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A prova do crime de associação criminosa para fins de
tráfico de entorpecente
(art. 14, da Lei n. 6.368/76)
Sumário: 1- Estrutura
do tipo; 2- Crime de intenção e de tipo incongruente; 3- Tentativa; 4- Prova do
crime de associação; 5- Conclusão. Bibliografia.
1- Estrutura do
tipo
O art. 14 da Lei de
Tóxicos traz a seguinte redação: "Art. 14 - Associarem-se duas ou mais
pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes
previstos nos arts. 12 e 13 desta Lei: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez)
anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta)
dias-multa".
Este tipo penal requer o
dolo como elemento subjetivo, pois a associação orienta-se para a realização de
um objetivo comum, perfeitamente ajustado e determinado: a prática dos crimes
previstos nos arts. 12 e 13. A lei, diferentemente do crime de bando ou
quadrilha (art. 288, CP), não exige que a associação seja estável, ao dizer
"para o fim de praticar, reiteradamente ou não...", punindo-se
a aliança criminosa mesmo sem o cometimento de um único crime. Por outro lado,
o núcleo associarem-se traz consigo a idéia de estabilidade e assim vem
entendendo o STF que "para o crime de associação previsto no art. 14 da
Lei n.o 6.368/76 exige-se acordo para uma duradoura atuação em comum
e não transitória e ocasional participação". Cremos que a melhor exegese é
aquela em que a figura prescinde do critério de permanência, estabilidade ou
habitualidade, embora possa estar presente, ou seja, configura-se o crime com a
reunião de pessoas com o objetivo específico de praticar o tráfico com ânimo de
permanência, ainda que este não se concretize. Enfim, torna-se
imprescindível um concerto de vontades para um fim, reiterado ou não, de
tráfico de entorpecentes. Assim, se duas pessoas se associam para praticar
diversos crimes de tráfico de drogas, mas não conseguem praticar nenhum,
configurado está o crime de associação criminosa. Tanto é assim, que a doutrina
e a jurisprudência têm reconhecido, que se a associação criminosa, já
caracterizada, alcança seu fim consistente na prática de crimes, lesa nova
objetividade jurídica, possibilitando o concurso material de delitos.
Por ser figura
integrante do tipo, o animus associativo (ajuste prévio no sentido de
formação de um vínculo associativo de fato) deve ser cumpridamente provado. Do
contrário, se não restar provado esse animus, e residualmente existindo
apenas convergência ocasional de vontades (ou reunião ocasional ou, momentânea
de um grupo de pessoas) para a prática de determinado delito, ter-se-á
co-autoria, impondo-se a agravante do art. 18, III. Ações paralelas,
simultâneas, coincidentes, mas desligadas subjetivamente uma das outras, não
desenham a associação.
Também por isso é que na
denúncia deve vir a narração do vínculo associativo, o modo, o momento em que
ele se estabeleceu e quais as pessoas envolvidas, sob pena de ser tida como
inepta (STF, RT 700/416), pois como se sabe, a descrição correta e
circunstanciada do suporte fático é imprescindível para uma acusação válida.
Não é necessária
proximidade física entre os associados, razão pela qual mesmo que estejam em
países diferentes, incide o tipo penal. A forma de cooperação pode ser
material, financeira, intelectual ou laboral, pouco importa.
O delito do art. 14 não
é igual ao previsto no art. 288 do CP (bando ou quadrilha). Neste, prevê-se a
associação de mais de três pessoas, para o fim de cometer quaisquer crimes e
não apenas os do art. 12 e 13 da Lei 6.368/76.
De notar-se que só se
apresenta o crime quando a associação de pessoas visa a praticar os delitos
previstos nos arts. 12 e 13 desta Lei. Se a finalidade é diversa, o fato é
atípico. Este especial fim de agir constitui elemento subjetivo do tipo de
ilícito (contido na expressão "para o fim de praticar"), de forma
autônoma e independente do dolo (vontade livre e consciente de concretizar a
associação). A ausência desse elemento descaracteriza o tipo subjetivo,
independentemente da presença do dolo. Enquanto o dolo deve materializar-se no
fato típico, o elemento subjetivo do tipo especifica o dolo, sem necessidade de
se concretizar, sendo suficiente que exista no psiquismo dos autores.
2- Crime de
intenção e de tipo incongruente
O crime do art. 14 pode
ser tido como um delito de intenção, pois que exige dos autores a
persecução de um objetivo compreendido fora do tipo, mas que não precisa ser
alcançado efetivamente. Assis Toledo define essa espécie de crime como sendo
aquele "em que o agente quer e persegue um resultado que não necessita ser
alcançado de fato para a consumação do crime" ("Princípios...",
p. 151). A falta de coincidência entre as partes subjetiva e objetiva do tipo,
ou seja, o elastério do tipo subjetivo além do objetivo gera um tipo delitivo
que a doutrina chama de incongruente. Nessa modalidade de crimes (a
exemplo do art. 14 em estudo) para a consumação basta que o "fim de
praticar" esteja na intenção do agente, não necessitando, porém,
concretizar-se em atos no mundo exterior. Quando há coincidência entre suas partes
subjetiva e objetiva (entre dolo e o acontecimento objetivo) há o denominado tipo
congruente.
A associação criminosa
do art. 14 em ser um crime de intenção ainda recebe outra classificação que é a
de delito mutilado de dois atos, pois o agente quer alcançar, por ato
próprio, o resultado fora do tipo ("praticar os crimes do art. 12 e
13"). Diferentemente do que ocorre nos crimes de resultado cortado
(outra subdivisão dos crimes de intenção) em que o agente espera que o
resultado externo querido se produza sem sua interferência direta.
3- Tentativa
A associação criminosa é
um crime formal plurissubjetivo ou de consumação antecipada, que se perfaz com
o "momento associativo" (animus associativo) independentemente
de eventual prática dos crimes pretendidos pelo bando e exige o concurso
necessário de, no mínimo, duas pessoas. Por
se constituir em crime unissubsistente ou de ato único, em que a execução
coincide com a consumação, impossível é a tentativa. Ademais, é de se convir
que inexiste dolo especial de tentativa, diferentemente do elemento subjetivo
informador do crime consumado. O que num crime que requer este fim especial,
como o de associação, a conclusão é óbvia: inadmite-se a tentativa.
4- Prova do crime
de associação
Para se reconhecer esse
crime é necessário elementos sólidos e não apenas meros indícios isolados e
conjecturas cerebrinas. A condenação com
base em indícios, entretanto, é possível, desde que a relação entre o fato
demonstrado e o fato que se infere seja tão certa e evidente de modo a não ser
possível uma conclusão diversa daquela a que se chega. A harmonia entre os
indícios acusatórios deve ser tal, que necessariamente se tenha de considerar
certo que, segundo o curso ordinário das coisas, o acusado é o delinquente; tal
que, para não interpetrá-los contra ele, seja mister lançar-se ao domínio do
sobrenatural, e acreditar em fatos, cuja existência nada há na causa que faça
supor.
A prova indiciária
somente é bastante para a condenação quando formadora de uma cadeia concordante
de indícios sérios e graves, unidos por um nexo de causa e efeito, excludentes
de qualquer hipótese favorável ao acusado (TJMS, RT 526/437). Ela tem o mesmo
valor que as demais, em face do princípio da livre convicção do juiz (RT
484/278, 478/301) e também pelo fato de vir prevista na lei processual penal:
"Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo
relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou
outras circunstâncias" (art. 239 do CPP).
A convergência ou o
concurso unânime que se exige dos indícios consiste em que todos se refiram a
um mesmo objeto, cuja verificação tem de se fazer; é preciso que cada um deles
designe o mesmo delinqüente. Este concurso existe ainda, quando os indícios se
completarem e se esclarecerem reciprocamente, e sobretudo quando constituírem
uma verossimilhança tal que seja impossível admitir que, no curso ordinário das
coisas, outro, que não o acusado, possa ter sido o delinqüente.
A investigação de indícios
em concurso leva ao fim por caminhos diversos; a conclusão que um dá, o outro
dá também, confirmando-a.
Os indícios se dividem
em mediatos e imediatos; estes levam a uma conclusão direta
relativamente ao que se quer provar, sem que seja necessário atravessar uma
série de deduções intermediárias; aqueles nos levam a outros fatos pelos quais
chega-se ao fato principal. Resulta claro, que os indícios mediatos
assentando-se em um encadeamento de hipóteses sucessivas são mais frágeis e
passíveis de induzirem em erro.
A força probatória de um
indício provém essencialmente da relação entre o fato e o delito e esse nexo é
que se trata de determinar em cada caso, sem poder-se, todavia, deduzi-lo de
categorias fixas e preconcebidas (RT 516/344). A compreensão da estrutura
interna não se deve dar como resultado de conexões associativas anteriores, de
um desenrolar procedimental cego e desconexo.
Os autores costumam
confundir indício com presunção. A distinção, porém, existe e é
factível. O indício é um fato, uma circunstância certa, ao passo que a
presunção encontra seu fundamento na experiência. O indício é o fato
indicativo, posto e a presunção, o fato indicado.
No processo penal
nenhuma prova tem valor absoluto, todas são relativas; o que vai determinar a
preponderância é a harmonia e qualidade da prova e não sua quantidade. Assim,
nada impede que existindo apenas prova indiciária a amparar a acusação, seja
expedido um decreto condenatório com base nela. O fato de ser uma prova chamada
indireta não lhe retira a credibilidade compartilhada pelas provas diretas.
Os ilícitos penais,
mormente o tráfico de drogas através de organização criminosa, são
proteiformes, apresentando nuanças de um para outro, razão pela qual não se
pode querer prová-los através de esquemas probatórios rígidos. É como de certa
forma já disse MALATESTA: "No juízo criminal se trata sempre de
realidades contingentes, que podem variar indefinidamente de natureza e
relação. Portanto, a certeza que a elas se refere concretamente não pode ser
predeterminada por critérios rígidos. O delito, de um lado, tem, por si só,
formas indefinidamente múltiplas de manifestação; por outro, há relações
indefinidamente multíplices com as coisas e as pessoas, que, depois, vão servir
para a averiguação daquele, tornando-se provas suas".
Também Mittermaier em
seu Tratado da prova em matéria criminal (p. 69), afirma que sem dúvida,
a ciência pode formular certas regras para a indagação da verdade, mas estas
regras são por sua natureza conselhos e não preceitos, são outras tantas
advertências gerais, em cuja aplicação se deve também atender aos conselhos da
prudência; a lei, porém, deve-se abster de estabelecer tais regras, porque se
tornariam absolutas e imperativas, e seria igualmente pouco razoável prescrever
a cada um o modo de pensar, como o modo de convicção.
A convicção do juiz
muitas vezes não decorre das provas organizadas segundo o sistema legal. Deriva
ela da lei natural, do concurso de uma infinidade de motivos, apóia-se em uma
série interminável de pequenas circunstâncias. Os indícios refogem a regras
pré-fixadas e encontram aferição na consciência do juiz, guiada por sólida e
inafastável prudência.
As regras da prova
derivam da experiência e do bom senso aplicados à indagação da verdade. Deste
modo, o juiz não é escravo das normas estabelecidas pela lei em matéria de
provas. Tanto é assim, que por mais plenas e demonstrativas que as provas
sejam, se alguma dúvida subsistir em seu espírito, deve absolver o acusado.
Não é a produção de uma
prova "plena" (confissão, por exemplo) que produz a certeza, mas sim
as razões que atuam no espírito do julgador para que tenha plena fé nas
afirmações do acusado ou das testemunhas, que atestam o fato criminoso e suas
circunstâncias. Só porque duas testemunhas afirmem unissonamente: "Nós
vimos Tício matar Caio", o juiz não poderá condenar, sem antes sopesar se
as testemunhas lhe merecem fé; se puderam ter sido espectadoras do fato e se
têm vontade firme de dizer a verdade; se os depoimentos encontram ressonância
em outros elementos (inclusive nas declarações do acusado); se os depoimentos
lhe parecem possíveis e verossímeis.
O mesmo se dá com a
confissão. Ela só merece crédito após ser permeada por uma infinidade de
considerações no espírito do juiz. Ora, diz Mittermaier, espontaneamente e sem
a necessária reflexão não se pode acreditar em um homem que fala de um modo que
o compromete, sem que a isso o impila alguma vantagem próxima; é preciso que o
raciocínio nos mostre na confissão do crime o efeito providencial do grito da
consciência. E quando o magistrado declara finalmente que o acusado deve ser
acreditado, que os detalhes contidos em sua confissão parecem verossímeis, que
concordam perfeitamente com os relatados nas peças do processo, é sempre pelo
raciocínio que chega a assentar a sentença.
A confissão para ser
aceita tem que ser verossímil. Ora, a verossimilhança é a primeira condição da
verdade de um fato e sem esse atributo uma confissão não pode acarretar a
condenação. Além disso, a confissão deve guardar concordância com o resultado
de outras provas carreadas aos autos. Por tudo isso, é que o juiz deve ser
escrupuloso na apreciação das confissões.
5- Conclusão
Nada é absoluto num
processo judicial regido por uma nítida filosofia negativista. E por este modo,
a verdadeira base da certeza é sempre a confiança simultânea na fidelidade dos
sentidos e no poder do raciocínio, que, tomando por termo de comparação as
experiências anteriores, submete-lhes como a uma medida certa dos fatos cuja realidade
tem de apreciar.
Todas as vezes que as
relações de um fato com outro permitirem estas espécies de inferências, é sobre
esses fatos conjugados que a razão, robustecida pela experiência, constrói a
sua certeza; tomam então a denominação de indícios, e, na verdade, como
que parecem mostrar com o dedo o fato principal correlativo.
A certeza pode ser
comunicada pelos indícios tão bem como por qualquer outra prova. Assim é
impossível abafar a convicção da culpabilidade de um acusado, quando esta
resulta do concurso convergente e seguro desses mesmos indícios. A condenação
com base em indícios pode-se dizer que resulta de uma operação mista entre
dados dos sentidos guiados por meios lógicos, sem se falar em evidência
material. O espírito pode, sem se afastar de certos limites postos pela
prudência, e alavancado em indícios, adquirir uma convicção plena e inteira. E
não é a soma dos indícios que funda a certeza, mas o seu valor intrínseco.
NOTAS
1 - STF, HC
64.840, 1.ª Turma, j. 19.6.1987, Rel. Min. Néri da Silveira, RT
622/368.
2 - STF, JSTF-Lex
129/286: "O art. 14 da Lei de Tóxicos é autônomo, bastando para sua
consumação que haja a formação do bando para a prática do tráfico de
entorpecentes. Basta, para configurá-lo, a organização do bando. Não se
identifica ele com a qualificadora prevista no item III do art. 18 da mesma
lei, que consiste em ter o crime previsto na lei aludida sido praticado por
duas ou mais pessoas".
TFR, JTRF-Lex 65/385:
"O crime de associação, por sua natureza formal, não necessita da
ocorrência efetiva do crime de tráfico para a integração da sua potencialidade
danosa e perigosa. Por outro lado, não se prescinde de uma habitual
exteriorização de seu fim específico".
3 - Jorge Medeiros da
Silva, ob. cit., p. 41.
4 - RT 634/277.
5 - "Meros indícios
de que existe associação permanente com objetivo do comércio ilícito de drogas,
resultantes de depósitos bancários e anotações em agenda telefônica, não é
suficiente para se reconhecer o crime do art. 14 da Lei Antitóxicos. O vínculo
deve ser comprovado e não presumido" (TJRO, 08.05.1997, RT 745/636).
6 - C. J. A.
Mittermaier, "Tratado da Prova em Matéria Criminal", Ed. Bookseller,
3.ª ed., 1996, p. 354. Refere este autor que a lei austríaca de 6 de julho de 1833
diz no art. 1.º, §3.º: Da combinação dos indícios, das
circunstâncias e das relações estabelecidas, pela instrução deve resultar uma
conexidade tão direta e tão clara entre a pessoa do acusado e o delito, que,
segundo o curso ordinário e natural das coisas, não se possa supor que outra
pessoa, que não o acusado, o tenha cometido.
7 - "A Lógica das
Provas...", Vol. I, p. 45.
8 - Testibus non
testimoniis fidem adhibere - Deve-se prestar fé não aos testemunhos mas às
testemunhas.
9 - Mittermaier, Ob. cit., p. 113.
BIBLIOGRAFIA
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Básicos
de Direito Penal, Ed. Saraiva, 5ª ed., 1994.
GOMES, Geraldo. Tóxicos – Crime autônomo
de associação, RT 516/247.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica
das Provas em Matéria Criminal, Vol. I, Tradução de Paolo Capitanio, Ed.
Bookseller, 1996
MITTERMAIER, C.J.A. Tratado da provas em
matéria criminal, Ed. Bookseller, 3ª ed., 1996.
SILVA, Jorge Medeiros da. A nova Lei de
Tóxicos explicada, Ed. Legis Summa, 1977.
* O autor é Promotor de
Justiça em Tabatinga-Am, tendo escrito as obras: "O Ministério Público e
um novo modelo de Estado" e "Tóxicos: abordagem crítica da Lei n.
6.368/76". E-mail: gaspar@argo.com.br
Fonte: http://www.direitoemdebate.hpg.ig.com.br/art_entorpecente.html