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A
Corte Criminal Internacional
Possibilidades de adequação do Estatuto de Roma à ordem constitucional
brasileira
1.Introdução
O presente trabalho foi elaborado a partir de convite feito pela Professora
Ester Kosowski, que pretendia, dessa maneira, homenagear um amigo comum: o
Professor João Marcello de Araujo Jr., prematuramente falecido em 14 de outubro
do ano passado e sepultado, por coincidência, em um “Dia do Mestre”.
O convite gerou um misto de alegria e de preocupação. De um lado, a satisfação
de poder homenagear aquele que me fez dar os primeiros passos no mundo do
Direito Penal. De outro, a dúvida sobre qual a melhor maneira de fazê-lo,
elaborando trabalho que se relacionasse com a magnífica obra intelectual do
Professor João Marcello.
O tema não poderia ser outro, afinal, foi-me apresentado em dezembro de 1994,
em Conferência organizada pelo Istituto Superiore Internazioinale di Scienze
Criminali (ISISC), em Siracusa, Itália. Ele era diretor deste instituto de
pesquisa e convidou-me para que, junto com ele, participasse de evento denominado
“International Experts Conference on International Criminal Justice:
Historic and Conteporary Perspectives”.
Um ano após, fui em sua companhia, novamente para Itália, a um seminário que
também tratasse do estabelecimento de uma Corte Criminal Internacional. Dessa
organizado pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza, na capital
italiana, denominava-se “Daí Tribunali Penali Internazionali Ad Hoc A Una
Corte Permanente”.
Essas duas semanas em que estive na Península Itálica, em anos seguidos, foram
excepcionais oportunidades de desenvolvimento intelectual e científico. Mais do
que isso, foram momentos de intensa e agradável convivência com o inesquecível
Professor João Marcello, homem capaz de ensinar também assuntos ligados às
ciências jurídicas, mas, principalmente, um professor de vida.
Quis o destino, ainda, que eu participasse da última palestra de sua vida,
ocorrida durante o “II Encontro de Direito Penal e Processo Penal da
Unigranrio”, no dia 2 de outubro de 1999, no teatro do Palácio Quitandinha, em
Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. Fui designado para comentar exposição
desse mestre sobre a criação da Corte Criminal Internacional, apenas 12 dias
antes do seu falecimento.
Por todas essas razões intelectuais e afetivas, não poderia tratar de outro
tema que não fosse o surgimento da Corte Criminal Internacional, ao qual tanto
se dedicou o Professor João Marcello ao longo dos últimos anos de sua vida,
tanto que deixou obra ainda não publicada denominada “Direito Penal
Internacional - O Tribunal Penal Internacional e a Cooperação Penal
Internacional”.
Essa, então, é a minha homenagem ao meu mestre, amigo e exemplo.
2.A Corte Criminal Internacional Permanente
A globalização econômica, com todos os seus reflexos econômicos, sociais e culturais,
tem gerado uma série de mudanças em todos os ramos da vida humana. O Direito,
por óbvio, não poderia quedar inerte diante disso.
De certo, um dos campos emergentes tem sido a internacionalização do Direito,
mais especificamente, aquilo que Antonio Augusto Cançado Trindade chama de
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Este processo, no entanto, não é tranqüilo e, muito menos, unânime, enfrentando
críticas, por vezes, ácidas. Deve-se ressalvar que o processo de integração e
globalização ocasiona uma revisão de conceitos, até então, pacíficos.
Um dos campos que tem sido objeto de inovações tem sido o Direito Penal, que
passado por um processo acelerado e, talvez, drástico de internacionalização.
Isso tem se devido ao fato do século XX vem sendo marcado por guerras,
violações a direitos humanos e terrorismo, que constituem as violações mais
graves que conhece a Humanidade.
Por esse motivo, já se produziu um sem-número de tratados internacionais que
pretenderam reprimir essas práticas, mas muito pouca efetividade se pôde
atingir. A criminalidade internacional ainda carece de uma definição mais clara
e precisa, além de não existir um sistema internacional de justiça que possa
aplicar o direito àquelas violações mais graves que atentam contra a
humanidade.
A idéia para a criação de tal Corte não é nova e os esforços para o seu
estabelecimento têm aumentado através dos anos. Há precedentes que, no entanto,
são de tribunais penais internacionais Ad Hoc, que surgiram com alguma
função específica ou com algum objetivo preestabelecido. De toda maneira, foi
de remarcada importância o fato de terem existido, em que pesem todos os
problemas, dificuldades e perplexidades que deles decorreram. Não se deve mais
pensar em estabelecer jurisdições temporárias em suas pretensões e em sua
própria natureza, que não são, sob qualquer aspecto, a solução adequada para a
proteção dos direitos fundamentais.
Utilizando-se dessa experiência internacional, deve-se chegar a uma estrutura
permanente, na qual se possa aplicar o direito penal internacional com
consistência e com objetividade, para que se possa permitir a garantia do
devido processo legal.
Ao lado disso, a Organização das Nações Unidas criou os Tribunais Criminais
Internacionais, para processar e julgar os autores das atrocidades cometidas na
antiga Iugoslávia e em Ruanda, aonde disputas internas deram esteio a violações
graves de direitos humanos, tendo ocorrido inclusive o que a Comissão nomeada
pelo Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, em atenção ao
determinado na Resolução 780 (1992) do Conselho de Segurança, chamou de
“depuração étnica”.
Por isso, a criação de tais tribunais ad hoc sugere que passa a haver uma idéia
geral no sentido de que se estabeleça a Corte Criminal Internacional para julgar
as chamadas violações graves do Direito Penal Internacional, o que,
anteriormente, não havia.
Neste sentido, em 1995, a Assembléia Geral das Nações Unidas estabeleceu um
Comitê Preparatório do Anteprojeto de Estatuto para uma Corte Criminal Internacional
Permanente, adotado pela Comissão de Direito Internacional, em 1994. O Comitê
Preparatório, aberto a todos os membros das Nações Unidas, bem como aos membros
das agências especializadas, foi incumbido, na 50ª Sessão, de preparar um texto
consolidado de uma convenção internacional, que pudesse ser largamente aceita,
para a criação de uma Corte Criminal Internacional. Este texto deveria ser
levado à consideração de uma Conferência de Plenipotenciários.
Essa Conferência Diplomática se deu em Roma, de 15 de junho a 17 de julho de
1998, quando foi aprovado o Estatuto que constitui a Corte Criminal
Internacional Permanente. Em seus 128 artigos, delegados representando 162
Estados-Membros das Nações Unidas aprovaram o texto que consolida um anseio da
Comunidade Internacional já antigo. Nesta Conferência, apenas a título
ilustrativo, participaram representantes de 260 outras organizações
não-governamentais, muitas delas que têm como objetivo e razão de existir a
criação da Corte.
A Corte foi aprovada com 120 votos a favor, 7 contrários (Estados Unidos,
Filipinas, China, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia), além de 21 abstenções. O
passo seguinte é fazer com que a Corte possa efetivamente existir e cumprir a
sua necessária tarefa na proteção dos direitos humanos contra as violações
graves. Para tanto, conforme disposto no artigo 126 do Estatuto Roma, este
documento estará depositado em Nova Iorque, na sede das Nações Unidas,
aguardando que, ao menos, 60 Estados possam a ele aderir até o dia 31 de
dezembro de 2000.
Até 27 de dezembro de 1999, já houve 92 Estados que se tornaram signatários do
Tratado, bem como 6 ratificações. São eles, em ordem alfabética: África do Sul
(17/7/1998); Albânia (18/7/1998); Alemanha (10/12/1998); Andorra (18/7/1998);
Angola (7/0/1998); Antigua e Barbuda (23/10/1998); Argentina (8/1/1999);
Armênia (1º/10/1999); Austrália (9/12/1998); Áustria (7/10/1998); Bangladesh
(16/9/1999); Bélgica (10/9/1998); Benin (24/9/1999); Bolívia (17/7/1998);
Burkina Faso (30/11/1998); Burundi (13/1/1999); Bulgária (11/2/1999); Camarões
(17/7/1998); Canadá (18/12/1998); Chad (20/10/1999); Chile (11/9/1998); Chipre
(15/10/1998); Colômbia (10/12/1998); Congo (17/7/1998); Costa do Marfim
(30/11/1998); Costa Rica (7/10/1998); Croácia (12/10/1998); Dinamarca (25/9/1998);
Djibouti (7/10/1998); Equador (7/10/1998); Eritrea (7/10/1998); Eslováquia
(23/12/1998); Eslovênia (7/10/1998); Espanha (18/7/1998); Estônia (27/12/1999);
Fiji (29/10/1999 - também depositou, nesta data, documento de ratificação);
Finlândia (7/10/1998); França (18/07/1998); Gabão (22/12/1998); Gâmbia
(4/12/1998); Gana (18/7/1998- tendo depositado o documento de ratificação em
20/12/1999); Geórgia (18/7/1998); Grécia (18/7/1998); Haiti (26/2/1999);
Holanda (18/7/1998); Honduras (7/10/1998); Hungria (15/1/1999); Ilhas Maurício
(11/11/1998); Ilhas Salomão (3/12/1998); Irlanda (7/10/1998); Islândiia
(26/8/1998); Itália (18/7/1998 - tendo depositado o documento de ratificação em
26/7/1999); Jordânia (7/10/1998); Kyrgystan (8/12/1998); Lesoto (30/11/1998);
Letônia (22/4/1999); Libéria (17/7/1998); Liechtenstein (18/7/1998); Lituânia;
Luxemburgo (13/10/1998); Macedônia (7/10/1998); Madagascar (18/7/1998), Malavi
(2/3/1999); Mali (17/7/1998); Malta (17/7/1998); Mônaco (18/7/1998); Namíbia
(27/10/1998); Niger (17/7/1998); Noruega (28/8/1998); Panamá (18/7/1999);
Paraguai (7/10/1998); Polônia (9/4/1999); Portugal (7/10/1998); Quênia
(11/8/1999); Reino Unido (30/11/1998); República Central Africana (7/12/1999);
República Tcheca (13/4/1999); Romênia 7/7/1999); Samoa (17/7/1998); San Marino
(18/7/1998 - tendo entregue o documento de ratificação em 13/5/1999); Santa
Lúcia (27/8/1999); Senegal (18/7/1998 - tendo entregue o documento de
ratificação em 2/2/1999); Serra Leoa (17/10/1998); Suécia (7/10/1998); Suíça (18/7/1998);
Tajiquistão (30/11/1998); Trinidad e Tobago (23/3/1999 - tendo entregue o
documento de ratificação em 6/4/1999); Uganda (17/3/1999); Venezuela
(14/10/1998); Zâmbia (17/7/1998) e Zimbabwe (17/7/1998).
Como se pode perceber, o Brasil ainda não assinou o Tratado e, muito menos,
ratificou. Para fazê-lo, o Brasil precisará superar duas grandes contradições
que têm sido apontados com o texto da vigente Constituição Federal. São eles a
previsão de entrega de nacionais para julgamento pela Corte - que contrariaria
a vedação à extradição de Nacionais -, bem como a possibilidade de pena de
prisão perpétua.
O que se pretende neste trabalho é discutir a questão da criação da jurisdição
penal internacional, como instrumento de proteção dos direitos fundamentais.
Deve-se ressalvar que tal tema é de remarcada importância, em que pese haver
uma série de críticas, é uma realidade cada dia mais próxima e inafastável.
Como se pode notar, o Brasil ainda não assinou, que dirá ratificou o Tratado de
Roma. Mais grave, ainda não iniciou seriamente um discussão a respeito.
Desta maneira, abordar-se-á, aqui, alguns dos fundamentos teóricos que permeiam
a discussão acerca da Corte Criminal Internacional, em especial no que se
refere a alguns aspectos de remata relevância para a estrutura do Direito
Público. Esse fundamentos estão a merecer uma reavaliação e, mesmo, uma nova
caraterização.
3.Antecedentes Históricos
O primeiro Tribunal Penal Internacional de que se tem notícia reuniu-se em
1474, em Breisach, na Alemanha, formado por 27 juízes do Sacro Império
Romano-Germânico, tendo julgado e condenado Peter von Hagenbach, por violações
de “leis Divinas e Humanas”, já que havia autorizado que suas tropas
estuprassem, matassem civis inocentes e pilhassem propriedades.
Essa idéia renasceu com força após o fim da Primeira Guerra Mundial. As
atrocidades nela cometidas levaram a um repúdio por parte da comunidade
internacional.
Sobre o ponto, João José Leal afirmou:
“Esse natural sentimento de justiça decorria também da consciência de que
os principais responsáveis pela guerra haviam, sem qualquer justificativa,
violado as regras mais elementares da convivência entre os povos, das relações
internacionais, dos tratados e convenções entre as nações, do costume e das
leis da guerra e, acima de tudo, da moral universal. Os governantes das
principais nações não escaparam ao condicionamento desse expressivo e
generalizado movimento de idéias em favor da paz e de uma justiça repressiva
supranacional para julgar os autores de crimes de guerra e contra a humanidade,
cometidos durante aquele sinistro período da história mundial”.
Com base nessa realidade, o Tratado de Versalhes estabeleceu que o Kaiser
Guilherme II havia violado as leis da guerra e, portanto, deveria ser preso e
processado criminalmente (art. 228). Vale dizer que, diversamente do anunciado,
as potências vencedoras não tinham real interesse em ter o antigo Imperador
germânico julgado por uma Corte. Por isso, ele passou o resto de sua vida
refugiado em um castelo nos Países Baixos. Deve-se ressaltar que as autoridades
holandesas jamais o entregaram, até porque ninguém jamais solicitou.
Da mesma maneira, os Aliados não se interessaram em criar o Tribunal previsto
para o julgamento dos criminosos de guerra alemães, tanto assim, que em seu
lugar, o Supremo Tribunal Alemão foi autorizado a promover o julgamento. Os
20.000 acusados foram reduzidos a apenas 895, porém o Procurador Geral alemão
concluiu que era impossível julgar um número tão grande de réus, daí porque tal
número foi reduzido a 45, mas somente 21 foram julgados e 13 condenados a pena
máxima de 3 anos.
A impunidade foi, também, a conseqüência do massacre de 600.000 armênios pelos
turcos. A Comissão que investigou as violações das leis e dos costumes da
guerra, em 1919, recomendou que os militares turcos responsáveis fossem
julgados. Ocorre que o Tratado de Sèvres (1923), que serviria de base para o
julgamento, nunca foi ratificado e, pelo Tratado de Lausanne (1927), os turcos
acabaram anistiados. A verdade é que os turcos eram necessários para impedir a
passagem de navios soviéticos para o Mar Mediterrâneo.
Em 1937, a Sociedade das Nações adotou uma Convenção sobre o Terrorismo. O
protocolo dessa Convenção continha o Estatuto de um Tribunal Penal
Internacional. No entanto, a Índia foi o único Estado que ratificou tal
Convenção, que, dessa maneira, nunca entrou em vigor.
Foi somente depois da Segunda Guerra Mundial que surgiram jurisdições penais
internacionais, com a criação de quatro Tribunais Ad Hoc, os de
Nuremberg, de Tóquio, para a Antiga Iugoslávia e para Ruanda, o que será visto
em seguido.
4.Os Tribunais Penais Internacionais
Depois da Segunda Guerra Mundial, os Aliados estabeleceram dois Tribunais
Penais Internacionais - em Nuremberg e em Tóquio - para processar e julgar os
criminosos de guerra. No entanto, a inexistência de um precedente do período
entre guerras fez com que se discutisse fortemente a legalidade de tais
julgamentos. Bassiouni afirma que tão grave quanto esta questão foi o fato de
não ter havido qualquer membro das forças militares das potências vencedoras
daquele conflito armado sendo processado.
Dos dois Tribunais, certamente o mais relevante foi o de Nuremberg, seja pela
sua repercussão seja pela sua inovação. Os antigos membros do Estado alemão
foram julgados pela prática de quatro delitos, a saber:
a) plano comum ou conspiração (common plan or conspiracy);
b) crimes contra a paz (crimes against peace);
c) crimes de guerra (war crimes);
d) crimes contra a humanidade (crimes against humanity).
A conspiracy é uma figura delituosa do direito anglo-americano, sem
paralelos no direito de tradição européia continental, com contornos
semelhantes à quadrilha ou bando do direito brasileiro.
Os crimes contra a paz se referem à direção, à preparação e ao desencadeamento
de uma guerra de agressão, bem como o seu prosseguimento. Tal crime já havia
sido previsto pelo Pacto Briand-Kellog (Paris, 27 de agosto de 1928), sem que
houvesse sanção prevista.
Já os crimes de guerra eram as violações às leis e aos costumes da guerra.
Compreendiam, sem serem limitadas por leis ou costumes, o homicídio, os
maus-tratos ou a deportação para trabalhos forçados de populações civis dos
territórios ocupados, homicídio ou maus-tratos ou deportação para trabalhos de
prisioneiros de guerra ou de pessoas no mar, execução de reféns, pilhagem de
bens públicos ou privados, destruição sem motivo de cidades e aldeias, ou
devastações que não se justificassem por exigências militares. Esses eram
crimes mais tradicionalmente previstos em documentos internacionais.
Por fim, os crimes contra a humanidade significaram a grande inovação de
Nuremberg. Referiam-se ao homicídio, extermínio, redução à escravidão,
deportação ou qualquer outro ato desumano ou cruel cometido contra populações
civis, cometido antes ou durante a guerra; ou então, perseguições por motivos
políticos, raciais ou religiosos, quando esses atos ou perseguições, quer
tenham ou não constituído uma violação do direito interno dos países onde foram
perpetrados, tenham sido cometidos em conseqüência de qualquer crime que entre
na competência do tribunal ou em conexão com esse crime. Até então, esses
crimes eram desconhecidos da comunidade internacional.
Como já dito, Nuremberg teve o modelo seguido pelo Tribunal de Tóquio. No
entanto, a partir deles surgiram objeções a um Tribunal Penal Internacional,
fundadas na idéia de Soberania.
Em seguida à Guerra, as Nações Unidas adotaram a Convenção contra o Genocídio.
Esta já previa a criação de uma Corte Criminal Internacional permanente. Em que
pese ter sido a Convenção adotada com facilidade, o mesmo não se pode dizer da
Corte, que não chegou a ser implementada. A Assembléia Geral, quando da adoção
da Convenção, criou uma Comissão para estudar a viabilidade da criação de uma
jurisdição criminal internacional e a Codificação dos “Crimes contra a Paz e a
Segurança da Humanidade”, bem como a possibilidade de criação de uma Câmara
Criminal na Corte Internacional de Justiça. Em 1951, ficou pronto o projeto de
Estatuto para uma Corte Criminal Internacional, que foi modificado em 1953 e
continua desta maneira até hoje.
Somente em 1989 e 1990, a Assembléia Geral requisitou à Comissão de Direito
Internacional, que prestasse informação sobre a criação de uma Tribunal Penal
Internacional para julgar pessoas envolvidas com tráfico de drogas. Deve-se
dizer que tal idéia não foi adiante.
Na sessão de 1990, a Comissão de Direito Internacional apresentou um informe à
Assembléia Geral que se dizia favorável à criação de uma Corte para julgar os
“Crimes contra a Paz e a Segurança da Humanidade”.
Foi nesse momento que surgiu um fato que modificou a história da Corte
Criminal. Foi quando se avolumaram os problemas ocorridos na Ex-Iugoslávia.
Então, em 1992, pela Resolução 780, o Conselho de Segurança das Nações Unidas
pediu ao Secretário-Geral, à época, Boutros Boutros-Ghali, que constituísse uma
Comissão de Especialistas para apurar o que acontecia na antiga Iugoslávia.
Em decorrência do relatório preliminar preparado pela Comissão, em 9 de
fevereiro de 1993 (S 252754), o Conselho de Segurança decidiu, provisoriamente,
pela criação de um tribunal internacional. Finalmente, em 25 de maio de 1993, o
Conselho de Segurança novamente criou um Tribunal Internacional com o único fim
de julgar as pessoas presumivelmente responsáveis pelas graves violações
cometidas no território da ex-Iugoslávia entre o dia 1º de janeiro de 1991 e a
data em que se celebrasse a paz. Pela mesma resolução aprovou o Estatuto do
Tribunal.
Com o sucesso da criação do Tribunal para julgar as violações graves cometidas
na ex-Iugoslávia e por solicitação do próprio governo de Ruanda, o Conselho de
Segurança decidiu, então, criar um outro Tribunal Penal Internacional ad hoc,
para julgar as pessoas presumivelmente responsáveis por atos de genocídio e
outras violações graves ao Direito Internacional Humanitário cometidos no
território de Ruanda, e por cidadãos ruandenses que tivessem sido autores de
tais atos em territórios vizinhos.
5.O Estatuto de Roma
Nesse meio tempo, a Assembléia Geral solicitou à Comissão de Direito
Internacional que continuasse seu trabalho para a elaboração do Estatuto do
Tribunal Penal Internacional Permanente. Em conferência, a Comissão aprovou o
seu Projeto de Estatuto e recomendou que fosse convocada uma Conferência de
Plenipotenciários para examinar o Projeto e preparar uma Convenção para o
estabelecimento da Corte.
Entre 1995 e meados de 1998, dois Comitês foram organizados pela Assembléia
Geral e trabalharam durante 13 semanas na sede da ONU, em Nova Iorque, para
produzir o texto consolidado de um Anteprojeto de Estatuto para o
Estabelecimento de uma Corte Criminal Internacional Permanente. Esse trabalho
foi completado em 3 de abril de 1998.
Então, iniciou-se a Conferência Diplomática de Plenipotenciários para o
Estabelecimento de uma Corte Criminal Internacional Permanente, que se deu em
Roma, de 15 de junho de 1998 a 17 de julho de 1998.
Com já dito, o Estatuto foi aprovado com 120 votos a favor, 7 contrários, além
de 21 abstenções. O passo seguinte é fazer com que a Corte possa efetivamente
existir e cumprir a sua necessária tarefa na proteção dos direitos humanos
contra as violações graves. Para tanto, o Estatuto está depositado em Nova
Iorque, aguardando que, ao menos, 60 Estados possam a ele aderir até o dia 31
de dezembro de 2000.
Vale dizer que o Estatuto apresenta uma longa enumeração de dispositivos que se
referem, desde a localização da Corte - que será em Haia, nos Países Baixos -
até os meios que terá para se manter. Não esquece, evidentemente de fazer
referência aos crimes, bem como ao procedimento. Vale dizer que surgem alguns
pontos que saltam aos olhos com imensa facilidade: o que se refere a
competência, a instrumentos de cooperação penal internacional e, quanto a
princípios gerais, se os costumes internacionais podem ser base para o Direito
Penal Internacional, sem ferir o Princípio da Reserva Legal.
De toda maneira, o Estatuto, por ser muito recente, ainda gera e gerará muitas
perplexidades e está a merecer estudos mais detidos. da mesma maneira que toda
a questão da jurisdição penal internacional, que constitui importante ponto da
tutela do Direitos Humanos, além de envolver uma série de outras questões
jurídicas, que dizem respeito à estrutura do Estado Contemporâneo.
6.As Relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno
A discussão sobre as relações entre direito interno e direito internacional são
bastante antigas, mas nem por isso desnecessária. Muito ao contrário, a partir
daí, dever-se-á determinar as relações que mantêm entre si e, conseqüentemente,
no caso de um conflitos entre uma norma de direito interno e uma de direito
internacional, qual delas deverá permanecer.
O primeiro estudo sistemático sobre o tema foi feito por Heinrich Triepel, em
1899, na obra “Volkerrecht und Landesrecht”. Este jurista defendia a existência
de duas ordens jurídicas distintas e independentes, não possuindo áreas de
contato. Essas distinções decorrem de três razões fundamentais. A primeira
diferença decorre das relações sociais, já que na ordem interna, são sujeitos
de direito o Estado e o homem. Por seu turno, na ordem internacional, somente o
Estado.
A segunda diferença relaciona-se com as fontes do direito. No direito interno,
é resultado da vontade de um Estado, enquanto que na ordem internacional, é
resultado da vontade dos diversos Estados.
Já a terceira distinção decorre da estrutura das ordens jurídicas. Se por um
lado, a ordem interna se baseia na subordinação, ordem internacional se baseia
na coordenação, já que “é a comunidade internacional uma sociedade
paritária”.
Essa corrente de pensamento ficou conhecida como dualista, não admite o
conflito entre as normas interna e a internacional, já que não há interseção
possível entre elas. Dessa maneira, “um ato internacional qualquer, como
um tratado normativo, somente operará efeitos no âmbito interno de um Estado se
uma lei vier a incorporá-lo ao ordenamento jurídico positivo”.
Em oposição ao pensamento dualista, surgiu outra concepção, denominada
dualista. Esta corrente, que inicialmente defendida por Hans Kelsen, alegava
não existirem duas ordens jurídicas diversas, que seriam autônomas e manteriam
relações entre si. A ordem jurídica, segundo este pensamento, é una, mesmo
sendo complexa e heterogênea. Dessa maneira, deve haver prevalência do Direito
Internacional e devem ser criados instrumentos para harmonizar as relações
entre eles.
Desta discussão entre as escolas de pensamento, tem prevalecido o monismo, já
que não é admissível a existência de mais uma ordem jurídica e “torna-se
imperativa a existência de normas que coordenem esses dois domínios e que
estabeleçam qual deles deve prevalecer em caso de conflito”.
Adotando-se essa premissa, passa-se a outro ponto de extrema relevância, o que
diz respeito a que norma deve prevalecer em caso de conflito, a interna ou a
internacional.
Sobre o tema, Jacob Dolinger afirma a existência de três correntes dentro do
monismo: a que defende a primazia do direito interno sobre o direito
internacional; a que pretende que haja prevalência do direito internacional
sobre o direito interno; a que assegura haver uma equiparação entre eles,
dependendo de uma ordem cronológica de sua criação para a afirmação de qual
terá preferência.
No Brasil, a grande maioria dos autores tem se filiado ao monismo clássico,
kelseniano, que pretende que haja a prevalência do direito internaional. A
partir do princípio da pacta sund servanda, considera-se que a maior parte das
normas internacionais são aos Estados, que são as pessoas internacionais, assim
a norma internacional necessariamente tem que prevalecer sobre a norma interna.
Celso D. de Albuquerque Mello vai adiante e chega a afirmar que “em todos
os casos existe uma primazia do DI, mesmo naqueles em que se admite a
relevância internacional das normas constitucionais”.
A tendência, após a 2ª Guerra Mundial, tem sido a de que os países incorporem
às suas Constituições o princípio da primazia do Direito Internacional. O
Brasil, no entanto, após o julgamento do Recurso Extraordinário nº 80.004,
adotou a teoria monista moderada, segundo a qual prevalece a norma posterior
sobre a anterior, em caso de conflito de fonte. Significa que uma lei interna
pode revogar um tratado internacional.
Pode-se dizer que o Brasil adota a teoria monista, em que o ordenamento
jurídico não pode ser pluralizado. Mas o monismo é moderado, preponderando o
fator tempo.
A esse posicionamento, deve-se acrescentar que Flávia Piovesan sustenta que o
artigo 5º, § 2º assegura aos tratados de direitos humanos o status de norma
constitucional. Dessa maneira, assegura-se a incorporação automática dos
Tratados Internacionais de Direitos Humanos, sem a necessidade da intermediação
de ato com força de lei do Poder Legislativo. Vale dizer que pode ser
automaticamente exigido direito consagrado em tratado do qual o Brasil seja
signatário. Dessa maneira, segundo essa autora, o direito brasileiro adotou um
sistema misto, no qual os tratados internacionais de direitos humanos são
passíveis de incorporação automática, enquanto que os demais tratados dependem
da intermediação de um ato legislativo para que entrem em vigor.
Já Celso D. de Albuquerque Mello vai mais adiante e afirma que, no seu
entender, no que pertine a direitos humanos, a norma internacional deve
prevalecer sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que a norma
constitucional posterior tente revogar uma norma internacional
constitucionalizada. Defende, pois, a tese de que deve se aplicar a norma mais
benéfica ao ser humano, seja ela interna ou internacional.
Cumpre, então, analisar se o tratado aprovado pela Conferência de Roma
constituiria tratado sobre matéria de direitos humanos. Deve-se dizer que, mais
do que isso, situa-se em matéria de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
De uma maneira geral, pode-se dizer que, relacionados à idéia de dignidade
humana, são os direitos gerais de todos os membros da raça humana, sem
distinção de tempo, lugar, cor, sexo, nascimento ou grupo social.
Ou ainda, na feliz expressão de Celso D. de Albuquerque Mello, como sendo o
conjunto de normas que estabelece os direitos que os seres humanos possuem para
o desenvolvimento de sua personalidade e estabelece mecanismos de proteção de
tais direitos.
Por seu turno, o Direito Internacional dos Direitos Humanos significa o
conjunto de normas que estabelece os direitos que os seres humanos possuem para
o desenvolvimento de sua personalidade e estabelece mecanismos de proteção.
Ademais, ele forma um ramo específico do Direito Internacional Púbico, devido
ao fato de ter um objeto definido e, ainda possuir características próprias
A noção de internacionalização dos Direitos Humanos somente se consolidou após
a Segunda Guerra Mundial. A necessidade de ações internacionais mais eficazes
para coibir as violações de Direitos Humanos impulsionou a internacionalização.
Assim, as obrigações internacionais deixavam de ser prerrogativas dos Estados e
passavam a ser obrigações contraídas e inafasatáveis. Rompia-se, então, com a
noção tradicional de soberania, o que será tratado adiante.
Ademais, Norberto Bobbio afirma que há três categorias de atividades
internacionais na área de Direitos Humanos, que são a promoção, o controle e a
garantia. A primeira refere-se ao conjunto de atividades destinadas a induzir
os Estados que ainda não disponham de uma disciplina para a tutela dos Direitos
Humanos, para que venha a estabelecê-la, e induzir os que já têm a
aperfeiçoá-la.
Por seu turno, a atividade de controle refere-se a exigir dos Estados a
observância das obrigações por eles contraídas internacionalmente.
Por fim, a garantia consiste em que se estabeleça uma verdadeira tutela
internacional dos Direitos Humanos, que viria a substituir ou a complementar as
legislações nacionais.
As duas primeiras relacionam-se com a tutela interna dos Direitos Humanos, enquanto
que, somente com o estabelecimento dos mecanismos de garantia, poder-se-á falar
em uma disciplina internacional dos Direitos Humanos.
É dentro do contexto dos mecanismos de garantia que se insere a Corte Criminal
Internacional permanente, que pretende punir as infrações graves, definidas
pelo próprio Estatuto aprovado em Roma, nos artigos 6º, 7º e 8º. São elas,
respectivamente: o genocídio, os crimes contra a Humanidade e os crimes de
guerra.
Destarte, o tratado que foi aprovado em Roma se insere no elenco dos tratados
internacionais de direitos humanos e, sendo assim, ao ser assinado, passará
automaticamente a ser exigível, sem a necessidade de um ato legislativo para
fazê-lo.
7.A Entrega de Nacionais
Extradição, do latim tradere é o processo, fundado em um tratado, no
costume ou na promessa de reciprocidade, regulado pela lei interna, através do
qual um Estado solicita a outro a entrega de uma pessoa, foragida daquele, que
esteja sendo processada ou já condenada em razão de crime, ao qual se aplique
a lei do Estado requerente, a fim de que lá se veja processar ou cumpra a pena.
A extradição é o mais tradicional de todos os instrumento de Cooperação
Internacional em matéria criminal. A prática internacional desses equivalentes
é antiga, tendo sido conhecida dos egípcios, dos caldeus, dos chineses e dos
gregos. O primeiro caso histórico consta do tratado de paz celebrado entre
Ramsés II e Hatussilli, rei dos Hititas, em 1.280 a.C.. Esse tratado, ademais,
é considerado o documento diplomático mais antigo da humanidade.
A extradição, no entanto, não se destina a fazer com que meros suspeitos ou
pessoas cuja presença em um processo seja desejada, sejam entregues por um País
a outro. Por tal motivo, o Brasil, por seu Supremo Tribunal Federal, negou pedido
de extradição formulado pela Argentina destinado, apenas, a fazer com que o
extraditando fosse interrogado por sua Justiça (Extradição nº 341).
As características da extradição têm variado no tempo, passando de mero ato de
colaboração entre Estados que possuíam interesses comuns, a um instrumento de
Cooperação Internacional na luta contra a criminalidade, porém garantidos os
direitos fundamentais do homem.
Na América Latina o primeiro acordo multilateral versando a extradição foi a
Convenção de Direito Internacional Privado de Havana, de 20 de fevereiro de
1928, conhecida como Código Bustamante, ratificada pela Bolívia, Brasil,
Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua,
Panamá, Peru, Republica Dominicana, El Salvador e Venezuela.
Sua natureza jurídica é a de um instrumento processual de cooperação
internacional na luta contra o crime, sob a forma tradicional de cooperação
judicial, que se desenvolve entre dois Estados, com a intervenção do
extraditando, segundo a lei internacional (tratado ou convenção), o costume, a
promessa de reciprocidade e a lei nacional do País requerido. O Supremo Tribunal
Federal brasileiro, no famoso caso Franz Paul Stangl (Extradição nº 272 -
Áustria; Extradição nº 273 - Polônia; Extradição nº 274 - Alemanha e
Habeas-Corpus nº 44.074), já decidiu que "a declaração de
reciprocidade, na falta ou deficiência de tratado, é fonte reconhecida do
direito de extradição". No Brasil, a aceitação da promessa de
reciprocidade é ato do Poder Executivo e independe de manifestação do Congresso
Nacional (Extradição nº 340).
A Constituição Brasileira de 1988 não admite a extradição de brasileiros, sendo
esta uma limitação ratione personae. O artigo 5º, LI afirma que “nenhum
brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum,
praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico
ilícito de entorpecentes e de drogas afins, na forma da lei”. No
entender de João Marcello de Araujo Jr., reapareceu a antiga doutrina que
admitia a extradição de nacionais. Mais que isso, afirma que isso não viola a
soberania do Estado, mas a reforça.
Há, pois, duas hipóteses de se conceder a extradição de nacionais. A primeira é
do caso de brasileiro naturalizado que pratique crime comum, não devendo ser
crime militar, crime político ou crime de opinião. No entanto, no que se refere
à questão de brasileiro envolvido em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, a lei brasileira parece deixar transparecer a possibilidade de brasileiro
nato ser passível de extradição. O Supremo Tribunal Federal ainda não
solucionou tal questão.
Embora haja vários autores brasileiros favoráveis à extradição de nacionais, de
maneira geral, os operadores do direito que labutam com esta matéria demonstram
preocupação quanto à confiabilidade dos Estados estrangeiros para os quais
seriam entregues os nacionais brasileiros para julgamento ou cumprimento de
pena.
O Estatuto de Roma afirma que, no seu artigo 89, que a Corte poderá requerer a
prisão e a entrega de indivíduos e os Estados-membros deverão cumprir o que
estiver determinado. Se, por ventura, esta requisição se referir a nacional, em
hipótese que não autorize a extradição, parece haver incongruência entre a
norma interna e a norma internacional.
Esse entendimento aqui exposto não parece ser o mais adequado, visto que a
hipótese de entrega de nacional para julgamento pela Corte Criminal
Internacional significa a entrega de nacional para julgamento por um tribunal
supranacional, do qual o Brasil seria membro. O conceito de extradição diz
respeito à entrega de um indivíduo por um Estado a outro. Nesse caso, ocorre a
entrega pelo Estado a outro órgão julgador, que se não é nacional, engloba a
jurisdição nacional.
Assim, não parece haver incompatibilidade entre a vigente Carta Política
brasileira e o documento internacional aprovado em Roma, em 1998.
8.A Prisão Perpétua
Se a questão relativa à entrega de nacionais é aparentemente superável, sem que
haja maiores conflitos, o mesmo não se pode dizer no que diz respeito à
hipótese de prisão perpétua.
O Estatuto de Roma, em seu artigo 77, 1, b, afirma a possibilidade de aplicação
de uma pena de prisão perpétua, quando justificado pela extrema gravidade do
crime e as circunstâncias individuais do condenado indicarem ser a medida mais
adequada.
Esse dispositivo entre em confronto com o que está previsto pelo artigo 5º,
XLVII, b, que estabelece ser vedada a existência de penas de caráter perpétuo.
Segundo a vigente Carta Magna, não é admissível a adoção de penas que
caracterizaram o Direito Penal do absolutismo, tendo preferido o legislador
constitucional a adoção de disciplina humanitária.
De plano, sob a lógica já exposta de que se deve adotar a norma jurídica mais
benéfica para o adoção, não seria possível a adesão do Brasil ao Tratado de
Roma, visto não poder submeter indivíduo à, eventualmente, pena perpétua, pois
a Constituição Federal não admite tal norma. Mais que isso, a norma
constitucional é a norma mais benéfica.
Dessa maneira, não há como adequar a Constituição ao diploma aprovado em Roma.
O passo seguinte, pretendendo o Brasil aderir à Corte Criminal Internacional
seria a modificação da norma constitucional, para adequá-la ao disposto na
norma internacional.
No que se refere à reforma constitucional, o poder de reforma constitucional
enfrenta limitações. O artigo 60, § 4º da Constituição define que não será
objeto de deliberação a proposta de ementa tendente a abolir: a forma
federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a
separação dos Poderes; os direitos e garantias fundamentais.
Sobre a questão da revisão da Constituição, justifica-se a sua necessidade,
pois devem ser eliminadas as suas normas que já não se justifiquem política,
social ou juridicamente. Por isso, é importante que a ordem constitucional seja
constante revitalizada.
Apesar disso, o constituinte originário reservou para si um núcleo
imodificável. A proibição não relaciona somente com emendas que expressamente
declarem a supressão de normas relacionadas no artigo 60, §4º. Mais que isso, “A
vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da
Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade
religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que
a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’(emendas
tendentes, diz o texto) para a sua abolição”. Nesse sentido, tem a
doutrina nacional se encaminhado.
Outrossim, não é admissível que aprovada uma emenda à Constituição que possibilite
adequá-la ao documento internacional. Dessa maneira, o nosso ordenamento
constitucional não aceita a disposição disposta no Estatuto de Roma. Da maneira
que está, não é possível que tal como está, possa aqui gerar efeitos o que foi
aprovado na capital italiana.
Vale registrar opinião do eminente Professor João Marcello de Araujo Jr.,
prematuramente falecido, no já mencionado “Segundo Encontro de Direito Penal e
Processo Penal da Universidade do Grande Rio, ‘Professor José Souza Herdy’”. Em
conferência que, infelizmente ainda não foi publicada, este antigo Professor de
Direito Penal da UERJ sustentava que não haveria necessidade de alteração
constitucional para adoção do Tratado de Roma entre nós. De acordo com o que
foi exposto, o mesmo artigo 5º, XLVII, em sua alínea a, pode haver pena de
morte em hipótese de crime praticado durante guerra declarada.
A partir daí, afirmava o “Emabaixador do Direito Penal Brasileiro no Velho
Continente” que quem pode o mais pode o menos. Os crimes punidos pelo Estatuto de
Roma são os crimes praticados em decorrência de guerra. O artigo 5º do Estatuto
estabelece que a Corte terá jurisdição sobre os crimes de genocídio, os crimes
contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão.
Genocídio é definido, no artigo 6º, como todos os atos cometidos com o intuito
de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou
religioso. São exemplos a matança de membros do grupo e causar sérios danos
físicos e mentais a membros do grupo.
Já crimes contra a humanidade significam atos cometidos como parte de um maciço
ou sistemático ataque direto contra qualquer contra qualquer população civil,
tal como: homicídio; extermínio; redução à condição análoga a de escravos;
0deportação ou transferência forçada de população; tortura; estupro;
prostituição; gravidez e esterilização forçadas; crime de apartheid.
Crimes de guerra seriam as graves violações à Convenção de Genebra, de 12 de
agosto de 1949, e, em especial, às pessoas e propriedades protegidas por tal
Convenção. São exemplos a tortura ou o tratamento desumano - aí incluindo os
experimentos biológicos - e a extensiva destruição e apropriação de
propriedade, Não justificada por necessidade militar. Além desses, também
constituirão crimes de guerra a serem julgados pela Corte qualquer outra ofensa
às leis e aos costumes aplicáveis aos conflitos armados internacionais, que
tenham sido estabelecidos no campo do direito internacional e, em especial,
dirigir intencionalmente ataques contra população civil ou contra civis que não
estejam tomando parte diretamente nas hostilidades, ou ainda direcionar ataques
a alvos civis que não sejam objetivos militares.
Ora, se a Constituição admite a pena de morte, que é mais grave do a que de
prisão perpétua, em caso de guerra, seria perfeitamente admissível a segunda
para as hipóteses de crime que se relacionam diretamente com a situação de
conflitos armados. Dessa maneira, o saudoso mestre pretendia resolver a questão
e permitir a adesão do Brasil à Corte Criminal Internacional, da qual era
entusiasta.
Em que pese a opinião desse notável jurista, não parece ser o entendimento mais
adequado. A Constituição fala objetivamente em hipótese de guerra declarada.
Não admite a Constituição que se equipare a situações assemelhadas as de guerra.
Nem sempre esses crimes serão cometidos em período de paz, ainda que haja
conflito armado.
As próprias quatro Convenções de Genebra sobre Direito Humanitário
estabeleceram, em seu artigo 2º, que somente se pode referir a guerra se for
declarada. Fora dela, somente há a referência a agressão. Sendo assim, não
parece ser a proposta do Professor João Marcello de Araujo Jr. a melhor
solução.
Sendo assim e considerando que o artigo 120 do Estatuto de Roma não admite
reservas e que, segundo o artigo 121, somente poderá haver emendas após sete
anos da sua entrada em vigor e proposto por um Estado-Membro, o Brasil tem,
diante de si, um problema de difícil solução.
9. Conclusão
A grande questão que salta aos olhos quando se trata da criação de uma Corte Criminal
Internacional é a clara demonstração de que o homem foi capaz de globalizar
mercados e suas crises, internacionalizar a produção, extinguir fronteiras,
criando a posssibilidade da livre circulação de pessoas e bens, como no caso
europeu, fez com que problemas ocorridos mesmo nos cantos mais distantes
influenciassem a vida de comunidade internacional. No entanto, não foi capaz de
universalizar o que há de mais caro à vida em sociedade: a justiça.
Continuamente, novos massacres ocorrem, sem que nada ou muito pouco seja feito
ou se possa fazer. A humanidade, neste sentido, não conseguiu mudar muito. Seja
à época do Sacro Império Romano-Germânico, durante as duas grandes guerras, nos
conflitos das décadas recentes, ou mesmo nos anos noventa, os direitos humanos
são violados com incrível velocidade e facilidade.
Os responsáveis por esses delitos, que não ofendem e interessam somente à
população de determinada área, mas afronta toda a espécie humana, continuam, de
maneira geral, impunes. É isto que aconteceu com grande parte dos ditadores
latino-americanos, que foram responsáveis por desaparecimentos, mortes,
torturas e perseguições de diversas naturezas.
Mesmo assim, a comunidade internacional continua sem instrumentos necessários
para atingir esse objetivo. Talvez a saída seja a criação da Corte, mesmo com
todos os riscos e todas dificuldades que ela oferece.
A Convenção de Roma apenas aprovou a sua criação. Esta, por outro lado, ainda
depende da ratificação dos Estados nacionais, sem o que jamais deixará de ser
uma quimera dos juristas.
A criação desta Corte no que Ricardo Lobo Torres denomina cidadania mundial,
que é aquela que se contrapõe à nacional, que se estruturou a partir dos
Estados Nacionais. Naquela, o indivíduo se relaciona com o campo internacional,
no qual possui também direitos subjetivos. Aqui, o Direito Internacional
Público deixa de ser o conjunto de normas e princípios que regulam as relações
entre os Estados, para adquirir os contornos de um Direito Internacional dos
Direitos Humanos, já que esta modalidade de cidadania diz respeito a direitos
assegurados por tratados e por tribunais supranacionais.
Apesar dos fundamentos, a idéia de adoção da Corte Criminal Internacional
encontra dificuldades práticas evidentes. Se de um lado o ideal de uma
jurisdição penal internacional é fascinante e inspira todos aqueles que
pretendam a definitiva internacionalização e consolidação dos Direitos Humanos.
No entanto, o Estatuto de Roma não é necessariamente o ideal. É preciso seja
repensado para que possa receber a adesão dos diversos países do globo, dentre
os quais, o Brasil. Certamente, o que não pode ocorrer é que seja tratado sem a
atenção devida por parte dos operadores e dos pensadores do direito.
Essa situação está a indicar que o caminho a ser percorrido até o efetivo
estabelecimento da Corte ainda será bastante longo e espinhoso. Mas tem sido
assim por todo o século XX. Se desde a Primeira Grande Guerra se pretende a
criação de uma jurisdição internacional e após a Segunda se tornou objetivo das
Nações Unidas, até hoje se depara com injunções políticas desfavoráveis, que
certamente não se resolverão tão rapidamente.
Mesmo assim, ainda que demore mais cinqüenta anos, certamente valerá à pena
sonhar e lutar por um mundo no qual os governos despóticos e o responsáveis por
perseguições atrozes e implacáveis não mais terão um lugar para delinqüir e,
após, para se esconder.
Mas o direito não pode, em hipótese alguma, violar direitos e garantias
fundamentais que são, hoje, disciplinados pela Constituição Federal. Se a
criação da Corte é um belo sonho, esse sonho não pode significar a redução do
que, por tantos anos, o povo brasileiro lutou para conseguir.
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Fonte: http://www.aidpbrasil.org.br/artigos.asp. Retirado em: 04 de abril de 2005.