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A prova do crime de associação criminosa para fins de tráfico de entorpecente
(art. 14, da Lei n. 6.368/76)

 

João Gaspar Rodrigues *

 

 

Sumário: 1- Estrutura do tipo; 2- Crime de intenção e de tipo incongruente; 3- Tentativa; 4- Prova do crime de associação; 5- Conclusão. Bibliografia.

1- Estrutura do tipo

O art. 14 da Lei de Tóxicos traz a seguinte redação: "Art. 14 - Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 12 e 13 desta Lei: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa".

Este tipo penal requer o dolo como elemento subjetivo, pois a associação orienta-se para a realização de um objetivo comum, perfeitamente ajustado e determinado: a prática dos crimes previstos nos arts. 12 e 13. A lei, diferentemente do crime de bando ou quadrilha (art. 288, CP), não exige que a associação seja estável, ao dizer "para o fim de praticar, reiteradamente ou não...", punindo-se a aliança criminosa mesmo sem o cometimento de um único crime. Por outro lado, o núcleo associarem-se traz consigo a idéia de estabilidade e assim vem entendendo o STF que "para o crime de associação previsto no art. 14 da Lei n.o 6.368/76 exige-se acordo para uma duradoura atuação em comum e não transitória e ocasional participação". Cremos que a melhor exegese é aquela em que a figura prescinde do critério de permanência, estabilidade ou habitualidade, embora possa estar presente, ou seja, configura-se o crime com a reunião de pessoas com o objetivo específico de praticar o tráfico com ânimo de permanência, ainda que este não se concretize. Enfim, torna-se imprescindível um concerto de vontades para um fim, reiterado ou não, de tráfico de entorpecentes. Assim, se duas pessoas se associam para praticar diversos crimes de tráfico de drogas, mas não conseguem praticar nenhum, configurado está o crime de associação criminosa. Tanto é assim, que a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido, que se a associação criminosa, já caracterizada, alcança seu fim consistente na prática de crimes, lesa nova objetividade jurídica, possibilitando o concurso material de delitos.

Por ser figura integrante do tipo, o animus associativo (ajuste prévio no sentido de formação de um vínculo associativo de fato) deve ser cumpridamente provado. Do contrário, se não restar provado esse animus, e residualmente existindo apenas convergência ocasional de vontades (ou reunião ocasional ou, momentânea de um grupo de pessoas) para a prática de determinado delito, ter-se-á co-autoria, impondo-se a agravante do art. 18, III. Ações paralelas, simultâneas, coincidentes, mas desligadas subjetivamente uma das outras, não desenham a associação.

Também por isso é que na denúncia deve vir a narração do vínculo associativo, o modo, o momento em que ele se estabeleceu e quais as pessoas envolvidas, sob pena de ser tida como inepta (STF, RT 700/416), pois como se sabe, a descrição correta e circunstanciada do suporte fático é imprescindível para uma acusação válida.

Não é necessária proximidade física entre os associados, razão pela qual mesmo que estejam em países diferentes, incide o tipo penal. A forma de cooperação pode ser material, financeira, intelectual ou laboral, pouco importa.

O delito do art. 14 não é igual ao previsto no art. 288 do CP (bando ou quadrilha). Neste, prevê-se a associação de mais de três pessoas, para o fim de cometer quaisquer crimes e não apenas os do art. 12 e 13 da Lei 6.368/76.

De notar-se que só se apresenta o crime quando a associação de pessoas visa a praticar os delitos previstos nos arts. 12 e 13 desta Lei. Se a finalidade é diversa, o fato é atípico. Este especial fim de agir constitui elemento subjetivo do tipo de ilícito (contido na expressão "para o fim de praticar"), de forma autônoma e independente do dolo (vontade livre e consciente de concretizar a associação). A ausência desse elemento descaracteriza o tipo subjetivo, independentemente da presença do dolo. Enquanto o dolo deve materializar-se no fato típico, o elemento subjetivo do tipo especifica o dolo, sem necessidade de se concretizar, sendo suficiente que exista no psiquismo dos autores.

2- Crime de intenção e de tipo incongruente

O crime do art. 14 pode ser tido como um delito de intenção, pois que exige dos autores a persecução de um objetivo compreendido fora do tipo, mas que não precisa ser alcançado efetivamente. Assis Toledo define essa espécie de crime como sendo aquele "em que o agente quer e persegue um resultado que não necessita ser alcançado de fato para a consumação do crime" ("Princípios...", p. 151). A falta de coincidência entre as partes subjetiva e objetiva do tipo, ou seja, o elastério do tipo subjetivo além do objetivo gera um tipo delitivo que a doutrina chama de incongruente. Nessa modalidade de crimes (a exemplo do art. 14 em estudo) para a consumação basta que o "fim de praticar" esteja na intenção do agente, não necessitando, porém, concretizar-se em atos no mundo exterior. Quando há coincidência entre suas partes subjetiva e objetiva (entre dolo e o acontecimento objetivo) há o denominado tipo congruente.

A associação criminosa do art. 14 em ser um crime de intenção ainda recebe outra classificação que é a de delito mutilado de dois atos, pois o agente quer alcançar, por ato próprio, o resultado fora do tipo ("praticar os crimes do art. 12 e 13"). Diferentemente do que ocorre nos crimes de resultado cortado (outra subdivisão dos crimes de intenção) em que o agente espera que o resultado externo querido se produza sem sua interferência direta.

3- Tentativa

A associação criminosa é um crime formal plurissubjetivo ou de consumação antecipada, que se perfaz com o "momento associativo" (animus associativo) independentemente de eventual prática dos crimes pretendidos pelo bando e exige o concurso necessário de, no mínimo, duas pessoas. Por se constituir em crime unissubsistente ou de ato único, em que a execução coincide com a consumação, impossível é a tentativa. Ademais, é de se convir que inexiste dolo especial de tentativa, diferentemente do elemento subjetivo informador do crime consumado. O que num crime que requer este fim especial, como o de associação, a conclusão é óbvia: inadmite-se a tentativa.

4- Prova do crime de associação

Para se reconhecer esse crime é necessário elementos sólidos e não apenas meros indícios isolados e conjecturas cerebrinas. A condenação com base em indícios, entretanto, é possível, desde que a relação entre o fato demonstrado e o fato que se infere seja tão certa e evidente de modo a não ser possível uma conclusão diversa daquela a que se chega. A harmonia entre os indícios acusatórios deve ser tal, que necessariamente se tenha de considerar certo que, segundo o curso ordinário das coisas, o acusado é o delinquente; tal que, para não interpetrá-los contra ele, seja mister lançar-se ao domínio do sobrenatural, e acreditar em fatos, cuja existência nada há na causa que faça supor.

A prova indiciária somente é bastante para a condenação quando formadora de uma cadeia concordante de indícios sérios e graves, unidos por um nexo de causa e efeito, excludentes de qualquer hipótese favorável ao acusado (TJMS, RT 526/437). Ela tem o mesmo valor que as demais, em face do princípio da livre convicção do juiz (RT 484/278, 478/301) e também pelo fato de vir prevista na lei processual penal: "Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias" (art. 239 do CPP).

A convergência ou o concurso unânime que se exige dos indícios consiste em que todos se refiram a um mesmo objeto, cuja verificação tem de se fazer; é preciso que cada um deles designe o mesmo delinqüente. Este concurso existe ainda, quando os indícios se completarem e se esclarecerem reciprocamente, e sobretudo quando constituírem uma verossimilhança tal que seja impossível admitir que, no curso ordinário das coisas, outro, que não o acusado, possa ter sido o delinqüente.

A investigação de indícios em concurso leva ao fim por caminhos diversos; a conclusão que um dá, o outro dá também, confirmando-a.

Os indícios se dividem em mediatos e imediatos; estes levam a uma conclusão direta relativamente ao que se quer provar, sem que seja necessário atravessar uma série de deduções intermediárias; aqueles nos levam a outros fatos pelos quais chega-se ao fato principal. Resulta claro, que os indícios mediatos assentando-se em um encadeamento de hipóteses sucessivas são mais frágeis e passíveis de induzirem em erro.

A força probatória de um indício provém essencialmente da relação entre o fato e o delito e esse nexo é que se trata de determinar em cada caso, sem poder-se, todavia, deduzi-lo de categorias fixas e preconcebidas (RT 516/344). A compreensão da estrutura interna não se deve dar como resultado de conexões associativas anteriores, de um desenrolar procedimental cego e desconexo.

Os autores costumam confundir indício com presunção. A distinção, porém, existe e é factível. O indício é um fato, uma circunstância certa, ao passo que a presunção encontra seu fundamento na experiência. O indício é o fato indicativo, posto e a presunção, o fato indicado.

No processo penal nenhuma prova tem valor absoluto, todas são relativas; o que vai determinar a preponderância é a harmonia e qualidade da prova e não sua quantidade. Assim, nada impede que existindo apenas prova indiciária a amparar a acusação, seja expedido um decreto condenatório com base nela. O fato de ser uma prova chamada indireta não lhe retira a credibilidade compartilhada pelas provas diretas.

Os ilícitos penais, mormente o tráfico de drogas através de organização criminosa, são proteiformes, apresentando nuanças de um para outro, razão pela qual não se pode querer prová-los através de esquemas probatórios rígidos. É como de certa forma já disse MALATESTA: "No juízo criminal se trata sempre de realidades contingentes, que podem variar indefinidamente de natureza e relação. Portanto, a certeza que a elas se refere concretamente não pode ser predeterminada por critérios rígidos. O delito, de um lado, tem, por si só, formas indefinidamente múltiplas de manifestação; por outro, há relações indefinidamente multíplices com as coisas e as pessoas, que, depois, vão servir para a averiguação daquele, tornando-se provas suas".

Também Mittermaier em seu Tratado da prova em matéria criminal (p. 69), afirma que sem dúvida, a ciência pode formular certas regras para a indagação da verdade, mas estas regras são por sua natureza conselhos e não preceitos, são outras tantas advertências gerais, em cuja aplicação se deve também atender aos conselhos da prudência; a lei, porém, deve-se abster de estabelecer tais regras, porque se tornariam absolutas e imperativas, e seria igualmente pouco razoável prescrever a cada um o modo de pensar, como o modo de convicção.

A convicção do juiz muitas vezes não decorre das provas organizadas segundo o sistema legal. Deriva ela da lei natural, do concurso de uma infinidade de motivos, apóia-se em uma série interminável de pequenas circunstâncias. Os indícios refogem a regras pré-fixadas e encontram aferição na consciência do juiz, guiada por sólida e inafastável prudência.

As regras da prova derivam da experiência e do bom senso aplicados à indagação da verdade. Deste modo, o juiz não é escravo das normas estabelecidas pela lei em matéria de provas. Tanto é assim, que por mais plenas e demonstrativas que as provas sejam, se alguma dúvida subsistir em seu espírito, deve absolver o acusado.

Não é a produção de uma prova "plena" (confissão, por exemplo) que produz a certeza, mas sim as razões que atuam no espírito do julgador para que tenha plena fé nas afirmações do acusado ou das testemunhas, que atestam o fato criminoso e suas circunstâncias. Só porque duas testemunhas afirmem unissonamente: "Nós vimos Tício matar Caio", o juiz não poderá condenar, sem antes sopesar se as testemunhas lhe merecem fé; se puderam ter sido espectadoras do fato e se têm vontade firme de dizer a verdade; se os depoimentos encontram ressonância em outros elementos (inclusive nas declarações do acusado); se os depoimentos lhe parecem possíveis e verossímeis.

O mesmo se dá com a confissão. Ela só merece crédito após ser permeada por uma infinidade de considerações no espírito do juiz. Ora, diz Mittermaier, espontaneamente e sem a necessária reflexão não se pode acreditar em um homem que fala de um modo que o compromete, sem que a isso o impila alguma vantagem próxima; é preciso que o raciocínio nos mostre na confissão do crime o efeito providencial do grito da consciência. E quando o magistrado declara finalmente que o acusado deve ser acreditado, que os detalhes contidos em sua confissão parecem verossímeis, que concordam perfeitamente com os relatados nas peças do processo, é sempre pelo raciocínio que chega a assentar a sentença.

A confissão para ser aceita tem que ser verossímil. Ora, a verossimilhança é a primeira condição da verdade de um fato e sem esse atributo uma confissão não pode acarretar a condenação. Além disso, a confissão deve guardar concordância com o resultado de outras provas carreadas aos autos. Por tudo isso, é que o juiz deve ser escrupuloso na apreciação das confissões.

5- Conclusão

Nada é absoluto num processo judicial regido por uma nítida filosofia negativista. E por este modo, a verdadeira base da certeza é sempre a confiança simultânea na fidelidade dos sentidos e no poder do raciocínio, que, tomando por termo de comparação as experiências anteriores, submete-lhes como a uma medida certa dos fatos cuja realidade tem de apreciar.

Todas as vezes que as relações de um fato com outro permitirem estas espécies de inferências, é sobre esses fatos conjugados que a razão, robustecida pela experiência, constrói a sua certeza; tomam então a denominação de indícios, e, na verdade, como que parecem mostrar com o dedo o fato principal correlativo.

A certeza pode ser comunicada pelos indícios tão bem como por qualquer outra prova. Assim é impossível abafar a convicção da culpabilidade de um acusado, quando esta resulta do concurso convergente e seguro desses mesmos indícios. A condenação com base em indícios pode-se dizer que resulta de uma operação mista entre dados dos sentidos guiados por meios lógicos, sem se falar em evidência material. O espírito pode, sem se afastar de certos limites postos pela prudência, e alavancado em indícios, adquirir uma convicção plena e inteira. E não é a soma dos indícios que funda a certeza, mas o seu valor intrínseco.

NOTAS

1 - STF, HC 64.840, 1.ª Turma, j. 19.6.1987, Rel. Min. Néri da Silveira, RT 622/368.

2 - STF, JSTF-Lex 129/286: "O art. 14 da Lei de Tóxicos é autônomo, bastando para sua consumação que haja a formação do bando para a prática do tráfico de entorpecentes. Basta, para configurá-lo, a organização do bando. Não se identifica ele com a qualificadora prevista no item III do art. 18 da mesma lei, que consiste em ter o crime previsto na lei aludida sido praticado por duas ou mais pessoas".

TFR, JTRF-Lex 65/385: "O crime de associação, por sua natureza formal, não necessita da ocorrência efetiva do crime de tráfico para a integração da sua potencialidade danosa e perigosa. Por outro lado, não se prescinde de uma habitual exteriorização de seu fim específico".

3 - Jorge Medeiros da Silva, ob. cit., p. 41.

4 - RT 634/277.

5 - "Meros indícios de que existe associação permanente com objetivo do comércio ilícito de drogas, resultantes de depósitos bancários e anotações em agenda telefônica, não é suficiente para se reconhecer o crime do art. 14 da Lei Antitóxicos. O vínculo deve ser comprovado e não presumido" (TJRO, 08.05.1997, RT 745/636).

6 - C. J. A. Mittermaier, "Tratado da Prova em Matéria Criminal", Ed. Bookseller, 3.ª ed., 1996, p. 354. Refere este autor que a lei austríaca de 6 de julho de 1833 diz no art. 1.º, §3.º: Da combinação dos indícios, das circunstâncias e das relações estabelecidas, pela instrução deve resultar uma conexidade tão direta e tão clara entre a pessoa do acusado e o delito, que, segundo o curso ordinário e natural das coisas, não se possa supor que outra pessoa, que não o acusado, o tenha cometido.

7 - "A Lógica das Provas...", Vol. I, p. 45.

8 - Testibus non testimoniis fidem adhibere - Deve-se prestar fé não aos testemunhos mas às testemunhas.

9 - Mittermaier, Ob. cit., p. 113.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios Básicos de Direito Penal, Ed. Saraiva, 5ª ed., 1994.

GOMES, Geraldo. Tóxicos – Crime autônomo de associação, RT 516/247.

MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal, Vol. I, Tradução de Paolo Capitanio, Ed. Bookseller, 1996

MITTERMAIER, C.J.A. Tratado da provas em matéria criminal, Ed. Bookseller, 3ª ed., 1996.

SILVA, Jorge Medeiros da. A nova Lei de Tóxicos explicada, Ed. Legis Summa, 1977.

* O autor é Promotor de Justiça em Tabatinga-Am, tendo escrito as obras: "O Ministério Público e um novo modelo de Estado" e "Tóxicos: abordagem crítica da Lei n. 6.368/76". E-mail: gaspar@argo.com.br

 

Fonte: http://www.direitoemdebate.hpg.ig.com.br/art_entorpecente.html