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A ação penal privada e os institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais
Rafael Lopes do Amaral
promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Piauí,
especialista em Direito Processual Penal
1 INTRODUÇÃO
Diante
da edição da Lei dos Juizados Especiais Criminais – LJE (Lei n.º 9.099/95) e do
seu silêncio quanto à aplicação de seus principais institutos às ações penais
exclusivamente privadas, mormente a transação penal e a suspensão condicional
do processo, pôs-se a questão de saber se referida omissão seria indicativo
veemente de vedação no seio da relação entre querelante e querelado.
Utiliza-se
no presente trabalho, como na maioria dos estudos monográficos da seara
jurídica, a bibliografia (opinião dos doutos) e as amostras jurisprudenciais
coletadas junto à rede mundial de computadores como principais fontes de
pesquisa.
A
investigação não se inicia sem antes traçar e compreender as linhas legais e
doutrinárias básicas da ação penal privada e as justificativas que explicam sua
sobrevivência dentro do ordenamento jurídico vigente. A partir do estudo de
seus princípios desencadeia-se a busca para bem responder a questão
singelamente levantada. Com isso, busca-se identificar as notas essenciais no
regramento da ação penal exclusivamente privada, a fim de saber de
incompatibilidades lógicas evidentes que possam desde logo refutar sua
permeabilidade aos institutos despenalizadores da Lei dos juizados Especiais
Criminais, objeto do presente estudo.
O
foco da análise se volta também para o conhecimento dos pontos nevrálgicos e
das necessidades do sistema processual contemporâneo, mais especificamente do
sistema processual penal brasileiro, bem como para as fórmulas mais recentes
encontradas pelos cientistas como alternativas para a otimização da atividade
jurisdicional, de forma a resgatar sua legitimidade junto à coletividade, com a
efetivação e aprimoramento de sua clássica função de pacificação social;
correlaciona-se este quadro, pois, com a edição da LJE, com o escopo de
investigar as razões de política criminal que informam seus institutos e suas
serventias práticas para a solução dos problemas detectados no sistema.
Faz-se,
então, com base da revisão bibliográfica, uma digressão sobre os 4 (quatro)
institutos previstos na LJE, quais sejam a composição civil (art. 74), a
transação penal (art. 76), a transformação da lesão corporal simples em crime
de ação penal pública condicionada à representação e, finalmente, a suspensão
condicional processo (art. 89). Analisam-se suas linhas essenciais,
vinculando-as às tendências do processo penal contemporâneo, em que a
valorização da vítima, decorrente dos avanços da Vitimologia, juntamente com a
escolha de um modelo consensual de solução de conflitos penais são
características distintivas.
Procura-se,
em seguida, ao demonstrar as principais idéias doutrinárias em torno do tema,
bem como a maneira como o mesmo vem sendo tratado pelos tribunais superiores,
com destaque para os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), responsáveis, respectivamente, pela
uniformização da interpretação da Constituição Federal e da legislação federal
infraconstitucional, fornecer maiores subsídios para a solução da indagação
empreendida.
Busca-se
evidenciar, por fim, com forte concentração no entendimento dos tribunais, não
só o percurso – com suas idas e vindas, mas também os fundamentos jurídicos em
que se baseia o disciplinamento atual (doutrinário e jurisprudencial) da
matéria, respondendo ao final sobre a possibilidade da aplicação, a
legitimidade, vantagens, desvantagens e as demais razões extralegais que
circundam a questão posta.
2 A AÇÃO PENAL E O DEVIDO PROCESSO
LEGAL
A
evolução dos meios de pacificação social ao longo da história apontou a
jurisdição como técnica oficial de composição de litígios, em que o Estado,
substituindo a vontade das partes, conhece dos conflitos e aplica, por meio do
processo, o direito ao caso concreto, imprimindo solução definitiva aos casos
que lhe são apresentados.
Com
efeito, o monopólio da administração da justiça pelo Estado, de um lado,
confere aos cidadãos, em contrapartida, o direito de invocar a prestação
jurisdicional em relação a determinado conflito de interesse (TUCCI, 2004, p.
55). A essa prerrogativa de provocação do Estado para solucionar conflitos
dá-se o nome de direito de ação – seu exercício é garantido pelo princípio
da inafastabilidade da jurisdição consagrado no art. 5º, inc. XXXV, da
Constituição Federal de 1988, segundo o qual "a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Sem
mais adentrar na discussão da natureza do direito de ação, diz-se, desde logo,
pairar certa unanimidade na doutrina que o diz ser direito público subjetivo,
autônomo e abstrato, voltado contra o Estado, desvinculado e independente da
existência ou procedência do direito material veiculado por seu exercício.
A
preceituação constitucional mencionada (art. 5º, XXXV, CF/88) se dinamiza e
realiza por meio da ação da parte, dando origem à ação judiciária, que se
realiza por meio do processo. Este, por sua vez, "é o instrumento
técnico, ético, político e público de distribuição da justiça e que, embora
iniciado pela ação da parte, com ela, no entanto, não se confunde" (TUCCI,
2004, p. 60). Noutras palavras, "é o instrumento por meio do qual os
órgãos jurisdicionais atuam para pacificar conflitos" (PELLEGRINI,
1999, p. 23).
A
aplicação concreta do direito penal objetivo (sanção) exige o enquadramento do
indivíduo em um das condutas proibidas já previstas em lei (nullum crimem
nulla poena sine praevia lege). Somente daí surge o jus puniendi
estatal (poder-dever de punir do Estado), tendente à restauração do direito
violado e à pacificação social; contraposto ao jus libertatis do cidadão
– assim configurada a lide penal.
A
existência de uma lide penal e, logo, de um antagonismo entre o direito de
punir e a liberdade individual é questionada por Eugênio Pacelli (2003, p. 64),
"para quem o Estado é, na verdade, garantidor da liberdade individual e
interessado apenas na correta aplicação do direito penal".
Assim,
não só o nascimento do direito punitivo é jungido à legalidade, como também sua
dinamização e concreção devem ser antecedidas de processo no qual se franqueiem
ao acusado todas as garantias contidas explícita ou implicitamente no texto
constitucional. A pena, portanto, deverá ser necessariamente
jurisdicionalizada. O processo, desta forma, adjetivado como devido processo
legal, por força do art. 5º, LIV, da CF/88, é condição de validade da resposta
penal.
3 A AÇÃO PENAL PRIVADA E SUAS
JUSTIFICATIVAS
Inicialmente
cabe diferenciar a ação penal privada subsidiária da pública que, em essência,
é uma ação penal pública, da ação penal exclusivamente privada, que será o
objeto das análises empreendidas ao longo do texto.
Segundo
Mirabete (2005, p. 129), embora o jus puniendi pertença exclusivamente
ao Estado, este transfere ao particular o direito de acusar (jus
accusationis) em algumas hipóteses. O direito de punir continua sendo do
Estado, mas ao particular cabe o direito de agir. Justifica-se essa concessão à
vítima quando sei interesse se sobrepõe ao menos relavante interesse público,
em que a repressão interessa bem de perto apenas ao ofendido. Por essa razão,
institui-se a ação penal privada, uma das hipóteses de substituição processual,
em que a vítima defende interesse alheio (direito de punir) em nome próprio.
Na
mesma trilha, Fernando Capez (2002, p. 123) sustenta que o fundamento da ação
penal privada é "evitar que o ‘streptus judicii’ (escândalo do
processo), provoque no ofendido mal maior que a impunidade do criminoso,
decorrente da não propositura da ação penal." A diferença básica entre a
ação penal pública e a ação penal privada seria apenas a legitimidade de agir;
nesta última, extraordinariamente atribuída à vítima apenas por razões de
política criminal – em ambos os casos, todavia, o Estado retém consigo a
titularidade do direito de punir (CAPEZ, 2002, p. 122).
Guilherme
de Souza Nucci (2005, p.175), por sua vez, secundando os já citados autores,
admite que, na ação penal privada, o Estado legitima o ofendido a agir em seu
nome, ingressando com ação penal e pleiteando a condenação do agressor, em
hipóteses excepcionais, em situações nas quais se verifica nítido predomínio do
interesse particular sobre o coletivo.
Como
se vê, segundo a doutrina tradicional, a fundamentação da ação penal privada
deita sobre o predomínio do interesse privado da vítima sobre o interesse
público de punir (que seria mais destacado em outras espécies delituosas),
permitindo que o juízo quanto à propositura da ação penal seja feito segundo a
vontade do particular.
Eugênio
Pacelli (2003. p. 65) contesta a doutrina tradicional, obtemperando que:
Como
se sabe, por força do dispositivo constitucional expresso (art. 129), a regra é
a persecução penal a cargo do Estado, por meio da ação penal pública, somente
admitindo-se a iniciativa privada para crimes cuja publicidade, a partir da
discussão judicial, seja particularmente gravosa aos interesses do ofendido,
deixando-se a este portanto, o juízo de conveniência e oportunidade da resposta
penal.
E
continua (PACELLI, 2003, p. 105):
Se
o strepitus judicii ou escândalo causado pela divulgação do fato pode
justificar a existência da ação penal pública condicionada à representação,
pensamos que o mesmo não ocorre em relação às ações penais cuja iniciativa é
deixada exclusivamente ao interesse do ofendido. [...] Enquanto, no que se
refere à ação pública incondicionada o Estado permanece responsável pela
persecução penal, dependendo unicamente de autorização da vítima, nas ações
privativas do ofendido ele intervêm apenas como custus legis, selando
pela correta aplicação da lei penal. Impõe-se observar que não se pode
pretender justificar a existência da ação privada [...] com base em uma suposta
exclusividade do interesse individual atingido por ocasião das infrações penais
a ela submetidas.
O
autor (Id., Ibid., p. 106) arremata dizendo que o caráter fragmentário e
subsidiário da lei penal, segundo o qual a incriminação é a ultima ratio
de intervenção do Estado na vida social, não permite concluir que um crime
consagre apenas interesse privado, afirmando que, no caso da ação penal
privada, o que há é apenas a discricionariedade da vítima quanto ao juízo de
oportunidade e conveniência da propositura da ação, assim como a liberdade para
formar e manifestar sua convicção quanto à existência do crime e suficiência de
provas.
3.1
Os princípios da ação penal privada
Segundo
Mibabete (2005, p. 131)
Enquanto
na ação pública incondicionada vigora o princípio da obrigatoriedade, a ação
privada está submetida ao princípio da oportunidade. Cabe ao titular do
direito de agir a faculdade de propor, ou não a ação privada, segundo sua
conveniência. Sem sua concordância não se lavra o auto de prisão em flagrante,
não se instaura inquérito policial e muito menos a ação penal. Essa é, aliás,
uma das facetas do princípio da disponibilidade, ou seja, de propor ou
não, e de prosseguir até o final, ou não, na ação privada. Revela-se também por
outras formas: renúncia ao direito de queixa (art. 49, 50 e seu parágrafo
único), pelo não-aproveitamento do prazo decadencial para propor a ação (art.
38) e, depois de movida, pela possibilidade de perimi-la (art. 60, I e III) e
de, em acordo com o querelado, perdoá-lo (art. 51 a 59).
Há
também o princípio da indivisibilidade, previsto no art. 48 do
Código de Processo Penal, segundo o qual a ação penal privada não poderá ser
proposta em face de somente alguns do réus, importando em renúncia o
oferecimento de queixa que não indique todos os envolvidos na conduta
delituosa.
Para
Tourinho Filho e Mirabete (apud CAPEZ, 2002, p. 124), a omissão involuntária de
um dos acusados na queixa poderá ser suprida por aditamento promovido pelo
Ministério Público (custus legis), o que não é aceito por Fernando Capez
(Ibid., p. 125), para quem o aditamento importaria em burla da titularidade do
direito de agir conferido ao particular.
Por
fim, o princípio da intranscendência veda o ajuizamento da ação
penal em face de quem não tenha envolvimento comprovado no crime, seja como
autor ou partícipe. Tal postulado, no entanto, aplica-se a todas as ações
penais, mesmo as públicas, não sendo algo que distingue a ação penal privada da
pública.
Com
efeito, afora as divergências colocadas por Pacelli (2003. p. 106) quanto à
natureza dos interesses tutelados pelas normas que atribuem ao particular a
titularidade da ação penal, a doutrina é acorde ao reconhecer a
discricionariedade do ofendido não só para a propositura da ação mas também
para a sua continuidade, o que é revelado através do institutos que, por ato de
vontade do ofendido, ensejam a extinção da punibilidade dos crimes de ação
privada (renúncia, perdão, decadência e perempção), todos decorrentes da
disponibilidade da ação penal, submetida unicamente ao juízo de oportunidade e
conveniência efetuado pela vítima, hoje, mais do que antes, revalorizada pelo
processo penal, como se dirá adiante.
4 O MODELO DE JUSTIÇA CONSENSUAL E A
LEI N.º 9.099/95
O
progresso da ciência processual assistiu o cientificismo ceder lugar à
preocupação com sua efetividade. O descompasso entre as descobertas científicas
a prática processual levou os estudiosos do processo a rever as orientações
metodológicas então vigentes, em nome de uma justiça mais célere, eficiente e
capaz de dar tratamento aos litígios postos à apreciação do Estado-Juiz.
Antonio
Scarance Fernandes (2002, p. 191) afirma que a doutrina há muito vinha
preceituando, dentre outras coisas, a mitigação do princípio da obrigatoriedade
da ação penal pública, segundo o qual o órgão acusatório tem o dever de
perseguir todo e qualquer crime, valendo-se, sobretudo, do arquivamento do
inquérito policial, com o beneplácito do judiciário, fundado ora em razões de
política criminal, como a adequação social da conduta, ora por inexistência de
ofensa concreta ao bem penalmente tutelado (insignificância) ou mesmo por falta
de justa causa (presença de indícios de autoria e elementos de materialidade).
O
reconhecimento da falência do sistema processual tradicional regido pelo
princípio da obrigatoriedade estaria, portanto, demandando, tanto que na
prática isto já ocorria, a flexibilização da necessidade de instauração da ação
penal pública, conferindo ao Ministério Público certa discricionariedade em sua
atuação persecutória.
Da
mesma forma, segundo Pellegrini et al (1999, p. 31), a idéia de que o
Estado possa e deva perseguir penalmente toda e qualquer infração, sem
admitir-se, em hipótese alguma, certa dose de disponibilidade da ação penal
pública, havia mostrado, com toda a evidência, sua falácia e hipocrisia. Paralelamente,
havia-se percebido que a solução das controvérsias penais em certas infrações,
principalmente quando de pequena monta, poderia ser atingida pelo método
consensual.
Foi
assim descrito por Scarance (2002, p. 198) o movimento em busca da efetividade
do processo:
Firmada
a idéia de que e necessário cunhar regras processuais que resultem em eficácia
na atuação concreta do direito, passa a doutrina a falar em deformalização e
delegalização.
A
deformalização apresenta duas faces: a deformalização do processo em si e a
deformalização das controvérsias. Com a primeira, pretende-se um processo mais
simples, rápido, econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com
eficiência tipos particulares de conflitos de interesses. Com a segunda,
buscam-se equivalentes jurisdicionais, ‘como vias alternativas ao processo,
capazes de evitá-lo, para solucionar as controvérsias mediante instrumentos
institucionalizados de mediação’. Expressa-se a deformalização do processo e
das controvérsias por duas vertentes de superação da crise da justiça: a via
jurisdicional e a via dos meios alternativos.
A
delegalização representa a ‘possível submissão de certas causas a um juízo de
equidade, subtraindo-as à solução legal’.
Nesse
contexto impregnado de novas idéias de reforma eficiente do processo e da
justiça e que se insere marcante preferência pela solução consensual, pela via
de conciliação. De um lado, a conciliação realizada fora do processo entre os
interessados e, de outro, aquela obtida no processo pelas partes e estimulada
pelo juiz da causa.
Constatou-se
enfim que e preciso dinamizar o processo para sua função instrumental, servindo
aos anseios de uma justiça rápida, mais eficiente, e, para isso, algumas idéias
passam a ser propaladas e tenazmente defendidas:
a)
é necessário estimular o uso de vias alternativas para a solução dos litígios,
fora do âmbito judiciário ou dentro deste, ficando a resolução clássica, mais
morosa, para as causas de maior complexidade ou relevância;
b)
dentro do âmbito judiciário, deve-se preferir a via alternativa da conciliação
e que, de preferência, evite a instauração formal do processo;
c)
para a conciliação, exige-se do juiz um novo papel, pois fica ele incumbido de
estimular o acordo entre as partes na busca da solução mais rápida e justa;
e)
os procedimentos devem ser marcados pela celeridade e pela oralidade para
tornar a justiça menos burocratizada;
f)
devem ser chamados a participar dos debates conciliatórios não só as partes
formais da ação, mas outros interessados no litígio, como a vitima no processo
criminal;
g)
deve-se estimular a colaboração dos leigos na conciliação
É
esse conjunto de idéias que moldam os contornos da justiça consensual, na qual
os três principais protagonistas da cena processual, com a participação de
terceiros interessados, como a vítima no processo penal, são instados a
solucionar o conflito pelo consenso.
A
Constituição de 1988, em seu art. 98, I, abriu as portas para a aplicação do
modelo consensual de justiça, ao prever a criação dos juizados especiais
criminais, in verbis:
A
União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados
especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes
para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor
complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os
procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a
transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau (Constituição
Federal, grifo nosso).
Para
regulamentar este dispositivo constitucional, foi editada a Lei n. º 9.099, de
26 de setembro de 1995, surgida na contramão de uma tendência legislativa de
combater a criminalidade com o recrudescimento da resposta penal, sendo a Lei
dos Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/90) um exemplo cabal desse movimento.
A
Lei dos Juizados Especiais Criminais (LJE) veio, pois, atender os anseios de
efetividade processual da comunidade jurídica e dos cidadãos em geral,
estabelecendo definitivamente o modelo consensual de justiça no Brasil,
trazendo consigo algumas inovações destinadas à resolução amigável dos
conflitos de menor impacto social, sendo os principais: o acordo civil (art.
72), o aumento dos casos de representação (art. 88), a transação penal (art.
76) e a suspensão condicional do processo (art. 89).
Vale
dizer que, atualmente, sob o nomen juris de infração de menor potencial
ofensivo, enfeixam-se, após a modificação produzida com a Lei n.º 10.259/01,
aqueles delitos (com ou sem procedimento especial) cuja pena máxima abstrata
não exceda dois anos de duração, seja de reclusão, detenção ou prisão simples;
abrangendo também todas as contravenções penais (independente da pena).
5 INSTITUTOS DESPENALIZADORES DA LJE
5.1
O acordo civil e o aumento dos casos de representação
Com
o acordo civil previsto no art. 72 da Lei n.º 9.099/95, autor do fato e vítima
podem imediatamente compor os danos civis decorrentes do crime. Nos crimes de
ação penal condicionada à representação e ação penal privada o acordo civil
implica na renúncia do direito de queixa ou representação, com a extinção da
punibilidade; já nos crimes de ação penal pública incondicionada, conquanto não
seja abolido o direito punitivo, permite-se que a questão civil da reparação
seja, sem demoras, resolvida no seio do processo penal, em clara homenagem à
vítima (ofendido) que outrora teria de se socorrer de uma outra relação
processual se quisesse pleitear indenização civil.
Para
Roberto Podval (2002, p. 1867), a busca da conciliação deve ser vista como
alternativa dos dissabores de um processo criminal e é, sem sombra de dúvidas,
salutar, não só para o próprio réu, como também para a vítima. O réu terá a
possibilidade de não se ver processado criminalmente, ônus bastante pesado,
especialmente para is criminosos ocasionais. Já a vítima, que é verdadeiramente
castigada em nosso processo clássico (desde a espera nas Delegacias de Polícia,
sempre abarrotadas de serviços e pessoas a serem atendidas, passando por idas e
vindas das audiências, até o final do processo, em que tudo que lhe resta é um
título executivo a ser posteriormente executado no juízo cível), agora, com a
conciliação, terá a sua disposição uma forma mais rápida e efetiva de reparação
dos danos.
O
acordo civil, por sua vez, não é ilimitado pela LJE, podendo ser realizado
tantas vezes quantas queiram as partes, o que, ao ver de alguns (Ib., Ibid., p.
1867), privilegia o réu com mais capacidade econômica, em ofensa ao princípio
da isonomia.
Para
Pellegrini et al. (1999, p. 136), mais uma vez, a lei se mostra plenamente
conhecedora das modernas tendências da Vitimologia, que tendem a substituir
cada vez mais a sanção penal pela reparação dos danos causados ao ofendido. Se
a vítima se compôs com o autor do fato em relação à reparação dos danos civis,
dele obtendo a desejada satisfação, não mais se justifica o ajuizamento da ação
penal nas infrações penais de menor potencial ofensivo. Professa, ainda, que a
ausência de posses econômicas do autor do fato poderá ser suprida
engenhosamente, por proposta do juiz, através de fiança, hipoteca judicial,
desconto em folha de pagamento, etc.
Assim,
a crítica endereçada por Podval (2002, p. 1867) ao instituto do acordo civil é
rebatida por Ada Pellegrini et al. (1999, p. 136) para quem todos os métodos e
formas de pagamento devem ser admitidos (e até sugeridas) pelo juiz do feito,
com o escopo de evitar que a composição civil do art. 72 represente apenas mais
um benefício aos criminosos mais favorecidos economicamente.
Na
mesma senda, a sujeição do crime de lesão corporal leve (art. 129, caput,
CP) à ação penal pública condicionada à representação é não só uma barreira de
contenção como também mais uma maneira de conferir à vítima o juízo de
oportunidade e conveniência sobre a instauração da ação penal. Com feito, se
não exercido o direito no prazo de seis meses (embora haja prazos distintos em
leis especiais), há a decadência do direito de representação e a conseqüente
extinção da punibilidade, tudo, como já se disse, ficando a critério do maior
interessado na responsabilização do autor das lesões – a vítima.
Atente-se
para o que diz Ada Pellegrini et al. (1999, p. 213):
Sem
retirar o caráter ilícito do fato, isto é, sem descriminalizar, passa o
ordenamento jurídico a dificultar a aplicação da pena de prisão. De duas formas
isto é possível: a) transformando-se ação pública em privada. b) ou
transformando-se a ação penal pública incondicionada em ação condicionada. Sob
a inspiração da mínima intervenção penal, uma dessas vias despenalizadoras (a
segunda) foi acolhida pelo art. 88 da Lei n.º 9.099/95.
Vale
dizer que com a edição da Lei n.º 10.406/02 (Código Civil), a idade para
representar passa a ser de apenas dezoito anos. Conforme têm entendido os
tribunais, o prazo só começa a contar para o ofendido menor de dezoito a partir
do momento em que atinge a maioridade, embora o fato tenha ocorrido
anteriormente. Enquanto o ofendido for menor de idade, o direito de
representação poderá ser exercido por seus representantes legais, dentro do
mesmo prazo, tendo como termo inicial o momento do conhecimento de quem seja o
autor da infração. São independentes, pois, os direitos do ofendido e de seus
representantes (vide Súmula n.º 594 do Supremo Tribunal Federal).
Pode-se,
então, seguramente concluir que tanto o acordo civil, com a renúncia ao direito
de queixa ou representação, como a transformação da ação penal do crime de
lesão corporal simples, de pública incondicionada para condicionada à
representação, estão em consonância com a busca pela efetividade processual
referida por Scarance Fernandes (2002, p. 198), na medida em que ambas promovem
a via alternativa da conciliação com a finalidade de evitar a instauração
formal do processo e valorizam a figura da vítima no processo criminal, sendo,
pois, típico corolário do modelo consensual de justiça.
5.2
A transação penal
A
transação penal, da forma como foi disciplinada pela LJE, consiste na proposta
de substituição da pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de
direitos como forma de evitar a instauração da ação penal. O benefício é
concedido a quem o aceitar e atender os seus requisitos objetivos e subjetivos.
É típico dos crimes de menor potencial ofensivo, ao contrário da suspensão
condicional do processo que, como se dirá, embora figure na LJE, é instituto
com aplicação generalizada a todos os crimes cuja pena mínima não exceda um ano
de duração (art. 89).
A
aceitação da proposta de imediata substituição da pena privativa de liberdade
por uma restritiva de direitos é o resultado de concessões mútuas das partes –
o Ministério Público transige com sua pretensão punitiva e o acusado com o seu
direito de tentar se ver absolvido, com o escopo de evitar a formação do
processo (PELLEGRINI et al., 1999, p. 121).
A
constitucionalidade do instituto em questão já sofreu vários ataques,
fundamentalmente porque com ele se permitiria a aplicação de pena sem processo,
com possibilidade de haver conversão da pena restritiva de direitos em pena
privativa de liberdade, ferindo o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88),
bem como se vulneraria o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII,
CF/88), na medida em que o acusado seria obrigado a reconhecer sua
culpabilidade.
Com
relação ao primeiro argumento, argüi-se que a própria Constituição autorizou a
transação penal. Desta forma, inexistindo normas constitucionais originárias
inconstitucionais, deve o intérprete harmonizar os valores contrapostos segundo
critérios de proporcionalidade.
Ademais,
a aceitação da transação penal não traz quaisquer conseqüências para a ficha
criminal do autor do fato, pois não gera reincidência nem maus antecedentes,
mantendo-se o registro apenas para evitar a concessão de novo benefício no
lapso de tempo de cinco anos mencionado pelo art. 76, § 4º da LJE. Evitar o
processo pela aceitação da proposta de aplicação imediata da pena restritiva de
direitos pode ser, e na maioria dos casos o é, estratégia de defesa.
Contra
a alegação de violação da presunção de inocência, opõe-se o fato de que a
formação do título judicial decorrente da transação homologada é não só
constitucionalmente admitida como decorrente da livre manifestação do acusado,
que, de resto, sempre tem o direito de não concordar com a proposta e preferir
ser processado.
Quanto
à pena sem prévio processo e à possibilidade de conversão da pena restritiva de
direitos em pena restritiva de liberdade prevista no art. 85 da LJE, diz-se
que, atualmente, o regime da execução da pena de multa, com as alterações
produzidas pela Lei n.º 9.268/96, foi profundamente modificado. A pena de multa
agora é dívida de valor e se o réu, notificado a pagar pelo Juízo das Execuções
Penais, não o fizer voluntariamente, será executado pela Fazenda Pública sob o
rito da Lei de Execuções Fiscais junto ao juízo competente (Lei n.º 6.830/80),
em que a conversão em pena privativa de liberdade é inadmissível. Como o art.
85 condiciona a conversão aos termos da lei, na inexistência de lei que a
autorize, não há mais esse perigo atualmente, caindo por terra a argumentação
neste ponto.
Já
com relação às demais espécies de pena restritiva de direitos, o Superior
Tribunal de Justiça vem firmando entendimento segundo o qual a homologação da
transação penal é título judicial formado a partir da anuência do réu,
implicando, desde logo, na aplicação de pena e que, por isso, gera coisa
julgada formal e material. A sentença homologatória da transação tem caráter
condenatório impróprio (não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes,
no caso de outra superveniente infração), abrindo ensejo a um processo autônomo
de execução, que pode – legitimamente – desaguar na conversão em pena
restritiva de liberdade, sem maltrato ao princípio do devido processo legal
(STJ – RHC n.º 8198/GO).
Assim,
por exemplo, não se apresentando o infrator para prestar serviços à comunidade,
como pactuado na transação (art. 76, da Lei nº 9.099/05), cabe ao Ministério
Público a execução da pena imposta, devendo prosseguir perante o juízo
competente, nos termos do art. 86 daquele diploma legal (STJ - Resp n.º
203583/SP).
No
Superior tribunal de Justiça, portanto, malogrou a tese segundo a qual o
descumprimento da sentença homologatória de transação penal ensejaria apenas o
retorno dos autos ao Ministério Público para o oferecimento da denúncia (STF -
RE n.º 268319/PR). Este procedimento remanesce apenas para os casos em que a
homologação ainda não foi realizada – como fazem diversos magistrados que
esperam a comprovação do cumprimento da pena alternativa para, só depois,
homologar a transação penal, o que vem recebendo o beneplácito da
jurisprudência (STJ – HC n.º 24624/SP).
A
transação penal, deve-se dizer, nasce com a flexibilização do princípio da
obrigatoriedade da ação penal, que cede passo à discricionariedade regrada,
explicada por Fernando Capez (2002, p. 560) nos seguintes termos:
[...]
no lugar do tradicional e inflexível princípio da legalidade, segundo o qual o
representante do Ministério Público tem o dever de propor a ação penal pública,
só podendo deixar de fazê-lo quando não verificada a hipótese de atuação, caso
em que promoverá o arquivamento de modo fundamentado (art. 28, CPP), o
procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais é informado pela
discricionariedade acusatória do órgão ministerial. Com efeito, preenchidos os
pressupostos legais, o representante do Ministério Público pode, movido por
critérios de conveniência e oportunidade, deixar de oferecer denúncia e propor
um acordo penal com o autor do fato, ainda não acusado. Tal discricionariedade,
contudo, não é plena, ilimitada, absoluta, pois depende de estarem preenchidos
os requisitos legais, daí ser chamada pela doutrina de discricionariedade
regrada.
A
lei dos juizados, portanto, mitigou a obrigatoriedade da ação penal pública,
possibilitando o não oferecimento da denúncia quando o autor do fato se alinhe
às exigências legais. A realização da proposta, contudo, não é direito
subjetivo do réu, decorre da titularidade da ação penal e, por isso, exige a
participação do Ministério Público, entendimento extraído da recente Súmula n.º
696 do Supremo Tribunal Federal, verbis:
Reunidos
os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se
recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a
questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de
Processo Penal.
Em
um dos acórdãos que deu origem à referida súmula, o Min. Sepúlveda Pertence,
que liderou a divergência, assim pontuou:
A
regra é a obrigatoriedade da ação penal pública; é estar o promotor vinculado a
formulá-la, sempre que presente a viabilidade de direito e de fato da acusação.
A
suspensão condicional do processo, como outros instrumentos da Lei 9.099,
é mecanismo – perdoe-se a palavra da moda – de "flexibilização" da
obrigatoriedade da ação penal, no caminho do que se tem chamado Direito Penal
ou Justiça Criminal transacional. Por isso mesmo, se tem dito que a obrigatoriedade
da ação penal cedeu, nas hipóteses em que admitida a suspensão condicional do
processo, a um regime de discricionariedade regrada, ou discricionariedade
mitigada do Ministério Público.
Mas
não posso fugir, com todas as vênias, à opção legislativa que, no art. 89 da L.
9099, caracterizou o instituto como transação processual-penal, a partir de
proposta do Ministério Público.
Posso
chegar, para não consagrar o arbítrio, até a dispensar a espontaneidade ou a
originalidade da proposta. O que não posso, num instituto claramente definido
como mecanismo da Justiça Criminal transacional ou pactuada, é subtrair da
formação desse acordo, é expulsar dessa transação uma das partes do processo, a
parte acusatória, o Ministério Público, ao qual, literal e expressamente, a lei
teria dado mais, porque lhe reservou a iniciativa da proposta.
[...]
Desse
modo, desde as leituras dos autores que se têm debruçado sobre o tema – a
partir daqueles que foram a fonte material do Projeto Michel Temer, ou seja,
Ada Grinover, Antônio Magalhães Comes Filho, Antônio Scarance Fernandes – e
malgrado e lúcida divergência de Luiz Flávio Gomes, o quarto dos autores da
obra que dedicaram aos Juizados Especiais Criminais –, o alvitre pelos três primeiros
sustentado da aplicação analógica e construtiva a hipótese do art. 28 do Código
de Processo Penal, a meu ver, é o que serve melhor à compatibilização entre o
papel insubstituível do Ministério Público na suspensão condicional do
processo, a independência funcional de cada um dos seus membros e a unidade que
se quer da instituição, que, aí, sim, pode fazê-la, com muito maior
legitimidade, o agente criativo e não arbitrário de uma política penal, que,
nos limites da lei, seja variável conforme as circunstâncias de tempo e de
espaço a considerar.
Certo,
o mecanismo do art. 28 do Código foi pensado para funcionar no quadro diverso
do princípio da obrigatoriedade da ação penal, que reclama seja o arquivamento
das peças de informação fundado em razões objetivas, judicialmente
controláveis, de tal modo que, dissentindo delas o Juiz - malgrado não possa
subsistir-se ao Promotor e formular ele próprio a denúncia - deva submeter o
caso à decisão definitiva da chefia do Ministério Público.
Não
obstante, para respaldar o apelo à analogia, o que aproxima as duas hipóteses é
que também na de recusa, que há de ser motivada, do Promotor, à suspensão do
processo – quando legalmente admissível, à luz dos requisitos de sua
viabilidade jurídica, impostos pelo caput art. 89 da L. 9099 - a fórmula do
art. 28 do Código é a que permite submeter a manifestação isolada do Promotor
do caso ao crivo dos órgãos de manifestação da unidade do Ministério Público,
que, no sistema das novas leis orgânicas, é cada vez menos um poder unipessoal
do Procurador-Geral, e sim dos colegiados superiores da instituição. (trecho do
voto proferido no HC n.º 75.343-4/MG, com grifo nosso).
Segundo
entendeu o Excelso Pretório, a fórmula capaz de compatibilizar o papel
insubstituível do Ministério Público, a independência funcional dos seus
membros e a unidade da instituição é aquela que – uma vez reunidos os
requisitos objetivos da admissibilidade do sursis processual (art. 89 caput) ad
instar do art. 28 C. Pr. Penal – impõe ao Juiz, ao invés de diretamente
conceder a suspensão condicional, tendo-a como um direito subjetivo do acusado,
submeter à Procuradoria-Geral a recusa de assentimento do Promotor à sua
pactuação, que há de ser motivada (STF – HC n.º 75343-4/MG).
Foi,
portanto, o recurso à analogia que orientou o Supremo Tribunal Federal a adotar
a técnica do art. 28 do Código de Processo Penal para solucionar os casos de
negativa da proposta de suspensão condicional pelo representante do Ministério
Público, em nome do perfil transacional inerente ao modelo de justiça
consensual instituído pela LJE, segundo o qual a participação das partes nas
espécies de transação processuais-penais é traço essencial.
Com
efeito, as mesmas razões acima se aplicam também à transação penal, instituto
decorrente da titularidade da ação penal, da mitigação da obrigatoriedade penal
e da discricionariedade regrada estabelecida pela Constituição e pela Lei dos
Juizados Especiais Criminais; haja vista que, tratando-se de um modelo
transacional de justiça, a participação das partes na aplicação imediata da
pena alternativa (art. 76), por consistir mesmo numa concessão ao direito de
agir, exige a participação de quem seja o dominus da ação, aí residindo
sua nota essencial (ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio).
5.3
A suspensão condicional do processo
O
art. 89 da LJE instituiu a suspensão condicional do processo como forma de
evitar a aplicação da pena, suspendendo o desenrolar do processo com eventual
possibilidade de extinção punibilidade, caso o acusado atenda determinadas
condições em certo período de tempo. Diz o art. 89:
Art.
89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas
ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá
propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não
esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes
os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (artigo
77 do Código Penal).
Como
visto, o instituto não se restringe aos crimes de menor potencial ofensivo, já
que não tem qualquer vinculação com a pena máxima abstrata, podendo ser aplicado
a todos os crimes com pena mínima de até um ano, mesmo que não submetidos ao
rito da LJE. O legislador serviu-se, pois, da Lei n.º 9.099/95 apenas para
veicular o instituto, o que, aliás, tem sido severamente criticado pela
doutrina, em razão da brevidade e laconicidade com que o importante instrumento
foi regulamentado. Este, inclusive, é o fundamento invocado para negar os
efeitos da Lei n.º 10.259/01 ao art. 89 da Lei n.º 9.099/95, porquanto, como
tem entendido o Superior Tribunal de Justiça, malgrado o diploma referido tenha
alterado a concepção de infração de menor potencial ofensivo, não afetou o
patamar para o sursis processual, que continua disciplinado pelos preceitos
inscritos no art. 89 da Lei n.º 9.099/95 (STJ – Resp n.º 712.022/RS).
A
suspensão condicional do processo não se confunde com o tradicional sursis
(suspensão condicional da pena), pois, neste, o que se suspende é a execução da
pena, enquanto o art. 89 da LJE suspende apenas o processo. No sursis há
a condenação e posterior suspensão da pena; a culpabilidade do condenado,
portanto, fica reconhecida na sentença. Na suspensão condicional do processo,
não há qualquer reconhecimento de culpabilidade, mesmo porque o denunciado não
chega a ser condenado; antes disso o processo se suspende, com possibilidade de
extinção da punibilidade.
Igualmente
não se iguala ao sistema da probation (anglo-saxão), mais assemelhado ao
sursis brasileiro, no qual a pena não chega a ser aplicada e, com a aceitação
do condenado, no momento de sua prolação, é suspensa mediante certas condições
a serem cumpridas durante um período de prova. Não se equipara a suspensão
condicional do processo com o guilty plea, instituto de defesa que
implica na aceitação da acusação, pois, como já dito, o acusado não admite
culpa na suspensão condicional do processo. Além disso, não há, como no sistema
estadunidense do plea bargaining, a liberdade absoluta do órgão
acusatório para negociar a imputação a ser atribuída ao acusado, eis que a
liberdade do Ministério Público, no Brasil, é regrada e adstrita ao que tenha
efetivamente ocorrido no mundo dos fatos, tanto é que a classificação do
delito, na suspensão condicional do processo, é questão de suma importância,
permitindo inclusive o oferecimento tardio da proposta nos casos de
desclassificação posterior.
Pellegrini
et al. (1999, p. 240) define a suspensão condicional do processo como "a
paralisação do processo, com potencialidade extintiva da punibilidade, caso
todas as condições acordadas sejam cumpridas, durante determinado período de
prova". E, mais a frente, arremata "cuida-se, portanto, de via
despenalizadora indireta ou processual. Não se atinge diretamente e
imediatamente o jus puniendi estatal. Isso se dá pela via indireta,
depois do cumprimento de algumas condições, durante certo período (prova)"
(Id., Ibid., p. 241).
Quanto
à natureza do instituto, apela-se novamente às lições de Ada Pellegrinni
Grinover et al. (Ibid., p. 243), verbis:
O
que bem explica a natureza jurídica da suspensão condicional do processo entre
nós, em suma, é o nolo contedere, que consiste numa forma de defesa em
que o acusado não contesta a imputação, mas não admite culpa nem proclama sua
inocência.
Assim,
ao acusado com perfil – sim, porque o momento adequado para se decidir sobre a
suspensão do processo é o imediatamente posterior ao recebimento da inicial
acusatória – impõem-se as condições do art. 89 da LJE, que se cumpridas
regularmente dentro do período de prova, permitem a extinção do processo e da
punibilidade.
O perfil do acusado é verificado a partir dos
seguintes requisitos:
a)O
acusado não deve responder a outro processo;
b)Não
pode ter sido condenado por outro crime, exceto quando a condenação
restringiu-se à pena de multa, quando será possível a suspensão;
c)A
culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem
como os motivos e as circunstâncias devem autorizar a concessão do benefício;
d)O
acusado não poder reincidente em crime doloso;
e)O
limite da pena mínima cominada para o delito deve ser igual ou inferior a um
ano;
As
condições normalmente impostas consistem na reparação do dano, salvo
impossibilidade de fazê-lo, proibição de freqüentar determinados lugares,
proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz,
comparecimento pessoal e obrigatório a Juízo, mensalmente, para informar e
justificar as atividades e outras condições fixadas pelo juiz, desde que
adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado (art. 89, § 1º, LJE).
Logo,
pode-se seguramente afirmar que a suspensão condicional do processo, assim como
a transação penal, decorre da flexibilização do princípio da obrigatoriedade da
ação penal disciplinada por lei (discricionariedade regrada). O titular da ação
penal pública (art. 129, I da CF/88) é autorizado a transigir com a percutio
criminis e negociar com o acusado que atenda o perfil subjetivo e objetivo
do benefício uma solução diferente da aplicação da pena de prisão, sem que isto
implique admissão de culpa. Repetem-se, aqui, pois, as mesmas considerações
feitas com relação à transação penal no que toca ao contexto e finalidades que
ensejaram não só a criação dos juizados especiais criminais como os institutos
que lhe são inerentes, todos destinados a resolver com mais celeridade e
simplicidade os conflitos ligados à criminalidade de pequena e média
ofensividade, através da negociação penal entre os que sejam titulares do direito
de punir e os autores dos fatos (interessados em bem administrar seu status
libertatis), mediante concessões mútuas.
Circunstância
igualmente digna de nota é o fato da reparação do dano ter sido elevada a
condicionante da extinção da punibilidade na suspensão processual, o que, mais
uma vez, realiza a tendência de revalorização da vítima no processo penal atual
(art. 89, §1º, I, da LJE). Roberto Podval (2002, p. 2005) adverte que a
reparação deva ser exigida de quem tenha condições de pagá-la, não podendo
sustar a aplicação do benefício quando for manifesta a impossibilidade do autor
do fato de arcar com quaisquer dispêndios financeiros, devendo o magistrado e o
dominus litis perquirirem outras condições que sejam acordes com a
situação pessoal do acusado.
Nada
obstante, conclui-se que a participação do ofendido no processo criminal é não
só uma forma de poupá-lo dos inconvenientes da propositura de ação própria para
haver sua reparação civil, mas, sobretudo, a sinalização de que a vítima (ou
ofendido) passa a ser um dos sujeitos principais da relação processual de menor
e média complexidade. A este respeito, Ada Pellegrini et al. (1999, p.140)
revela que a "evolução dos estudos sobre a vítima faz com que por parte de
muitos se reconheça o interesse desta não apenas à reparação civil, mas também
à punição penal."
A
proposta de suspensão, como demonstrado no HC n.º 75.343-4/MG (STF, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence), é poder-dever do titular da ação, aplicando-se a fórmula
do art. 28 do CPP para os casos em que haja recusa no oferecimento da proposta.
A solução atende, fundamentalmente, o fato de que a lei, ao moldar o sistema
consensual de solução de casos penais de menor e médio potencial ofensivo,
definiu-o como ato bilateral de postulação (PELEGRINNI, 1999, p. 244),
submetido em última instância à manifestação judicial, e, ainda que o instituto
acarrete benefícios ao réu, sua aplicação dependerá sempre do sinalagma entre a
vontade do órgão acusatório e daquele, não podendo o magistrado sponte sua
conceder a suspensão condicional do processo sem a concordância de ambas as
partes.
Cezar
Roberto Bittencourt (2003, p. 608) critica a opção pela sistemática do art. 28
do CPP, sob a fundamentação de que, embora se trate de uma negociação
processual, a escolha desta técnica privilegia a sociedade e não o réu, que
fica refém da opinião institucional do Ministério Público, recomendando a
utilização do habeas corpus para sanar as recusas injustificadas em
propor a suspensão.
6 A LEI N.º 9.099/95 E A AÇÃO PENAL
EXCLUSIVAMENTE PRIVADA
Como
se viu, o texto constitucional apenas atribuiu à lei o papel de definir o
cabimento do consenso penal, mas de seu próprio texto não se pode extrair
qualquer outra limitação que tenha como critério decisivo outro fator senão o
conceito de crime de menor potencial ofensivo. Não poderia, então, o legislador
ou o intérprete afastar a sistemática dos juizados especiais de quaisquer
crimes com base na titularidade do direito de agir, sob pena de burlar a matriz
constitucional e as próprias finalidades para os quais foram idealizados os
juizados e seus institutos.
O
que se quer dizer é que, e isto já sinalizando para a conclusão do raciocínio
apresentado, é que a LJE elevou a negociação penal como melhor forma de
solucionar os conflitos postos sob seu procedimento, sendo a participação das
partes imprescindível tanto na transação penal como na suspensão condicional do
processo. O cerne da questão é muito mais centrado na bilateralidade do consenso
processual-penal do que na espécie de crime ou modalidade de ação penal de que
se cuide.
A
fortiori, deve-se
sempre lembrar de que partimos de um contexto em que a própria obrigatoriedade
de ação penal pública sofreu mitigações autorizadas pela própria Constituição e
disciplinadas por lei (LJE). O que era obrigatório, agora é submetido à
discricionariedade regrada do Ministério Público – embora assim não pense
Eugênio Pacelli (2003, p. 684), para quem a legalidade não foi flexibilizada e
o Ministério Público apenas é agente de execução da política criminal
consagrada na LJE, sem que isso importe em qualquer outorga de
discricionariedade na aplicação dos institutos despenalizadores, mormente a
transação penal e a suspensão condicional do processo, que têm seus requisitos
claramente definidos em lei.
De
acordo com a exposição, são os princípios da disponibilidade e da oportunidade
os marcos orientadores da ação penal exclusivamente privada, tendo o legislador
relegado ao ofendido (ou seu representante legal) o juízo de oportunidade e
conveniência quanto à instauração da ação, o que é reforçado pela existência de
institutos como a decadência, a renúncia, o perdão e a perempção.
Neste
quadro, os institutos da LJE teriam ou não aplicação na ação penal
exclusivamente privada?
No
que concerne ao acordo civil, por expressa disposição da LJE, este acarreta a
renúncia ao direito de queixa. Consequentemente, entendeu a lei que se a vítima
se compôs com o autor do fato em relação à reparação dos danos civis, dele
obtendo a desejada satisfação, não mais se justifica o ajuizamento da ação
penal nas infrações penais de menor potencial ofensivo (PELLEGRINI, 1999, p.
136).
Com
relação aos institutos da transação penal e suspensão condicional do processo,
até mesmo por ausência de expressa disposição da lei em sentido afirmativo,
muito se discutiu na doutrina e jurisprudência acerca de sua aplicação à ação
penal privada.
Cezar
Roberto Bittencourt (2003, p. 603) textualmente nega a possibilidade de
aplicação dos institutos de LJE às ações penais exclusivamente privadas, não só
pela ausência de previsão legal; pela interpretação literal dos arts. 76 e 89
da LJE, que só se referem à iniciativa negocial do Ministério Público, nada
falando quanto ao querelante; e, por fim, pela inconstitucionalidade por ele
vislumbrada na oposição de limites à continuidade da ação penal privada mesmo
depois de ter a vítima vencido os impedimentos de ordem pessoal que motivariam
sua inércia e a decadência do direito de queixa.
Ada
Pellegrini et al. (Ibid., p. 267) chegou a defender a exclusividade da
transação e suspensão condicional do processo às ações penais públicas, sob a
fundamentação de que na ação privada já vigoraria o princípio da oportunidade e
que qualquer acordo seria tido como perdão ou perempção.
A
jurisprudência também sufragava o entendimento de que no silêncio da lei quanto
à iniciativa do querelante, referindo-se apenas aos crimes de ação penal
pública e ao Ministério Público, não caberia ao intérprete estender os
institutos à ação penal exclusivamente privada, até mesmo com base na
titularidade estatal do jus puniendi que não autorizaria pudesse o
querelante, como mero substituto processual, transigir com os interesses do
substituído. Alegava-se, inclusive no Superior Tribunal de Justiça que, nos
crimes em que o jus persequendi é exercido por ação de iniciativa
privada, é impróprio o uso do instituto da suspensão condicional do processo,
já que a possibilidade de acordo é da essência do seu modelo, no qual têm vigor
os princípios da oportunidade e da disponibilidade. (STJ – HC n.º
17.431/SP).
Eugênio Pacelli (2003, p. 633) não
admite nem a transação penal nem suspensão condicional do processo, por
vislumbrar incompatibilidade entre o sistema de composição civil do art. 74 da
LJE e a ação penal privada. Afirma que, no sistema processual clássico, por
expressa disposição do art. 104, § único, do Código Penal, a reparação do dano
não implica em renúncia ao direito de queixa, o que não se dá no âmbito dos
juizados especiais, onde a composição extingue a punibilidade pela renúncia.
6.1
A natureza legal dos institutos da LJE
A
distinção entre normas materiais e processuais em direito penal é algo sempre
nebuloso que, não raro, enfrenta sérios questionamentos antes de se pacificar.
Como
é cediço, há normas tipicamente penais – que criam tipos penais e seus
preceitos primários e secundários, etc.; e normas processuais, que regulam a
aplicação dinâmica da jurisdição penal no seio da relação composta por
Estado-Juiz, Autor e Réu, sem promover qualquer alteração no direito punitivo
do Estado. As primeiras são regidas pelo princípio da retroatividade da lei
penal mais benéfica e as segundas pelo princípio da aplicação imediata (tempus
regit actum).
Contudo,
a doutrina identifica a existência de normas mistas que, veiculando matérias
relativas a processo, atingem profundamente o jus puniendi e/ou a
própria liberdade individual.
É
Mirabete (1999, p. 57) quem bem elucida a questão:
Não
se pode negar, porém, que existem normas mistas, ou seja, que abrigam naturezas
diversas, de caráter penal e de caráter processual. São normas penais as que
versam sobre o crime, a pena, a medida de segurança, os efeitos da condenação
e, de um modo geral, o jus puniendi (por exemplo, a extinção da
punibilidade). São normas processuais, as que regulam o processo desde o seu
início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Ora, se um preceito
legal, embora processual, abriga uma regra penal, de direito material,
aplica-se a ela os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e
retroatividade da lei mais benigna. Assim, embora as regras sobre ação penal e
representação sejam leis processuais, como a falta de iniciativa da parte na
ação privada e na ação pública dependente de representação pode acarretar a
decadência, que é matéria penal ligada ao jus puniendi, não pode ser
aplicada a lei nova que impede a extinção da punibilidade, por ser mais severa.
Desta
forma, deve-se investigar a natureza dos institutos criados pela LJE, para
esclarecer se são materiais ou processuais, o que terá repercussão tanto no
tempo de sua aplicação e possibilidade de retroação como para saber se admitem
ou não aplicação a casos análogos.
Analisando
os referidos institutos, portanto, chega-se a conclusão de que todos eles
repercutem no direito punitivo, pois todos implicam, mais cedo ou mais tarde no
procedimento, na extinção da punibilidade. Segundo as lições de Mirabete (1999,
p. 57), portanto, são normas que podem ser consideradas mistas.
Ada
Pellegrini et al. (1999, p. 47) confirma esta conclusão, dizendo que os quatro
institutos têm natureza híbrida: três com natureza processual-penal (art. 76,
88 e 89) e um com natureza penal-civil (art. 74).
Assim,
conforme inclusive já decidiu STF, os institutos da LJE têm aplicação imediata
e retroativa, mas sofrem limitações decorrentes não só da impossibilidade
material de sua aplicação ao passado, mas, também, quando a lei posterior,
malgrado retroativa, não tem mais como incidir, à falta de correspondência
entre a anterior situação do fato e a hipótese normativa a que subordinada a
sua aplicação, ou quando a situação de fato no momento em que essa lei entra em
vigor não mais condiz com a natureza jurídica do instituto mais benéfico e,
portanto, com a finalidade para a qual foi instituído (HC n.º 74.305/SP) – v.
tb. STF, ADI n.º 1.719 MC/DF.
Ada Pellegrini (Ibid., p. 49)
estabelece, ao contrário da decisão pretória acima referida, como marco
temporal a determinar a possibilidade de retroação dos quatro institutos
despenalizadores, o momento do trânsito em julgado da sentença.
6.2
O recurso à analogia
Em
regra, a analogia é proscrita do direito penal seja quando implicar na
ampliação das proibições ou no afastamento de benefícios existentes, em
homenagem, sobretudo, a anterioridade da lei penal, guindada ao status
de direito fundamental do cidadão.
Explica
Zaffaroni (2002, p. 173) que
[...]
também na análise jurídica a preparação dos elementos para a construção e os
resultados da mesma devem corresponder a certos princípios que não se podem ver
vulnerados, sob pena de inutilizar as proposições a que se cheguem ao término
da investigação.
[...]
Se,
por analogia, em direito penal, entende-se completar o texto legal de maneira a
estendê-lo para proibir o que a lei não proíbe, considerando antijurídico o que
a lei justifica, ou reprovável o que ela não reprova ou, em geral, punível o
que não é por ela penalizado, baseando a conclusão em que proíbe, não justifica
ou reprova condutas similares, este procedimento de interpretação é
absolutamente vedado no campo da elaboração científico-jurídica do direito
penal.
Damásio
de Jesus (1997, p. 55), por sua vez, professa que a maioria da doutrina
brasileira, malgrado os debates travados em torno do assunto, admite a analogia
quanto às normas não incriminadoras, com base no art. 4º da LICC, mormente
quando dela resultar benefícios para o indivíduo. É a conhecida analogia in
bonam partem.
Consiste
a analogia, portanto, na aplicação de conseqüências jurídicas características
de uma hipótese prevista na lei penal a uma outra hipótese não tratada pelo
legislador. A analogia supre a omissão da lei e, em direito penal, quando for
benéfica ao réu, deve ser admitida.
6.3
Admissibilidade dos institutos da LJE na ação penal exclusivamente privada
A
tendência doutrinária para refutar a aplicação dos institutos despenalizadores,
principalmente a transação penal e a suspensão condicional do processo, às
ações penais exclusivamente privada cedeu passo à sua franca admissão. Reconhecido
pelos estudiosos o caráter consensual dos Juizados Especiais Criminais,
atualmente as opiniões dominantes parecem ter encampado a franca admissão dos
institutos em sede de ação penal privada.
Com
efeito, para Roberto Podval (2002, p. 1911)
Em
se tratando de ação penal privada a diferença está no fato de ser o querelante
a parte legítima para propor a transação ou mesmo rejeitar a sua possibilidade.
Não cabe aqui falar-se em direito subjetivo do querelado [...], mas sim de
opção das partes em transacionarem.
O
próprio Eugênio Pacceli (2003, p. 634), a princípio contrário à admissibilidade
da transação penal e da suspensão condicional do processo na ação penal
privada, ao final de sua exposição sobre o tema, passa a admitir a transação na
impossibilidade real de composição civil, admitindo a suspensão do processo
através do recurso à analogia in bonam partem, refutando os argumentos
que se apóiam na disponibilidade da ação penal privada. Segundo ele, a
suspensão do processo se insere no mesmo âmbito de disponibilidade da ação,
podendo o querelante dela se valer ou não; aduz, por fim, que se o próprio
Estado abdica da obrigatoriedade da ação penal para celebrar a suspensão
condicional do processo, não há razões para que o querelante dela não possa
lançar mão.
Revendo
seu pensamento inicial, Ada Pellegrini et al. (1999, 141) admite a utilização
da analogia para permitir a aplicação da transação às ações penais
exclusivamente privadas:
A
vítima, que viu frustrado o acordo civil do art. 74, quase certamente oferecerá
queixa, se nem uma outra alternativa lhe for oferecida. Mas, se pode o mais,
porque não poderia o menos? Talvez sua satisfação no cambito penal se reduza à
imposição imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa, e não se vêem
razões válidas obstar-se-lhe a via da transação que, se aceita pelo autuado,
será mais benéfica também para este.
[...]
Dentro
dessa postura, é possível ao juiz aplicar por analogia o disposto na primeira
parte do art. 76, para que também incida nos casos de queixa, valendo lembrar
que se trata de norma prevalentemente penal e mais benéfica.
E
quanto à suspensão condicional do processo, Ada Pellegrini Grinover et al. (1999,
p. 268), secundada por Roberto Podval (2002, p. 2034) professa que,
Bem
refletido o assunto, no entanto, impõe-se destacar que a transação processual
(suspensão do processo) não possui a mesma natureza do perdão (que afeta
imediatamente o jus puniendi) nem da perempção (que é sanção processual
ao querelante inerte, moroso). Havendo proposta e aceitação da suspensão do
processo não se pode dizer que o querelante esteja sendo desidioso. Esta agindo.
Está fazendo um opção pela incidência de uma resposta estatal alternativa,
agora permitida, mas que é também resposta estatal ao delito. Isto não é
inércia. Muito menos indulgência (perdão). Nem sequer abandono da lide.
[...]
Alguma
alternativa transacional deve ter cabimento, mesmo porque o legislador, no art.
89, só teve em consideração a pena mínima do delito e de modo algum deixou
transparecer que quisesse excluir qualquer modalidade de ação penal (pública ou
privada).
[...]
O
fato de o art. 89 mencionar exclusivamente "Ministério Público",
"denúncia", não é obstáculo para a incidência da suspensão na ação
penal privada, por causa da analogia (no caso in bonam partem), que vem
sendo reconhecida amplamente na hipótese do art. 76.
Acima
de preciosismos lingüísticos está o interesse maior na efetiva realização de
uma política-criminal alternativa, assim como o interesse do próprio acusado de
valer-se, querendo, dessa resposta estatal alternativa.
[...]
Não
é porque já reinava o princípio da oportunidade em relação à ação penal
privada, acrescente-se, que devemos, sempre, raciocinar, em termos de punição
total (resposta estatal tradicional, prisão) ou renúncia total (perdão, perempção).
Tercius datur. A introdução no nosso ordenamento jurídico de uma forma
alternativa de solução do conflito obriga-nos a questionar a bipolaridade
tradicional entre as duas alternativas clássicas na ação penal privada, surge
agora a possibilidade de algo intermediário (cumprimento de algumas condições,
dentre elas a reparação dos danos, durante certo período de prova, com eficácia
extintiva da punibilidade). Muitas vezes, à vítima não interessa o processo
clássico (por causa de todos os transtornos que ele provoca), nem tampouco o
perdão puro e simples.
[...]
Consideram-se
ainda (e esse argumento é de fundamental relevância) os interesses públicos
gerais presentes no instituto da suspensão, que transcendem em muito os
interesses pessoais dos envolvidos no litígio. Dentre aqueles destacam-se:
ressocialização do infrator pela via alternativa da suspensão, reparação de
danos sem necessidade de processo civil de execução, desburocratização da
justiça, aplicação do Direito Penal e da pena de prisão como ultima ratio
etc. Inviabilizada a suspensão na ação penal privada, nada disso será
alcançado. Nem tampouco a meta político-criminal que o legislador quis imprimir
para a chamada criminalidade de menor ou médio potencial ofensivo. Se até mesmo
em relação aos crimes de ação penal pública, que envolve interesses públicos
indiscutíveis, estes cedem para a incidência da suspensão do processo, com
muito maior razão deve ser admitida em relação aos crimes de ação penal
privada, onde predominam interesses privados. Pela própria natureza, estes a
fortiori não contam com a primazia diante dos interesses públicos.
A
jurisprudência, por sua vez, tem firmado entendimento dominante no sentido de
aceitar a aplicação dos institutos da LJE nas ações penais privadas, conforme
de depreende do aresto a seguir:
[...]
Suspensão condicional do processo instaurado mediante ação penal privada:
acertada, no caso, a admissibilidade, em tese, da suspensão, a legitimação para
propô-la ou nela assentir é do querelante, não, do Ministério Público. (STF
– HC 81720 – SP – 1ª T. – Rel. Min.
Sepúlveda Pertence – DJU 19.04.2002 – p. 00049)
No
STJ, igualmente a tese da admissibilidade tem sido acatada senão com base da
analogia in bonam partem, na ausência de qualquer critério segregante
vinculado à modalidade de ação penal:
O
benefício previsto no art. 76 da Lei n.º 9.099/95, mediante a aplicação da analogia
in bonam partem, prevista no art. 3º do Código de Processo Penal, é cabível
também nos casos de crimes apurados através de ação penal privada (HC n.º
31.527/SP).
A
Lei n.º 9.099/95 aplica-se aos crimes sujeitos a procedimentos especiais, desde
que obedecidos os requisitos autorizadores, permitindo a transação e a
suspensão condicional do processo inclusive nas ações penais de iniciativa
exclusivamente privada (RHC n.º 8.480/SP). E no mesmo sentido (HC n.º
33.929/SP; HC n.º 30443/SP; HC n.º 17601/SP; HC n.º 13.337/RJ).
Nos
autos do RHC n.º 8.480/SP, em suas razões de decidir, o Min. Gilson Dipp assim
se manifestou:
[...]
Não vislumbro óbice à aplicação da Lei n° 9.099/95 aos crimes sujeitos a
procedimentos especiais. desde que obedecidos os requisitos autorizadores,
entendendo pela possibilidade da transação e da suspensão do processo até mesmo
nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada.
O
critério que define a incidência da benesse legal, afora os requisitos
subjetivos, é o menor potencial ofensivo da conduta praticada, que deve ser
aferido pela pena mínima cominada ao delito.
Maiores
restrições vem sendo dispensadas, tendo em vista que o fim precípuo da lei dos
Juizados Especiais é justamente a negociação – o que faz com que se entenda que
a sua aplicação deve ser a mais ampla possível, ultrapassando-se eventuais
contrariedades pela hermenêutica penal e pelos fundamentos e princípios da
própria lei.
Verifica-se,
então, a partir dos julgados e dos argumentos doutrinários atualmente
considerados majoritários no seio da comunidade jurídica, que a transação
processual ou penal prevista na LJE decorre essencialmente da política criminal
que informa o referido diploma e, sendo disposição benéfica, nada impede que o
recurso à analogia permita sua aplicação no âmbito das ações penais
exclusivamente privadas, mesmo diante da literalidade lacônica dos arts. 76 e
89 da lei.
7 CONCLUSÃO
Isto
posto, chega-se, depois das considerações expostas, às seguintes conclusões
finais:
1)
Diante do silêncio constitucional e legal a respeito de outro critério
distintivo que não os limites máximo e mínimo da pena, respectivamente, na
transação penal e suspensão condicional do processo, não há como abandonar a
política criminal de solução consensual de litígios que inspirou a LJE para, em
nome de meras questões lingüísticas, deixar de aplicar seus institutos
despenalizadores nas ações penais exclusivamente privadas;
2)
O caráter benéfico de tais normas marcadamente híbridas (processuais-penais),
autoriza recurso à analogia in bonam partem (admitida em nosso
ordenamento), muito bem lançado pela jurisprudência, permitindo, sim, a
aplicação dos institutos da LJE às ações penais exclusivamente privadas;
3)
O papel da vítima no modelo de justiça da LJE é revalorizado. Proporciona-se ao
ofendido maior relevo na cena processual e se admite seu interesse não só na
formação do título executivo judicial, mas também na própria punição penal do
autor do fato, cujas possibilidades são aumentadas e incrementadas com a LJE,
não só em seu benefício, mas, igualmente, no do réu, que conta com maiores
alternativas à pena de prisão;
4)
Não se pode opor a disponibilidade da ação penal privada como óbice à aplicação
dos institutos da LJE num contexto legal em que a própria obrigatoriedade da
ação penal pública é flexibilizada, com a técnica da discricionariedade
regrada. Se os próprios interesses estatais públicos são submetidos à
negociação processual, com uito mais razão o podem os interesses relegados à
ação penal privada;
5)
Outrossim, conclui-se que a disponibilidade da ação penal deve ser vista a
partir do cenário e das possibilidades abertas com a LJE e não só com base no
paradigma clássico. Se a lei agora oferece meios menos radicais de solucionar
conflitos através da via consensual, o juízo de oportunidade do querelante deve
ser exercido a partir do quadro de novidades legais e não de um contexto
processual ultrapassado;
6)
Adotando-se a posição do STF quanto à legitimidade para a propositura dos
benefícios processuais da LJE, que decorrem sobremaneira da bilateralidade do
transação e da própria titularidade da ação penal típicas do modelo consensual
de justiça autorizado pelo art. 98, I da Constituição Federal de 1988 e
regulamentado pela LJE, em reconhecendo o cabimento da transação penal e da
suspensão condicional do processo nas ações penais privadas, é o querelante
quem tem a faculdade de propô-los ao querelado.
7)
O momento para o oferecimento da proposta de transação penal é aquele que
sucede a tentativa de composição infrutífera, do contrário a punibilidade se
extinguiria em face da presunção de renúncia que dimana do acordo civil; ao
passo que, na suspensão condicional do processo, a proposta facultativa do
querelante ao querelado é feita depois de admitida a acusação, como de resto
ficou assentado no HC n.º 81.720/SP, da lavra do Min, Sepúlveda Pertence.
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