distribuir justiça social por meio das decisões judiciais. O movimento de
reação ao formalismo jurídico que caracterizava o positivismo normativista é
denominado protagonismo judicial [03].
Entretanto, essa atuação jurisdicional mais
"engajada" traz consigo riscos e temores de que argumentos morais
prevaleçam sobre o direito, numa profusão incontrolável de interpretações
subjetivas que ameaçam a segurança jurídica [04].
Nesse diapasão, torna-se imprescindível a elaboração de
critérios racionais para a orientação dessa nova modalidade de atuação
jusrisdicional. Chain Perelman, por exemplo, sustentava que o esforço
metodológico para identificar os meios de se chegar a uma decisão justa
(adequada) seria realizado por meio da nova retórica [05].
Essa necessidade é ainda mais premente quando se alardeia
a utilização dos chamados princípios jurídicos, positivados ou não, para
fundamentar decisões judiciais, o que obrigaria, por exemplo, à definição da
sua natureza jurídica, classificação, estrutura normativa, e relação com as
normas na hipótese de conflito. Trata-se de discussão por demais extensa para
os propósitos desse texto [06], razão pela qual basta
apontar, aqui, a existência de dois posicionamentos doutrinários sobre a
distinção entre regras e princípios (ressalvando a existência de
"sub-divisões", dentro de cada corrente teórica).
O primeiro grupo propõe que existem "distinções
fracas" entre regras e princípios, ou seja, que eles se diferenciam com
base no grau de abstração da sua redação. O grupo oposto sustenta que regras e
princípios se distinguem porque são normas de qualidades diferentes e que,
portanto, existem "distinções fortes", propugnando um novo modelo
jurídico não nega a validade do positivismo, mas pretende de superar suas
limitações.
O conceito de ponderação foi desenvolvido a partir da
diferença qualitativa entre normas e princípios, destacando-se a contribuição
de Robert Alexy na afirmativa de que a ponderação resulta do reconhecimento
necessário da proporcionalidade [07]. Segundo Alexy, aceitar
a proporcionalidade é aceitar que princípios são mandatos de otimização, ou
seja, que determinadas normas poderão ser cumpridas em maior ou menor grau
dependendo das possibilidades jurídicas e das possibilidades fáticas, devendo
ser objeto de uma ponderação quando colidirem com outros princípios. O conceito
de princípio, portanto, não decorre da abstração, generalidade ou mesmo da
fundamentalidade [08] da norma, mas da sua forma de
aplicação, que é oposta àquela das regras.
As colisões entre princípios são superadas mediante a
restrição parcial de um ou de ambos os princípios envolvidos, servindo a
ponderação como um procedimento racional para resolver a colisão, fixando
critérios para estabelecer a prevalência de um princípio em detrimento de outro
naquelas determinadas circunstâncias verificadas no caso concreto. A
preocupação é preservar a segurança jurídica a partir do estabelecimento de um
procedimento para a realização da ponderação [09].
O modelo de ponderação proposto por Alexy sofreu inúmeras
críticas, interessando examinar, no que tange ao risco à segurança jurídica que
a ponderação representaria, aquela formulada por Jürgen Habermas, de que a
ponderação não seria realizada de forma racional pois a atribuição de pesos aos
direitos e às restrições poderia ocorrer de forma arbitrária e sem a devida
reflexão, trazendo, assim, enorme risco à segurança jurídica.
Ao responder tal crítica [10], Alexy
afirma que a ponderação é uma tentativa de restabelecer uma conexão entre
direito e justiça, reconhecendo valor normativo para todos os princípios e
adequando sua aplicação conforme as condições concretas e as possibilidades
jurídicas, agindo de forma racional para atingir uma correção na aplicação da
lei. Ao contrário de Habermas, Alexy acredita ser possível realizar escolhas
racionais sobre importância dos princípios (peso abstrato), intensidade que
determinadas condições interferem na realização desses princípios e, por fim,
também no relacionamento entre esses fatores. Para demonstrar essa
racionalidade Alexy recorre a casos concretos analisados pelo Tribunal
Constitucional Alemão, nos quais há um detalhamento de cada uma dessas etapas.
Embora Alexy reconheça não haver possibilidade de que sejam atribuídas notas
numa escala numérica a fim de que a resolução da ponderação se transforme num
cálculo matemático, essas limitações não impedem que se estabeleça uma
ordenação de princípios de caráter maleável. Ademais, a racionalidade se faria
presente, sobretudo, por meio da estruturação de uma metodologia para
realização da ponderação o que afastaria o risco à segurança jurídica.
Em outras palavras, a racionalidade da ponderação decorre
da possibilidade de fazer uma fundamentação racional das condições para a
preferência de um princípio sobre outro [11], o que é
possível ao vincular a ponderação à teoria da argumentação jurídica
[12].
O uso da ponderação como método de atividade
jurisdicional, por sua preocupação com o controle do protagonismo judicial, tem
sido incorporado inclusive pelos teóricos que discordam dos critérios de
diferenciação das normas calcados em sua formulação condicional, modo de
aplicação ou forma de resolução de conflito.
Em que pese ter sido desenvolvida a partir de uma
distinção qualitativa que definiria e diferenciaria regras e princípios,
acredita-se que não há óbice em utilizar ponderação mesmo quando não se comunga
dessa diferenciação qualitativa.
Para teóricos como Riccardo Guastini, as normas não são o
texto legal nem seu conjunto, mas o sentido que se constrói da sua
interpretação, sendo que os dispositivos legais são o objeto da interpretação e
a norma seu resultado. Nesse passo, a própria noção de princípios e regras
passa por um questionamento já que a construção da norma é um processo que
depende da da participação do intérprete. Assim, mesmo os dispositivos
formulados pelo legislador para atuarem como regras podem ser reconstruídos
como princípios pelo intérprete, que é quem "tem a função de medir e
especificar a intensidade da relação entre o dispositivo e os fins e valores
que lhe são, potencial e axiologicamente, sobrejacentes" e "fazer
a interpretação jurídica de um dispositivo hipoteticamente formulado como
regras ou princípio" [13]. Aqui, o critério para a
distinção de regras e princípios é a carga argumentativa exigida para a sua
superação, o que é compatível com a aplicação da estrutura da ponderação
(enfrentamento dos exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito, assim como a realização de uma fundamentação calcada nas
regras de argumentação jurídica do discurso prático racional no estabelecimento
de graus de intensidade de realização e interferência de direitos).
3 - CRITÉRIOS PARA PONDERAÇÃO EM MATÉRIA PENAL
A atuação jurisdicional dos tribunais consistente na
aplicação direta de princípios ou na superação de regras sem que se desenvolva
ou respeite uma metodologia de interpretação e aplicação da lei racionalmente
estruturada no campo do direito penal e processual penal é extremamente
preocupante já que é no exercício do jus puniendi e do jus
persequendi que o poder estatal atua com mais violência sobre a liberdade
individual, sendo ainda o ramo do direito em que a segurança jurídica melhor
revela sua natureza de garantia fundamental.
Com efeito, embora essa nova postura do Poder Judiciário
surja ligada à defesa dos direitos fundamentais e à valorização dos direitos
humanos, sua aplicação em matéria de direito penal e processual penal não tem
se orientado pela proteção da liberdade dos indivíduos. Ao contrário, tem se
revelado um instrumento a serviço da ampliação dos poderes punitivos e persecutórios
do Estado [14].
Portanto, é imperioso o estabelecimento de uma reserva
de ponderação aplicável exclusivamente em matéria de direito penal e
processual penal (que envolvem os conflitos entre os direitos fundamentais e,
em especial, as liberdades individuais, e o interesse público repressivo).
A visão política que se coaduna com a reserva de
ponderação é denominada de heterojustificação ou heteropoiesis e se
opõe à autojustificação ou autopoiesis do Estado (esta última significando que
o Estado é um valor em si mesmo, ou possui um valor intrínseco [15]).
A teoria garantista funda a legitimidade do Estado a partir da tutela dos
direitos fundamentais do cidadão e não sobre uma concepção ética. Logo, os
poderes do Estado não são considerados justos em razão de quem (o povo, o
monarca etc.) detém esses direitos, mas sim em função de como, quando e por que
esses poderes são exercidos.
Segue daí que a organização de um sistema punitivo sob a égide
do garantismo obriga ao controle de validade da norma para examinar sua
correspondência com o fundamento de legitimidade do Estado. Deve-se exercer a
crítica do direito tendo sempre em conta a distinção que há entre vigência,
validade e efetividade, diferenças que são essenciais para compreender a
estrutura normativa do Estado Democrático de Direito. A distinção entre
validade e efetividade se revela a partir da contraposição entre o arcabouço
teórico desenhado na Constituição (que incorpora e densifica valores sob a
forma de normas jurídicas) e a prática das instituições judiciais e
administrativas. Ao examinar a realidade italiana, Ferrajoli demonstra serem
divergentes o parâmetro de racionalidade presente na Constituição e aquele que
caracteriza a prática da intervenção punitiva, seja na elaboração da legislação
infraconstitucional, seja nas atuações jurisdicionais e policialescas.
Ora, o uso da ponderação se prestaria justamente para
atuar na redução da divergência entre a validade do modelo constitucional e a
efetividade da aplicação concreta do direito. Nesse diapasão, afiguram-se dois
caminhos possíveis à redução da divergência entre validade e efetividade: 1) a
primeira é a opção regressiva, em que a redução da efetividade é buscada por
meio de uma interpretação restritiva das normas de nível superior, para
torná-las compatíveis com as de nível inferior; 2) a segunda opção, adequada à
perspectiva garantista, é chamada de progressiva e representa, ao contrário,
toda interpretação extensiva dos direitos fundamentais. O conceito de reserva
de ponderação é compatível com a segunda opção.
Embora possa parecer paradoxal, quanto maior for o esquema
de proteções aos direitos e garantias, maior será o risco de alargamento da
distância existente entre normatividade e efetividade. Ferrajoli explica que
nos Estados absolutos não há esse risco porquanto nesse tipo de Estado não há
deveres que vinculem o governo, ao passo que o Estado de direito convive,
necessariamente, com essa realidade. Não obstante a antinomia entre validade e
efetividade seja um fenômeno estrutural do Estado de direito, há diferentes
graus que vão desde a total inefetividade dos direitos fundamentais até a
contenção dessa divergência numa margem estreita.
Por sua vez, a distinção entre validade e vigência está
voltada para os exames formal e substancial da norma. Não basta estar a norma
expressa num texto legislativo promulgado com observância da forma e do
procedimento legislativo para exigir do juiz sua aplicação, pois pode o
magistrado considerá-la inválida se não atender aos requisitos substanciais
(adequação da norma ao conteúdo das normas superiores). Logo, para que um fato
seja considerado crime, não basta o controle desenhado no nullum crimen sine
lege (mera legalidade) mas também que haja um controle da validade
realizado a partir do aspecto substancial desenhado pelas normas superiores
(legalidade estrita). Todavia, se para realizar o controle formal da validade
da norma basta examinar um fato empírico determinável (se tramitou corretamente,
se foi aprovada em ambas as casas do Congresso, se foi sancionada ou vetada, se
foi publicada no diário oficial etc.), o controle substancial da validade exige
uma reflexão de outra natureza. É preciso analisar se determinado conteúdo é
compatível com os limites substanciais da norma superior, numa tarefa árdua e
passível de constantes reformulações.
O juízo acerca da validade da norma admite, em última
análise, um juízo de valor. Mesmo que essa atividade esteja orientada por uma
metodologia que tenha pretensão de correção e procure desenvolver uma
argumentação racional sobre valores, não há certeza de que a resposta
encontrada seja "a solução justa". Com efeito, os procedimentos
propostos por Alexy, por exemplo, constituem mecanismos que afastam decisões
estapafúrdias ou absurdas e que permitem o controle sobre a atuação do
Judiciário a partir da obrigação dos juízes de fundamentarem o caminho
lógico-jurídico percorrido até a decisão. Não obstante, sempre haverá uma dose
de subjetividade.
Portanto, se o juízo de validade das leis encerra um juízo
de valor, permite-se a acumulação de poderes pelo juiz, com enorme potencial de
colocar em risco o Estado de direito, a democracia e as liberdades individuais.
Por outro lado, esse acréscimo de poderes ao juiz se justifica, em determinadas
situações, para corrigir as injustiças do direito positivo ou para dar soluções
adequadas às situações não previstas pelo ordenamento.
Especificamente no campo do direito penal e processual
penal, o garantismo aciona um "seguro" contra a ameaça de exacerbação
da violência estatal que a hipertrofia do Judiciário representa: o juízo de
validade da lei, que repercute sobre a segurança jurídica, pode ceder, mas
somente se voltada para a maximização da liberdade [16].
Podem ser considerados corolários dessa concepção os
critérios do favor rei [17], da analogia in bonam
partem [18], do ne reformatio in pejus
[19] e da admissão da prova obtida por meios ilícitos em benefício do
acusado [20], dentre outros.
Dentre essas técnicas de atuação jurisdicional voltadas à
limitação do poder punitivo e ampliação do espectro da liberdade é que se
inclui o conceito de reserva de ponderação. Portanto, utilizando os
fundamentos teóricos até agora delineados, é possível enunciar critérios
suficientemente claros que vinculem a atuação jurisdicional em matéria penal e
processual penal:
1) Numa hipótese de ponderação entre regra e princípio, a
regra deve ser aplicada de modo estrito e absoluto se estabelecer uma situação
mais benéfica ao acusado, não podendo ser ponderada com um princípio que traga
ao acusado [21] qualquer espécie de piora na sua situação
pessoal ou processual. Por outro lado, é possível que regras que estipulem
previsões restritivas de direitos sejam ponderadas com princípios benéficos ao
acusado para que estes últimos prevaleçam e aquelas sejam superadas.
2) Numa hipótese de ponderação entre dois ou mais
princípios (ou seja, em que não haja regras que normatizem a situação fática e
ocorra a incidência direta dos princípios), é preciso, inicialmente, atribuir
peso abstrato superior aos princípios que protejam as liberdades individuais em
contraposição àqueles que tutelem bens coletivos ou interesses estatais e,
ainda, desenvolver argumentos capazes de demonstrar, em cada uma das etapas da
ponderação (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) o
respeito às finalidades da legislação penal assim entendida a partir da
perspectiva garantista. Ademais, somente argumentos de princípios – e nunca
argumentos políticos – podem ser utilizados para justificar restrições às
liberdades individuais.
APÊNDICE - ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS
Conquanto não haja nenhuma decisão do Supremo Tribunal
Federal que se utilize do conceito de reserva de ponderação (mesmo
porque se trata de conceito enunciado pela primeira vez, ao que se saiba, no
presente texto), o conteúdo que ele veicula pode ser apreendido de algumas
decisões daquela Corte.
Frise-se, desde logo, que o critério para selecionar os
julgamentos levados a exame foi de todo subjetivo e voltado apenas para
confirmar a pertinência dos conceitos teóricos desenvolvidos acima. O mais
adequado seria realizar o levantamento de todos os julgamentos realizados
daquela Corte dentro de um determinado lapso temporal para identificar todos os
casos nos quais tenham sido reconhecidas colisões entre princípios ou entre
princípios e regras, e utilizadas, para solucionar esses conflitos normativos,
os postulados da proporcionalidade, razoabilidade, ponderação etc. Somente a
partir desse material seria possível analisar criticamente a incorporação, pelo
Supremo Tribunal Federal, da contribuição teórica pós-positivista, notadamente
o uso de princípios e de técnicas de solução de conflitos normativos em matéria
penal e processual penal [22].
Feita a necessária ressalva, cumpre analisar os
julgamentos do Supremo Tribunal Federal que endossaram as premissas teóricas
expostas anteriormente, ou seja, casos em que a ponderação seria utilizada para
restringir/superar regra visando afastar garantia individual em prol do poder
punitivo do Estado e casos em que a ponderação seria utilizada para
restringir/superar regra ligada ao poder punitivo do Estado visando aumentar o
espectro da liberdade individual.
1) Uso da ponderação visando dar interpretação
restritiva a regra de garantia individual em prol do aumento do poder
persecutório e punitivo do Estado.
Por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n° 82.354
(acórdão publicado no DJ de 24/09/2004), sendo Relator o Ministro Sepúlveda
Pertence, o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua Primeira Turma, assentou
que não há que se ponderar regra expressa e explícita, que constitui garantia
individual com o eventual princípio que informaria o interesse público
repressivo (poderes investigatório, persecutório e punitivo do Estado).
No caso em tela, discutia-se a constitucionalidade do
indeferimento pelo Delegado de Polícia Federal do requerimento de vista e
obtenção de cópia dos autos do inquérito policial apresentado pelo advogado
constituído por indiciado no inquérito policial. O pedido foi reiterado, e
também negado, pelo Juiz Federal. Impetrado mandado de segurança perante o
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a liminar foi deferida em parte e
depois revogada, sendo, ao final, negada a segurança. Interposto recurso
ordinário constitucional em mandado de segurança, o mesmo restou indeferido
pelo Superior Tribunal de Justiça. Perante o Supremo Tribunal Federal foi
impetrado Habeas Corpus.
As normas jurídicas em conflito seriam: a) o art. 20 do
Código de Processo Penal [23]; b) o art. 7°, inc. XIV, da Lei
n° 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) [24]; c) o art. 5°, inc.
LXIII, da Constituição [25]; d) o art. 5°, inc. LV, da
Constituição [26]; e) o art. 133, da Constituição
[27]; e f) Interesse estatal no sigilo das investigações considerado
importante para a realização plena da persecução criminal.
O Ministério Público Federal, em parecer ofertado ao
Supremo Tribunal Federal, opinou pela concessão parcial da ordem, para que o
advogado tivesse acesso exclusivamente às peças que dissessem respeito ao seu
cliente, fundamentando essa manifestação na aplicação da proporcionalidade.
Aduziu o Parquet, na ocasião, haver contraposição entre interesse
público de repressão penal e o direito de liberdade, a reclamar a aplicação da
proporcionalidade. Entretanto, não tratou de considerar as sub-regras de
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, limitando-se a
dizer que o primeiro valor deveria prevalecer sobre o segundo e não explicando
sequer como chegara à conclusão de que a proporcionalidade conduziria à solução
aventada (permitir o acesso do advogado apenas a algumas partes dos autos,
selecionadas pela autoridade policial).
Em face dessa argumentação, os impetrantes alegaram não
haver colisão de valores entre o interesse público (sigilo das investigações) e
interesse privado (direito de defesa e sua face reflexa representada pelo livre
exercício profissional inclusive com direito de vista dos autos por advogado
constituído) na medida em que o livre exercício da advocacia, na forma da lei,
também seria garantia do interesse público porque impõe limites à atuação
estatal evitando arbitrariedades.
A decisão do Supremo Tribunal Federal principia por
afastar a incidência das garantias do contraditório e da ampla defesa asseguradas
na Constituição consideradas inaplicáveis ao caso porquanto o inquérito
policial não é processo judicial e não existe processo administrativo. O
indiciado dispõe, entretanto, de vários direitos, como o de permanecer em
silêncio, o de ter assistência de advogado e com ele entrevistar-se
reservadamente. Nesse passo, para que se efetive o direito de assistência do
advogado (que não é emocional, mas técnica) a seleção do material que interessa
ao indiciado não pode ficar sob a discrição da autoridade policial, de modo que
o advogado deve ter acesso irrestrito a tudo aquilo que já foi introduzido nos
autos do inquérito (embora o mesmo não ocorra com diligências que ainda
estiverem em curso e cujo resultado ainda não tenha sido introduzido nos
autos). Outrossim, o interesse público na persecução e repressão ao crime não é
absoluto, estando limitado, dentre outros fatores, pelo direito de não
incriminar-se, ao qual se liga a regra do acesso aos autos pelo advogado
constituído por indivíduo indiciado em inquérito, a qual não é passível de
ponderação.
Ainda que assim não fosse, a decisão prescinde da análise
acerca dos limites materiais da garantia do direito ao silêncio, tratando-se de
questão menos complexa, a saber, um conflito de normas se resolve pelo critério
cronológico. A Lei n° 8.906/94 possui a mesma hierarquia legal do Código de
Processo Penal, sendo-lhe, contudo, posterior. Nesse diapasão, a regra geral do
sigilo imposto às investigações pela autoridade policial não pode ser oponível
ao advogado, cujo acesso constitui justamente uma exceção à regra geral de
sigilo.
b) Uso da ponderação visando superar regra de garantia
individual em prol do aumento do poder persecutório e punitivo do Estado.
Essa questão foi examinada no julgamento do Habeas Corpus
de n° 80.949 (publicado no DJ de 14/12/2001), tendo a Corte se manifestado por
meio da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sendo a relatoria da lavra
do Ministro Sepúlveda Pertence.
Os fatos ocorreram em fevereiro de 1999. Havia um
inquérito em andamento no qual a prova fora obtida por meio de gravação
clandestina realizada por policiais civis durante uma "conversa
informal" entre os policiais e o indiciado que havia sido "detido e conduzido"
à Delegacia de Polícia. Os crimes investigados eram o tráfico internacional de
entorpecentes e o contrabando de armas exclusivas para uso militar.
O Habeas Corpus foi impetrado para que fossem excluídas do
inquérito a gravação clandestina e todas as provas dela decorrentes. Afirmou-se
que o cidadão encontrava-se ilegalmente preso e que não fornecera autorização
para que se fizesse a gravação. Primeiramente distribuído a um juiz estadual,
foi negado o pedido do writ. Com o declínio de competência para a
justiça federal, o Habeas Corpus foi seguidamente negado por um juiz federal,
pelo Tribunal Regional Federal da 2a Região e pelo Superior Tribunal
de Justiça.
As normas jurídicas em conflito seriam: a) o art. 5°, inc.
LVI, da Constituição [28]; b) o art. 5°, inc. XII, da
Constituição [29]; c) o art. 5°, inc. LXIII, da Constituição
[30]; d) o art. 5°, inc.LVII, da Constituição [31];
e e) Interesse estatal na persecução e punição dos criminosos, sobretudo os
autores de crimes especialmente perigosos e hediondos. Já as questões jurídicas
em discussão diziam respeito à: a) possibilidade de obtenção
"informal" de informações de cidadão detido pela polícia e sua
gravação; b) possibilidade de que a autorização do cidadão tornasse
desnecessária a autorização judicial para a gravação; e c) possibilidade de
tempero da exclusionary rule (proscrição da prova ilícita) em razão da
gravidade do crime imputado, ponderação que se faria à luz do "princípio
da proporcionalidade".
As duas questões iniciais foram afastadas ao argumento de
que o único procedimento admissível para colheita de declarações de indiciado
ou preso, em sede policial, é o interrogatório (o qual deve ser realizado
conforme prevê o Código de Processo Penal, não podendo ser desconsiderada a
garantia constitucional de permanecer em silêncio) e porque inexistente a
possibilidade de que a autorização do cidadão validasse modo diverso de tomada
de depoimento (gravação de suas declarações).
A terceira questão, todavia, é que se apresentava
suscetível de ser resolvida por meio da ponderação. Afinal, embora reconhecida
a (inquestionável) ilicitude da prova, até então tinha prevalecido a idéia de
que a gravidade dos crimes imputados seria um fundamento apto a permitir que a
regra constitucional fosse superada por meio da aplicação do postulado da
proporcionalidade.
Cumpre registrar que uma vez mais os conceitos de
proporcionalidade e ponderação foram ventilados sem estarem acompanhados dos
conceitos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Em
outras palavras, pretendia-se afastar a incidência de uma regra constitucional
(que estipulava garantia individual frente o poder punitivo) apenas a partir do
poder genérico de interpretação das leis e da constituição inerente à atividade
jurisdicional. Àqueles que sustentaram a possibilidade de ponderação não
ocorreu que se anunciava um perigoso exercício de subjetividade na aplicação da
lei, típico exemplo de protagonismo judicial que contraria os postulados do
Estado de direito e da democracia a fim de acolher argumentos meta-jurídicos
típicos de situações em que inexiste normalidade constitucional, como são os
discursos da emergência e da exceção.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal foi categórico ao
refutar o uso da proporcionalidade para ponderar garantia individual com
interesse público repressivo em matéria penal: "Da explícita proscrição da
prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art.
5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o
interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente
impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias
estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à
vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a
gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação"
(trecho da ementa, sem grifos no original).
Ademais, ainda que assim não fosse, a Corte asseverou que
o postulado da ponderação tem por pressuposto de aplicação a existência de
princípios em conflito, ou seja, quando a questão não tiver sido objeto de
discussão e deliberação pública e cujo resultado não estiver
"entrincheirado" numa regra: "Ora, até onde vá a definição
constitucional da supremacia dos direitos fundamentais, violados pela obtenção
da prova ilícita, sobre o interesse da busca da verdade real no processo, não
há que apelar para o princípio da proporcionalidade, que, ao contrário, pressupõe
a necessidade de ponderação de garantias constitucionais em aparente conflito,
precisamente quando, entre elas, a Constituição não haja feito um juízo
explícito" (trecho do voto do relator, sem grifos no original).
Fica evidente, na passagem grifada acima, o conceito de
reserva de ponderação aqui defendido. Com efeito, a proibição da prova
ilícita no processo constitui uma garantia individual que o legislador
constituinte colocou à margem do grande mercado de interesses passíveis de
ponderação – tarefa, aliás, eminentemente constitucional – a não ser quando a
superação se fizer necessária para ampliar o espectro de liberdade individual.
c) Uso da ponderação visando superar regra ligada ao
poder punitivo do Estado visando aumentar o espectro da liberdade individual.
O terceiro caso a ser analisado nesse texto é exatamente o
oposto dos anteriores, nos quais se pretendia ponderar princípios e regras
quando estas últimas tinham natureza de garantia individual em matéria penal.
Aqui, a regra com incidência direta é a do art. 43, inc. III, do Código de Processo
Penal determinando que a denúncia (ou queixa) deverá ser rejeitada quando
"III – for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida
pela lei para o exercício da ação penal".
Trata-se do julgamento do Habeas Corpus de n° 77.003,
(publicado no DJ de 11/09/1998), tendo o Supremo Tribunal Federal se
manifestado por meio da sua Segunda Turma, relator o Ministro Marco Aurélio. O
fato analisado consistia na contratação pela prefeitura do município de São
José da Coroa Grande, em Pernambuco, de uma única pessoa para trabalhar como
gari, durante cerca de nove meses, sem a realização do imprescindível concurso
público, conduta essa que está tipificada no art. 1°, inc. XIII, do Decreto-Lei
n° 201/67 ("Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos
Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do
pronunciamento da Câmara dos Vereadores: XIII - Nomear, admitir ou designar
servidor, contra expressa disposição de lei").
Dentre outros vários fundamentos, o Habeas Corpus fora
impetrado alegando a incidência direta no caso concreto do princípio da
insignificância (que sequer está positivado no ordenamento jurídico
brasileiro), com o que se faria desnecessária e ilegal a intervenção punitiva.
A questão jurídica a ser examinada consistia na
possibilidade de que o Poder Judiciário incluísse, dentre as condições para o
exercício da ação penal, a exigência de que a conduta tivesse relevante
potencialidade lesiva a afetar o bem jurídico tutelado. Avocando a
proporcionalidade e a razoabilidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a
inexistência de justa causa para a propositura da ação penal, fulminando o
processo criminal então instaurado perante o Tribunal de Justiça de Pernambuco:
"Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como
delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. A
isto direcionam os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade"
(trecho da ementa, sem grifos no original).
Nesse diapasão, afirmou-se que o interesse público
repressivo, mesmo quando consubstanciado em regra expressa, está sujeito à
ponderação. No entanto, mais uma vez, o Poder Judiciário não se socorreu do
instrumental teórico desenvolvido pela doutrina recente, que, no caso em tela,
orientaria para o exame da adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito. Não obstante, quando a interpretação valorativa conferida pelo
Poder Judiciário estiver direcionada para a ampliação do espectro da liberdade
individual, os riscos decorrentes de uma leitura moral da constituição e da lei
pelo Poder Judiciário – que são justamente o aumento do arbítrio punitivo
estatal e a quebra do fundamento de confiança que os indivíduos depositaram no
estado como protetor dos direitos fundamentais –, ainda que dissociados de uma
estrutura racional que proteja a segurança jurídica, não estariam presentes,
razão pela qual exige-se um ônus argumentativo menor.
Notas
01 - Por pós-positivismo entende-se um
novo paradigma no âmbito da teoria jurídica, cuja terminologia ainda provoca
debate, mas que se caracteriza por uma ruptura com a forma de conhecimento do
direito denominada positivismo jurídico, dominante durante o século passado. As
principais críticas pós-positivistas residem na separação radical entre
direito, moral e política operada pelo positivismo normativista. Na perspectiva
pós-positivista, a atividade jurídica não está orientada apenas por uma
racionalidade formal, mas também por uma razão prática, consubstanciada na
pretensão de se alcançar uma decisão justa. O instrumental que serve de meio
para essa busca são os postulados normativos (proporcionalidade, ponderação,
razoabilidade) e a argumentação jurídica sobre valores.
02 - Luiz Werneck Vianna examinou a
questão da politização da justiça no Brasil (VIANNA, Luiz Werneck et alii:
A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de
Janeiro: Revan, 1999). Observou o pesquisador que as demandas normativas
decorrentes de um determinado modelo de Estado não são atendidas pelo Poder
Legislativo (Poder mais democrático), gerando uma demanda crescente entre
grupos sociais e uma desqualificação da política na organização social. O
Legislativo também fica refém da profusão legislativa do Poder Executivo,
gerando um desequilíbrio entre os poderes. Nesse quadro, o Poder Judiciário é
instado a atuar para resolver os conflitos coletivos sociais, bem como para
controlar os demais poderes políticos por meio de interpretações do direito.
03 - "Cabe destacar, no
obstante, que el empleo de la denominación protagonismo judicial conviene
reservarla a un tipo de comportamiento de los jueces quienes, sin apartarse del
marco de un Estado de derecho ha asumido una resonancia particular a causa de
ciertas falencias que se producen en el entero sistema político dentro del cual
los magistrados deben actuar" (BERGALLI, Roberto: Protagonismo judicial
y representatividad política. DOXA. Cadernos de filosofia do direito
nº 15-16, Alicante: Universidade de Alicante, 1994, p. 424).
04 - "La crisis de la función
de la ley como fuente exclusiva del Derecho ha potenciado una renovada
dimensión pretoriana de la producción jurídica, hasta el punto de suscitar una
abierta polémica sobre los denominados ‘jueces legisladores’. Pero este
proceso, junto a sus luces, en términos de una mejor adaptación de los sistemas
jurídicos a las exigencias de unas sociedades en constante transformación,
comporta las sombras de su coste en erosión de la seguridad jurídica"
(PEREZ LUÑO, Antonio Enrique: Derechos humanos y constitucionalismo en la
actualidad: ¿Continuidad o cambio de paradigma? In PEREZ LUÑO, Antonio
Enrique (cord): Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio.
Madri: Marcial Pons, 1996, p. 18/19).
05 - "Como se trata de deixar as
decisões de justiça aceitáveis, o recurso às técnicas argumentativas torna-se
indispensável" e "Na medida em que o funcionamento da justiça deixa
de ser puramente formalista e visa à adesão das partes e da opinião pública,
não basta indicar que a decisão é tomada sob a proteção da autoridade de um
dispositivo legal, é necessário demonstrar ainda que é eqüitativa, oportuna,
socialmente útil. Com isso a autoridade e o poder do juiz ficam acrescidos, e é
normal que justifique com uma argumentação apropriada o modo como os usa"
(PERELMAN, Chain: Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
185 e 216, respectivamente).
06 - "La literatura sobre el
modo de entender la diferencia entre los principios y las reglas jurídicas es
extensíssima y constituye por sí mesma uma demonstración elocuente no sólo del
carácter problemático, sino también de la relevancia de esta distinción a la
que ahora se presta uma atención cresciente" (ZAGREBELSKY, Gustavo: El
derecho ductil. Ley, derechos, justicia. Madri: Ed. Trotta, 1995, p. 109).
07 - A proporcionalidade (Verhältnismäb igkeitsgrundsatz) é aplicável na teoria dos
princípios por meio do balanceamento ou ponderação (Abwägungsgesetz) e
pressupõe o exame de outras três condições: adequação (Grundsatz der
Geegnetheit), necessidade (Grundsatz der Erforderlichkeit) e proporcionalidade
em sentido estrito (Grundsatz der Verhältnismäb
igkeit im engeren Sinne). É relevante apontarmos a confusão terminológica que
envolve a noção de proporcionalidade. Diferentes autores classificam a
proporcionalidade ora como máxima, princípio, regra, postulado normativo. Alexy
refere-se à proporcionalidade como regra, o que se afirma em razão de leitura
de suas obras "Teoria de los derechos fundamentales" (Madri:
Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p. 100) e "Derecho y razón
práctica" (México, D.F.: Distribuiciones Fontanamara, 1993, p. 32),
além do testemunho de Luís Virgílio Afonso da Silva, seu aluno e ex-orientando
na Universidade de Kiel, Alemanha (SILVA: Luís Virgílio Afonso da: O
proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais n° 798 – abril de 2002.
São Paulo: RT, 2002, p. 25/26). Não obstante, é possível encontrar textos de
Alexy, em três diferentes idiomas, nos quais aparece o termo "princípio da
proporcionalidade" (Colisão de direitos fundamentais e realização de
direitos fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vol. 17. Porto Alegre: Síntese, 1999, p.
277; Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. DOXA.
Cadernos de filosofia do direito nº 5, Alicante: Universidade de Alicante,
1988, p. 147 e On the structure of legal principles. Ratio Juris. Vol.
13 nº 3, 2000, p. 297). Prefere-se, entretanto, a definição da
proporcionalidade como um postulado aplicativo normativo, ou seja, uma
categoria normativa autônoma, o que afasta a confusão terminológica e permite
que a argumentação necessária à aplicação das regras e princípios ocorra num
canal de comunicação próprio e não no plano das próprias normas que se pretende
ponderar (para uma análise mais detida dos postulados aplicativos normativos,
confira-se, por todos, a obra de Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da
definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros,
2003).
08 - "O conceito de princípio, na
teoria de Alexy, nada diz sobre a fundamentalidade da norma. Assim, um
princípio pode ser um ‘mandamento nuclear do sistema’, mas também pode não o
ser, já que uma norma é um princípio apenas em razão de sua estrutura
normativa e não de sua fundamentalidade" (SILVA, Luís Virgílio Afonso
da: Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Belo
Horizonte: Del Rey, Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, 2004,
p. 613).
09 - Uma espécie de ponderação simples
pode ser assim descrita: Ao buscar atingir um fim (F) para realizar um
princípio (P1) verifica-se que ele colide com outro princípio (P2), devendo ser
encontrado um resultado para a colisão. A constatação da colisão entre dois (ou
mais) princípios é o que Alexy chama de possibilidades jurídicas para a
ponderação. As possibilidades fáticas são enfrentadas utilizando-se a adequação
e a necessidade. A adequação consiste na identificação de se o meio pleiteado
serve à consecução desse (F) pretendido. Se forem identificados dois meios (M1
e M2) capazes de contribuir para que se alcance o fim (F) pretendido, mas
também verificado que tais meios (M1 ou M2) afetarão outro princípio (P2),
recorre-se à necessidade para identificar qual dos meios (M1 e M2) afeta em
menor grau o princípio (P2) com o qual colidiu o primeiro princípio (P1),
estabelecendo-se que o meio mais benigno (M1) é permitido enquanto o mais
gravoso (M2) é proibido. Os exames de adequação e de necessidade precedem o da
proporcionalidade em sentido estrito e são subsidiários. Por sua vez, a
proporcionalidade em sentido estrito representa a obrigação de que a
intervenção num direito fundamental seja precedida de uma demonstração de que
as razões que a justificam sejam tão graves quanto mais intensa for a violação,
ou seja, demonstrando a relação de proporcionalidade propriamente dita entre
elas. Com relação a esta última etapa (a proporcionalidade em sentido estrito)
"Alexy costuma dividir o grau de restrição de um direito fundamental e o
grau de importância da realização do direito que justifica a medida restritiva
em alto, médio e pequeno. Assim, se o grau de restrição de um
direito é médio – portanto longe de implicar a sua não-realização –, mas o grau
de importância da realização do direito colidente é pequeno, então a medida é
desproporcional. Como se vê, o conceito de não-realização de um direito não é
fundamental na análise da proporcionalidade em sentido estrito" (SILVA:
Luís Virgílio Afonso da: O proporcional e o razoável. In Revista
dos Tribunais n° 798 – abril de 2002. São Paulo: RT, 2002, p. 41).
10 - ALEXY, Robert: Constitutional
Rigths, Balancing and Rationality. Ratio Juris. An International Journal
of Jurisprudence and Philosophy of Law Vol. 16, nº 2, Junho de 2003,
University of Bologna: Blackwell Publishing.
11 - "Esta distinción permite
referir el postulado de la racionalidad de la ponderación a la fundamentación
del enunciado de preferencia y decir: una ponderación es racional si el
enunciado de preferencia al que conduce puede ser fundamentado racionalmente. De
esta manera, el problema de la racionalidad de la ponderación conduce a la
cuestión de la posibilidad de la fundamentación racional de enunciados que
estabelecen preferencias condicionadas entre valores o principios
opuestos" (ALEXY, Robert: Teoria de los derechos fundamentales. Madri:
Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p. 158/159).
12 - "Un discurso racional
práctico es un procedimiento para probar y fundamentar enunciados normativos y
valorativos por medio de argumentos. La racionalidad del discurso se define por
un conjunto de reglas del discurso" (ALEXY, Robert: Derecho y razón
práctica. México, D.F.: Distribuiciones Fontanamara, 1993, p. 34)
13 - ÁVILA, Humberto: Teoria dos
princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 33.
14 - "Desde hace algún tiempo
se presencia un fenómeno que, con mayor o menor propiedad – tanto en lenguaje
periodístico como en ciertos niveles de estudio – se denomina como protagonismo
judicial. El fenómeno consiste en una aparente hiper-actividad de la acusación
pública y la jurisdicción penal, llamada a intervenir en asuntos de una
supuesta mayor entidad política respecto de los otros para las que regularmente
aquéllas están predispuestas" (BERGALLI, Roberto: Protagonismo judicial
y representatividad política. DOXA. Cadernos de filosofia do direito
nº 15-16, Alicante: Universidade de Alicante, 1994, p. 423).
15 - "Para as doutrinas
autopoiéticas, o Estado é um fim, e encarna valores ético-políticos de
característica supra-social e supra-individual cuja conservação e reforço para
o direito e os direitos hão de ser funcionalizados. Para as doutrinas
heteropoiéticas, ao invés, o Estado é um meio, legitimado unicamente pelo fim
de garantir os direitos fundamentais do cidadão, e politicamente ilegítimo se
não os garante, ou pior, se ele mesmo os viola. (...) As mais nefastas
[correntes de pensamento autopoiéticas], por sua enorme influência exercida na
história da cultura política, foram seguramente as doutrinas idealistas, nas
múltiplas visões do juspositivismo ético-liberal-nacionalista, fascista e
stalinista – de várias formas resultantes da doutrina hegeliana do ‘Estado
ético’. Estas ideologias assumem o princípio da legalidade não somente como
princípio jurídico interno, mas também como princípio axiológico externo,
sobrepondo à legitimidade política a legalidade jurídica e conferindo às leis
valor, e não apenas validade ou vigor, unicamente com base no valor associado a
priori à sua forma, ou pior, à sua fonte (o soberano, a assembléia ou o
ditador, ou o partido, ou o povo ou similares" (FERRAJOLI, Luigi: Direito
e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 706).
16 - "Este princípio [da legalidade] foi definido anteriormente como
uma regra semântica de linguagem legal que requer a possibilidade de
verificação das teses judiciárias e exclui que o juiz tenha, além de um poder
de denotação e conotação, também um poder de disposição. Quando, porém,
ilegitimamente tal poder é suscitado por causa de leis penais que derrogam o
princípio constitucional de estrita legalidade ou taxatividade, a ilegitimidade
pode ser removida somente graças à atribuição, ao mesmo juiz, de um poder de
reprovação sobre leis, que, por sua vez, exprimindo-se em juízos de valor, é um
poder de disposição: e por isto, quanto menos um juiz é vinculado pela lei à
simples denotação e conotação dos fatos por ela previstos como crimes, tanto
menos ele é vinculado à Constituição para sua aplicação, e tanto mais é
autorizado a censurar nelas a invalidade. Esta aporia reveste, de forma geral,
toda a estrutura garantista do Estado constitucional de direito. Sabemos mesmo
que a técnica garantista consiste na inclusão de valores, sob a forma de
limites ou deveres, nos níveis mais altos do ordenamento, donde excluí-los na
forma de poderes nos níveis mais baixos. Mas, uma vez incorporados nos níveis
mais altos, os valores tornam valoráveis os juízos de validade sobre as normas
de nível mais baixo, que são afetas aos órgãos judiciários de nível, por sua
vez, mais baixo, respectivamente às normas que são chamados a aplicar. Se nos
níveis mais altos não fossem incorporados valores, mas apenas o princípio
formal que é válido além de vigente ‘quod principi placuit’, o juízo de
validade se reduziria a uma asserção empírica, verificável e certa sobre a
fonte e os procedimentos previstos para o vigor da lei; e a valoração, em tal
caso, teria livre ingresso, seja na linguagem das leis, não vinculada à estrita
legalidade, como naquele dos juízos, não vinculados à estrita submissão à
jurisdição e validamente investidos de poder de disposição na qualificação
legal dos fatos, mas não também na censura das leis. Mas visto que o Estado de
direito vincula o legislador penal à enumeração exaustiva das previsões legais,
excluindo os juízos de valor dos níveis mais baixos para incorporá-los
exclusivamente nos níveis mais altos, deve admitir paradoxalmente um poder de
disposição ao juiz, senão na qualificação dos fatos como crimes, ao menos na
qualificação como inválidas das leis que consentem a qualificação dispositiva
dos fatos como crimes" (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão: Teoria do
garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 703).
17 - "Uma norma de limitação do modelo de direito
penal mínimo informada pela certeza e pela razão é o critério do favor rei,
que não apenas permite, mas exige intervenções potestativas ou valorativas de
exclusão ou de atenuação da responsabilidade cada vez que subsista incerteza
quanto aos pressupostos cognitivos da pena. A este critério estão referenciadas
instituições como a presunção de inocência do acusado até sentença definitiva,
o ônus da prova a cargo da acusação, o princípio in dubio pro réu, a
absolvição em caso de incerteza acerca da verdade fática e, por outro lado, a
analogia in bonam partem, a interpretação restritiva dos tipos penais e
extensiva das circunstâncias eximentes ou atenuantes em caso de dúvida acerca
da verdade jurídica. Em todos esses casos teremos certamente
discricionariedade, mas se trata de uma discricionariedade dirigida não para
estender, mas para excluir ou reduzir a intervenção penal quando não motivada
por argumentos cognitivos seguros" (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão:
Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 84).
18 - "A doutrina afirma que é possível a analogia
in bonam partem, isto é, que é permitido defender uma
solução incompatível com a letra da lei se isso favorece ao réu e se
existem pontos de vista materiais que falam por ela. A doutrina tem razão. Isso
se deduz de uma interpretação teleológica do ‘princípio da legalidade’ cuja
existência obedece, fundamentalmente, à gravidade da conseqüência jurídica que
a lei penal ordena, isto é, à gravidade da pena, que supõe uma intervenção nos
bens mais preciosos da pessoa (vida, liberdade). Fato é que a comunidade, para
proteger interesses jurídicos de suma importância, pode restringir a liberdade
do indivíduo; porém, esta intervenção é de uma transcendência tal que o cidadão
pode exigir que lhe digam, com clareza, quais são os comportamentos motivadores
de uma reação estatal tão radical; pode exigir que lhe seja garantido que não
acontecerá de ser surpreendido, de uma hora para outra, com o fato de o Estado
o privar de bens tão fundamentais como a liberdade, a honra, empregos e cargos
públicos que tiver o sujeito, por atos de cuja proibição não o informaram antes
que os cometesse. Resumindo: em Direito Penal, e quando o teor literal é claro,
o intérprete somente tem duas alternativas: ou acolher o significado das
palavras legais em toda a sua extensão ou limitá-lo (para mais ou para menos).
Apenas quando uma interpretação, materialmente fundamentada, favoreça o réu é
lícito prescindir do ‘significado possível’ da lei penal" (ORDEIG, Enrique
Gimbernat: Conceito e método da ciência do direito penal. São Paulo: RT,
2002, p.44/45).
19 - O fundamento comum à teoria geral do processo,
aplicando-se tanto ao direito processual civil quanto ao direito processual
penal, informa que o efeito do ato de recorrer é a devolução da matéria
para ser apreciada pelo órgão ad quem, sendo essa devolução limitada
pela máxima do tantum devolutum quantum appellatum. Assim, se a
parte restringe o objeto de seu apelo, somente poderá ser reapreciada pelo
Tribunal a matéria que foi objeto de impugnação. Da mesma maneira, o
recurso só pode beneficiar a parte que o interpôs e, por conseguinte,
quem recorreu não pode ter sua situação agravada se não houver recurso da parte
contrária. No entanto, no processo penal, essa "regra" sofre
temperamentos. Assim, se o processo é remetido à segunda instância para
julgamento de recurso interposto pela acusação, ainda que não tenha o réu ou
seu defensor interposto recurso, o órgão ad quem poderá reduzir sua
pena, absolvê-lo, ou reconhecer nulidade não alegada. Alguns autores invocam o
artigo 617 do Código de Processo Penal, interpretado a contrario sensu,
para justificar legalmente a possibilidade de o réu que não recorreu ter sua
situação melhorada pelo recurso exclusivo da acusação. Não há, porém,
necessidade de buscar um fundamento na lei positiva para essa postura que, como
se vê, decorre das premissas sobre as quais se estrutura o sistema punitivo.
20 - Veja-se, por todos, o julgamento pelo Supremo
Tribunal Federal do recurso extraordinário em matéria criminal RECR nº
212.081-RO, tendo por Relator o Ministro Octávio Gallotti, publicado no DJ
27/03/1998. Naquela ocasião, a corte admitiu a violação de sigilo de
comunicação por meio não autorizado porquanto a prova ilicitamente produzida
foi utilizada em legítima defesa, ou seja, para afastar a culpabilidade do
agente que a produziu. Trecho da ementa: "Captação, por meio de fita
magnética, de conversa entre presentes, ou seja, a chamada gravação ambiental,
autorizada por um dos interlocutores, vítima de concussão, sem o conhecimento
dos demais. Ilicitude da prova excluída por caracterizar-se o exercício de
legítima defesa de quem a produziu. Precedentes do Supremo Tribunal HC 74.678,
DJ de 15-8-97 e HC 75.261, sessão de 24-6-97, ambos da Primeira Turma".
21 - Utilizou-se o termo "acusado" mas é
certo que esse critério se estende a qualquer situação em que o poder punitivo
estatal se coloca em oposição à liberdade individual, valendo para situações em
que o indivíduo é suspeito, investigado, indiciado, condenado etc.
22 - Esta pesquisa é justamente o objeto do projeto de
tese apresentado pelo autor como requisito para ingresso no Curso de Doutorado
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro com o título "O Supremo Tribunal Federal e o uso de
princípios em matéria penal - Um estudo crítico sobre a fundamentação política
e jurídica do uso de princípios, em matéria penal, na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal (1997-2007)", o qual foi aceito no ano de 2004.
23 - "Art. 20 – A autoridade assegurará no
inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da
sociedade".
24 - "Art. 7º – São direitos do advogado (...) XIV
- examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de
flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à
autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos"
25 - "Art. 5°, inc. LXIII - o preso será informado
de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a
assistência da família e de advogado"
26 - "Art. 5°, inc. LV - aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"
27 - "Art. 133 - O advogado é indispensável à
administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no
exercício da profissão, nos limites da lei"
28 - "Art. 5°, inc. LVI - são inadmissíveis, no
processo, as provas obtidas por meios ilícitos"
29 - "Art. 5°, inc. XII - é inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na
forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal"
30 - "Art. 5°, inc. LXIII - o preso será informado
de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a
assistência da família e de advogado"
31 - "Art. 5°, inc. LVII - ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"
*Advogado criminalista no Rio de Janeiro (RJ), mestre e
doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ
Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7274>. Acesso em: 28 set.
2005.