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Imagine-se a
seguinte situação: uma gata recém-parida amamenta seus filhotes, acariciando-os
e lambendo-os por todo o corpo. Algo absolutamente natural e que
contemplamos, por isso, com toda naturalidade. Não a censuramos por
coisa alguma, ao contrário, achamos bonito o carinho e a proteção dispensados
aos filhotes. No mundo animal, sequer censuramos a ovelha que enjeita sua cria.
Suponha, agora, que esse animal já não seja uma gata ou qualquer outro animal
dito irracional, mas uma mulher, chamemos Lourdes, que concebeu e gerou
uma bela menina, chamemos, Lourdinha, de dois anos: ela a acaricia e lhe lambe
as costas, os braços e o órgão genital. Já agora, porém, o que achávamos
natural, normal, passamos a achar “anormal”, “antinatural”, “doentio” e até
“criminoso”.
Desgraçadamente, Lourdes e Lourdinha (os nomes foram alterados) não são
personagens fictícios, mas reais. Lourdes, flagrada por sua vizinha, que avisou
a polícia, foi presa em “flagrante delito”; submetida a julgamento, foi
condenada por “crime hediondo” (atentado violento ao pudor) a cumprir pena de 7
anos e 6 meses de reclusão. Prestes a sair por meio de livramento condicional,
foi novamente flagrada, no interior do próprio presídio, com droga ilícita,
sendo autuada por tráfico, motivo pelo qual, reincidente, deverá ser (possivelmente)
condenada a mais 3 ou 4 anos de reclusão. Não é de surpreender a reincidência:
quem é tratado como homem responde como homem; tratado como animal, responde
como animal. Interessante: tivesse essa história se passado numa família de
classe média ou alta, outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria
Lourdes a tratamento psicológico/psiquiátrico, a sessões de análise ou
semelhante, e, no máximo, lhe tiraria, provisória ou definitivamente, a guarda
da criança. Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão, tudo
não passaria de um “problema de família” e resolvido em família.
Definitivamente, o direito penal é coisa de pobres, de miseráveis.
Eis, pois, o seguinte paradoxo: a criatura humana quando age segundo seus
instintos naturais age, com freqüência, incorretamente, mesmo que a proibição
recaia sobre o objeto do desejo (Freud). Então, o que seria natural passa a ser
antinatural, paradoxalmente. Mais: quem assim o faz, isto é, age conforme a
natureza, mas desconforme as regras sociais, pode responder por crime,
inclusive, e chamado, entre outras coisas, de “pedófilo”, de “monstro”, de
“criminoso” etc. O crime é parte da construção social da realidade e, claro,
esta construção social da realidade é discriminatória e arbitrariamente
seletiva e atua (grandemente) segundo a lógica funcional do modelo capitalista
de produção e de acordo com os estereótipos criados pelos meios massivos de
comunicação.
Dito de modo diverso: Lourdes é portadora de um déficit de socialização: agiu
como animal quando deveria agir como não-animal, como homem, enfim. Aliás, o
déficit de socialização de Lourdes fica evidente pela leitura de seu exame
criminológico, que a diagnosticou como: “personalidade primitiva, com nível
mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que motivam os
comportamentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de
adaptação ao meio social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações,
às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas, manifestadas através
de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle sobre
os impulsos. Em conseqüência, o processo de Inter-relação social torna-se
difícil, sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesmo como
uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que procura dissimular”.
Numa palavra: Lourdes é um animalzinho minimamente socializado.
Mas veja: se Lourdes é uma pessoa com reconhecido déficit de socialização,
pouco se lhe deveria exigir socialmente, afinal deve-se exigir mais de quem
pode mais e se exigir menos de quem pode menos, proporcionalmente. No entanto,
na prática se dá, e se deu, justamente, o contrário: exigimos e condenamos
maximamente, quando mais do que castigo, Lourdes carecia de ajuda, de compreensão,
do perdão e, claro, de tratamento, mas não precisaria, por certo, de crime nem
de pena.
Não bastasse isso, o castigo imposto a Lourdes se revelou politicamente
desastroso, pois, ao invés de “ressocializá-la” e prevenir novos “crimes”, a
intervenção penal a dessocializou mais ainda, agudizando seu déficit de
socialização, e, pior, a profissionalizou na criminalidade e a afastou,
definitivamente, da sua filha, e sua filha dela, cortando-lhes os laços
afetivos e maternais (residuais).
E assim caminha a humanidade, segundo a lógica do castigo, do ódio, da
exclusão...
*<mailto:PauloQ@prr1.mpf.gov.br>
Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Procurador Regional da
República, autor do livro Direito Penal, Parte Geral, Saraiva, 2005.
Disponível em:
<http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/15716>. Acesso em: 25 mai. 2005.