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A
plenitude defensória perante o tribunal do povo
Elaine Borges
Ribeiro dos Santos
Advogada Criminalista, Professora no Complexo Jurídico Damásio de Jesus
e Professora Titular na Escola Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos
Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP)
O que tinham em comum Napoleão e
Shakespeare?
Resposta:
o desprezo pelos advogados e pela defesa jurídica. Shakespeare foi quem
escreveu a peça Henrique IV, cujo protagonista ponderava: "A
primeira coisa que devemos fazer é matar todos os advogados". Assim,
percebe-se que há muito tempo a atuação do advogado não é bem compreendida no
tocante à amplitude defensória. Muitos entendem que seria melhor que não
existissem advogados; há os que pensam que a informática poderia englobar até
as atividades advocatícias e judiciárias, como vem ocorrendo nos Estados
Unidos. Para combater essas afirmações, mostraremos que a presença do advogado
é indispensável em qualquer setor jurídico.
No
Tribunal do Júri, especialmente, nada é mais equivocado do que o entendimento
segundo o qual o advogado é dispensável. O dia do julgamento, perante os
senhores jurados, é o momento em que o causídico exerce o seu mister com grande
talento e responsabilidade, é como se fosse uma microcirurgia de cérebro. Uma
falha, um erro, um esquecimento, uma falta de suscitação de um quesito ou de
uma nulidade no momento certo, e tudo redundará num resultado negativo.
A
Constituição anterior falava em ampla defesa. A atual também trata do assunto,
mas atribui, de forma extraordinária, exclusivamente para o Júri, a figura da
"plenitude de defesa" (art. 5.º, XXXVIII, "a"), e este é o
ponto nodal a frisar neste artigo: há uma diferença enorme entre "ampla
defesa" e "plenitude de defesa", sendo a última muito mais ampla
e complexa.
A
explicação é simples: a plenitude de defesa é admitida somente no Tribunal do
Júri, pois é usada para conscientizar os jurados. Os juízes de fato não decidem
por livre convicção, e, sim, por íntima convicção, sem fundamentar de forma
secreta e respondendo somente perante a consciência de cada um.
É
por causa disso que existe, só no Júri, plenitude de defesa, pois o defensor
poderá usar de todos os argumentos lícitos para convencer os jurados.
No
Tribunal do Povo, todas as ponderações, indagações e atitudes do advogado estão
ligadas umbilicalmente à plenitude defensória exercida no Júri. Esse princípio
constitucional se materializa no momento em que o advogado adentra o tribunal,
antes mesmo do sorteio dos jurados. Pelo princípio da plenitude defensória, o
advogado pode, com todo o respeito, saber mais sobre os senhores jurados – e
não apenas o que consta da lista dada às partes –, indagando maiores detalhes
da profissão deles, grau de instrução etc., detalhes esses que muitas vezes são
preciosos para a escolha do jurado.
O
jurado é a peça principal desse complicado jogo de xadrez que é o Júri, por
isso, deve ser tratado sempre com o maior respeito e com muita humildade por
parte do advogado; saber mais sobre o senhor jurado é imprescindível, pois este
é o representante do povo na Justiça – e, afinal, é ele quem decide a causa.
A
plenitude defensória continua fluindo no decorrer do julgamento, no qual o
advogado poderá formular reperguntas ao réu no interrogatório.
Outro
momento importante em que o advogado faz uso da plenitude defensória é o da
inquirição das testemunhas em plenário, postulando que elas respondam às
reperguntas voltadas para os juízes de fato, que são os jurados. Assim, eles
poderão visualizar expressões das testemunhas e sentir a veracidade de cada
depoimento.
De
fundamental importância para esse tema, é a questão da inquirição direta da
testemunha e não pelo sistema presidencial (também chamado de
presidencialista). São estremes dúvidas que é defeso ao magistrado impedir a
inquirição direta, existindo até um importante aresto do Tribunal de Justiça
carioca que entende como nulo o julgamento por ter o magistrado feito a
inquirição no caminho presidencial, apesar da impugnação da parte.
Importante
destacar a demonstração também na fase de inquirição das testemunhas, podendo
tanto o advogado demonstrar determinada situação no momento de repergunta,
quanto a testemunha, ao responder, fazer uso da demonstração para que os
jurados se transportem para a época dos fatos, a fim de tomar a melhor decisão.
Isso
é plenitude defensória!!!
Na
ampla defesa, em seus limites, ao juiz singular não há possibilidade de
demonstrações, como as acima mencionadas, pois exorbitam a amplitude
defensória.
Voltando
ao Júri, na leitura de peças, tema polêmico, o objetivo não é de forma alguma
cansar os jurados, e, sim, dar-lhes subsídios para fazer reperguntas às testemunhas.
E aqui vale destacar a importância de não se inverter a ordem processual:
ouvindo primeiro as testemunhas, depois, efetuando a leitura de peças, pois um
dos objetivos maiores é dar ao jurado conhecimento total da causa para fazer
reperguntas; com a inversão, a leitura de peças extensa perde um de seus
grandes objetivos.
A
leitura de peças, sem dúvida, é favorável à pesquisa da verdade real, mesmo
porque, durante a leitura, o advogado poderá orientar o escrivão do Júri a ler
ou não certos trechos de reportagens, depoimentos ou documentos, suprimindo na
hora algo excessivo, sem lesar a parte contrária; mostrar aos jurados
fotografias; enfim, demonstrar aos juízes interesse e responsabilidade com tudo
isso, fazendo uso da plenitude defensória.
Há
quem diga que com uma defesa tão complexa o advogado corre o risco de perder a
causa. E entendo ser melhor, entretanto, correr risco por excesso do que por
falta.
Certa
vez, num Júri, um juiz-presidente formulou um quesito sobre uma tese, com base
na plenitude defensória, por conta e risco da defesa. Sua Excelência entendia
que era uma causa supralegal e que a defensoria até se arriscaria naquela
argüição.
Muito
bem, não só a defesa ganhou o julgamento, mas também o Promotor de Justiça
apelou. Na sustentação oral, a defesa ganhou, por unanimidade, com a tese
suscitada no Júri.
Muitas
vezes, para uma defesa plena, o advogado acaba tendo de correr riscos, porém
sempre de uma forma lícita e ponderada.
O
princípio da plenitude defensória faz com que o causídico assuma uma certa
margem de risco, mas, no final, independentemente do resultado, o advogado
sempre terá garantido um trabalho em que todas as possibilidades lícitas de
defesa tenham sido esgotadas; certamente, com um bom trabalho executado, o
resultado será o mais positivo para o constituinte.
De
todos os livros que li sobre o Júri, o que mais me impressionou foi a obra A
Defesa Tem a Palavra, do grande e saudoso advogado de Júri, Evandro Lins e
Silva, nascido em 1912 e, hoje, considerado o "advogado do Brasil". Esse
epíteto deve-se ao fato de que o Dr. Evandro, em 1992, foi contratado para
fazer a acusação do ex-Presidente Collor, em Brasília; entrevistado, o nobre
advogado disse que já tinha tido causas muito importantes, mas agora estava
defendendo o seu cliente mais querido: o Brasil.
Na
obra referida, na página 18, encontro uma ponderação do jurista que tem elo com
o assunto aqui tratado. Diz ele: "Para o advogado que adquiriu certa
notoriedade, não há pequenas causas, breves audiências, rápidos debates no
Tribunal popular. É a discussão que se alonga, cada um esgota o seu tempo. A
sina do advogado de algum destaque é falar pela madrugada".
Para
falar durante a madrugada, logicamente, a defesa se alongou, com alguns dos
detalhes aqui levantados. Quando o Dr. Evandro escreveu o referido livro, em
1984, ainda não estava em vigor o novel dogma da plenitude de defesa,
estabelecido somente quatro anos depois. Se naquela época a defesa era assim
feita, com maior amplitude deve ser vista nos dias atuais. O Dr. Evandro tinha
autoridade para falar de uma defesa longa e eficiente. Se ele, que era mestre,
insistia nessa grande plenitude, quem poderia contradizê-lo? Na verdade, mesmo
antes da Constituição atual, o mestre já aplicava a plenitude, tendo sido
pioneiro numa medida advocatícia que, até hoje, causa polêmica: a entrega de
memoriais aos 21 jurados, dias antes do julgamento.
Como
já foi dito, perante o juízo singular, a amplitude de defesa tem limites, pois
o magistrado é o presidente do processo, devendo empenhar-se em escoimar as
provas impertinentes para a Justiça togada.
Ao
contrário, na plenitude de defesa, o magistrado não deve retirar e desentranhar
dos autos documentos juntados para os jurados, pois o que parece impertinente
ao juiz, pode ter grande relevância aos jurados, uma vez que estes decidem por
íntima convicção e darão aos documentos o valor necessário. No final das contas,
tudo poderá prejudicar ou beneficiar o réu, sempre por conta e risco da defesa.
O
Tribunal de Justiça paulista num julgamento de mandado de segurança criminal,
no qual se pesquisava essa matéria, decidiu e entendeu que, para os jurados,
salvo provas ilícitas, nada pode ser sonegado, mesmo que o magistrado imagine
certo documento não ter ligação umbilical com a causa. Aliás, quero consignar o
caminho dos repositórios jurisprudenciais para essa hipótese: cabe mandado de
segurança criminal quando o juiz determina o desentranhamento de algo de
interesse à parte.
Ao
encerrar, volto a falar de Napoleão e de Shakespeare. Eles achavam que o
advogado atrapalhava a distribuição da Justiça. Não tiveram, porém, pessoa
querida processada perante a Justiça criminal. Se esse fato tivesse ocorrido,
sem dúvida, as figuras históricas referidas teriam procurado, humildemente, um
advogado especializado, dizendo: "Doutor, por favor, faça tudo por
ela!".
E,
finalizando, quero aditar o seguinte: aqueles que entendem que o computador e a
informatização podem fazer tudo o que aqui foi brevemente suscitado, devem, de
fato, dispensar o advogado dos pretórios, porém, por conta e risco total do
interessado.
RETIRADO DE: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6485