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A impossível figura do homicídio hediondo simples
e inaplicabilidade
das normas previstas na Lei 8.072/90
JOÃO JOSÉ LEAL – Promotor de Justiça aposentado
1. Introdução: A Lei 8.072/90 e o
Equívoco de um Rótulo de Hediondez Obrigatória
Neste trabalho, após um rápido estudo introdutório acerca do “conceito”
(na verdade, a nosso ver, uma simples etiqueta legal) de crime hediondo adotado
pela Lei 8.72/90 - LCH, faremos uma análise do sentido do direito contido no
art. 1º, inciso I, desta Lei, que classifica uma inusitada forma de homicídio
simples, além de todas as hipóteses de homicídio qualificado, como crimes
hediondos. O foco de nossa análise interpretativa estará centrado na questão de
se saber se o conceito material de homicídio simples admite a adjetivação de
hediondo, com as conseqüências penais de maior severidade. Não será objeto de
nossa análise o homicídio qualificado, também classificado como infração
hedionda.[1]
Escudada no disposto no inciso XLIII, do art. 5º, da Constituição
Federal, a LCH considerou hediondos alguns crimes graves, já tipificados no
Código Penal ou em lei especial. Optou o legislador por atribuir a tais condutas
a marca da hediondez compulsória. A nova lei incorporou-se às normas incriminadoras
já existentes, transformando os crimes ali descritos em infrações de natureza
hedionda. Essas infrações, no entanto, não sofreram qualquer modificação em
suas respectivas estruturas típicas, conservando os mesmos elementos
descritivos e/ou normativos.
A LCH não criou novos tipos penais, assim caraterizados por sua natureza
hedionda. Também não conceituou o que é um crime hediondo. Fundamentada num
critério de política criminal bastante discutível, a lei em exame apenas
selecionou determinadas infrações da tipologia criminal preexistente para
qualificá-las com a marca legal da hediondez. Tipos penais que, conforme as
circunstâncias, podem apresentar um elevado grau de repugnância, mas nem sempre
(como, por exemplo, o homicídio, o latrocínio ou o estupro praticado com
extrema violência), foram igualados a outros de menor gravidade (como é o caso
do tráfico de pequena quantidade de maconha ou de um atentado ao pudor causado
por um beijo na boca da vítima ou por outros atos de libidinagem sem maior
violência). Foram todos nivelados pela cota mais elevada do critério de
reprovabilidade de uma conduta, para receberem a denominação legal de crimes
hediondos. Houve, na verdade, uma banalização do caráter de gravidade dessas
infrações.
Portanto, não temos, com base na LCH, um conceito legal de crime
hediondo, mas tão somente uma relação das infrações que passaram a receber essa
denominação legal. Ao classificá-las como crimes hediondos, partiu o legislador
do pressuposto de que, seja quem for seu autor, com sua personalidade e sua
conduta social antecedente; sejam quais forem os motivos, as circunstâncias e
as conseqüências do crime; seja, ainda, qual tenha sido o comportamento da
vitima, tais crimes serão sempre profundamente repugnantes e sórdidos.
Em conseqüência, deverão merecer sempre uma resposta punitiva
acentuadamente mais severa do que a prevista para as demais infrações penais.
Trata-se, portanto, de um critério puramente formal, que utilizou um
procedimento de mera colagem e que contraria a própria natureza das coisas,
pois a lei criou uma presunção compulsória do caráter profundamente repulsivo
do ato incriminado: de forma discricionária e apriorística, decidiu o
legislador marcar certas condutas criminosas, já tipificadas na lei positiva,
com o rótulo da hediondez absolutamente obrigatória.
A nosso ver esse critério meramente formal é inaceitável, porque parte de
uma premissa cientificamente duvidosa, ao presumir que as condutas assim
rotuladas legalmente carregam necessariamente em suas entranhas o caráter da
hediondez indiscutível. Do ponto de vista éticojurídico, em muitos casos não
será possível comprovar esse presumido maior grau de repugnância de um crime
hediondo assim conceituado aprioristicamente, em relação a outros crimes também
graves, por circunstâncias as mais diversas.
Qual, por exemplo, seria a diferença substancial entre um homicídio
simples, praticado contra criança de cinco anos de idade, ou com a agravante
de ser a vitima o filho do próprio sujeito ativo e uma extorsão mediante
seqüestro, ou um estupro, nestes dois últimos casos, sem que a vítima tenha
sofrido violência física de maior conseqüência? Numa escala mais apurada e
rigorosa de valores éticos, as duas hipóteses de homicídio, dependendo das
circunstâncias, podem ser mais graves e chocantes e, no entanto, a lei não as
considera hediondas.
2. Ausência do Homicídio no Rol Original dos Crimes Hediondos
Em sua versão original, a LCH relacionava como hediondos os seguintes crimes:
latrocínio; extorsão qualificada pela morte; extorsão mediante seqüestro e na
forma qualificada; estupro; atentado violento ao pudor; epidemia com resultado
morte; envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou
medicinal, todos do Código Penal e genocídio (Lei n.º 2.889/56).
Além destas infrações, a LCH cominou o mesmo tratamento repressivo de maior
severidade ao à tortura, ao terrorismo e ao tráfico ilícito de drogas, que
denominamos de crimes hediondos constitucionais, porque expressamente previstos
no referido dispositivo constitucional.
A omissão do legislador de 1990, que deixou de incluir o homicídio
doloso, principalmente o qualificado, no rol dos crimes hediondos, representou
o grande equívoco da LCH: o mais grave dos crimes, "o ponto culminante na
orografia dos crimes",[2] não havia recebido o rótulo legal da hediondez.
Esse evidente paradoxo constituiu-se no principal argumento do discurso crítico
à nova lei repressiva. Se o crime maior não havia recebido a marca legal de
tal estigma, sob o prisma do princípio constitucional da igualdade, como se
poderia defender a legitimidade da LCH, que havia selecionado alguns tipos
penais, de gravidade discutível, para dar-lhes o adjetivo jurídicopenal de
hediondos?
Para Francisco de Assis Toledo,[3] não havia dúvida de que a ausência do
homicídio no rol dos crimes hediondos representava um verdadeiro contra-senso
que precisava ser evitado, pois afrontava à mais elementar regra da lógica
jurídica. Essa situação verdadeiramente paradoxal foi ressaltada, também, por
Antônio Monteiro Lopes para quem a omissão não poderia encontrar nenhuma
resposta satisfatória. Ao comentar a ordem emanada do comando normativo em
exame, escreveu que a única resposta objetiva que se poderia encontrar é a de
que a lei assim o quis.3
Com a promulgação da Lei n. 8.930/ 94, o texto original foi modificado
para incluir o homicídio simples, quando cometido em "atividade típica de
grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente" e o qualificado
(em quaisquer de suas hipóteses), como uma nova espécie de crime hediondo. A
lacuna estava, portanto, suprida.
3. Combate ao Genocídio da Marginalidade Urbana
Não há dúvida de que a Lei 8.930/94 teve sua origem num fato notório e de
grande repercussão nacional: o assassinato da atriz de televisão Daniela Peres,
cuja mãe, autora de novelas, com o apoio dos meios de comunicação social,
conseguiu articular um forte movimento de motivação da opinião pública, em
favor da inclusão do homicídio na relação dos crimes hediondos.
No entanto, não se pode negar, também, que ao incluir, no rol dos crimes
hediondos ordinários, o homicídio simples praticado "em atividade típica
de grupo de extermínio", o legislador de 1994 pretendeu atingir os
sinistros autores da matança urbana que tomou conta dos maiores aglomerados
urbanos de nosso país. Na verdade, a violência urbana das grandes cidades
brasileiras, que vem ceifando milhares de vidas a cada ano,4 marcada por formas
de execução as mais perversas e aterrorizantes, atingiu níveis incontroláveis.
As execuções sumárias de "bandidos" e "criminosos
perigosos"; os ajustes de contas entre traficantes e membros de quadrilhas
rivais; "as queimas de arquivo"; a simples eliminação de vidas
humanas por vingança ou "espírito justiceiro", enfim, a banalização
da ação homicida, geralmente praticada por quadrilhas, bandos ou grupos de
extermínio que marcam de forma sinistra o cotidiano carioca, paulistano e de outros
grandes aglomerados urbanos brasileiros, contribuíram também para motivar os
autores da Lei n.º 8.930/94. Entendeu o legislador que era preciso estancar
esse morticínio desenfreado e cruel, essa verdadeira guerra urbana que se
trava à margem da ação e do poder do Estado.
E o fez, mais uma vez, através de uma medida puramente repressiva,
inserindo o homicídio qualificado e uma estranha forma de homicídio simples na
rigorosa lista dos crimes hediondos. Com o homicídio rotulado de hediondo,
acreditou-se que o quadro do Direito Penal da severidade estaria pronto para
exercer sua função de aplicar maior dose de castigo prisional, na equivocada
crença de reduzir os alarmantes índices da criminalidade violenta.
Na verdade, a Lei 8.930/94, cujo texto foi incorporado à LCH (art. 1º,
inciso I), criou uma figura de difícil (a nosso ver, de impossível)
compatibilização com a realidade jurídicopenal existente. Por isso, trouxe
consigo sérios problemas de hermenêutica para o intérprete. É o que veremos a
seguir.
4. Assassinar em Atitude de Grupo de Extermínio é Hipótese Jurídica
Incompatível com o Conceito de Homicídio Simples
4.1 Homicídio Simples Hediondo e a Ilusão do Combate à Violência por Meio
de Simples Instrumento Repressivo
Admitida a necessidade e legitimidade de se punir, de forma mais
rigorosa, o autor do crime de homicídio praticado em atividade típica de grupo
de extermínio, deve-se reconhecer que a solução adotada pela Lei n.º 8.930/94,
seja sob o prisma formal ou substancial, não foi feliz.
Não há dúvida de que é preciso combater esse verdadeiro genocídio da marginalidade
urbana; essa terrível matança cotidiana que se abate principalmente sobre os
moradores de favelas, de ruas, de praças e de viadutos deste contraditório país
em que vivemos, sejam eles bandidos perigosos, pretensos criminosos ou, o que
é mais terrível porque constituem a grande maioria, simples cidadãos da miséria
e da desgraça social e que, por esta condição, carregam consigo o estigma da
marginalidade e de vítimas potenciais dessa hedionda prática de extermínio.
No entanto, a história tem demonstrado que a lei repressiva não tem sido,
por si só, o melhor instrumento para correto combate à criminalidade. Tanto é
que, no caso em exame, a lei existente já punia o homicídio de forma
relativamente severa (ao menos quanto ao máximo da pena cominada), marcos
punitivos que foram mantidos nos limites fixados pelo legislador penal de 1940:
seis a vinte anos de reclusão.
É sabido que, para reduzir o alto índice de homicídios cometidos em ações
de extermínio ou de qualquer tipo de violência, não basta incriminar condutas
ou aumentar a pena das condutas já incriminadas, muito menos a simples
classificação da conduta como crime hediondo. No caso concreto, o instrumento
jurídicopenal revelou-se inócuo e despropositado, pois é evidente que a redução
do elevado índice de assassinatos e de execuções sumárias, verificado nos
grandes centros urbanos brasileiros, somente será alcançada com a adoção de
sérias medidas no plano socio-econômico e político.
4.2 Natureza JurídicoFormal: Apêndice Circunstancial do Homicídio Simples
Problema que ainda desafia a doutrina e a jurisprudência reside na
dificuldade de identificar, com clareza, a verdadeira natureza jurídicopenal da
circunstância que atribui ao homicídio simples a marca de crime hediondo. Com a
nova disposição legal, passamos a contar com duas categorias de homicídio
simples: o comum e o hediondo, este quando praticado em atividade típica de
grupo de extermínio. Para Damásio de Jesus, neste último caso, temos a figura
do "homicídio hediondo condicionado".5
É lógico que a circunstância de matar em atividade típica de grupo de
extermínio não pode ser uma elementar do crime de homicídio, mas poderia ter
sido legalmente assim classificada ou, então, incluída no rol das
qualificadoras, das majorantes especiais ou das agravantes. Formalmente,
qualquer delas seria compatível com o seu sentido semântico. Não há dúvida de
que, apesar da ambigüidade e imprecisão do texto legal em exame, que exige
adequada definição de seu verdadeiro significado semântico e jurídico, a
referida circunstância poderia muito bem ter sido legalmente enquadrada como
mais uma qualificadora, causa especial de aumento ou agravante.
Entretanto, não foi isto o que ocorreu. O novo dispositivo legal, de
forma esdrúxula, acrescentou ao homicídio simples uma nova circunstância que
não tem similar no direito penal vigente: não é qualificadora, não é causa
especial de aumento de pena, nem é agravante. E isto por uma simples razão de
natureza técnicojurídica: matar alguém em atitude típica de grupo de
extermínio transforma o tipo básico do art. 121, caput, do CP, em homicídio
simples hediondo, mas não acarreta aumento obrigatório da pena aplicada.
Trata-se, em síntese, de um inusitado e desnecessário apêndice
circunstancial, acrescentado ao homicídio simples, para lhe marcar o caráter da
hediondez legal e com o fim específico de proibir o direito à anistia, graça,
fiança, liberdade provisória e à progressão de regime prisional. É, portanto,
uma circunstância extravagante, normativa e agravadora do homicídio simples.
É uma circunstância extravagante porque não integra diretamente a
descrição típica do homicídio simples (art. 121, caput do CP), conectando-se
com a norma codificada através da regra contida no art. 1º, inciso I, da LCH. É
circunstância normativa, de natureza sócio-cultural, porque a sua compreensão
depende de processo hermenêutico de caráter sociológico, que proporcione ao
julgador o verdadeiro sentido da norma em exame. É, também, circunstância
agravadora (mas não agravante), por estabelecer medidas penais de maior
severidade ao autor de crime hediondo.
Em seu já citado estudo, Damásio de Jesus também entende que a "Lei
n. 8.930 não criou uma figura típica de crime de homicídio. Não há um novo
tipo simples ou qualificado. Ter sido a morte da vítima executada em atividade
típica de grupo de extermínio não é elementar e nem circunstância do crime de
homicídio".6
4.3 Técnica Legislativa Imprecisa
O dispositivo legal em referência pode também ser criticado pela
deficiente técnica legislativa adotada. Descreve a circunstância fática em tela
de forma ambígua, imprecisa e sem a objetividade e clareza exigida de uma norma
jurídica de natureza penal.
Afinal, que tipo de conduta pretendeu descrever o legislador, através da
expressão matar alguém "em atividade típica de extermínio?". Seguramente
não foi enquadrar a eventual conduta homicida cometida por dois ou mais
agentes, membros ou não de uma quadrilha ou bando. Um homicídio simples,
praticado em concurso por cinco agentes, não será necessariamente hediondo, nos
termos do art. 1º, inciso I (1ª parte), da LCH, com a nova redação da Lei n.º
8.930/94. Também não será hediondo o eventual homicídio simples praticado por
membros de uma quadrilha de traficantes ou assaltantes. Se o legislador
quisesse atingir este tipo de conduta, bastaria acrescentar, ao rol das
qualificadoras descritas no § 2º, do art. 121, do CP, uma outra consistente na
prática do crime mediante concurso de dois ou mais agentes, como ocorre em relação
aos crimes de furto e de roubo qualificado. Enfim, não é o fato de ter sido
praticado por dois ou mais autores que haverá de caracterizar a circunstância
da atividade típica de grupo de extermínio e tornar o homicídio simples
obrigatoriamente hediondo.
Na verdade, o objetivo da lei é o de considerar hediondo o homicídio
simples praticado por qualquer "justiceiro", pistoleiro de aluguel ou
membro de esquadrões da morte, que semeiam a violência e matam motivados por
uma sinistra intenção de extermínio de indivíduos marcados para serem
eliminados do contexto. Um só agente poderá cometer um homicídio simples
hediondo, em atividade típica de grupo de extermínio. Basta que a ação
homicida tenha por motivo a idéia de extermínio de vítimas consideradas
perigosas ou simplesmente indesejáveis para o meio social.
Assim sendo, não há necessidade de ter sido o homicídio diretamente
praticado por um grupo de extermínio, embora esta seja a forma mais freqüente.
É suficiente um só agente, desde que se conduza motivado pela idéia de integrar
uma ação coletiva de extermínio; ou seja, que o agente mate com a vontade de
contribuir, com seu crime, para a ação coletiva de matança dos "bandidos
perigosos e indivíduos indesejáveis".
Na prática, será muito difícil identificar, com precisão, quando o
homicídio simples deve receber a capa da hediondez, por ter sido praticado em
atividade específica de grupo de extermínio. Não estamos nos referindo às
hipóteses em que o crime é praticado diretamente por um esquadrão da morte ou
por um grupo de justiceiros ou pistoleiros a soldo de comerciantes e contraventores.
Estas hipóteses seriam perfeitamente enquadráveis na disposição legal em
análise.
A dificuldade surgirá quanto ao significado jurídicopenal da expressão
atitude típica de grupo de extermínio. Por analogia, se aceitarmos o mesmo
sentido jurídico adotado em relação ao crime de quadrilha ou bando, grupo de
extermínio só existirá com a reunião de três ou mais agentes, atuando para
matar de forma indiscriminada.
A dificuldade persistirá, também, em relação ao homicida que age individualmente,
mas motivado por esta psicose coletiva de que é preciso exterminar o
banditismo, para que possa haver segurança coletiva. Aliás, a lei é expressa ao
admitir a prática individual de um homicídio em atitude típica de grupo de
extermínio. Mesmo que o agente venha a se conduzir com a vontade dirigida para
o fim de se incorporar ao perverso movimento coletivo de banalização da ação
homicida e de extermínio dos que não servem para viver em sociedade, será
muito difícil, ainda assim, demonstrar que esta conduta individual enquadra-se
no paradgima legal da atitude típica de grupo de extermínio. Parece-nos que
afronta a lógica jurídica jurídica a pretensão legal de equiparar um
comportamento individual a um outro de natureza grupal.
Cremos que a circunstância descrita na norma em exame, na verdade,
configura uma hipótese de um homicídio qualificado por motivo torpe, conforme
veremos a seguir.
4.4 Matar em Atividade Típica de Extermínio é Qualificadora do Homicídio
Cremos que o equívoco maior do dispositivo legal sob análise consiste no
fato de que um homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio,
será sempre um homicídio qualificado pela circunstância subjetiva do motivo
torpe (perversidade, futilidade, ódio intenso ou inveja profunda, vingança,
preconceito racial ou social, conduta mediante pagamento ou promessa de
recompensa, intolerância extrema etc.), ou pela circunstância objetiva do meio
insidioso (tortura, crueldade, traição ou qualquer meio que dificulte a defesa
da vítima).
Na verdade, o fato de pertencer a um grupo ou movimento que prega a idéia
de que é necessária e legítima a eliminação sumária de "bandidos perigosos"
e de marginalizados indesejáveis e de, efetivamente, cometer tais condutas perversas
e aterrorizantes, mediante conduta típica de grupo de extermínio, já configura
um indiscutível e execrável motivo torpe, suficiente para qualificar legalmente
tais ações homicidas.
Da mesma forma, o fato de matar com o objetivo de simplesmente exterminar
pessoas pertencentes a determinada categoria socio-econômica (adultos e menores
de conduta marginal e anti-social), ou portadoras de determinado estigma
sócio-jurídico ("bandido perigoso" ou "criminoso
irrecuperável"), representa um verdadeiro genocídio da marginalidade urbana
e configura, também, segundo entendemos nós, indiscutível qualificadora
subjetiva ou objetiva do homicídio.
Se assim é, deve-se reconhecer que a hipótese prevista na parte inicial
do art. 1º, da Lei n.º 8.930/94, contrariou toda a filosofia punitiva da
própria LCH. No afã de punir mais severamente o autor de tais condutas, o
legislador criou uma grave antinomia entre as duas hipóteses de homicídio
hediondo referidas no dispositivo legal em exame. Na primeira hipótese, a norma
descreve uma circunstância que, por sua natureza, conforme vimos, já seria
qualificadora do homicídio, mas este é preservado no seu tipo básico, ou seja,
o tipo continua sendo o do homicídio simples, com a pena mantida em seis anos,
no mínimo, mas agora marcado pelo rótulo legal da hediondez.
A contradição é evidente. Parece-nos muito difícil a ocorrência de um
homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, que não possa
ser enquadrado numa das qualificadoras subjetivas ou objetivas, relacionadas no
§ 2º, incs. 1 a V, do art. 121 do CP. Neste caso, deverá prevalecer a figura do
homicídio qualificado, o que demonstra a inocuidade da nova figura do homicídio
simples hediondo (praticado em atividade típica do grupo de extermínio).
Em termos de prática jurídica, esta nova figura é completamente inútil, a
não ser que, espancando o mais elementar princípio de lógica jurídica, tenhamos
a figura do homicídio cometido por um evidente motivo torpe ou por um meio
insidioso, considerado como homicídio simples, em decorrência de ter sido
cometido em atividade típica de grupo de extermínio. Isto seria um verdadeiro
contra-senso.
Por isso mesmo, quem matar alguém em atividade típica de grupo de
extermínio, muito dificilmente sentará no banco dos réus para responder por
homicídio hediondo simples.
João José Leal é professor dos Programas de Mestrado e de Doutorado do
Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da UNIVALI – Itajaí – SC. Promotor
de Justiça aposentado. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC. Ex-Diretor do
Centro de Ciências Jurídicas da FURB – Blumenau. Sócio do IBCCrim e da AIDP.
Bibliografia
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro : Forense,
1959. v. 5.
JESUS, Damásio de. O homicídio simples. Crime hediondo e júri. Tribuna do
Direito, maio/1995, p. 29
LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei
8.072 como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: 2003.
TOLEDO, Francisco de Assis. Crimes
hediondos. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre : SAFe, v. 5, abr./jun.
1992, p.60.
[1] Para um estudo mais detalhado acerca
do homicídio como crime hediondo, ver: LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei
8.072 como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: 2003, p. 97-115.
[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código
Penal. Rio de Janeiro : Forense, 1959. v. 5, p. 25..
[3] TOLEDO, Francisco de Assis. Crimes
hediondos. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre : SAFe, v. 5, abr./jun.
1992, p.60.
4 Nos últimos anos, a taxa de homicídios
da Grande São Paulo e do Grande Rio tem sido superior a 6.000 mortos, anualmente.
Ver, sobre o assunto: Folha de S. Paulo, de 05.05.98, 3-7 e de 09.09.98, 3-9).
5 O homicídio simples. crime hediondo e júri. Tribuna do Direito, p. 29,
maio/1995.
6 Idem, p. 29.
Fonte: http://www.epm.org.br/SiteEPM/Artigos/artigo.38.10.3.htm. Acessado em cinco de abril de 2005.