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A Responsabilidade Penal dos Médicos os tipos legais de crime do Código Penal*

REV. PORT. ANEST. 1999; 10: 2: 74-105 VOLUMEN MONOTEMATICO

Maria Paula Bonifácio Ribeiro De Faria**

 

I. Introdução

Constitui a actividade médica uma das formas de actividade humana que sem sombra de dúvida mais contribui para a promoção de valores e interesses fundamentais da pessoa mas que de igual modo, e provavelmente pela proximidade que por esta via se deixa afirmar em relação aos mesmos valores e interesses, maior potencialidade revela sob o ponto de vista da ofensa ou lesão desses interesses. O que acaba por colocar a actividade médica no limiar de uni elevado número de normas jurídicas de natureza imperativa, qualquer que seja o ramo de direito cuja aplicação esteja em causa, cabendo-nos a nós falar aqui desta ordem de coisas sob a perspectiva jurídico-penal. O que nos leva a discutir a natureza do direito penal, a indagar dos seus pressupostos, a qualificar sob o ponto de vista jurídico-penal o acto médico, a enumerar os tipos legais de crime cuja aplicação se pode mostrar mais frequente no contexto da actividade curativa, e finalmente a referir as sanções eventualmente aplicáveis.

Esta questão, a da efectivação da responsabilidade penal do médico não é, diferentemente do que por vezes se possa pensar, uma questão recente, ou que tenha surgido nos quadros do pensamento jurídico há poucos anos, um pouco à semelhança de uma série de outro tipo de matérias cuja regulamentação legal foi sendo imposta pelo desenvolvimento científico e técnico (v.g. os acidentes de viação no âmbito do direito civil, as preocupações com o ambiente, com os abusos decorrentes da utilização da informática, etc. ).

Um dos mais antigos testemunhos dessa regulamentação chega-nos da Babilónia (Código de Hamurabi-1728-1686 A. C.) onde, a par de determinações relativas ao pagamento dos serviços médicos, se prescrevia como sanção para o médico cujo paciente falecesse na sequência do tratamento, o corte das mãos. Já no Egipto, e isso interessa-nos porque não anda longe esta perspectiva de coisas do modo como o nosso legislador resolveu tratar a intervenção curativa colocando-a à margem de uma certa forma de responsabilidade, o prestígio de que gozava a classe médica era de tal ordem, que se a doença fosse tratada de acordo com critérios reconhecidos, e qualquer que fosse o resultado, o médico era isento de responsabilidade. Identicamente nos chegam regras sobre a actividade médica da Mesopotâmia, da India, e da China, onde, 2000 anos antes de Cristo, já se prescrevia a obrigatoriedade de registo para os médicos, sendo levada a cabo uma apertada fiscalização da sua profissão1

Deixando por ora ordenamentos jurídicos longínquos, e retirando desta referência tão só a utilidade de demonstrar que esse "incomportável fardo" que é o risco da efectivação de uma responsabilidade civil ou penal neste âmbito de actividade, não é dos dias de hoje, nem um mal dos tempos modernos, vamos passar ao que verdadeiramente nos importa, e que é a regulamentação jurídico-penal deste ramo de actividade.

 

2. A Natureza Do Direito Penal E Respectivas Sanções; O Seu Carácter Subsidiário;

Começamos por salientar o estarmos perante a forma de responsabilidade mais gravosa que pode ter lugar dentro do Estado dada a natureza das sanções que envolve. Está em causa, na maior parte dos casos, a aplicação de uma sanção privativa de liberdade, a pena de prisão, que uma vez que traduz uma forte restrição dos direitos, liberdade e garantias do cidadão, terá que ser a ultima ratio da punição, tendo que assumir carácter subsidiário face a outras formas de tutela jurídica. Isso não quer dizer que onde intervenham outros ramos de direito, onde, por exemplo, se imponha a sanção civil, ou a obrigatoriedade de uma indemnização, o direito penal não intervenha. Significa apenas que o direito penal apenas poderá intervir, e aí muitas vezes a par com outros ramos do ordenamento jurídico, onde se trate, não só da tutela de interesses fundamentais, como onde a tutela conferida por outros ramos de direito se mostre insuficiente2.

Ora este aspecto que acabamos de referir não é de menor interesse no contexto que nos ocupa. Desde logo, porque como já tivemos oportunidade de mencionar, a actividade médica é decerto a que de mais perto trabalha com bens jurídicos fundamentais como a vida, a integridade física, e a liberdade das pessoas. E assim sendo, não se discute sequer a necessidade da intervenção do direito penal onde de perto se fale da lesão destes bens jurídicos. Mesmo onde intervenha o direito civil, e esta não é decerto uma forma ligeira de responsabilidade, nem por isso se deixa de considerar a hipótese da aplicação de uma sanção penal.

Supondo que se conjugam, como é possível, e sucederá até na maioria dos casos, responsabilidade civil , por força as mais das vezes da violação de direitos de personalidade, e responsabilidade penal, importa salientar dois aspectos:

Em primeiro lugar, a distinta natureza do procedimento: tendo o processo penal natureza eminentemente pública isso significa que, dependendo da natureza do crime em causa, a investigação e a aplicação de uma sanção penal não se encontra na total disponibilidade dos particulares, cabendo ao Estado a função de investigar e punir o criminoso. Cabe fazer aqui uma distinção eventualmente útil, entre crimes públicos (v.g. homicídio), em que cabe ao Ministério Público a decisão de investigar ou não o crime e de o sujeitar ou não a julgamento; crimes semi-públicos ( v.g. ofensas à integridade física negligentes) em que o particular decide se deve ou não iniciar o processo crime através da apresentação de queixa (arts. 113º e ss.) mas a partir daí a responsabilidade de todo o processo passa para as mãos dos órgãos estaduais competentes, e crimes particulares ( v.g., grande parte dos crimes contra a honra: difamação, injúria, etc.) em que o próprio particular ofendido decide sobre se deve ou não apresentar queixa, e sobre se deve ou não apresentar os factos apurados em fase de investigação a julgamento3. A maior parte dos crimes susceptíveis de serem cometidos por médicos são semipúblicos, execeptuando as ofensas àintegridade física graves, homicídio, atestado falso, recusa de médico; são-no as ofensas à integridade física negligentes, as intervenções médicas arbitrárias, violação de segredo profissional, entre outros. Embora o processo penal não seja disponível no caso de crimes que dependam de queixa o particular pode desistir dela, desde que o arguido a isso não se oponha, até à decisão da 1ª instância4.

Em segundo lugar, cabe ter presente que uma vez instaurado o processo penal o pedido de indemnização cível deve ser apresentado na instância penal. Chama-se a este princípio, princípio da adesão, e encontra-se consagrado no art. 71º do Código de Processo Penal5. A apresentação do pedido de indemnização na instância civil, for a dos casos excepcionais em que a lei imponha a dedução do pedido em separado, vale como renúncia tácita ao direito de queixa.

 

3. A Qualificação Da Intervenção Médica;

O Código Penal anterior não se preocupava especificamente com este âmbito de actividade pelo que a responsabilidade penal do médico era apurada nos termos gerais, considerando a maioria da doutrina que a intervenção médica constituia uma ofensa corporal típica justificada pelo consentimento do paciente6, e não faltando mesmo quem visse no exercício da profissão o cumprimento de um dever também ele dirimente de responsabilidade7. Ora da ignorância quase total a que eram votados os tratamentos médicos, passouse a regular expressamente problemas penais como o aborto (art. 140° e ss.), a inseminação artificial (168°), a recusa de auxílio médico (284° e 285°), os atestados falsos (art.260°), a interdição do exercício da actividade profissional em virtude de crime cometido no exercício das funções (art.66° e 100°), etc.8.

A grande mudança operada a este nível deu-se todavia retirando, por um lado, as intervenções médicas do quadro das ofensas à integridade física, que segundo alguns equiparava indevidamente o médico ao faquista ou ao brigão, e forçando por outra banda, à consideração da liberdade e autonomia do paciente individual como bem jurídico fundamental, cuja tomada de atenção, por via do consentimento do paciente e do seu esclarecimento, se impõe ao médico, como valor igual ou superior àfinalidade terapêutica prosseguida (o que é fonte das maiores incompreensões recíprocas)9.

Assim, determina o art. 150° do Código Penal: "As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física10. A intervenção curativa nunca poderá constituir, ponto é que se reunam determinados requisitos, uma ofensa à integridade física do doente, já que a finalidade prosseguida e a valoração da conduta do profissional de saúde apontam no sentido oposto. Se hoje é assim sem reservas, cabe deixar todavia a referência que nem sempre foi assim (recorde-se que em 1966 o Projecto de Código Penal de Eduardo Correia punia como ofensa corporal a intervenção médica levada a cabo contra a vontade do paciente), e nem é assim em muitos países da Europa. Veja-se o caso do direito penal alemão, onde, muito embora contra as vozes dominantes da doutrina, as intervenções médicas continuam a ser típicas sob o prisma dos tipos legais de ofensas à integridade física11

Essa atipicidade, este passar à margem dos tipos legais de crime que tutelam a integridade física, tem naturalmente pressupostos e não ocorre sem restrições. A qualificação como intervenção médico-cirúrgica para efeitos do art.150° do Código Penal depende de uma série de requisitos de ordem subjectiva e objectiva cuja enumeração pensamos poder aqui ser útil. Trata-se de pressupostos cumulativos a dar expressão a intenção do legislador de não estender sem reservas este "benefício terapêutico" a áreas vizinhas ou fronteiras à intervenção curativa.

Sob o ponto de vista subjectivo exige-se que se trate de médico ou outra pessoa legalmente autorizada a executar o tratamento e ainda que se possa afirmar da sua banda uma específica intenção de curar, intenção essa que é entendida em termos de alguma forma amplos, uma vez que abrange a "intenção de prevenir, debelar, diagnosticar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal"12. Fala-se aqui de finalidade curativa, a excluir todas as intervenções que não têm por beneficiário directo o paciente, mas que visam obter em primeira linha conhecimentos científicos, e, se o quisermos, a cura de doentes futuros13. Trata-se da chamada experimentação humana, área em relação à qual além de ausente a intenção curativa não é possível a afirmação dos demais requisitos de que depende a qualificação da conduta médica como tratamento curativo, ou seja, a indicação objectiva e a execução segundo as leges artis. Já cá voltaremos, de resto.

Num plano estritamente objectivo, exige-se ou espera-se a afirmação de uma indicação terapêutica e a execução do tratamento segundo as leges artis. A indicação terapêutica supõe não só a idoneidade do tratamento em causa face à doença diagnosticada, como a inexistência de meio mais benigno e ainda assim proporcionado àgravidade do mal em causa. Este juízo assenta numa ponderação de riscos e vantagens da intervenção que não se deixa evidentemente identificar com critérios e cálculos estritamente matemáticos envolvendo factores humanos e de ordem lógica, e que supõe ele próprio a existência de conhecimentos e regras que o tornem possível (ou seja, se o tratamento é desconhecido pode não ser possível afirmar que a esperança de vida do doente aumenta com a sua execução). Com o que se pretende afirmar a estrita dependência deste pressuposto em relação às leges artis.

São estes dois pressupostos que traduzem a intenção do legislador de restringir este "tratamento de favor" aos métodos de terapia que se deixam identificar com a chamada medicina acadêmica ou tradicional. Poderemos certamente indagar do seu âmbito, no entanto considera-se ser relativamente pacífico o seu afastamento face a todos os tratamentos e métodos cujos processos ainda não se encontram cientificamente convalidados (mesmo que aplicados com intenção curativa-pense-se nos transplantes de órgãos ainda uns anos atrás), soluções pertencentes à chamada medicina naturista, ou, como élógico e ocioso sequer lembrar, métodos supersticiosos ou similares14. Trata-se todavia de uma área de contornos difusos, altamente precária, e que se encontra sujeita àpermanente evolução das ciências médicas.

Importa ainda deixar algumas notas acerca das leges artis. Trata-se, na sequência da opção legislativa a que vimos de fazer referência, das "regras generalizadamente reconhecidas da ciência médica". É neste âmbito, ou em relação a este pressuposto, que se colocam as maiores dúvidas, e que se suscitam os maiores conflitos. A violação destas regras deixa-se identificar com o chamado "erro médico", que ao afastar esta disposição normativa, e provados os pressupostos de que depende a culpa negligente, é susceptível de responsabilizar o médico por um eventual resultado funesto para a integridade física ou vida do paciente. Também a inexistência de uma indicação objectiva conduzirá ao mesmo resultado, se bem que se possa considerar que nesta última hipótese se tratará mais de um erro de diagnóstico e escolha de terapia, enquanto que na primeira das hipóteses referida se falará mais apropriadamente de um erro de execução.

Reunidos que sejam estes quatro pressupostos estamos então perante uma intervenção curativa que mesmo que não se rodeie de sucesso, e por isso se venha a revelar, nociva sob o ponto de vista da integridade física ou da vida do paciente individual, não pode nunca vir a ser imputada ao médico a esse título. Isto simplesmente porque a responsabilidade nesses domínios implicaria sempre, pelo menos, a violação das leges artis, ou a inexistência de uma indicação. E nessas situações não se poderia falar de uma intervenção curativa. É usual distinguir da intervenção curativa a investigação curativa e a investigação humana, sendo certo que num e noutro caso se trata todavia de ofensas àintegridade física típicas que podem ser legitimamente levadas a cabo a coberto do consentimento do paciente. Distinguem-se entre elas na medida em que se torna possível assinalar à investigação curativa uma indiscutível finalidade terapêutica, pois que é executada no interesse do paciente individual, muito embora não se possa afirmar concomitantemente a existência de uma indicação objectiva e das próprias leges artis (transplantes de coração-pulmão por contraposição aos transplantes de rins ou de medula óssea como procedimentos em absoluto consolidados), enquanto que no âmbito da experimentação humana, como aliás já deixámos dito, não existe intenção curativa, sendo identicamente controvertidas a existência da indicação objectiva e das leges artis.

Afastados também deste regime estão as operações cosméticas. Muito embora mais próximos da intervenção curativa que a experimentação humana, já que está em causa um benefício para o paciente individual, é unânime, ou quase unânime, a sua exclusão do âmbito de aplicação deste artigo e do regime que consagra. Repare-se todavia que não estamos a pensar em correcções ortopédicas, ou destinadas a evitar problemas de integração social ou outras, como seria o caso da correcção de terríveis deformações causadas por um acidente15.

 

4. As Intervenções Médicas Arbitrárias-A Tutela Da Liberdade E Autonomia Do Paciente Individual;

Assentando pois na exclusão da intervenção médica da área de tutela das ofensas à integridade física e à vida, fica por analisar a eventual relevância penal de um tratamento realizado com finalidade curativa, medicamente indicado, e executado segundo as leges artis, por um médico, ou outra pessoa legalmente autorizada. Essa relevância penal dar-se-á no âmbito das lesões àliberdade e autonomia do paciente quando o seu consentimento para a intervenção não foi prestado ou não é válido. Fala-se aqui de intervenções médicas, porque em todo o caso não deixam de o ser, arbitrárias, passando a ter aplicação o art.156° do Código Penal.

Dispõe o texto deste artigo: "As pessoas indicadas no art. 150° que, -em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". O crime em causa é um crime contra a liberdade. E isso significa duas coisas: por um lado, que não basta ao médico a intenção de curar ou de libertar o seu paciente de um mal, sendo necessário que para isso concorra a sua vontade; por outro lado, agora numa perspectiva positiva, que a intervenção médica que tenha lugar a coberto do consentimento escapa a qualquer âmbito de incriminação, tendo que ser respeitada como manifestação da vontade do próprio paciente individual. Deixa-se aqui deduzir um conflito fundamental: e esse conflito é-o entre a liberdade e a autonomia da pessoa, que em última análise pode significar que esta não pretende um tratamento que significa no caso concreto a sua única hipótese de sobrevivência, e a integridade física, a vida e a saúde. E esse conflito é relativamente recente, como o demonstra o facto de durante séculos o médico só ser punido se a sua conduta se deixasse subsumir aos tipos legais de crime da coacção e do sequestro, e por outro lado, de se entender como plenamente legitimada a intervenção arbitrária destinada a salvar a vida do paciente. Aqui são particularmente relevantes quatro âmbitos de questões. Vamos começar por nos referir ao problema do consentimento para intervenções a levar a cabo em menores.

Estando em causa menores ou outros incapazes o consentimento cabe, por regra, aos seus representantes legais16. Impõe de resto o art. 77° do Estatuto da Ordem dos Médicos que:.... antes de operar um doente, o médico. deve obter o seu consentimento ou o dos seus pais ou tutores se o doente fôr menor". Se estes últimos não prestam o seu consentimento, verificados que sejam todos os requisitos de que depende a afirmação de uma intervenção curativa, entende uma parte significativa da doutrina que a verdadeira justificação reside aqui, na necessidade de executar o tratamento para salvaguardar a vida ou a integridade física do menor, pelo que o médico poderia legitimamente actuar. Eis o caso de escola: A e B, pais de C, recusam, por motivos religiosos a execução da transfusão de sangue necessária para salvar a vida de C17. Face a um conflito desta natureza, e gorados todos os esforços no sentido de obter dos pais o respectivo assentimento, deverá o médico tentar tornear essa recusa contactando o juiz do tribunal de menores, e solicitando a inibição do poder paternal e o suprimento judicial do consentimento em falta18. Não sendo possível o contacto, ou conduzindo ao perigoso protelamento da transfusão em termos da saúde do menor, somos da opinião, de resto não isolada, que a intervenção deverá ser efectuada pelo médico. Os argumentos são muitos, mesmo sob um ponto de vista estritamente jurídico: o poder paternal de acordo com o art. 1878°, n.° 1, do Código Civil, só pode ser exercido no interesse do menor, o que não é evidentemente o caso19. mesmo que se invoque o art. 1886° do mesmo Código que confere aos representantes legais o direito de decidir sobre a educação religiosa dos filhos menores de dezasseis anos, pensamos que esse direito nunca poderá prevalecer sobre o interesse do menor em conservar a sua vida, não existindo sequer um direito que os pais possam invocar neste sentido. Por outro lado, o art. 156° do Código Penal referese expressamente ao consentimento do paciente, pelo que não sendo possível a este último prestá-lo, e não se encontrando os pais a exercer o direito que lhes assiste no interesse efectivo do mesmo menor, não existindo ao fim e ao cabo um direito na verdadeira acepção da palavra, não se iria estar a tutelar a autonomia dos pais do menor por esta via. A verdadeira justificação reside na existência de uma indicação, pelo que nestes casos existiria um dever dos pais de conferir o seu consentimento20. Mesmo que assim não se pense não se colocam aqui grandes dúvidas que não constituindo o bem jurídico a tutelar pelo já citado art. 156° a liberdade religiosa dos pais do menor, existe indiscutivel superioridade da vida e da integridade física do mesmo menor relativamente à autonomia e liberdade dos pais, sobretudo se se tiver em conta que o direito por estes exercido é um poder-dever, funcionalizado, e orientado em todos os momentos para a realização do interesse do menor21

Coloca-se em segundo lugar a questão do dever de esclarecimento do médico e dos seus limites. Para que o consentimento justifique é necessário que estejamos perante um consentimento expresso, livre e esclarecido. Relativamente a esta matéria rege o art.157° Código Penal que afirma: "Para o efeito do disposto no número anterior, o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar o conhecimento de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica". Claro que o médico pode não ter cumprido integralmente as exigências do dever de esclarecimento por estar erradamente convencido quanto ao alcance desse dever. Se esse erro não fôr censurável, considera-se excluída a culpa (regime geral do art. 17°).

Em sede de esclarecimento convém ainda ter em conta que, se bem que este deva ser sempre o mais completo e exaustivo possível de forma a fundar um consentimento eficaz por parte do paciente, o legislador entendeu que em determinadas circunstâncias se justifica uma diminuição do alcance desse mesmo esclarecimento em nome da finalidade terapêutica prosseguida. Digamos que se trata de uma "cláusula de humanidade", justificada juridicamente por via da redução da autonomia do doente, designadamente quando se encontra em estado terminal, que possibilita ao médico proceder ao tratamento, àintervenção, à administração de medicamentos susceptíveis de minorar o sofrimento, sem a necessidade concomitante de confrontar o mesmo doente com a realidade da sua situação clínica.

Sendo sempre necessário o consentimento do paciente para a execução de uma intervenção curativa, consentimento esse que como vimos de ver deve ser expresso, livre, e esclarecido, há situações em que ele poderá ser dispensado uma vez que o legislador entendeu que a protecção da autonomia da pessoa não pode valer sem reservas, ou com o sacrificio absoluto de outros bens jurídicos pessoais. Fala-se a este propósito de um favor vitae, no sentido de que a vida e a integridade física do paciente terão em certos casos prevalência em relação àautodeterminação que o mesmo legislador quis tutelar. Assim, e nos termos da alínea a), do n.° 2, do art. 156°, não é punível a intervenção realizada sem o consentimento do paciente, quando este só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde. Estamos a falar de uma primeira hipótese de consentimento presumido, abrangendo esta alínea todos aqueles casos em que o doente dá entrada no hospital inconsciente, ou em todo o caso incapaz de prestar o seu consentimento, envolvendo a não execução imediata da intervenção graves riscos. Supõe-se sempre que "não existam circunstâncias que permitam concluir com segurança que o tratamento seria recusado22. Esta questão reveste-se de bastante importância nas hipóteses de suícidio, ou mais correctamente de tentativa de suicídio, em que o doente dá entrada no hospital inconsciente e sabe-se que a sua vontade era terminar com a vida tendo até em certos casos deixado documentos a comprovar essa intenção (o chamado testamento de paciente). Tem-se entendido a este propósito que sempre se poderá argumentar com a inexistência de uma vontade actual. O doente pode perfeitamente ter mudado de opinião entre o momento da prática do facto e o momento em que dá entrada no hospital, pelo que não existem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento continuaria a ser recusado. Mais complicadas se tornam as coisas, e o legislador penal com a revisão do Código veio resolver, ao que pensamos satisfatoriamente, a questão, pelo menos a contento da classe médica em geral, e de todos aqueles que atribuem um valor fundamental à vida, se o suicida se encontra consciente e recusa o seu consentimento para a intervenção. Em princípio essa vontade teria que ser respeitada se o médico não quisesse incorrer em responsabilidade penal por via do tipo legal de intervenções médicas arbitrárias, no entanto o legislador estabeleu um tratamento diferenciado do suicida em relação ao chamado "homem normal". Em nome de uma eventual perturbação da capacidade de decisão, de qualquer das formas em prol da vida, estabelece ou consagra o art.154°, n.° 3, alínea h), no âmbito do crime de coacção, uma causa de justificação específica para estes casos que vale inteiramente para aqui: o facto não épunível quando visa evitar suicídio. Apesar de tudo entende-se que não se deixa daqui deduzir uni dever do médico no sentido de intervir e que o responsabilize pelo resultado morte caso ela ocorra23.

Por sua vez, a alínea b), do n.° 2, do art. 1560, estabelece unia outra situação em que apesar do consentimento não poder ser expressamente obtido, entendeu o legislador ser de privilegiar a solução clínica:---sempreque o consentimento tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde". Tratase de hipóteses muito frequentes em cirurgia que costumam ser designadas como de alargamento do campo operatório, em que só depois de iniciada a cirurgia, e com o paciente anestesiado, é que o médico dá conta de necessidades não contempladas pelo consentimento prestado. Como é humanamente inviável, ou pelo menos a todos os títulos inexígivel, a interrupção da intervenção para solicitar o consentimento ao doente, parece ter sido esta a solução que se revelou mais acertada. Vale todavia também aqui a restrição que já tinhamos referido a propósito da alínea anterior, só podendo considerar-se justificada a intervenção curativa com base no consentimento presumido se se provarem circunstâncias no sentido da não concessão do consentimento.

Finalmente, cabe-nos referir todas as situações em que o médico actua no cumprimento de uma obrigação ou autorização legal, designadamente no contexto de prevenção de epidemias, doenças contagiosas, etc. O mesmo valendo para tratamentos compulsivos impostos a pessoas com determinados estatutos profissionais, v.g. presos. No que se refere à prisão cabe tomar nota do DL n.° 265 xvi. 79, de 1 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo DL n.° 49 180, de 22 de Março, que admite expressamente a sujeição do recluso a tratamentos coercivos ou de alimentação forçada, no caso de greve de fome. Estabelece o art. 127° do mesmo diploma: "Só podem impôr-se coercitivamente aos reclusos exames médicos, tratamentos ou alimentação em caso de perigo para a sua vida ou grave perigo para a saúde". E duvidosa a legitimidade constitucional deste regime que importa uma forte restrição do direito de autodeterminação do preso em relação ao cidadão normal. Assim, poder-se-ia entender que a regra valeria sem reservas em relação àtentativa de suicídio, incluída a greve de fome, mas já não face à recusa de tratamento perfeitamente normal (tratamento dentário, por exemplo).

Com todas estas especifidades, convém não perder de vista a regra geral. Tratando-se de uma. intervenção curativa a única hipótese de incriminação coloca-se por via das intervenções arbitrárias, logo, por via da lesão da autonomia do paciente. Não podem ser executados tratamentos, quaisquer que eles sejam, profilaxia, diagnóstico, terapia, sem o devido consentimento do paciente. Não existe um dever de tratar pelo que por mais irracional, e mesmo prejudicial para o paciente que se revele a recusa, o médico tem que a respeitar, mesmo que em concreto traduza o sacríficio da vida: assim, se o doente recusa a continuação do tratamento necessário para lhe salvar a vida, ou se não se quer submeter à única intervenção que o pode curar, não há qualquer hipótese de legitimação de uma cura coactiva.

 

5. O Segredo Profissional Xvi. O Art. 195° Do Código Penal;

"Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias". O interesse que se quer ver protegido é o da reserva sobre a vida privada das pessoas24. se bem que a par desse interesse considere grande parte da doutrina alemã estar em causa a confiança pública na discrição de certas categorias profissionais capaz de funcionar inclusivamente como condição essencial do bom exercício da actividade correspondente25. Tutelarse-ia por esta via, se bem que em todo o caso de forma secundária, o eficaz exercício da medicina, fortemente tributária da confiança do paciente no seu médico, permitindo-lhe o acesso a pormenores ou informações que não quer seguramente ver revelados, mas que são tantas vezes determinantes para o sucesso do tratamento.

Poder-se-á todavia vir a suscitar um conflito entre esse mesmo interesse, o interesse em ver preservada essa esfera íntima de vida, e o interesse do Estado na administração da justiça. Por princípio pode ser invocado o segredo profissional como motivo de escusa a depôr sobre os factos abrangidos pelo segredo, de acordo com o art. 135° CPP26. Todavia, pode o tribunal superior aquele em que o incidente se tiver suscitado, ou no caso de se tratar do Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, decidir pela ilegitimidade da escusa, e pela quebra do segredo profissional, sempre que esta se mostre justificada à luz dos princípios de direito penal, designadamente o princípio do interesse preponderante. Essa decisão, no entanto, só será tomada, uma vez ouvido o organismo representativo da profissão cujo segredo profissional está em causa. A desobediência a uma tal ordem é punida nos termos do art. 360°, n.° 2, do Código Penal, com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.

Outro aspecto, também ele relevante em matéria de administração da justiça, diz respeito aos factos que são levados ao conhecimento do médico pelo exercício da sua profissão e que constituem crime ou fortes indícios sobre a sua prática. Estamos a pensar no caso do menor que e apresentado na urgência vítima de sevícias sexuais ou de maus tratos. Aqui importa distinguir duas situações: a primeira diz respeito ao médico que tem conhecimento do facto enquanto funcionário público. Nesta hipótese recai sobre ele um dever de denúncia de acordo com o art. 242°, alínea h), do CPP: "a denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos, para os funcionários, quanto a crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas", que justifica evidentemente a quebra do sigilo profissional. A outra alternativa diz respeito aos mesmos factos quando levados ao conhecimento do profissional de saúde por via da sua actividade de clínica privada. Nesses casos não se pode falar de qualquer dever de denúncia uma vez que este não existe, mas pensamos que mais uma vez com base no princípio do interesse preponderante se pode aplicar aqui o disposto no art. 192°, n°2, do Código Penal, onde se justifica a difusão de factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa, quando seja levada a cabo como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante.

Importa a este propósito caracterizar melhor o dever de sigilo: desde logo o segredo, entendido como facto ou factos conhecidos de um círculo restrito ou limitado de pessoas e cuja não divulgaçao corresponde a um interesse compreensível da parte do paciente27. tem que ter chegado ao conhecimento do médico por força da sua qualidade profissional, muito embora possa referir-se afactos não directamente relacionado com a saúde do paciente, e possa ter-lhe sido revelado for a das horas de serviço. O médico pode não ter tido conhecimento dos factos directamente por via do seu paciente, mas por força, por exemplo, de uma investigação destinada a conhecer mais aprofundadamente as causas da doença (chegou à conclusão de que os pais do seu doente sofrem de uma doença genética grave), em virtude de conversas com os familiares, ou no decurso de uma visita domiciliária.

A revelação do segredo pode ser justificada de várias formas: por via do consentimento expresso do doente, por força do seu consentimento presumido (se énecessário informar os familiares de um doente inconsciente do seu acidente), por imposição legal, ou por via de uni direito de necessidade, quando sendo exígivel o sacrifício do direito, se trate de salvaguardar bens ou interesses sensivelmente superiores. Assim, quando se trate de avisar familiares do risco de uma doença altamente contagiosa, ou de que o seu familiar recém-falecido era portador de uma doença geneticamente transmíssivel, de notificar as autoridades de que determinado indíviduo não se encontra em condições de conduzir em segurança, e por aí for a. Todavia já não é legítimo, e a questão aqui deixa-se desenrolar em moldes paralelos aos que vimos a propósito dos tratamentos arbitrários, divulgar a doença de determinada pessoa aos seus familiares contra o seu pedido consciente, instante e expresso, mesmo que esta seja em concreto a única forma de o salvar (porque não tem dinheiro, porque lhe falta medula óssea que estes lhe poderiam ceder sendo compatíveis, etc), quaisquer que sejam os motivos invocados (até pode não ter motivos nenhuns).

 

6. Art. 260° Código Penal XVI. Atestados Falsos;

Determina o nº 1 desta disposição:"O médico, dentista, enfermeiro... que passar atestado ou certificado que sabe não corresponder à verdade, sobre o estado do corpo ou da saúde física ou mental, o nascimento ou a morte de uma pessoa, destinado a fazer fé perante autoridade pública ou a prejudicar interesses de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias". O nº 3 refere-se por seu turno à actuação daquele, muito embora esse tipo de conduta aqui não nos importe particularmente, que proceda de forma similar simplesmente não tendo as qualidades que se arroga, ou seja, não sendo efectivamente médico, enfermeiro, ou equiparado. Por fim, o nº 4 refere-se à punição de todo aquele que utilizar documento nestas circunstâncias.

Vamo-nos debruçar unicamente sobre o regime do nº 1 deste artigo. Isto é, vamo-nos referir apenas ao testemunho de conteúdo falso emanado por uma pessoa competente. O atestado de que fala o artigo terá que se referir ao estado do corpo ou saúde física ou mental de uma pessoa, não apenas o estado actual, mas também doenças de que padeceu e eventuais sequelas que deixaram, a probabilidade de vir a sofrer de determinado mal ou de se curar dele. O atestado é falso se o médico o passa sem ter procedido a qualquer exame prévio, uma vez que a confiança e a fé pública deste tipo de documentos depende de ter lugar um comprovação regular dos factos dele constantes, se bem que, desta forma, não se pretenda evidentemente exigir ao médico que esgote todos os meios de diagnóstico para emanar um atestado. A doutrina alemã é da opinião que um atestado que no geral corresponda à verdade, mas que contenha inexactidões de pequena importância, também preenche este tipo legal28. É decisivo que o documento se destine a fazer fé perante autoridade pública (declaração de incapacidade para efeitos fiscais), ou a prejudicar os interesses de outra pessoa, que, em concreto, pode ser individual ou colectiva (entidade patronal, agência de seguros). O crime consuma-se, não com a utilização do atestado, mas com a simples entrega do mesmo para utilização posterior,

 

7. Os Crimes Contra A Integridade Física;

Vimos que a existência de uma intervenção curativa e a consequente desresponsabilização do médico nesta área dependia estritamente da verificação de uma série de requisitos de natureza cumulativa. Encontrando-se ausente a qualidade profissional do médico, a intenção de curar, a indicação objectiva ou a actuação segundo as leges artis, passaríamos a estar perante ofensas àintegridade física, em certos casos justificadas pelo consentimento do paciente.

Afastando agora, por mais remota e menos frequente, a hipótese da experimentação ou da investigação curativa, a que de resto já dedicámos algumas breves palavras a propósito do art. 150° do Código Penal, importa agora virar a nossa atenção para aquele conjunto de situações, eventualmente mais frequente, e decerto mais preocupante quer sob o ponto de vista do clínico, quer do paciente individual, que constituindo na gênese intervenções curativas, perdem essa qualidade porque o médico violou, aceite-se que sempre de forma não intencional ou negligente, as leges artis. Claro que também podemos falar de situações de ausência de uma indicação objectiva, inclusivamente por erro de diagnóstico, ou de falta de intenção de curar, se bem que não se trate, em qualquer dos casos, das hipóteses mais comuns.

De qualquer dos modos: o que aqui vamos deixar dito, vale dizer, as breves notas sobre a negligência médica que tratámos de reunir, valem sem sombra de dúvida, para todas essas hipóteses em que de um modo ou de outro o profissional de saúde erra. Em primeiro lugar, cabe ter em conta que quando se fala de negligência em direito penal quer-se traduzir um particular conteúdo da vontade do agente face à realização do ilícito, distinto do dolo que consiste "no conhecimento e vontade da realização de um ilícito típico"29, e que tem de particular o facto de só ser punida, enquanto forma menos grave de culpa, nos casos previstos na lei30. A negligência diz-se consciente quando tendo o agente representado o resultado contrário ao direito como efeito provável da sua actuação não se conforma com o risco da sua verificação, vale dizer, no nosso caso, a morte do paciente, as lesões da integridade física, e é inconsciente sempre que o agente não representa sequer a possibilidade da produção do resultado. Trata-se em ambos os casos de uma violação de um dever de cuidado que a ordem jurídica impõe genericamente aos membros de uma sociedade. A sua afirmação no caso concreto depende desde logo de pressupostos e, objectivos: a previsibilidade objectiva do resultado, que independentemente da capacidade de previsão do agente, tem lugar sempre que para o homem médio, para o profissional medianamente diligente colocado naquela situação, fosse possível prever o desenlace funesto, a possibilidade objectiva de actuar de outro modo, ou seja, a possibilidade efectiva, real, de cumprir com o dever de cuidado, e a existência de um nexo causal entre a violação do dever de cuidado e a ocorrência do resultado. Os seus pressupostos subjectivos são por outro lado: a previsibilidade subjectiva, uma vez que apesar de objectivamente não ser prevísivel um determinado resultado poderá no caso concreto o agente ter conhecimento de certos elementos que lhe permitam antever o resultado e que lhe tornem exigível a adopção de determinadas cautelas, e a possibilidade subjectiva de actuar de outro modo. Como é evidente, e em relação a este último pressuposto, a lei não supõe o herói moral, o médico que trabalhou 24 horas por dia pode sentir sono durante uma intervenção e apressá-la sem tomar as devidas precauções, mas o que a ordem jurídica aqui censura é a aceitação de um tal encargo e por isso mesmo se fala de culpa por assunção), sem se estar nas melhores condições, ou sem se ter as qualidades para tal31 Mas que dizer em todos aqueles casos em que o hospital não dotado dos meios humanos suficientes sobrecarrega os profissionais de saúde em termos de horário de trabalho?

Passando para o plano da realidade concreta, o direito francês distingue três grandes grupos de situações de negligência: desde logo, o erro de diagnóstico, que não existe sempre que se deixe explicar pela complexidade dos sintomas e pela dificuldade de interpretação, simplesmente porque mesmo o melhor profissional colocado naquela situação concreta não actuaria de outra forma, e também porque no plano subjectivo não se pode afirmar uma qualquer censura já que não há previsibilidade no imponderável e no fortuito, e já que o médico cumpriu com todos os deveres de cautela que sobre ele incidiam, não lhe sendo possível actuar de outro modo; o erro na escolha do tratamento, quando, por exemplo, o médico utiliza uma técnica perigosa e hoje em dia condenada. Aqui, a afirmação de que não conhecia outra técnica não o exime de responsabilidade, precisamente porque, e já o deixámos dito atrás, a possibilidade subjectiva de actuar de outro modo não pode justificar a inércia ou a incapacidade, designadamente em profissões que exigem esforço de actualização ou qualidades específicas. Como afirma Haus, nos seus princípios gerais do direito penal belga: "o dever é mais imperioso face aqueles que em virtude do seu estado, profissão, relações em que se encontram, são obrigados a adquirir os conhecimentos e a adoptar as precauções particulares, para prevenir os acidentes e os azares"; e finalmente, o erro na execução do tratamento ou o erro na execução, que tem lugar, por exemplo, pela injecção de um produto anestésico, não obstante se verificarem sintomas que exigiriam a suspensão imediata da sua administração, a anestesia executada sem prévia lavagem ao estômago da doente que tinha terminado de efectuar uma refeição, o atraso de uma intervenção que é adiada para dois dias mais tarde pelo cirurgião, etc.

É certo que a negligência do médico não se apura pelo grau de diligência que teria um cidadão normal naquelas circunstâncias concretas, mas pela atitude que teria adoptado em idêntico contexto um colega médico, da mesma formação e experiência. Não podemos ceder todavia à tentação de ser excessivamente objectivos, pois que constituindo um dos princípios básicos do direito penal o princípio da culpa, é fundamental saber se essa falta objectiva de cuidado se ficou ou não a dever a um defeito da personalidade do agente, se de facto lhe foi censurável na situação concreta a não adopção das cautelas objectivamente exígiveis, face a um risco objectivamente prevísivel. Determina o art.15°:" Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz...".

Vamos analisar um caso retirado da jurisprudência dos tribunais franceses: A, médico obstetra, esquece-se, no decurso de uma cesariana, de retirar duas compressas da cavidade abdominal da paciente, que, em consequência do sucedido, vem a sofrer de dores persistentes. No decurso de uma segunda intervenção levada a cabo por outros cirurgiões, são retiradas as referidas compressas que se tinham colado aos intestinos. O casal, uma vez informado do sucedido, resolve apresentar queixa.

Indubitavelmente que o abandono de duas compressas no corpo da paciente constitui uma conduta objectivamente ilícita já que o cirurgião teria o dever de averiguar antes de suturar o campo operatório se algum corpo estranho aí se encontrava, designadamente contando o número de compressas e instrumentos no exterior, na bandeja ou na mesa de operações. No entanto, o cirurgião argumentou que muito embora tal fosse devido, não era possível fazê-lo nas circunstâncias concretas: o médico assistente tinha sido chamado de urgência para outra cesariana deixando sozinho o arguido a tomar conta de múltiplas e delicadas tarefas; por outro lado, dado o elevado risco de hemorragia que envolve uma cesariana, tinha hemorragia bastante pressa de voltar a fechar a cavidade abdominal, até porque estando a ser realizada através de epidural o tempo de anestesia estava a esgotar-se. Pensamos que este caso ilustra de forma paradigmática a necessidade de contemplar as circunstâncias concretas do caso na apreciação do juízo de censura a levar a cabo sobre o agente concreto. Certamente que este poderia, como fizemos referência, ter contado os instrumentos, ou ter procedido objectivamente com mais cautela. Simplesmente tal actuação não lhe era exigível dado o contexto em que se viu forçado a terminar a intervenção32.

Relativamente às ofensas à integridade física negligentes, e manifestando uma evidente boa vontade face aos riscos da actividade médica, dispõe o art. 148°, n.° 2, al. a) do Código Penal: "O tribunal pode dispensar de pena quando o agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias". Procuraram-se aqui ter em conta os particulares perigos que envolvem esta profissão, tendo entendido o legislador que, no caso do tratamento médico envolver lesões da integridade física simples, a sua valoração em termos de censurabilidade do comportamento, e de necessidade da pena, énecessariamente distinta daquela que ocorre em relação a qualquer outra actuação. Curiosa é ainda a circunstância de se referir aqui o "acto médico", abrangendo, ao que pensamos, uma realidade distinta, e mais ampla, do que a que corresponde à noção de intervenção curativa para efeitos do art. 150° do Código Penal, fazendo-se estender desta forma o privilégio terapêutico de que falámos, a áreas marginais, ou laterais, relativamente à actividade curativa propriamente dita (assim, por exemplo, a actividade de vigilância e de guarda)33.

 

8. Os Crimes Contra A Vida;

Qualquer aproximação que se faça aqui a esta matéria ter-se-á que restringir ao reconhe cimento dos problemas capazes de se suscitar neste âmbito e à indicação de algumas das incriminações legais aplicáveis. Já nos referimos a algumas hipóteses limite, como a do tratamento de suicidas, ou do valor da recusa do paciente em sujeitar-se a posteriores tratamentos susceptíveis de lhe prolongar a vida. Agora vamos rapidamente abordar outras questões, como a do auxílio médico na morte, e a distinção entre eutanásia activa e passiva em termos de tratamentojurídico-penal.

Em primeiro lugar, cabe salientar que quanto àdeterminação do momento da morte são inteiramente de acolher as definições médicas que regem sobre a matéria. Se bem que de há uns anos a esta parte encontre aceitação generalizada o critério da morte cerebral completa, o legislador, e designa damente o legislador penal, nada diz sobre o assunto, orientado pela ideia de que qualquer definição legal se pode revelar perigosa pelo risco de desactualização em que incorre34.

Aceitando pois os critérios e métodos da ciência médica colocam-se juridicamente novos problemas em relação ao momento da morte. Chocam aqui duas pretensões conflituantes: a dos médicos que pretendem que nos limites da vida lhes seja conferida uma maior margem de manobra, ou discricionaridade, díriamos nós em linguagem jurídica, e a exigência, inclusivamente constitucional, de protecção da vida enquanto bem jurídico fundamental. Claramente no primeiro sentido unia decisão do BGH que reconhece expressamente ao médico, em casos excepcionais, a possibilidade de decidir segundo a sua melhor e consciência sobre a manutenção ou não de meios de sustentação da vida.

Somos do entender que esta não é a melhor solução, até porque inconstitucional. A alternativa de recorrer ao consentimento do próprio paciente como forma de legitimar soluções desta natureza falha igualmente por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque o consentimento é ineficaz. Em segundo lugar, porque sempre restariam todos aqueles que por qualquer razão são incapazes de o prestar. Temos assim que analisar caso a caso várias hipóteses susceptíveis de se colocar neste contexto35:

E legítimo o "auxílio na morte" sempre que se traduza em concreto na utilização de meios de diminuição das dores sem risco de encurtar a vida, e mesmo que tal traduza um embotamento de sensibilidade ou consciência do paciente. Inclusivamente, a não administração de meios que possam amenizar dores pode significar o risco de incriminaçao por via do tipo legal de ofensas àintegridade física por omissão.

É ilegítimo todo o encurtamento activo da vida mesmo que este surja sob a aparência de um afastamento de dores, independentemente de consentimento. Diferente é a situação, se bem que a distinção por vezes possa parecer subtil, se o medicamento administrado para as dores traga consigo apenas o "risco" de um encurtamento da vida como um efeito lateral não previsto, trabalhando-se aqui com figuras como a do risco permitido, conflito de deveres justificante, entre outras.

Chegamos depois aos casos de "eutanásia passiva", designação que engloba todas aquelas hipóteses em que se renuncia a medidas capazes de prolongar a vida, Esta modalidade de eutanásia apenas se revela não problemática onde corresponda à vontade real ou presumida do paciente. O tratamento contra vontade traduziria aqui uma violação da autonomia do doente nos termos do art. 156°. Relativamente à indisponibilidade do bem jurídico vida, e consequente ineficácia do consentimento, costuma-se aqui distinguir as hipóteses em que se trata de medidas activas de encurtamento da vida, ou da omissão de tratamentos destinados a mantê-la.

Supondo agora que não existe qualquer manifestação de vontade, mas que a suspensão do tratamento constitui a única forma de subtrair o doente, cujo processo de morte é irreversível, a um sofrimento cruel, há quem considere que o interesse no alívio da dor prevalece sobre o interesse no "resto de vida", conduzindo à justificação pelo direito de necessidade; diferentemente, há quem entenda que se exclui a culpa do médico por inexigibilidade no cumprimento do dever de garante em relação ao paciente. Se não existir qualquer necessidade de atenuação das dores não há qualquer hipótese de ponderação de interesses favorável à interrupção do tratamento, pelo que esta apenas pode ter lugar por impossibilidade (quando os meios técnicos disponíveis, o pessoal e os conhecimentos médicos existentes, não permitem afastar a inevitabilidade da morte), ou por inexigibilidade (vendo a finalidade última da actuação médica na realização da pessoa como ser humano, logo, ao serviço da dignidade humana-que, no retardamento da ocorrência da morte apenas sirva, por exemplo, interesses económicos dos familiares ou da própria casa de saúde)36.

 

10. As Sanções Penais; A Interdição Do Exercício Da Profissão Em Virtude De Condenação Por Crime Cometido Com Grave Violação Dos Deveres Inerentes Àprofissão Que Exerce (Art. 100°); A Pena Acessória Do Art. 66°;

Além das penas previstas ao nível dos vários tipos legais de crime, estabelece ainda o legislador penal duas outras hipóteses adicionais de punição, tendo uma delas como finalidade primordial, enquanto medida de segurança, a prevenção geral da prática de futuros crimes, e constituindo a outra uma pena acessória. Estabelece o art. 100°); do Código Penal: "Quem for condenado por crime cometido com grave abuso de profissão, comércio ou indústria que exerça, ou com grosseira violação dos deveres inerentes, ou dele for absolvido só por falta de imputabilidade, é interdito do exercício da respectiva actividade quando, em face do facto praticado e da personalidade do agente, houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie". O período de interdição é fixado entre 1 a 5 anos, muito embora possa vir a ser prorrogado por outro período até 3 anos se o tribunal chegar à conclusão de que o prazo fixado na sentença não foi suficiente para remover o perigo que fundamentou a medida. A contagem do referido período fica suspensa durante o tempo em que o agente se encontrar a cumprir pena ou outra medida privativa de liberdade de natureza processual.

Por sua vez o art. 66° do Código Penal estabelece no seu nº 1 que: "O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto: a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes; h) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou c) Implicar a perda de confiança necessária ao exercício da função. E determina o n.° 2: "O disposto no número anterior écorrespondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública".

Não se suscitam quaisquer dúvidas quanto à aplicação desta disposição relativamente a todos os médicos que exerçam a sua profissão enquanto funcionários do Estado em hospitais e serviços de saúde. Aqui a qualificação como funcionário público é inequívoca, quer sob a perspectiva jurídico-administrativa, quer sob o ponto de vista jurídico penal37. Maior divergência resulta do enquadramento da actividade médica enquanto profissão liberal na disposição do n.° 2 do artigo citado. Embora se possa entender que estas profissões não são abrangidas pela proibição em causa, já que o sentido desta última se prende com o exercício da função pública, e com o incumprimento dos particulares deveres e dignidade que com ela se deixam relacionar, considera Figueiredo Dias38. que este argumento não é determinante uma vez que mesmo a actividade médica se pode entender como "função", nesta medida ainda fortemente vinculada àrealização do interesse público mesmo que a título "livre". E afirma a este propósito: "Essencial é, em todos os casos: que na profissão ou actividade se façam sentir exigências de especiais deveres e dignidade de exercício, ligadas a uma confiança geral necessária ao exercício da função e que sejam postas em causa pelo crime; e que seja em nome daquelas exigências que se torna necessária a existência de título, autorização ou homologação públicas". De salientar ainda quanto ao regime do art. 66° do Código Penal a circunstância de ser incompatível a sua aplicação ao agente, quando, pelo mesmo facto, lhe foi imposta pelo tribunal a medida de segurança de interdição de actividade prevista no art. 100° do Código Penal.

 

Principal Legislação Citada

 

CÓDIGO PENAL

 

Artigo 66° Proibição Do Exercício De Funções

1.      O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:

a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;

b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou

c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.

2.      . O disposto no número anterior écorrespondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.

3.      Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

4.      . Cessa o disposto nos n°s 1 e 2 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação de medida de segurança de interdição de actividade, nos termos do art. 100º.

5.      . Sempre que o titular de cargo público, funcionário' público ou agente da Administração, for condenado pela prática de crime, o tribunal comunica a condenação àautoridade de que aquele depender.

 

Artigo 100° ( Interdição De Actividades )

1.      Quem for condenado por crime cometido com grave abuso de profissão, comércio ou indústria que exerça, ou com grosseira violação dos deveres inerentes, ou dele for absolvido só por falta de imputabilidade, éinterdito do exercício da respectiva actividade quando, em face do facto praticado e da personalidade do agente, houver fundado receio de que possa a vir praticar outros factos da mesma espécie.

2.      O período de interdição é fixado entre 1 e 5 anos; mas pode ser prorrogado por outro período até 3 anos se, findo o prazo fixado na sentença, o tribunal considerar que aquele não foi suficiente para remover o perigo que fundamentou a medida.

3.      O período de interdição conta-se a partir do trânsito em julgado da decisão, sem prejuízo de nele ser imputada a duração de qualquer interdição decretada, pelo mesmo facto, a título provisório. O decurso do período de interdição suspendese durante o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança. Se a suspensão durar 2 anos ou mais, o tribunal reexamina a situação que fundamentou a aplicação da medida, confirmando-a ou revogando-a.

 

Artigo 113° Titulares Do Direito De Queixa

1.      Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

2.      . Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence sucessivamente às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas tiver comparticipado no crime:

a) Ao cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, aos descendentes e aos adoptados e aos ascendentes e aos adoptantes;

b) Aos irmãos e seus descendentes e à pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges.

3.      . Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas nas alíneas do número anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime.

4.      . Qualquer das pessoas pertencentes a uma das classes referidas nos n°s 2 e 3 pode apresentar queixa independentemente das restantes.

5.      . Quando o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas, no caso, ao agente do crime, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se especiais razões de interesse público o impuserem.

 

Artigo 114° (Extensão Dos Efeitos Da Queixa

A apresentação de queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes.

 

Artigo 115° Extinção Do Direito De Queixa

1.      O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.

2.      O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.

3.      Sendo vários os titulares do direito de queixa, o prazo conta-se autonomamente para cada um deles.

 

Artigo 116º Renúncia E Desistência Da Queixa

1.      O direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado ou tiver praticado factos donde a renúncia necessariamente se deduza.

2.      . O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.

3.      . A desistência da queixa, relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, salvo oposição destes, no caso em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.

 

Artigo 117º Acusação Particular

O disposto nos artigos deste título é corresponden temente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender de acusação particular.

 

Artigo 131° ( Homicídio )

Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.

 

Artigo 132° Homicídio Qualificado

1.      Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.

2.      É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

a.      Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;

b.      Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;

c.      Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

d.      Ser determinado por ódio racial, religioso ou Político;

e.      Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;

f.        Utilizar veneno, qualquer outro meio insidioso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

g.      Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados, ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;

h.      Ter praticado o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário serviço público, docente ou examinador público, ou ministro de culto religioso, no exercício das suas funções ou por causa delas.

 

Artigo 133° (Homicídio Privilegiado

Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

 

Artigo 134° (Homicídio A Pedido Da Vítima)

1.      Quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito é punido com pena de prisão até 3 anos.

2.      . A tentativa é punível.

 

Artigo 135° Incitamento Ou Aguda Ao Suicídio

1.      Quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim, é punido com pena de prisão até 3 anos, se o suicídio vier efectivamente a ser tentado ou a consumar-se.

2.      Se a pessoa incitada ou a quem se presta ajuda for menor de 16 anos ou tiver, por qualquer motivo, a sua capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente diminuída, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

 

Artigo 137° (Homicídio Por Negligência

1.      Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2.      . Em caso de negligência grosseira, O agente é punido com pena de prisão até 5 anos.

 

Artigo 140° ( Aborto )

1.      Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.

2.      . Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.

3.      . A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos.

 

Artigo 141° (Aborto Agravado )

1.      Quando do aborto ou dos meios empregados resultar a morte ou uma ofensa à integridade física grave da mulher grávida, os limites da pena aplicável àquele que a fizer abortar são aumentados de um terço.

2.      . A agravação é igualmente aplicável ao agente que se dedicar habitualmente à prática de aborto punível nos termos dos n°s 1 e 2 do artigo anterior ou o realizar com intenção lucrativa.

 

Artigo 142° Interrupção Da Gravidez Não Punível

1.      Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e a experiência da medicina:

a.      Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;

b.      Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;

c.      Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionandose as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;

d.      A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.

2.      . A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.

3.      . O consentimento é prestado:

a.      Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente à data da intervenção; ou

b.      No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz respectiva e sucessivamente, conforme os casos, pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes na linha colateral.

4.      . Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência o médico decide em consciência fce à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.

 

Artigo 143° Ofensa À Integridade Física Simples

1.      Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2.      O procedimento criminal depende de queixa.

3.      O tribunal pode dispensar de pena quando:

a.      Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou

b.      O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.

 

Artigo 144° Ofensa À Integridade Física Grave

Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a:

a.      Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente;

b.      Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;

c.      Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou

d.      Provocar-lhe perigo para a vida; é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.

 

Artigo 145° (Agravação Pelo Resultado)

1.      Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e vier a produzir-lhe a morte é punido:

a.      Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do artigo 143°

b.      Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144°

2.      Quem praticar as ofensas previstas no artigo 143° e vier a produzir as ofensas previstas no artigo 144° épunido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

 

Artigo 146° Ofensa À Integridade Física Qualificada

1.      Se as ofensas previstas nos artigos 143°, 144° ou 145° forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este épunido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

2.      . São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n°2 do artigo 132°

 

Artigo 147° ( Ofensa à integridade física privilegiada )

A pena aplicável à ofensa à integridade física éespecialmente atenuada quando se verificarem as circunstâncias previstas no artigo 133°

 

Artigo 148° Ofensa à integridade física por negligência

1.      Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2.      . No caso previsto no número anterior, o tribunal pode dispensar de pena quando:

a.      O agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias; ou

b.      Da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 3 dias.

3.      . Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

4.      . O procedimento criminal depende de queixa.

 

Artigo 149° ( Consentimento )

1.      Para efeito de consentimento a integridade física considera-se livremente disponível.

2.      . Para decidir se a ofensa ao corpo ou à saúde contraria os bons costumes tomam-se em conta, nomeadamente, os motivos e os fins do agente ou do ofendido, bem como os meios empregados e a amplitude prevísivel da ofensa.

 

Artigo 150° Intervenções E Tratamentos Médico-Cirúrgicos

As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticr, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.

 

Artigo 154° ( Coacção)

1.      Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2.      A tentativa é punível.

3.      O facto não é punível:

a.      Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou

b.      Se visar evitar suicídio ou a prática de outro facto ilícito típico.

4.      . Se o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes ou adoptantes e adoptados, ou entre pessoas que vivam em situação análoga à dos cônjuges, o procedimento criminal depende de queixa.

 

Artigo 156° ( Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários )

1.      As pessoas indicadas no artigo 150° que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2.      . O facto não é punível quando o consentimento:

a.      Só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde; ou

b.      Tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde; e não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado.

3.      . Se por negligência grosseira, o agente representar falsamente os pressupostos do consentimento, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.

4.      . O procedimento criminal depende de queixa.

 

Artigo 157° Dever de esclarecimento

Para efeitos do disposto no número anterior, o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica.

 

Artigo 168° ( Procriação artificial não consentida )

Quem praticar acto de procriação artificial em mulher, sem o seu consentimento, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

 

Artigo 192° Devassa da vida privada

1.      Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:

a.      Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa ou comunicação telefónica;

b.      Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos;

c.      Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou

d.      Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa; É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.

2.      O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante.

 

Artigo 195° Violação De Segredo

Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

 

Artigo 260° ( Atestado Falso )

1.      O médico, dentista, enfermeiro, parteira, dirigente ou empregado de laboratório ou de instituição de investigação que sirva fins médicos, ou pessoa encarregada de fazer autópsias, que passar atestado ou certificado que sabe não corresponder à verdade, sobre o estado do corpo ou da saúde física ou mental, o nascimento ou a morte de uma pessoa, destinado a fazer fé perante autoridade pública ou a prejudicar interesses de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

2.      . Na mesma pena incorre o veterinário que passar atestados nos termos e com os fins descritos no número anterior relativamente a animais.

3.      . Na mesma pena incorre quem passar atestado ou certificado referido nos números anteriores, arrogando-se falsamente as qualidades ou funções neles referidas.

4.      . Quem fizer uso dos referidos certificados ou atestados falsos, com o fim de enganar autoridade pública ou prejudicar os interesses de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

 

Artigo 284° (Recusa de médico )

O médico que recusar o auxilio da sua profissão em caso de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa, que não possa ser removido de outra maneira, e punido com pena de prisão até 5 anos.

 

Artigo 285° (Agravação Pelo Resultado

Se dos crimes previstos nos artigos 2720, 2730, 277°, 280°, ou 282° a 284° resultar morte ou ofensa àintegridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

 

Artigo 286° (Atenuação Especial Da Pena )

Se nos casos previstos nos artigos 272°, 273°, 277°, ou 280°, a 284° o agente remover voluntariamente o perigo antes de se ter verificado dano considerável, a pena é especialmente atenuada ou pode ter lugar a dispensa de pena.

 

Artigo 360° Falsidade De Testemunho, Perícia, Interpretação Ou Tradução )

1.      Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, épunido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.

2.      . Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução.

3.      . Se o facto referido no n°1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.

 

Código de Processo Penal

 

Artigo 48° (Legitimidade

O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49° a 52°.

 

Artigo 49° Legitimidade em procedimento dependente de queixa )

1.      Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

2.      Para o efeito do número anterior, considerase feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.

3.      A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.

4.      O disposto nos números anteriores écorrespondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.

 

Artigo 50° Legitimidade em procedimento dependente de acusação particular )

1.      Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, énecessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.

2.      O Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis àdescoberta da verdade e couberem na sua competência, participa em todo os actos processuais em que intervier a acusação particular, acusa conjuntamente com esta e recorre autonomamente das decisões judiciais.

3.      . É correspondentemente aplicável o disposto no n° 3 do artigo anterior.

 

Artigo 51° Homologação Da Desistência De Queixa Ou Da Acusação Particular )

1.      Nos casos previstos nos artigos 49° e 50°, a intervenção do Ministério Público no processo cessa com a homologação da desistência de queixa ou da acusação particular.

2.      . Se o conhecimento da desistência tiver lugar durante o inquérito, a homologação cabe ao Ministério Público; se tiver lugar durante a instrução ou o julgamento, ela cabe, respectivamente, ao juiz de instrução ou ao presidente do tribunal.

3.      . Logo que tomar conhecimento da desistência, a autoridade judiciária competente para a homologação notifica o arguido para, em cinco dias, declarar, sem necessidade de fundamentação, se a ela se opõe. A falat de declaração equivale a não oposição.

4.      . Se o arguido não tiver defensor nomeado e for desconhecido o seu paradeiro, a notificação a que se refere o número anterior efectua-se editalmente.

 

Artigo 71° (Princípio da adesão)

O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

 

Artigo 135° (Segredo profissional)

1.      Os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo.

2.      Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação de depoimento.

3.      O tribunal imediatamente superior aquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso do incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o planário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4.      O disposto no número anterior não se aplica ao segredo religioso.

5.      Nos casos previstos nos n°s 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismos seja aplicável.

 

Artigo 136° Segredo De Funcionários

1.      Os funcionários não podem ser inquiridos sobre factos que constituam segredo e de que tiverem tido conhecimento no exercício das suas funções.

2.      É correspondentemente aplicável o disposto nos n°s 2 e 3 do artigo anterior.

 

Artigo 242° Denúncia Obrigatória

1.      A denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos:

a.      Para as entidades policiais, quanto a todos os crimes de que tomarem conhecimento;

b.      Para os funcionários, na acepção do art. 386° do Código Penal, quanto a crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas.

2.      Quando várias pessoas forem obrigadas à denúncia do mesmo crime, a sua apresentação por uma delas dispensa as restantes.

3.      O disposto nos números anteriores não prejudica o regime dos crimes cujo procedimento depende de queixa ou de acusação particular.

 

Artigo 244° ( Denúncia Facultativa )

Qualquer pessoa que tiver notícia de um crime pode denunciá-lo ao Ministério Público, a outra autoridade judiciária ou aos órgãos de polícia criminal, salvo se o procedimento respectivo depender de queixa ou de acusação particular. Educação Sexual e Planeamento Familiar-Lei n° 3 / 84 de 24 de Março

 

Artigo 10º Esterilização Voluntária

1.      A esterilização voluntária só pode ser praticada por maiores de 25 anos, mediante declaração escrita devidamente assinada, contendo a inequívoca manifestação de vontade de que desejam submeter-se ànecessária intervenção e a menção de que foram informados sobre as consequências da mesma, bem como a identidade e a assinatura do médico solicitado a intervir.

2.      A exigência do limite de idade constante do nº. 1 édispensada nos casos em que a esterilização édeterminada por razões de ordem terapêutica.

 

Artigo 11° ( Objecção De Consciência )

É assegurado aos médicos o direito à objecção de consciência, quando solicitados para a prática da inseminação artificial ou de esterilização voluntária.

 

Artigo 15° Dever De Sigilo Profissional

Os funcionários dos centros de consulta sobre planeamento familiar e dos centros de atendimento de jovens ficam sujeitos à obrigação de sigilo profissional sobre o objecto, o conteúdo e o resultado das consultas em que tiverem intervenção e, em geral, sobre actos ou factos de que tenham tido conhecimento no exercício dessas funções ou por causa delas. Interrupção voluntária da gravidez -

Lei n° 6 184, de 11 de Maio

 

Artigo 2°

O médico que por negligência se não premunir, nem os obtiver posteriormente a uma intervenção para interrupção voluntária e lícita da gravidez, conforme os casos, com os documentos comprovativos da verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto exigidos por lei será punido com pena de prisão até 1 ano.

 

Artigo 3°

1.      Quando se verifique circunstância que exclua a ilicitude do aborto, pode a mulher grávida solicitar a interrupção da gravidez em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, entregando logo o seu consentimento escrito e, até ao momento da intervenção, os documentos ou atestados médicos legalmente exigidos.

2.      Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde seja praticada licitamente a interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão de forma adequada para o efeito.

3.      Os estabelecimentos referidos no número anterior adoptarão as providências necessárias para que a interrupção voluntária e lícita da gravidez se verifique nas condições e nos prazos legalmente determinados.

 

Artigo 4°

1.      É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde, relativamente a quaisquer actos respeitantes àinterrupção da gravidez voluntária e lícita, o direito àobjecção de consciência.

2.      A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objector e a sua decisão deve ser imediatamente comunicada à mulher grávida ou a quem no seu lugar pode prestar o consentimento, nos termos do art. 142° do Código Penal.

 

Artigo 5°

Os médicos, os demais profissionais de saúde e o restante pessoal dos estabelecimentos em que se pratique licitamente a interrupção voluntária da gravidez ficam vinculados ao dever de segredo profissional relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa delas, relacionados com aquela prática, nos termos e para os efeitos dos artigos 195° e 196° do Código Penal, sem prejuízo das consequências estatutárias e disciplinares da infracção.

 

BIBLIOGRAFIA

1.      Acerca da evolução histórica do direito penal médico, cf. Schrciber. H., cm Die Entwicklung der Medizin im Einflussbereich juristischer Kategnrien, em Arzt and Patient zwischen Terapie and Recht, Stuttgart, I 98 I , págs. 27 a ss..

2.      Fala-se aqui do dignidade penal a do necessidade ou carência de pena, para designar duas exigências fundamentais em matéria de criminalização de condutas por pane do legislador. E digno de pena, para dizer com Gallas, cit. em Costa Andrade. A Dignidade Penal a a Carência de Tutela Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2. Fascine pág. 176, "aquele comportamento antissocial, tão perigoso a reprovável a tão intolerável como exemplo. due para defesa da sociedade aparece como necessária a ajustada uma reacção como a pena, o meio mais drástico de coerção estadual e a expressão mais forte da censura social". Trata-se de uma perspectiva valorativa, a traduzir a escolha de interesses ou bens jurídicos a tutelar, a acompanhar por um ponto de vista, esse sim, de natureza mais pragmática, a que se prende com a carência de tutela penal. A carência de tutela penal analisa-se, nas palavras de Costa Andrade, ibidem, pág. 186. "num duplo a complementar juízo: em primeiro lugar, um juízo de necessidade (Erfordlicheit), por ausência de alternativa idóneae eficaz de tutela não penal; em segundo lugar, um juízo de idoneidade (Geeignetheit) do direito penal para assegurar a tutela, a para o fazer à margem de custos desmesurados no que toca ao sacrífïcio de outros bens jurídicos, maxime a liberdade".

3.      Estabelece o art. 48° do Código de Processo Penal." O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49° a 52°". O art. 49° refere-se a todos os casos em que o procedimento fica dependente de queixa do ofendido ou de outras pessoas, sendo necessário que estas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo, e o art. 50° refere-se por sea turno às hipóteses em que o procedimento depende de acusação particular, do ofendido ou do outras pessoas, sendo necessário que estas pessoas se queixem, se constituam assistentes a deduzam acusação particular. Acerca da natureza destas condições de procedimento, enquanto pressupostos positivos da punição, ef. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 662 a ss.. Cf. de igual modo, Damião da Cunha, A Participação dos Particulares no Exercício da Acção Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 8, 1998, págs. 593 c ss..

4.      A desistência da queixa ou da acusação particular faz cessar a intervenção do Ministério Público no processo, sendo todavia necessário que essa desistência seja homologada. De acordo com o art. 51° do Código de Processo Penal, se o conhecimento da desistência tiver lugar durante o inquérito, a homologação cabe ao Ministério Público; se tiver lugar durante a instrução ou o julgamento, ela cabe, respectivamente, ao juiz de instrução ou ao presidente do tribunal.

5.      Cf. por todos quanto a esta matéria, Jorge Ribeiro de Faria, A Indemnização por Perdas e Danos Arbitrada em Processo Penal, Coimbra, 1983.

6.      Beleza dos Santos, Obstáculos à ilicitude e àculpabilidade, 1949, págs. 149 e ss..

7.      Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, 1940, págs. 253 e ss..

8.      Cf. Figueiredo Dias, Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, Lisboa, 1984, pág, 46.

9.      Falando a este propósito de "efeitos perturbadores", Costa Andrade, Direito Penal e Modernas Técnicas Biomédicas, em Revista de Direito e Economia, 1989, págs. 375 e ss.. Sobre a tensão assim gerada entre a autonomia da pessoa e o interesse na manutenção da vida ou da integridade física, cf. Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, pág. 455 e ss.. Ainda sobre este ponto, e sobre a evolução do tratamento da intervenção médica do quadro das ofensas àintegridade física para o âmbito das intervenções médicas arbitrárias, o mesmo autor em Comentário Conimbricense do Código Penal, arts. 150° e 156°. Na doutrina alemã, cf. Bockelmann, Rechtliche Grundlagen und Grenzen der ärztlichen Aufklärungspflicht, em N.J.W., 1961, págs. 945 e ss., e Zipf, Probleme eines Straftatbestandes der eigenmnächtigen Heilbehandlung, Fest. für Bockelmann, 1979, págs. 578 e ss..

10.  O nosso legislador penal não faz referência, diferentemente do que sucedia com o § 161 do Projecto Alternativo Alemão, aos "princípios de consciência do médico". O que nos parece de louvar. O recurso a regras de ética profissional significa a introdução ao nível do tipo legal de um conceito indeterminado carecido de preenchimento valorativo por parte da jurisprudência. Com as evidentes consequências sob o ponto de vista do princípio da legalidade, dado que se trata de um conceito de natureza subjectiva, pouco consensual de resto, e de escassa utilidade, uma vez que a introdução de critérios exclusivamente médicos se faz já quer ao nível da afirmação de uma indicação, quer relativamente à execução segundo as leges artis.

11.  Aqui deixam-se delinear no essencial duas posições: a primeira corresponde à opinião de todos aqueles que entendem que se deve proceder à distinção entre intervenções bem e mal sucedidas para considerar preenchido apenas no último grupo de casos o tipo legal de ofensas à integridade física. Urna vez que este tipo legal de crime supõe para o seu preenchimento um dano para a saúde ou uma ofensa ao corpo de outrem falar de ofensa corporal sempre que a intervenção contribui para melhorar o estado de saúde do paciente ou para o curar não faria rigorosamente sentido. Diferentemente se a actuação médica acaba por ter um resultado adverso ao pretendido ou esperado. Aí estaríamos tipicamente perante uma lesão da integridade física a justificar através do consentimento. A outra corrente de opinião defende uma posição semelhante à que acabou por encontrar tradução legislativa ao nível do nosso Código Penal. E que é a seguinte: uma vez que a valoração social do comportamento médico é a inversa da que corresponde àvaloração da lesão da integridade física, ou seja, uma vez que a actuação médica é dirigida à promoção da saúde e do bem estar físico da pessoa e não à sua lesão, nunca a intervenção curativa poderá traduzir uma ofensa corporal típica já que não é este o sentido pretendido pela incriminação. E isto independentemente do resultado da mesma intervenção.

12.  Referindo-se a estes dois elementos subjectivos, Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, art. 150° pág. 307.

13.  Cf. M.Paula Ribeiro de Faria, Aspectos Jurídico-Penais dos Transplantes, 1995, págs.35 e ss..

14.  Cf. para um maior desenvolvimento sobre cada uma destas áreas de intervenção, Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, art. 150° págs. 309 e ss..

15.  Claro que, na medida em que se faz depender a qualificação destas intervenções como intervenções curativas da disposição interior do paciente, poucas operações cosméticas ficarão de for a do alcance desta disposição. Isto porque, na maioria das vezes, existe a intenção de debelar a "perturbação psiquíca" a que se refere o dispositivo do art. 150° do Código Penal.

16.  Cabe aqui chamar a atenção para a circunstância, justificada de resto, pelo carácter particularmente gravoso da sanção penal, de que a capacidade para prestar o consentimento difere em direito penal das regras estabelecidas pelo direito civil em relação à capacidade de exercício de direitos, que como é sabido, se adquire com a maioridade, aos dezoito anos, ou excepcionalmente a partir dos dezasseis anos com a emancipação pelo casamento. No direito penal rege sobre esta matéria o art., que dispõe que tem capacidade para consentir o maior de catorze anos (limite absoluto que em caso algum pode ser desrespeitado) desde que tenha discernimento para atingir o alcance e sentido do mesmo consentimento no momento em que o presta (limite relativo que depende da ponderação caso a caso, face à gravidade e consequências do acto a praticar, e que no caso de intervenções cirúrgicas deve depender da natureza da própria intervenção). Colocando-se evidentemente a questão da articulação das disposições que de forma diferenciada regulam a problemática do consentimento em direito civil e direito penal, somos do entendimento, que é de resto a solução utilizada na prática, de que até aos dezoito anos o médico deverá solicitar o consentimento dos pais do menor, se bem que não deva prescindir do assentimento do próprio menor sempre que esta tenha mais de catorze anos. A falta da autorização dos pais até aos dezoito anos de idade determina a sua responsabilidade civil. É certo. Mas convém igualmente não perder de vista que a ausência de consentimento por parte do menor a partir dos seus catorze anos traduz de igual modo um desrespeito pela vontade do mesmo, que enquanto titular do bem jurídico, é susceptível de desencadear a responsabilidade penal por intervenções médicas arbitrárias. Pelo que no intervalo de tempo que medeia entre os catorze anos e os dezoito sempre será mais conveniente tentar obter a autorização do menor para qualquer intervenção que o envolva e aos seus interesses. É certo que na prática, e lembramos o testemunho de uma mãe de um afilha anoréctica de dezasseis anos que não prestava o seu consentimento para o internamento de forma a permitir o tratamento, o reconhecimento de um tal poder de autonomia a partir dos catorze anos, é susceptível de levantar dificuldades de ordem prática.

17.  Cf. para um tratamento mais desenvolvido da questão, M.Paula Ribeiro de Faria, A Lei do Sangue, Revista Direito e Justiça, 2° dos Volumes comemorativos dos 30 anos da Universidade Católica Portuguesa e dos 20 anos do seu Curso de Direito, págs. 259 e ss..

18.  Cf. o art. 19° do Decreto-Lei n° 314 xxxiii. 78, de 27 de Outubro, da Lei Tutelar de Menores, que regula esta matéria. Cf. igualmente o art. 1918° do Código Civil:" Quando a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontrem em perigo e não seja caso de inibição do exercício do poder paternal, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer das pessoas indicadas no n° 1 do art. 1915°, decretar as providências adequadas, designadamente confiá-lo a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência".

19.  Determina esta disposição: "Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens".

20.  Diferentes são todos os casos em que se reconhece clara autonomia de decisão aos representantes legais no interesse do menor: sempre que se duvide da existência de uma indicação objectiva para a realização da intervenção, ou pelo menos em todas as hipóteses em que não resulte à evidência que as dores, o sofrimento, o mal estar causado pela intervenção não são claramente superadas pelas vantagens da sua execução, ou ainda em todos os casos em que o protelamento da intervenção, embora indicada, não implica consequências de maior gravidade para a vida ou integridade física do menor.

21.  Trata-se de reconhecer no plano jurídico o funcionamento do direito de necessidade como causa de justificação para o comportamento do médico que àrevelia da oposição dos pais se dispõe a salvar a vida do menor. Exige o art. 34ª do Código Penal como pressupostos da justificação para além da existência de um conflito entre bens ou interesses juridicamente protegidos que o interesse a salvaguardar adquira sensível superioridade face ao sacrificado e que se possa afirmar a razoabilidade ético-jurídica do sacríficio. Ora numa situação desta natureza além de se poder afirmar a superioridade do interesse a salvaguardar também se poderia deixar antever a mesma exigibilidade tendo em conta todos os pontos de apoio que até aqui delineámos: a circunstância de não ser verdadeiramente o interesse dos pais que se tutela, o facto de estar ausente o fundamento do reconhecimento dessa mesma autonomia que é a liberdade para tomar a melhor decisão no interesese do menor, e por aí for a. Mesmo que todavia assim não se entenda não se nos colocam grandes dúvidas sob o ponto de vista, talvez último, mas mesmo assim conducente àexclusão da responsabilidade do médico que assim actua, do afastamento da culpa do agente. Dadas as particulares circunstâncias da decisão, colocados em confronto o dever de actuar em benefício do menor e o dever de acatar as instruções dos representantes legais, e mesmo que se opte por considerar que o médico cumpriu com o dever de valor inferior, outro comportamento não lhe era exigível, pelo que a culpa resulta pura e simplesmente afastada.

22.  É interessante a diferença estabelecida pelo legislador entre o consentimento presumido que vale em geral para todas as lesões levadas a cabo no interesse e de acordo com a vontade presumida do titular do bem jurídico lesado, e esta regra que apenas encontra aplicação em matéria de intervenções curativas. Dispõe o art. 39°, n° 2, do Código Penal: "Há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua permitir razoavelmente supôr que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que é praticado".

23.  Neste sentido, entendendo que a recusa de tratamento deverá ser tida em conta como forma de fazer cessar o dever jurídico de garante do médico perante o paciente, cf. Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, art.156°, pág. 39 1

24.  Cf. De Cupis, Os Direitos de Personalidade, 1961, págs. 147 e ss.. Cf. igualmente na doutrina francesa, Pradel xxxiii. Danti Juan, Droit Pénal Special, 1995, Tome 111, págs. 72 e ss.. Em relação à doutrina alemã, cf, Schönke xxxiii. Schröder, Strafgesetzbuch Kommentar, 23. Auflage, anotação ao § 203 StGb.

25.  Claramente a favor desta perspectiva institucional do bem jurídico, Schönke xxxiii. Schröder, ob. cit., anotação ao § 203, n° 3, pág. 1356.

26.  Estabelece este artigo: "Os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo".

27.  Neste sentido, Schönke xxxiii. Schröder, ob. cit., anotação ao § 203, n°5, pág. 1357. Cf. igualmente na doutrina francesa, Véron, Michel, Droit Pénal Spécial, 1998, págs. 147 e ss.

28.  Face a hipóteses desta natureza ter-se-á que averiguar em concreto se o interesse que o legislador quis tutelar com esta disposição é ou não posto em causa. Se efectivamente estivermos perante condutas com um grau de danosidade social de tal forma reduzida que não seja possível afirmar relativamente a elas a lesão do bem jurídico pensamos que a própria via interpretativa permitirá excluir da aplicação do tipo legal de crime tais formas de actuação.

29.  Figueiredo Dias, Sumários, 1975, pág. 229.

30.  Assim não existem por exemplo, tratamentos arbitrários negligentes ou violações negligentes do segredo profissional.

31.  Cf. sobre o sentido e o significado deste tipo de culpa para o direito civil, Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Almedina, 1990, Vol. 1, pág. 462 Assim se, por exemplo, o médico principiante não diagnostica, por falta de prática, uma apendicite, vindo por consequência o paciente a sofrer das consequências mais graves de uma peritonite, é certamente censurável, não tanto pela falta de experiência, mas por não ter chamado outro médico, podendo-o fazer, que estivesse em condições de proceder ao diagnóstico e respectivo tratamento.

32.  São evidentes as diferenças que intercedem entre esta situação e aquela em que o médico de serviço não analisa devidamente a ficha clínica do paciente e acaba por lhe administrar um medicamento errado, ou aquela outra em que o médico anestesista não controla a actividade cardíaca do doente antes do início da anestesia e este vem a sofrer uma ataque cardíaco durante a intervenção ou ainda aquela em que o radiologista não obedece a determinadas cautelas na execução de intervenções radiológicas profundas dando assim origem a profundas lesões da saúde do doente.

33.  Cf. sobre este ponto, M.Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense ao Código Penal, art. 148°, §28, pág. 274.

34.  Diferentemente o n° 1, do art. 12° da Lei n° 12 193, de 22 de Abril, que faz referência expressa à morte cerebral completa: "Cabe à Ordem dos Médicos, ouvido o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, enunciar e manter actualizado, de acordo com os progressos científicos que venham a registar-se, o conjunto de critérios e regrs de semiologia médico-legal idóneos para a verificação de morte cerebral".

35.  Para um tratamento mais aprofundado de cada uma destas hipóteses bem como de outras a que não nos referimos aqui, cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, art. 131°, § 14 e ss.., págs. 9 e ss.

36.  Como é evidente, esta abordagem não se refere sequer à totalidade dos problemas que nesta área são susceptíveis de se delinear. Estamos a pensar na distinção entre homícidio a pedido da vítima e auxilio ao suícidio como incriminações autónomas, no conflito de deveres que eventualmente se pode estabelecer relativamente ao uso de um só aparelho de reanimação em dois ou mais doentes igualmente necessitados de auxílio clínico (aqui deixar-se-á delinear para o médico, na maior parte dos casos, um conflito de deveres justificante no caso de cumprir com o dever de valor igual ao superior aquele que sacrifica, colocando-se ainda a possibilidade da exclusão da sua culpa sempre que numa situação de inexigibilidade acabe por cumprir o dever de valor inferior), no encurtamento da vida de fetos nascidos com graves malformações, apenas para referir algumas das muitas questões que ainda neste âmbito se poderiam tratar. Cf. nota 36 e a remissão que aí é feita.

37.  Cf. o art. 437° do Código Penal e o art. 4°, n° 2, do Decreto-Lei n° 371/83 de 6 de Outubro.

38.  Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 174.