Buscalegis.ccj.ufsc.br
Consolidação
da responsabilidade penal internacional do indivíduo com o advento do Tribunal
Penal Internacional permanente
Tony Gean Barbosa de Castro*
1. INTRODUÇÃO
Por ocasião da instauração do TPI para Ruanda, Kofi
Annan, Secretário-geral da ONU, proferiu as seguintes palavras: "(…)For
there can be no healing without peace; there can be no peace without justice;
and there can be no justice without respect for human rights and rule of
law." (1)
Acertada a mensagem do eminente Secretário-Geral de que não pode haver
justiça sem o respeito aos direitos humanos e à lei, sendo certo que a ausência
de tais elementos não raro conduz à guerra.
O Estatuto do Tribunal Penal Internacional Permanente veio, em resposta
às violações dos direitos humanos, tentar contribuir para o papel que pertence
a todos de asseguração da paz. Representa um grande avanço no direito
internacional e no direito internacional penal. Se tanto internacionalistas
como penalistas negavam a inexistência deste último, suas teses não mais têm
como prosperar. Sustentava-se que não pode haver um Direito internacional penal
enquanto inexistentes se acharem os delitos e as penas internacionais. À guisa
de exemplificação, Enrico Ferri, afirmava que somente seria possível falar-se
de um Direito internacional penal a partir do momento em que se organizasse
entre os Estados uma justiça penal. (2) Embora não seja exatamente isso em que
se formou o Estatuto de Roma, seu conteúdo não passa longe dessa pretensão.
Para os que esperavam um organismo internacional capaz de ditar leis e impor
sanções, o Estatuto se amolda perfeitamente para o cumprimento desse papel,
tendo em seu bojo a instrumentalidade necessária para esse desiderato, bem como
deflagra o processo de consolidação definitiva da condição do indivíduo como
sujeito do Direito Internacional, sobre o que também não há como pairar
duvidas, haja vista que se um dia a repressão dos crimes internacionais cabia
tão somente aos Estados e as normas de Direito Internacional não se projetavam
na esfera jurídica dos indivíduos, a realidade atual é outra.
Com o advento do Estatuto, desmoronam posições que negam a personalidade
jurídica do indivíduo no plano internacional, eis que o instrumento em questão
veio também reforçar o suprimento dessa lacuna apontada por alguns expoentes da
doutrina do Direito das Gentes.
Não há como negar a consolidação da responsabilidade internacional penal
do indivíduo a partir do advento do indigitado Estatuto de Roma. A respeito
desta responsabilidade, cuidará o presente trabalho de tecer algumas
considerações, e em torno dela girarão os modestos, mas sérios e significativos
esforços na tentativa de demonstrar sua consolidação no cenário jurídico
internacional.
--------------------------------------------------------------------------------
2. HISTÓRICO DA TENTATIVA DE RESPONSABILIZAÇÃO
PENAL INTERNACIONAL DO INDIVÍDUO
2.1 Os primeiros processos
A instauração de uma corte internacional permanente para processar e
julgar e responsabilizar penalmente indivíduos aos quais se imputavam o
cometimento de delitos perante o Direito Internacional, tais como os crimes de
guerra, de agressão, de genocídio e contra a humanidade, conforme preleciona
Celso D. de Albuquerque de Mello, não constitui idéia nova, mas desejo antigo
da comunidade internacional. (3)
Há cerca de um século, fazia-se sentir a necessidade de um organismo,
que, acima das próprias nações, pudesse julgar delitos internacionais graves,
assim considerados pela sua natureza e repercussão capazes de extrapolar os
limites territoriais e pela sua projeção para além do domínio do Direito
Nacional.
Houve diversas tentativas e vários projetos defendendo a idéia,
resultando todas frustradas quer por razões predominantemente políticas
contrárias à idéia quer pela falta da aceitação de todos os Estados, requisito
indispensável para a formação de um organismo supranacional.
As primeiras articulações
voltadas para processar quem seja acusado de violar direitos internacionais e
punir os efetivos transgressores, deram-se, como se verá adiante, no período
sucessivo à primeira guerra mundial, mas foi só após a segunda, que vieram a
tomar novo vigor, consideradas as atrocidades que, em seu curso, foram
perpetradas, causando estarrecimento na comunidade internacional.
Porém, muito antes, a aparição da definição de delito internacional
encontrava-se estreitamente vinculada à necessidade de se regulamentar os
eventos bélicos. Conforme nos ensina Carlos Canêdo "Já no século IV a.C.,
Sun Tzu, em obra intitulada A Arte da Guerra, buscava daquele evento bélico
excluir atos contra anciãos e enfermos." (4) Timothy L. H. Mccormack
assevera que "The concept of individual culpability for international
crimes first arose in the context of the laws of war, and the only
international tribunals assembled to date to deal with allegations of
international crime have been for offences ocurring in the context of armed
conflict". (5)
Também Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino,
buscando distinguir as guerras injustas das justas, cuidavam de estabelecer as
premissas filosóficas de sua legitimação. Entretanto, cogitava-se apenas de
trazer certa "humanidade" aos conflitos e não ainda de nenhuma
espécie de responsabilidade criminal.
Para Quintano Ripollés, ex-magistrado dos Tribunais Internacionais do
Sarre e do Cairo, "[...] a idéia de julgar perante uma corte internacional
os responsáveis por condutas bélicas criminosas surge com o direito natural
medieval e renascentista, graças ao Pontificado que existia como autoridade
supra-estatal reconhecida [...]." (6) Tratava-se, no entanto, como o
próprio autor reconhece, de sanções principalmente de ordem moral e espiritual.
A idéia de crime internacional e de responsabilidade penal internacional
ainda não poderia prosperar no limiar do processo de fortalecimento dos Estados
nacionais, a partir do século XVI, chegando-se a admitir a possibilidade de
sanção individual por desencadeamento de uma guerra injusta e por crimes nela
praticados, porém tratava-se de posição restrita ao plano das idéias, de
incidência prática pouco viável para a época.
A primeira vez, contudo, que se tentou traduzir em conseqüências
práticas a responsabilidade penal internacional de um alto dignitário do Estado
teve lugar após o término da Primeira Grande Guerra. (7) Logo após o fim deste
episódio bélico, a consciência universal cogitou de julgar e punir os chamados
criminosos de guerra, ou seja, aqueles que durante o conflito ultrapassaram,
pelos seus reais atos de terrorismo, as normas tradicionais da guerra,
geralmente aprovadas nos tratados, acordos e costumes reconhecidos pelas
potências em conflito. As atrocidades cometidas sem fim militar; o extermínio
célere dos aprisionados na guerra; o abandono das vítimas em alto-mar e outras
barbáries foram em geral os atos que os aliados colocaram mais especificamente
em evidência.
Ao terminar o conflito de 1914/18, discutiu-se em Paris sobre a
necessidade de julgamento do Kaiser Guilherme II e de seus seguidores,
responsáveis, no curso do evento bélico, pela violação dos Tratados de
neutralidade e pelos atos atrozes perpetrados e decidiu-se então que o Kaiser
devia ser submetido a julgamento perante um Tribunal de Guerra, mas Vittorio
Emanuele Orlando, que representava a Itália, favorável àquele julgamento,
receava que se fizesse do Imperador da Alemanha Willhem II, ao invés de um
criminoso, um herói-mártir.
Nas palavras de Luis Wanderleu Torres:
"O tratado de Versailles, o "Diktat" para os alemães, foi
ajustado para atender a intenção de julgamento das potências aliadas e
consagrou os artigos 228 e 230 ao Kaiser e seus assistentes, considerando-se que
o mesmo havia ofendido gravemente a moralidade internacional e a santidade dos
Tratados. Objetivava-se julgar o Kaiser por ter desrespeitado tratados de paz
anteriormente firmados, assim como pela violação das convenções de Haia e
Genebra." (8)
Porém, resultaram infrutíferas as
tentativas de realização do julgamento, uma vez que o Kaiser, um dia antes da
assinatura do armísticio de 1918 entre a Alemanha e os aliados, refugiou-se em
Doorn, na Holanda, país que o protegeu e lhe concedeu asilo por intermédio da
Rainha Guilhermina, negando-se a entregá-lo sob o argumento de que não havia de
sua parte obrigação internacional de se sujeitar à política internacional dos
vencedores da 1ª Grande Guerra. Referiu-se ainda ao Direito de Asilo, invocado
pelo Kaiser (9) e terminou dizendo que quando se constituísse uma jurisdição
internacional validamente organizada, a Holanda dela participaria. Eis aqui uma
das manifestações acerca da necessidade que se fazia sentir de criação de uma
Corte Penal Internacional Permanente.
O fracasso dessa tentativa de instauração de um Tribunal Penal
Internacional que, por conseqüência, retardou a consolidação da
responsabilização penal internacional do indivíduo que ora se defende, foi somente
um reflexo de um outro de maior importância.
Nos anos que seguiram ao pós-guerra, fatores decorrentes de sua
deflagração propiciaram um ambiente internacional de precário armistício,
favoreceram o nascimento do nazismo, culminando com a eclosão de uma Segunda Grande
Guerra, após a qual, tendo em vista os assustadores atos desrespeitosos aos
direitos humanos praticados em seu curso, o mundo pôde conhecer as primeiras
experiências de tentativa concreta de efetivação de uma justiça penal
internacional, isto é, de um julgamento realizado por um tribunal supranacional
de crimes de guerra e contra a humanidade. Os acusados eram indivíduos da
Alemanha e do Japão, países que desfrutavam já à época posições política e
militar de relevo. Trata-se dos históricos e propalados Tribunais de Nuremberg
e de Tóquio, respectivamente.
Em 1943, no auge da Segunda Guerra Mundial, as potências aliadas tomaram
para si o compromisso de submeter a julgamento os autores dos crimes de guerra
e decidiram, ao fim do conflito bélico, que "todos os que houvessem
participado na elaboração e execução de medidas que tinham dado origem a
atrocidades seriam presos e julgados como criminosos de guerra" (10). Em
1945 e 1946, respectivamente, aquelas forças vencedoras do grande conflito mundial
instauraram os tribunais internacionais de Nuremberg e Tóquio.
2.4 O Tribunal para a antiga Iugoslávia
O Tribunal Penal Internacional (TPI) para ex-Iugoslávia foi criado quase
cinqüenta anos após o julgamento feito pelos Tribunais Internacionais militares
de Nuremberg e Tóquio, para processar os transgressores que desrespeitaram os
direitos humanos no território daquele antigo país europeu (11). O TPI para
antiga Iugoslávia abriu precedente ao ser composto apenas por juízes selecionados
em toda a comunidade internacional e foi o primeiro Tribunal especial penal
não-militar da história criado para conhecer, processar e julgar as condutas
delitivas perpetradas a partir de 1º de janeiro de 1991 naquela extinta nação
hoje denominada Sérvia-Montenegro.
A Responsabilidade penal internacional do indivíduo no Estatuto do TPI
para a antiga Iugoslávia está inserida no seu artigo 7 e parágrafos seguintes.
O número (1) indica que uma pessoa é penalmente responsável perante o Tribunal
se ela planejou, instigou, ordenou, cometeu ou por outra forma auxiliou ou
incitou no planejamento, preparação ou execução de qualquer dos crimes
previstos no mesmo Estatuto (12). O instrumento também traz a previsão de que a
posição oficial de qualquer pessoa acusada, mesmo como Chefe de Estado ou de
Governo ou como responsável oficial do Governo, não livrará tal pessoal de sua
responsabilidade penal tampouco mitigará sua punição.
Prescreve ainda que o fato de qualquer dos delitos tipificados no
Estatuto ter sido cometido por um subordinado não exime seu superior da
responsabilidade penal se este último sabia ou tinha razão para saber que o
subordinado iria cometer tais atos ou, tendo cometido-os, deixou de adotar as
medidas razoáveis e necessárias para impedi-los ou punir o agente perpetrador.
O fato também de uma pessoa denunciada agir em obediência à ordem do Governo ou
de um superior não a eximirá de sua responsabilidade penal, mas tal pode ser
considerado como atenuante.
O Tribunal para Ruanda
Reconhecendo que graves violações ao direito humanitário estavam sendo
cometidas em Ruanda, pequena nação situada na África, o Conselho de Segurança
da ONU criou o Tribunal Penal Internacional para aquele País (13), visando
contribuir para o processo de reconciliação nacional e para a manutenção da paz
na região. Decidiu-se ainda que a Corte Internacional teria sede em Arusha, na
Tanzânia. O TPI para Ruanda foi instaurado para processar criminalmente
indivíduos cometeram ou ordenaram a perpetração das graves condutas penais
contrárias ao Direito Internacional Humanitário no território de Ruanda no
período de primeiro de janeiro a 31 de dezembro de 1994 e também para a
persecução de cidadãos ruandeses responsáveis pela prática de genocídio e outras
crimes cometida no território dos Estados vizinhos durante o mesmo período.
O TPI para Ruanda concentra-se em processos em desfavor dos que detinham
poder e instigaram as atrocidades e crimes cometidos no massacre de tutsis e
hutus ruandeses quando, em 1994, a violência chegou ao ápice naquele país
africano, culminando com o genocídio de 1 milhão de pessoas, na maioria tutsis,
hutus ruandeses moderados e milhares de refugiados na região.
De forma muito semelhante, até mesmo quase idêntica, ao Estatuto do TPI
para ex-Iugoslávia, foi elaborado o conteúdo do Estatuto do Tribunal para
Ruanda no que concerne à responsabilidade penal internacional do indivíduo. Tal
está prevista no seu artigo 6 e parágrafos elencados por números. Versa o
Estatuto que um indivíduo é penalmente responsável desde que tenha planejado,
instigado, ordenado, cometido ou por outra forma auxiliado ou incitado no
planejamento, preparação ou execução de um crime previsto naquele instrumento.
(14) Assim como no Estatuto Iugoslavo, a posição oficial de qualquer pessoa
acusada, mesmo como Chefe de Estado ou de Governo ou como responsável oficial
do Governo, não livrará tal pessoal da responsabilidade penal nem lhe servirá
como atenuante.
De igual forma, o fato de que qualquer dos atos previstos no artigos 2 a
4 do Estatuto ter sido cometido por um subordinado não exime seu superior da
responsabilidade penal se este sabia ou tinha como saber que seu subordinado
estava para cometer tais atos ou assim o procedera, sem que tomasse as
necessárias medidas para evitá-los ou mesmo punir o suposto autor. De igual
modo, o fato de uma pessoa ter agido em obediência à ordem do Governo ou de um
superior não a eximirá da responsabilidade penal que lhe é, em tese, imputada,
mas pode ser considerado também como atenuante.
--------------------------------------------------------------------------------
3. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PERMANENTE
(TPI): A CONSOLIDAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL INTERNACIONAL INDIVIDUAL
3.1 O indivíduo como sujeito de Direito
Internacional
Se até recentemente o Direito das Gentes regia apenas as relações entre
Estados soberanos, é certo porém que desde bem cedo o indivíduo foi alvo do que
se poderia chamar de lei penal internacional, como acertadamente demonstra, em
sintéticas palavras, René-Jean Dupuy quanto à posição que o indivíduo vinha
ocupando na sociedade internacional e particularmente no Direito das Gentes,
indicando que este "...tinha uma participação na vida internacional de
forma indireta, posto que a direta cabia ou era exercida pelos Estados, mas que
no entanto, no plano dos deveres para com a comunidade das nações, o homem
desde muito cedo fora abrangido pela lei penal internacional...", a
exemplo da campanha normativa e efetiva em desfavor da atuação dos piratas,
considerados que eram violadores de normas do Direito Internacional. (15)
Embora os doutrinadores não tenham criado, em largo curso da história do
direito internacional, obstáculos à existência da personalidade internacional
do indivíduo, a partir da prevalência da soberania estatal, consoante dá
notícia Carolina Ghinato Daoud (16), inicia-se um movimento em desfavor daquela
realidade, perdendo a pessoa sua "autonomia" e necessitando do Estado
para exercer seus atos na órbita jurídica internacional.
Nesse contexto, colhendo ainda ensinamento da autora supramencionada,
"a classificação da doutrina quanto ao tema, no século XX não é uniforme;
entretanto, é possível dividi-la em dois grandes grupos: os que negam e os que
afirmam ser o homem sujeito de Direito Internacional."
O ex-ministro da Corte Suprema Brasileira, José Francisco Rezek,
advogava a idéia de que os indivíduos, assim como as empresas, privadas ou públicas,
não gozam de personalidade internacional o que seria possível se "...eles
dispusessem da prerrogativa ampla de reclamar, nos foros internacionais, a
garantia de seus direitos, e que tal qualidade resultasse de norma geral".
Completa o juiz de Haia que "...é ilusória a idéia de que o indivíduo
tenha deveres diretamente impostos pelo direito internacional público,
independentemente de qualquer compromisso que vincule seu Estado patrial, ou
seu Estado de residência..." Entende ainda que "...a tese de que os
indivíduos podem cometer crimes suscetíveis de punição pelo direito
internacional, sem embargo da licitude de sua conduta ante a ordem jurídica
interna a que estivessem subordinados..." defendida por ocasião da
instauração do Tribunal de Nuremberg que julgou e condenou nazistas ao final da
2ª Guerra Mundial constituiu circunstância excepcionalíssima. (17)
Não obstante o entendimento supra - que autor deste modesto trabalho
colheu da obra do eminente magistrado brasileiro sobre Direito Internacional
Público datada de 1998, 7ª edição, podendo ter havido posterior mudança de
posição doutrinária - o fato é que o acesso pelo indivíduo aos tribunais
internacionais deixa paulatinamente de configurar uma enorme exceção como no
passado. Consoante novamente Carolina Ghinato Daoud (18) "os Estatutos da
Corte Internacional de Justiça, que é o principal órgão judiciário da Sociedade
Internacional, não admite que o homem compareça perante ela como parte de um
litígio. Entretanto, alguns Tribunais admitiram o homem sendo parte nos
litígios, como o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e de Tóquio; a
Corte de Justiça Centroamericana; os Tribunais Arbitrais Mistos, instituídos
após a Primeira Guerra Mundial, além de diversos projetos de Tribunais Internacionais,
como a Corte Internacionais de Presas."
Agora, com a instauração do TPI cujo principal objetivo é de processar
indivíduos, constata-se que sua posição como sujeitos do Direito das Gentes,
penalmente responsáveis, alcança indubitavelmente o patamar da consolidação,
não havendo ambiente favorável para se vivenciar retrocessos que impeçam tal
desenvolvimento. Nesse sentido defende André de Carvalho Ramos que "o
projeto de convenção internacional contendo o Estatuto do Tribunal penal Internacional,
aprovado em 1998 em conferência internacional patrocinada pela organização das
Nações Unidas, na cidade de Roma, representa um novo estágio da
responsabilização internacional penal do indivíduo". (19)
De fato, conforme já se esboçou, o expressivo aumento de delitos
internacionais após a 2ª Grande Guerra fez com que a comunidade internacional
estabelecesse uma meta voltada para dar fim ou ao menos diminuir tais condutas
delitivas, evitando-se a impunidade que reinava após a prática destas, o que,
com expressiva e predominante colaboração, seria alcançável por meio de um
tribunal internacional permanente dotado de poder suficiente para aplicar o
direito internacional àqueles acusados de cometerem crimes violadores do
Direito Internacional Humanitário.
Nesse mesmo diapasão, corrobora Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros ao
asseverar que:
"Uma das principais qualidades do Estatuto reside na afirmação do
princípio da responsabilidade penal de indivíduos pela prática de delitos
contra o Direito Internacional. Situar o indivíduo como sujeito de direitos e
deveres no plano internacional constitui idéia corrente desde os tempos em que
Hugo Grotius lançou as bases do moderno Direito das Gentes. O grande jurista
holandês divergiu da noção corrente no século passado – com vertentes ainda
vivas na atualidade – de que o Direito Internacional deve restringir-se a
disciplinar as relações entre os Estados. A evolução acelerada da proteção
internacional dos Direitos Humanos após a Segunda Guerra Mundial conduziu a
profundas alterações sobre o papel do indivíduo no cenário internacional, enfatizando
, primeiramente, os direitos, e, a seguir, os deveres individuais. (20)
Wolfgang Friedmann, com respeito à responsabilidade internacional do
indivíduo, argumenta, a seu turno, que:
"o indivíduo, que normalmente deve agir através da proteção do
Estado a que deve lealdade, está começando a adquirir – embora, até o presente,
em muitos poucos casos – o direito de queixa direta contra a interferência em
seus direitos humanos elementares. Deveria, correspondentemente, ser considerado
responsável, em circunstâncias excepcionais, por ações que violem direitos
humanos elementares. (21)
Fauzi Hassan Choukr enriquece essa linha de raciocínio e, mencionando
Flávia Piovesan (22), faz referência ao fortalecimento, no cenário internacional
hodierno, da idéia de que a proteção dos direitos humanos não pode se
circunscrever á esfera de domínio exclusivo do Estado, ou seja, não deve ser
reduzir à competência doméstica exclusiva ou à jurisdição interna privativa em
face do caráter de legítimo interesse internacional que gira em torno do tema.
Complementa ainda que:
"Pronuncia-se Flávia Piovesan [ ...] Por sua vez, essa concepção
inovadora aponta para duas importantes conseqüências: (1) a revisão da noção
tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de
relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional,
em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, permitem-se formas de
monitoramento e responsabilização internacional quando os direitos humanos
forem violados; (2) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter
direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de
Direito." (23)
E ser sujeito de direito é ser destinatário de direitos, mas também de
obrigações, o que gera a conseqüente exigibilidade de tais direitos e a
responsabilidade de tais obrigações.
Assim, no desdobrar de todo o processo de sedimentação internacional
dessa consciência, conforme já dito, mais de cinco décadas anos após a
instauração e os julgamentos que tiveram lugar em Nuremberg, criou-se um
Tribunal Penal Internacional (TPI) permanente, resultado das conferências
realizadas em Roma pelos plenipotenciários das Nações Unidas, dotado para
julgar indivíduos perpetradores de delitos que transcendem as fronteiras
nacionais, consagrando sua responsabilidade penal que será apreciada pela
referida Corte Internacional.
3.2 Responsabilidade penal internacional do indivíduo no Estatuto do TPI
Permanente
Avançando no debate e na defesa, é necessário primeiro que se proceda,
para tornar as considerações mais palpáveis, à transcrição dos artigos do
Estatuto de Roma atinentes à responsabilidade penal internacional do indivíduo
cuja consolidação crescentemente se faz presente no Direito internacional penal
como se abstrairá das argumentações que se seguirão.
"ESTATUTO DE ROMA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Artigo 25
Responsabilidade penal individual
1. O Tribunal terá jurisdição sobre
pessoas naturais, de acordo com o presente Estatuto.
2. Um indivíduo que cometer um crime sob a jurisdição do Tribunal será
penalmente responsável e passível de pena em conformidade com o presente Estatuto.
3. Em conformidade com o presente Estatuto, um indivíduo será penalmente
responsável e passível de pena por um crime sob a jurisdição do Tribunal, se
tal indivíduo:
a) cometer esse crime individualmente, em conjunto com outrem ou por
meio de outrem, seja este ou não penalmente responsável;
b) ordenar, propor ou induzir a prática de tal crime, que de fato ocorra
ou seja tentado;
c) com o propósito de facilitar a prática de tal crime, ajude, encubra
ou colabore de algum modo na prática ou na tentativa de praticar o crime,
inclusive fornecendo os meios para sua perpetração;
d) contribuir de qualquer outro modo à perpetração ou tentativa de
perpetração do crime por um grupo de pessoas que tenham uma finalidade comum.
Tal contribuição deverá ser intencional e;
1.ser prestada com a intenção de levar a cabo a atividade delitiva ou
propósito criminal do grupo, quando tal atividade ou propósito implicar a
perpetração de um crime do âmbito da jurisdição do Tribunal; ou
2.ser prestada com o conhecimento da intenção do grupo de perpetrar o
crime;
e) com relação ao crime de genocídio, instigar direta e publicamente
outrem a praticá-lo;
f) tentar perpetrar tal crime mediante atos que constituam um passo
inicial importante para a sua execução, mesmo que o crime não seja consumado
devido a circunstâncias alheias a sua intenção. No entanto, o indivíduo que
abandonar o esforço de perpetrar o crime ou de outra forma impedir a consumação
do mesmo não deverá ser passível de pena em conformidade com este Estatuto pela
tentativa de cometer tal crime, se o indivíduo renunciar íntegra e voluntariamente
ao propósito delitivo.
4. Nada do disposto neste Estatuto a respeito da responsabilidade penal
das pessoas naturais afetará a responsabilidade do Estado, conforme o direito
internacional."
Feita a transcrição acerca da responsabilidade penal internacional no
Estatuto de Roma, importa ainda percorrer os trilhos do Estatuto de Roma,
instrumento penal internacional inovador e capaz de assegurar a consolidação da
responsabilidade penal internacional do indivíduo que aqui se defende. Vejamos
algo de sua estrutura, natureza jurídica, princípios e normas, todos estes
aspectos garantidores desse processo de sedimentação da responsabilização
penal.
O Estatuto de Roma do TPI Permamente, que tem natureza jurídica de
tratado, foi aprovado no dia 17 de julho de 1998, por 120 votos, computando-se
algumas abstenções. A votação foi um histórico e inequívoco avanço na defesa
dos direitos humanos, um aviso para o fim da impunidade e um instrumento,
repise-se, de consolidação da responsabilidade penal internacional do
indivíduo.
O Brasil é signatário desde 7 de fevereiro de 2000, além de mais 139
Estados, sendo que existem 97 ratificações até o momento conforme divulgado no
site da ONU. Com sede em Haia – Holanda (art. 3º do Estatuto), o Tribunal tem
personalidade jurídica internacional, dotado de capacidade jurídica para
celebrar tratados e passou a ser considerado permanente em 2002 depois que 60
países depositaram suas ratificações com caráter complementar às jurisdições
penais internacionais (24).
Pelo Decreto Legislativo n. 112 de 06 de junho de 2002, o Congresso
Nacional Brasileiro aprovou o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional, tendo o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso promulgado o seu
texto por meio do Decreto n. 4388 do mesmo ano.
Em contato com o texto do Estatuto, verifica-se que este disciplina as
questões ligadas ao direito penal e processual penal indispensáveis à
salvaguarda do devido processo legal. No que concerne ao objetivo deste
trabalho, oportuno esclarecer que a parte V regulamenta o modo de investigação
e do ajuizamento. A Parte VI trata da fase de julgamento, adotando-se os
princípios gerais a este aplicáveis, desde o recebimento da denúncia até a
decisão da Câmara de Julgamento. A Parte VII estabelece previsão das penas
aplicáveis e sua fixação pelo Tribunal, sem prejuízo de aplicação de penas
pelos Estados com adoção de seu ordenamento jurídico doméstico, fazendo menção
ainda a um fundo fiduciário para fins de reparação à vítimas dos crimes sob a
jurisdição da Corte, ao qual se pode se destinar o valor obtido da cobrança de
multa. Já a Parte VIII, com 05 artigos, disciplina a possibilidade recursal.
Há no Estatuto também a inclusão de princípios gerais de direito penal
insertos nos arts. 22 a 24 da Parte III, a exemplo do princípio da legalidade,
não retroatividade, etc, discorrendo a partir do 25 diretamente sobre a
responsabilidade penal individual, elementos de sua intencionalidade,
circunstâncias que a excluem etc. O Estatuto de Roma normatiza a atuação do
Ministério Público, elenca e define as condutas delitivas de direito
internacional.
Em suma, suas regras refletem a inquietação da comunidade internacional,
conforme consta de seu preâmbulo, quanto ao combate à impunidade daqueles que
violam os direito humanos, cometendo atrocidades a milhões de mulheres, homens
e crianças, ameaçando a segurança e a paz na relação entre os povos. Reflete
também o desiderato de responsabilizar penalmente tais transgressores, fazendo
com que haja efetivação e respeito à justiça internacional. Para tanto, funda
um sistema de ataque, prevendo um Ministério Público atuante e forte, sem se
afastar, porém, das garantias processuais em estreita obediência ao já
mencionado princípio internacionalmente consagrado do due process of law,
proporcionando assim investigação – iniciada com base em fundamento razoável -,
acusação, defesa, instrução, julgamento e execução legítimos. Conforme aduz
Sylvia Helena F. Steiner:
"O sistema de garantias processuais trazidos nos estatutos do
Tribunal Penal Internacional autoriza-nos a concluir pela adoção de um modelo
garantista. O garantismo penal é fruto da evolução história da humanidade, a
partir do momento em que se passa a considerar o suposto criminoso como sujeito
de direitos, tutelado pelo Estado, o qual tem por dever garantir o respeito a
ele devido, quer na fase pré-processual, quer durante o julgamento, quer após
condenado. Como afirma Ferrajoli, o garantismo significa a existência de um
conjunto de garantias jurídicas necessárias, à afirmação da responsabilidade
penal e para a aplicação da pena. Traduz a legitimidade do poder de punir.
Essas garantias foram exatamente as introduzidas pela normativa internacional,
vale dizer, as Convenções, especialmente as regionais, de proteção a direito
fundamentais." (25)
Ainda neste particular, o TPI distingue-se dos tribunais ad hoc
instaurados após as deflagrações de alguns conflitos internacionais, como o de
Nuremberg, de Tóquio e dos Tribunais de Ruanda e da Ex-Iugoslávia.
Conforme ressalta Hans-Jörg Behrens:
"As previsões procedimentais do Estatuto de Roma diferem
substancialmente das partes procedimentais dos estatutos atinentes ao tribunal
para a antiga Iugoslávia e Ruanda, tribunais estes ad hoc, que tiveram de ser
estabelecidos de uma maneira extremamente rápida, razão pela qual não foi
possível haver tempo hábil para que se procedesse a um trabalho comparativo das
leis processuais penais. Sendo assim, a lei processual teve de seguir um dos
sistemas já estabelecidos, e o sistema optado foi a da common law [ ...]
Durante os estágios preparatórios do Estatuto para o Tribunal Penal
Internacional a situação era diferente. Para complementar, as delegações
integrantes deste trabalho tiveram a oportunidade de contar com expertos, que
poderiam não apenas acrescentar os conhecimentos atinentes aos seus sistemas
legais, como também a outros." (26)
De fato, ponto central da Conferência dos plenipotenciários em Roma foi valorizar
a questão relativa às regras mínimas de defesa. Procedeu-se então à estreita
observância às normas internacionais previstas sobretudo no artigo 14 da
Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos. Também os artigos 55 e
67 do Estatuto de Roma delineam de forma completa as regras da investigação e
do processo, elencando os direitos do acusado nesses procedimentos. Ainda o
artigo 66 traz a presunção da inocência, princípio basilar do direito penal
presente em inúmeros textos internacionais de direitos humanos. Em suma,
consoante complementa o supramencionado membro da delegação alemã, Hans-Jörg
Behrens, ativo participante da Conferência, acerca da seriedade com que se
desenvolveram os trabalhos na elaboração do Estatuto:
"[ ...] pode ser aventado que a parte procedimental do estatuto
seja, talvez, a sua parte mais ambiciosa. Porém, pode não ser a mais elegante
das redações encontradas no cenário internacional, mas, certamente, é um
indicativo da compreensão global do que seja um processo justo diante de uma
Corte Internacional. Poucas pessoas acreditavam que tal construção seria
possível há dez ou mesmo cinco anos." (27)
Feita a transcrição dos artigos relativos à responsabilidade penal
individual e os comentários acerca dos aspectos que formam o Estatuto, todos
contribuidores para o assentamento daquela responsabilidade no direito
internacional penal, importa agora tecer outros argumentos não menos
relevantes, a título de reforço e respaldo ao que aqui se ,defende.
Conforme já superficialmente
indicado, registrou-se no curso dos julgamentos que tiveram lugar no Tribunal
de Nuremberg a consciência de que os crimes contra o direito internacional são
cometidos por homens, não por entidades abstratas, e apenas punindo os
indivíduos que viessem a perpetrar tais delitos, garantiria-se respeito às leis
internacionais. Nesse contexto, o Tribunal Penal Internacional foi concebido
como uma Corte permanente, com jurisdição para todos os países membros da
Organização das Nações Unidas e para investigar, processar, julgar e punir
pessoas, não Estados, isto é, aprecia a responsabilidade penal de pessoas
naturais conforme disposição trazida pelos parágrafos 1, 2 e 3 do artigo 25 do
Estatuto de Roma, indivíduos estes que tenham cometido crimes graves como o de
genocídio, de guerra, contra a humanidade e de agressão, consoante elenco e
definição previstos nos artigos 5 a 8 daquele novel instrumento legal
internacional.
A certeza da real necessidade de criação de uma Corte Penal
Internacional permanente nos moldes já referidos, isto é, para conhecer,
processar e julgar os autores de crimes internacionais, consolidando a
responsabilidade penal internacional do indivíduo que a comunidade das nações
de há muito exigia, foi produto, registre-se, da experiência catastrófica
vivida no decorrer das duas guerras mundiais, das infrutíferas Convenções
Internacionais que foram feitas na tentativa de exterminar ou reduzir o
cometimento dos delitos aqui em estudo e também da constatação de que violações
às mais elementares regras de Direito Internacional continuaram a ser
praticadas, fazendo reinar crescente impunidade.
Lembra Tarciso Dal Maso Jardim, observador internacional da Conferência
de Roma que "desde o fim da Primeira Guerra Mundial pretende-se consagrar
a responsabilidade penal internacional, quando o Tratado de Versalhes clamou,
sem sucesso, pelo julgamento do Kaiser Wilhelm, por ofensa à moralidade e à
inviolabilidade dos tratados, e o Tratado de Sèvres, jamais ratificado, previa
a responsabilidade do Governo Otomano pelo massacre dos armênios." (28)
Contribuíram também para a formação dessa opinião – necessidade de
criação de um TPI Permanente - as experiências da persecução e punição de
crimes internacionais nos Tribunais Especiais criados em Nuremberg, Tóquio,
Ex-Iugoslávia e Ruanda. Embora mereçam elogios e tenha trazido avanço,
notadamente quanto à necessidade de responsabilização penal da pessoa
criminosa, as imperfeições verificadas conduziram à alternativa mais acertada
de formação de um Tribunal Internacional Permanente para julgamento de crimes
de guerra ou contra a humanidade, formada por juízes togados e experientes no
trato com o Direito Internacional e principalmente com o Direito das Guerras.
O processo de consolidação da responsabilidade penal internacional do
indivíduo se deu de forma árdua e lenta, sendo que houve e ainda há muitos
óbices para o reconhecimento de sua existência, principalmente pelos Estados
geridos por aqueles que muito devem perante o direito internacional penal.
Entretanto, a corroborar aquela consolidação, as nações que atuaram em desfavor
do TPI, representam a minoria. E de fato, conforme aponta Lyal S. Sunga:
"[ ...] .Uma minoria de Delegações pareceu determinada a estreitar
o espectro de crimes no Estatuto tanto quanto possível, já que elas não desejam
o estabelecimento da Corte em si e, uma vez percebendo que tal objetivo não
seria alcançado, buscaram reduzir o quanto possível a operacionalização do
Tribunal Penal internacional. Sem embargo, ao final, a vasta maioria das
Delegações participantes na Conferência de Roma conseguiu obter a aprovação do
tratado em conformidade com propostas mais construtivas. Muitas Delegações
desejavam ver os crimes definidos com maior especificidade, coerência e
clareza, inserindo-se-lhes os princípios encontrados no direito penal
internacional e nos princípios fundamentais do direito penal, tais como nullum
crimen sine lege e nulla poena sine lege." (29) (grifo nosso).
A defesa acerca da consolidação da responsabilidade penal internacional
do indivíduo, embora tenha sido, como se pôde ver, propositadamente insistente
neste trabalho, não se circunscreve ao que já fora dito até aqui, pois é
preciso que fique sedimentada a consciência de tal fato já que se apresenta
clarividente no cenário jurídico da comunidade das nações. O Estatuto conduz a
este processo, configurando, conforme já dito por André de Carvalho Ramo, um
novo estágio da responsabilização penal internacional do indivíduo. Refletindo
o pensamento que se coaduna com o desenvolvimento desta defesa, aduz o
mencionado autor que:
"Esta responsabilidade individual internacional consiste na fixação,
pelo direito internacional, dos fatos considerados como típicos, tendo em vista
o consenso da comunidade internacional de que tais condutas violam valores
essenciais da mesma, que devem ser protegidos através do direito penal.[ ...]
Entretanto, a partir da 2ª Guerra Mundial, adicionou-se um novo elemento a esta
responsabilidade internacional penal do indivíduo: a persecução criminal de
indivíduos agindo em nome de Estados (agentes públicos) e em conformidade com
as leis locais" (30)
De fato, até o momento, com a exceção da já mencionada tentativa dos
vencedores da 1ª Guerra Mundial de julgar o kaiser Guilherme II e que restou
frustrada, as práticas ilícitas dos agentes públicos davam ensejo somente à
responsabilização do Estado. O Estatuto do Tribunal Militar de Nuremberg inovou
significativamente o tema, introduzindo um conceito revolucionário da
responsabilidade individual: os sujeitos ativos da infração podem ser pessoas
representando o Estado e agindo em seu nome. Esse novo conceito foi assaz
relevante e mesmo essencial para a punição de atos de atrocidade perpetrados
com o apoio do aparelho estatal que servia de cobertura para sua larga
consecução. Finaliza o autor suso citado que "o Direito Internacional, a
partir deste momento, nunca mais seria o mesmo em face da responsabilidade
internacional penal dos indivíduos." (31)
Razão assiste ao autor no tocante a inequívoca revolução que fez eclodir
no mundo jurídico internacional penal o propalado Tribunal de Nuremberg, notadamente,
conforme já dito, no que diz respeito à responsabilização penal internacional
da pessoa natural. Cabe, porém, ressalvar que pesam contra este Tribunal
Militar as críticas já mencionadas, que não são poucas, superficiais, tampouco
infundadas, a exemplo da quebra do princípio da legalidade, imparcialidade,
caráter altamente político, julgamento realizado por vencedores contra
derrotados etc. Todas elas, entretanto, fazendo-se justiça, não tiram o mérito
do Tribunal do pós-guerra de fazer nascer o verdadeiro embrião da
responsabilidade penal internacional. Esta que inevitavelmente deve incidir
sobre o indivíduo psiquicamente normal, portanto imputável, tomou corpo e
verdadeiramente se consolida com o advento do Estatuto de Roma. Novamente
suscita Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros oportuna reflexão, aduzindo que:
"Uma das principais qualidades do Estatuto reside na afirmação do
princípio da responsabilidade penal de indivíduos pela prática de delitos
contra o Direito Internacional[ ...] O Estatuto de Roma agrega, porém, um
contexto surpreendente. Pela primeira vez às definições dos crimes, um tratado
internacional acrescenta princípios gerais de Direito Penal e claras regras de
Processo Criminal. Esse acréscimo supre lacuna das Convenções de Genebra de
1949, sempre criticadas por terem dado muito pouca atenção às normas
substantivas e adjetivas da Ciência Jurídica Penal." (32)
Indubitavelmente, o Estatuto de Roma é um
instrumento internacional que, embora contenha imperfeições, está a salvo da
avalanche de críticas que solaparam os tribunais militares e ad hoc que o
precederam vez que construído de forma árdua, séria e com observância dos
princípios basilares do direito penal material e instrumental presentes em
todos os sistemas de direito.
Nas acertadas palavras do especialista em direito internacional, Tarciso
Dal Maso Jardim: "(...) a personalidade jurídica internacional do
indivíduo já é realidade. Contudo, o projeto da Corte Criminal Internacional
Permanente pode significar a consagração dessa personalidade, já que, ao
contrário dos demais tribunais criminais internacionais, esse será uma
instituição permanente com pretensões de universalizar a responsabilidade
penal." (33)
--------------------------------------------------------------------------------
4. CONCLUSÃO
Os crimes contra a humanidade sempre foram e são praticados no contexto
dos conflitos bélicos em que não raro restam impunes seus perpetradores. Em
Ruanda, e.g., pelas estimativas da ONU, milhares de mulheres foram estupradas
individualmente ou em grupo e violadas com objetos como pedaços de pau afiados
e canos de armas, sendo sexualmente escravizadas e mutiladas. Não se olvide do
genocídio que resultou na morte de mais de 800.000,00 tutsis e hutus, cruelmente
assassinados no contexto de um conflito de décadas.
Nesse cenário, é que se exige justiça, mediante a rigorosa condenação
dos autores dessas atrocidades, responsabilizando-os penalmente, a exemplo do
que ocorreu com o hutu Jean-Paul Akayesu, condenado pelo TPI para Ruanda por
crimes contra a humanidade, seqüestro, estupro e violência sexual naquele país;
bem como do ex-primeiro-ministro ruandês Jean Kambanda, igualmente hutu,
acusado de ter praticado genocídio, e condenado pela mesma Corte Penal
Internacional à prisão perpétua.
Com o advento do TPI Permamente, avança-se para o exercício mais
concreto dessa justiça atrelada à reprimenda penal, só que de forma bem mais
legítima. Sua chegada fez eclodir um novo capítulo no direito internacional e
no direito internacional penal. Seu instrumento legal, o Estatuto de Roma,
proporcionando e observando os princípios e garantias processuais asseguradores
de um julgamento justo, à luz do devido processo legal, auxiliará na prevenção
e repressão dos mais sérios abusos e violações dos direitos humanos, a fim de
evitar a impunidade quanto a estes crimes a partir da consolidação da
responsabilidade penal internacional da pessoa humana.
O Tribunal criado pelo Estatuto de Roma, ainda que esteja numa fase
inicial, já que entrou em vigor em 1° de julho de 2002, representa agora uma
realidade. E como nada positivamente resulta lamentar pelo seu
"atraso", o momento clama que se aproveite sua entrada em vigência e
que se trabalhe em prol do seu rápido desenvolvimento e muito mais que isso,
pela sua eficiência. Que não se poupem esforços no sentido de fazer com que
essa tão esperada instituição, cuja função voltada a proporcionar uma justiça
universal, traga o máximo de resultados concretos.
--------------------------------------------------------------------------------
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Rotilde Caciano de. Organização do trabalho intelectual: teoria
– técnica - prática. 3ª ed. Brasília: Revisores e Artes Gráficas, 1977.
ANNAN, Kofi. International Criminal Tribunal for Rwanda. About the
Tribunal. Disponível em: <http://www.ictr.org/about.htm> Acesso em:
14.02.2001.
BEHRENS, Hans-Jörg. Investigaçao, julgamento e recurso. In Tribunal Penal Internacional.
Org. por Fauzi Hassan Choukr, Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000.
BOBBIO, Norberto – Teoria do ordenamento jurídico. , 9ª. ed. Brasília:
Editora UnB, 1997.
CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte:
Del Rey, 1999.
DAOUD, Carolina Ghinato. O indivíduo como pessoa de Direito
Internacional Público e a Corte Internacional Penal. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1637>.
Acesso em: 12 jan. 2001.
DAVID, René. Os Grandes sistemas de direito contemporâneo. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
DUPUY, René-Jean. O
direito internacional. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. 2ª
ed. Campinas: Bookseller, 1998.
FRIEDMANN,
Wolfgang. Mudança na estrutura do direito internacional. São Paulo: Livraria
Freitas Bastos, 1971.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 3ª ed. São
Paulo: Editora Atlas S.A., 1996.
JARDIM, Tarciso Dal Maso. Corte criminal internacional: consagração da
pessoa humana como sujeito de direito internacional ou manutenção do status quo
das Nações Unidas. Disponível em: <http://dhnet.org.br/inedex.htm>.
Acesso em: 22 fev. 2001.
______________________. A importância da corte. Disponível em:
<http://dhnet.org.br/inedex.htm>. Acesso em: 22 fev. 2001.
JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. 5ª ed. Buenos Aires:
Losada, t. II, Título III, Cap. I.
KELSEN, Hans. Derecho y paz en las
relaciones internacionales. trad. por Florencio Acosta. México: Fondo de
Cultura Econômica, 1986.
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Bases para uma construção do conceito
de bem jurídico no direito penal internacional – a importância do estatuto de
roma. In Tribunal Penal Internacional. Org. por Fauzi Hassan Choukr, Kai Ambos.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
MATOS, José Dalmo Fairbanks Belfort de. Manual de direito internacional
Público. São Paulo: Saraiva: EDUC, 1979.
McCOMARCK, timothy L. H. e SIMPSON, Gerry J.The law of war crimes
national and international approaches. Kluwer Law International: The
Hague/London/Boston.
MEDEIROS,
Antônio Paulo Cachapuz. O tribunal penal internacional e a constituição
brasileira. http://www.dhnet.org.br.inedex.htm. 15.04.2001.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público
Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
NUNES, Antonio Rizzatto Nunes, Manual da monografia jurídica. São Paulo:
Editora Saraiva 1997.
QUINTANO RIPOLLÉS, Antonio. Tratado de derecho penal internacional e
internacional penal. Madrid: 1955. V. 1.
RAMOS. André de Carvalho. O estatuto do tribunal penal internacional e a
constituição brasileira. In Tribunal Penal Internacional. Org. por Fauzi Hassan
Choukr, Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
RANGEL, Vicente Marotta. Direito e relações internacionais. 4ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993.
REZEK, José Francisco, Direito internacional público: curso elementar,
7º edição, revista e atualizada – São Paulo: Saraiva, 1998.
RODRIGUES CARRIÓN, A. Leciones de derecho internacional público. Madrid:
Tecnos, 1990.
SANTOS, Antônio Raimundo dos. Metodologia científica: a construção do
conhecimento. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999.
STEINER, Sylvia Helena F. O perfil do juiz do tribunal penal
internacional. In Tribunal Penal Internacional. Org. por Fauzi Hassan Choukr,
Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
SUNGA, Lyal S. A competência ratione materiae da corte internacional
criminal: arts. 5 a 10 do estatuto de roma. In Tribunal Penal Internacional.
Org. por Fauzi Hassan Choukr, Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000.
TORRES, Luís Wanderley. Crimes de guerra – o genocídio. 2ª ed. São
Paulo: Editora Fulgor Limitada, 1967.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. – Direito das organizações
internacionais, Brasília: Escopo Editora, 1990.
--------------------------------------------------------------------------------
NOTAS
1 ANNAN, Kofi. International Criminal Tribunal for Rwanda. About the
Tribunal. Disponível em: <http://www.ictr.org/about.htm> Acesso em:
14.02.2001.
2 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. 2ª
ed. Campinas: Bookseller, 1998. p. 165.
3
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 1997. V.2, p. 816.
4 CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte:
Del Rey, 1999. p. 51-52.
5 McCOMARCK, Timothy L. H. e SIMPSON, Gerry J.The law of war
crimes national and international approaches. Kluwer Law International: The
Hague/London/Boston, p. 32.
6
QUINTANO RIPOLLÉS, Antonio. Tratado de derecho penal internacional e
internacional penal. Madrid: 1955. V. 1, p. 11.
7 JARDIM, Tarciso Dal Maso. A importância da corte. Disponível em:
<http://dhnet.org.br/inedex.htm>. Acesso em: 22 fev. 2001.
8 TORRES, Luís Wanderley. Crimes de guerra – o genocídio. 2ª ed. São
Paulo: Editora Fulgor Limitada, 1967. p. 11.
9 Com o refúgio do kaiser e ante a negativa de sua extradição pela
Holanda, sobraram acusados, da lista que foi reduzida por pressão do povo
alemão, apenas alguns supostos criminosos alemães que foram julgados na própria
Alemanha perante a fracassada Corte Suprema de Leipzig.
10 TORRES, op. cit., p. 15.
11 Tribunal Internacional para a Investigação de Pessoas Responsáveis
por Sérias Violações do Direito Internacional Humanitário Cometidos no
Território da Ex-Iugoslávia desde 1991 (doravante ICTFY).
12 Os crimes previstos pelo Estatuto da antiga Iugoslávia estão insertos
nos seus artigos 2 a 5.
13 Tribunal Criminal Internacional para a Investigação de Pessoas
Responsáveis por Genocídio e Outras Sérias Violações do Direito Internacional
Humanitário Cometidos no território de Ruanda e de Cidadãos Ruandeses
Responsáveis por Genocídio e Outras Violações Cometidas no Território de
Estados Vizinhos entre 1º de Janeiro de 1994 e 31 de Dezembro de 1994 (dorante
ICTR).
14 Os delitos previstos no Estatuto do TPI para Ruanda estão elencados
nos seus artigos 2 a 4.
15 Dupuy, René-Jean. O Direito Internacional. Editora
Arcádia, S.A.R.L. – Campos de Santa Clara, 160, 1993, pág. 54.
16 DAOUD, Carolina Ghinato. O indivíduo como pessoa de Direito
Internacional Público e a Corte Internacional Penal. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1637>. Acesso em: 12 jan.
2001.
17 Rezek, José Francisco, 1944. Direito internacional público: curso
elementar, 7º edição, revista e atualizada – São Paulo: Saraiva, 1998, pág.
157.
18 DAOUD, op. cit.
19
RAMOS. André de Carvalho. O estatuto do tribunal penal internacional e a
constituição brasileira. In Tribunal Penal Internacional. Org. por Fauzi Hassan
Choukr, Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 245-246.
20 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz. O tribunal penal internacional e a
constituição brasileira. http://www.dhnet.org.br.inedex.htm. 15.04.2001.
21 FRIEDMANN, Wolfgang. Mudança na estrutura do direito internacional.
São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1971, p. 127.
22 Fávia Piovesan é professora da Faculdade de Direito da PUC de São
Paulo e Procuradora do mesmo Estado.
23 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Bases para uma construção do
conceito de bem jurídico no direito penal internacional – a importância do
estatuto de roma. In Tribunal Penal Internacional. Org. por Fauzi Hassan
Choukr, Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 344.
24 O princípio da complementariedade, cuja previsão se encontra no
parágrafo 10 do preâmbulo e nos artigos 1° e 17 do Estatuto de Roma, tem lugar
quando se constata que a jurisdição nacional de um Estado não é confiável ou se
manifesta de forma ineficaz, aspectos que podem idicar a inépcia do seu sistema
judicial. Neste caso, confere-se preferência ao TPI para investigar, processar
e julgar o indivíduo que comete crime contra a humanidade, tomando para si a
condução da persecutio criminis.
25 STEINER, Sylvia Helena F. O perfil do juiz do tribunal penal
internacional. In Tribunal Penal Internacional. Org. por Fauzi Hassan Choukr,
Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 299.
26 BEHRENS, Hans-Jörg. Investigaçao, julgamento e recurso. In Tribunal Penal Internacional.
Org. por Fauzi Hassan Choukr, Kai Ambos. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000, p. 63..
27 BEHRENS, op. cit., p. 81.
28 JARDIM, op. cit..
29 SUNGA, op. cit., p. 193-194.
30 RAMOS, op. cit., p. 248.
31 RAMOS, op. cit., p. 249.
32 MEDEIROS, op. cit. 16.04.2001.
33 JARDIM, Tarciso Dal Maso. Corte criminal internacional: consagração
da pessoa humana como sujeito de direito internacional ou manutenção do status
quo das Nações Unidas. Disponível em: <http://dhnet.org.br/inedex.htm>.
Acesso em: 22 fev. 2001.
* Bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de Brasília-Unb, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de
Brasília – UniCeub, Delegado de Polícia Federal