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A RESPONSABILIDADE POR ATAQUES Á PROBIDADE
ADMINISTRATIVA, ESPECIALMENTE EM SEDE DE POLÍTICA ECONÔMICA
Ricardo Antônio Lucas Camargo
Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais
Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico
Tradicionalmente, os
atentados à probidade administrativa são elencados como crimes de
responsabilidade do Chefe do Executivo. A importância do tema para o Direito
Econômico se coloca quando se tem em vista a situação descrita por WASHINGTON
PELUSO ALBINO DE SOUZA, a respeito dos problemas decorrentes do modo como
disciplinado o processo eleitoral na legislação vigente, em que "mesmo que
nela se incluam, como recentemente, os analfabetos, porém sujeita como é a
todas as formas de influências e corrupções, especialmente aquelas vinculadas
ao poder econômico e aos 'lobbies' de toda espécie, ao domínio da informação,
dos transportes, ao despreparo político da própria pobreza ou miséria, se sua
vulnerabilidade compromete os próprios resultados do resultado eleitoral.
Refletidos na eleição dos representantes, estes fatores inevitavelmente
multiplicam os seus efeitos em dispositivos constitucionais comprometedores da
soberania em geral e consagradores da dependência econômica, do colonialismo e
do atraso em todas as suas manifestações. Completa-se este efeito quando os
enunciados de política econômica e de conquistas sociais incutidos no texto
constitucional são esvaziados na política e anulados pelos expedientes de
regulamentação restritiva das leis ordinárias elaboradas pelo Poder Legislativo
composto do mesmo modo, pela ação autoritária do Poder Executivo, pelas
facilidades à desídia e prevaricação de legisladores e administradores, assim
como pelo despreparo e falta de sensibilidade dos julgadores" (Teoria
da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey,
2002, p. 189-190).
Como atentado à
probidade administrativa, chamamos a atenção para a negativa do Chefe do
Executivo em prestar contas de suas atuações (Lei 1.079, de 1950, artigo 9º, 2;
Decreto-lei 201, de 1967, artigo 4º, III). Isto porque, no Estado de Direito,
não se pode conceber a ação irresponsável, inconseqüente, carente de qualquer
justificativa ou, pelo menos, explicação na gestão da coisa pública
(CAVALCANTI, Themistocles. A Constituição Federal comentada. Rio
de Janeiro: José Konfino, 1948, v, 2, p. 106; CRETELLA JR., José. Do
impeachment no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1992, p. 49-50; CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Fomento à iniciativa
privada. Prestação de contas. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio
Grande do Sul – Caso Ford: em Defesa do Interesse Público. Porto
Alegre, v. 25, n. especial, p. 151-152, mar 2002; FERREIRA, Luís Pinto. Comentários
à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 3, p. 391;
MENDES, Gilmar Ferreira. Arts. 48 a 59. in:
PLURES. Comentários
à Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 340). Também se configura
como atentado contra a probidade administrativa a desarrazoada demora no envio
do projeto sancionado ou vetado à publicação (Lei 1.079, de 1950, artigo 5º, I;
Decreto-lei 201, de 1967, artigo 4º, III).
Ainda no que tange à
improbidade administrativa, é a lei ordinária que a torna causa de
inelegibilidade e não a Constituição Federal, embora esta a considere causa de
pedir da ação popular de impugnação de mandato (BRASIL. Tribunal Superior
Eleitoral. Acórdão 11.864. Recurso especial 11.864. Relator: Min. Marco Aurélio
Mendes de Farias Mello. Jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral.
Brasília, v. 7, n. 2, p. 224-227, abr/jun 1996). O que importa assinalar é que,
como salienta M. MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA é que “especialistas em
economia, no mundo todo, compartilham a opinião sobre os efeitos desastrosos
que a corrupção exerce em economias que passam por dificuldades. [...] O
gravame imposto pela corrupção sobre a economia é a soma dos custos de cada
forma de corrupção. Ainda que alguns países apresentem ligeiro crescimento com
a corrupção sistêmica, é improvável sua sustentabilidade, já que o cumprimento
dos objetivos sociais ficará solapado” (Corrupção: obstáculo à implementação
dos direitos econômicos, sociais e culturais. Revista de Direito
Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 8, n. 33, p. 199, out/dez
2000). As relações com o Poder Público muitas vezes dão ensejo a que o agente
econômico privado se venha a colocar em posição de vantagem em relação a seus
concorrentes. Daí por que a Lei Federal 8.429, de 1992, em seu artigo 9º, se
preocupou com a situação em que “o agente público aufere vantagem econômica
indevida, em razão do exercício ímprobo do cargo, mandato, função, emprego ou
atividade pública. É o tráfico da função pública” (PAZZAGLINI FILHO, Marino,
ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade
administrativa. São Paulo: Atlas, 1997, p. 57). Por outro lado,
consoante assinalam Antonio Pagliaro & Paulo José da Costa Jr., “aquele que
exercita uma função pública poderá, licitamente, fazer valer sua condição de
funcionário público em suas relações sociais para assegurar melhor exercício de
sua função ou para obtenção de maior prestígio pessoal. Poderá ainda de forma
ilícita, com a finalidade de prevaricar ou de alterar em sua vantagem a
condição de paridade que deveria existir entre os cidadãos diante da
administração pública” (Dos crimes contra a administração pública.
São Paulo: Malheiros, 1997, p. 152-153). Podemos citar cmo exemplo a utilização em obras e serviços particulares de recursos
materiais e humanos afetos à Administração. Esta hipótese, descrita no inciso
IV do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, volta-se a impedir o aproveitamento de
veículos, máquinas, equipamento, material de qualquer natureza e de servidores
em “atividades que não guardam nenhuma relação com o serviço público” (PAZZAGLINI,
Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p. 61).
Outra
hipótese é a do inciso XII do artigo 9º da mesma Lei, de caráter mais genérico:
a do inciso IV visa evitar a utilização dos recursos materiais e humanos em
obras e serviços particulares, enquanto a previsão que se põe ora sob
comentário se contenta com o uso no proveito próprio do agente fora dos casos
particularizados no inciso anteriormente referido. Pode-se falar, aquí, em uma
“privatização de fato”, fora da hipótese de peculato, uma vez que o bem público
passa a ter o seu uso governado pela conveniência privada. O peculato estaria
previsto no inciso XI do artigo 9º da Lei 8.249, de 1992. No Código Penal, vários tipos
podem dizer respeito a benefícios outorgados ao poder econômico privado. O
artigo 313-a toca a inserir ou facilitar o funcionário autorizado a inserção de
dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas
informatizados da Administração Pública com o fim de obter vantagem ilícita
para si ou outrem ou causar dano. Henrique Geaquinto Herkenhoff esclarece em
que consiste o tipo, tornando, assim, intuitiva a gravidade da conduta quando
efetivada por autoridade que esteja sujeita ao processo político: “a inserção
de dados falsos em sistemas de informações geralmente se pratica para realizar
pagamentos indevidos, e outras vezes para diminuir ou mesmo dar por quitados
débitos do particular com a administração pública” [Novos crimes
previdenciários. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 45]. Claro que uma
conduta desta natureza pode ter repercussão, inclusive, no momento da
elaboração das medidas de política econômica, dado que a partir de informações
errôneas, torna-se impossível a verificação da adequação do meio empregado ao
fim perseguido. Paulo José da Costa Júnior esclarece, com relação ao sujeito
ativo: “não se trata, porém, de um funcionário público qualquer, mas de um
funcionário autorizado, que estiver em repartição incumbida de manter os
sistemas informatizados ou a base de dados da administração pública” (Comentários
ao Código Penal. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1.003). Partindo a ordem
do Chefe do Poder Executivo, com o objetivo de dificultar a seu sucessor a
elaboração do plano, ou de dificultar o controle de sua atuação, caberá, além
do processo pelo crime comum, o processo por crime de responsabilidade.
O tipo do artigo 314
do Código Penal é o extravio ou sonegação de documento oficial, de que tenha a
guarda o servidor. Como se sabe, a reconstituição de fatos relevantes para a gestão
da coisa pública, bem como a possibilitação do desenvolvimento dos negócios
privados, depende, em larga escala, de documentos dotados de credibilidade tal
que poupem mais demorada atividade probatória. Já no Brasil Império, o
CONSELHEIRO ANTÔNIO JOAQUIM RIBAS doutrinava no sentido de que a conservação de
livros e manuscritos de bibliotecas e arquivos públicos, bem como dos
registros, correspondências e mais papéis das repartições públicas traduzia
manifestação da atividade administrativa posta no mesmo patamar que a
arrecadação da receita pública e a defesa judicial do erário (Direito
Administrativo brasileiro. Brasília: Ministério da Justiça, 1968, p.
93, com remissão aos Decretos nº 2, de 2 de janeiro de 1838, 215, de 30 de
abril de 1840, artigo 56, § 6º, 433, de 3 de julho de 1847, 1283, de 26 de
novembro de 1853, 736, de 20 de novembro de 1850, artigo 31, 870, de 22 de
novembro de 1851, artigos 28 e 38, § 1º, 2478, de 16 de fevereiro de 1861,
artigos 8º, § 5º, e 19, § 5º, e 2749, de 16 de fevereiro de 1861, artigos 10, §
1º, e 11, § 1º, e ainda o Aviso de 19 de janeiro de 1853). Explicitando os
elementos do tipo, Heleno Cláudio Fragoso observa: “exige-se assim que o livro
ou documento tenha sido confiado para guarda ao agente ratione officii,
isto é, por força do cargo público que ocupa” (Lições de Direito Penal –
Parte Especial. Rio de Janeiro: Forense, 1989, v. 2, p. 423). De acordo
com a lição de Luís Regis Prado, “sujeito ativo do delito é o funcionário
público encarregado do livro ou documento em epígrafe, nada obstando o concurso
de agentes com o particular” (Curso de Direito Penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, v. 4, p. 365). A responsabilidade do servidor,
neste caso, é muito similar à responsabilidade do depositário, assim descrita nesta
passagem por Arnoldo Wald: “as obrigações básicas do depositário consistem em
guardar a coisa e restituí-la quando exigida. A diligência do depositário na
guarda da coisa é a que costuma ter com suas próprias coisas” (Direito
das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 388). Pontes
de Miranda vai por idêntico diapasão: “custodiar é conservar materialmente, ou,
pelo menos, tomar as providências para isso. Supõe-se, portanto, o estado em
que o bem foi recebido. A atividade que se tem de exercer depende da natureza
do bem em custódia. Essa é que dá os limites do conteúdo do dever de fazer e de
não fazer que o custodiar implica” (Tratado de Direito Privado.
Rio de Janeiro: Borsoi, 1963, t. 42, p. 328). Para Nelson Hungria, “para que o
livro oficial ou documento (público ou particular) seja idôneo objeto do crime
do art. 314, basta que, de qualquer modo, afete o interesse administrativo ou
de qualquer serviço público ou de particulares” (Comentários ao Código
Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 9, p. 355). Pois bem. A
importância do tipo em tela, no que tange à configuração da improbidade
administrativa ligada à formulação e execução das medidas de política econômica
diz com os próprios dados voltados à verificação de os engajamentos da iniciativa
privada nos projetos do Poder Público não se configurarem como meros
favorecimentos. Tanto assim o é que o inciso VII do artigo 10 da Lei 8.429, de
1992, tipifica como improbidade administrativa a concessão de benefícios
administrativos ou fiscais, sem que observadas as formalidades legais ou
regulamentares. Dentre elas, avultam as concernentes aos meios destinados à
reconstituição dos fatos aptos a gerarem o direito ao benefício. Por outro
lado, medite-se o caso da destruição dos arquivos concernentes à Ferrovia
Madeira-Mamoré. O artigo 337 do Código Penal versa o crime de subtração ou
inutilização de livro ou documento fora da hipótese prevista no artigo 314.
No artigo 317 do
Código Penal está definido o crime de corrupção passiva, consistente em solicitar
ou receber o servidor público vantagem indevida, correspondente, por seu turno,
à descrição posta no inciso I do artigo 9º da Lei Federal 8.429, de 1992, que é
receber o agente público, para si ou para outrem, qualquer vantagem econômica,
direta ou indireta, de quem tenha interesse suscetível de ser atingido ou
beneficiado pela atuação do agente beneficiado. De acordo com MARINO PAZZAGLINI
FILHO, MÁRCIO FERNANDO ELIAS ROSA & WALDO FAZZIO JÚNIOR, “não há
necessidade de que o interesse do terceiro que corrompe o agente público venha
a ser efetivamente amparado ou escape de ser atingido. Para a configuração da
improbidade, basta a percepção da vantagem pelo agente público, ou sua entrega
a outrem, em virtude da ação ou omissão ilícitas daquele” (Op. cit. p.
59).
O artigo 319 do Código
Penal prevê conduta assim definida por Antônio Pagliaro & Paulo José da
Costa Júnior: “prevaricação é infidelidade ao dever de ofício. É o
descumprimento de obrigações atinentes à função exercida. Em outras palavras: é
um abuso dos poderes inerentes ao cargo, seja na forma comissiva, seja na forma
omissiva. O delito consiste, dessarte, em não exercitar o poder, quando deveria
ser exercitado, ou exercitá-lo segundo critérios diversos daqueles impostos
pela lei” (op. cit. p. 134). Observe-se que pode ser configurada, por exemplo,
pela dispensa da prestação de contas em se tratando de subsídios à atividade
econômica privada. Um tipo especial de prevaricação está desenhado no inciso V
do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, em que o agente recebe vantagem econômica
para tolerar exploração ou prática de jogos de azar, lenocínio, narcotráfico,
contrabando, usura ou outra atividade ilícita. “o ato de improbidade
contemplado no inciso V supõe agente público que tem o dever de reprimir as
atividades ilícitas nele elencadas, todas caracterizadoras do chamado crime
organizado” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO
JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p.
63). Não deve causar
estranheza a referência a esta hipótese num texto de Direito Econômico, pois
não se pode esquecer que as organizações criminosas constituem, elas próprias,
fontes de poder econômico, no sentido de garantirem aos que delas se valem
posição de supremacia consistente em fonte de recursos adicionais para enfrentar
os custos de atividades lícitas (CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. A “lavagem de
dinheiro” e o problema da igualdade dos agentes econômicos no mercado. In: <http://www.fbde.org.br/lavagem.html>,
acessado em 1 de janeiro de 2004; idem. Crime organizado como atividade
econômica. In: <http://www.fbde.org.br/crime.html>,
acessado em 1 de janeiro de 2004).
No artigo 332 do
Código Penal está tipificado o tráfico de influência, cuja objetividade
jurídica é assim descrita por Antônio Pagliaro & Paulo José da Costa Jr.:
“são tutelados o bom andamento e a imparcialidade da administração, porque do
pretexto de obsequiar um agente público poder-se-ia facilmente passar a uma
ingerência efetiva. Mas também é tutelado o prestígio, que certamente é lesado,
quando as pessoas são induzidas a acreditar que podem ser praticados atos
contrários aos deveres do funcionário público, desfrutando-se de uma ingerência
ilícita” (op. cit. p. 218.). Com efeito, muito comum no âmbito do exercício da
função de fomento é a busca de obtenção de condições privilegiadas para se
alcançarem as benesses da legislação incentivadora. Tal conduta, que se traduz
como uma das facetas do denominado “jeitinho”, configura, em tese, improbidade
administrativa, justamente porque implica considerar o uso da coisa pública de
modo que uns sejam mais iguais do que os outros. Literalmente, o inciso IX do
artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, configura como ato de improbidade a percepção
de vantagem para intermediar a liberação ou aplicação de verba de qualquer natureza
(PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR,
Waldo. Op. cit. p.
67-68.).
Merece destaque o
artigo 359-a acrescido ao Código Penal pela Lei 10.028, de 19 de outubro de
2000, e que tipifica a irregular contratação de operações de crédito. Parte-se
do pressuposto de que o endividamento público teria como conseqüência o
incremento do processo inflacionário, e, por outro lado, à vista de regramento
especial posto para a cobrança dos créditos entre as unidades federadas
{BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar nº 6/RJ. Relatora: Min. Ellen Gracie. Diário de Justiça da União. Brasília, 29 ago 2003), bem como
da necessidade de o Poder Público desempenhar competências das quais não se
pode desvencilhar (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação
Direta de Inconstitucionalidade 2.544/RS. Relator:
Min. Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça da União. Brasília, 8 nov 2002), a tutela à regularidade das
operações é algo que não pode ser postergado. O artigo 359-e, acrescido ao
Código Penal pela mesma Lei 10.028, criminaliza a prestação de garantia
graciosa. Tem-se aqui, indubitavelmente, disposição voltada a evitar que
recursos que já são destinados a finalidades específicas, notadamente aqueles
que se conceituam como despesas obrigatórias de caráter continuado, no artigo
17 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, sejam inviabilizados pela
submissão do interesse público ao atendimento de interesse particularizado de
quem venha a ser beneficiário da operação financeira. Reforça-se, assim, a
repressão à conduta descrita no inciso VI do artigo 10 da Lei 8.429, de 1992. O
artigo 359-h do Código Penal, que também a ele foi acrescido pela Lei 10.028,
tipifica a oferta pública ou colocação irregular de títulos da dívida pública
no mercado, com o objetivo de impedir que se elevem as taxas de juros sem
qualquer controle das autoridades monetárias, como observado por LEONARDO
CANABRAVA TURRA: "se não elevam a inflação no mesmo curto prazo nos mesmos
valores, como o faz a expansão monetária, os títulos elevam as taxas de juros,
aumentando o custo do investimento, que fica, obviamente, desestimulado" [A
política econômica inflacionária: fundamentos jurídicos da expansão da dívida
pública. In: PLURES. Direito e processo inflacionário. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 23].
Walter Jone dos Anjos
e Luís Henrique Martins dos Anjos recordam outro campo fecundo para os ataques
à probidade administrativa: “ao contrário da empresa privada, o Poder Público
não tem a liberdade, a chamada autonomia da vontade, como princípio, para as
suas contratações ou aquisições. O Poder Público está sujeito ao dever de
licitar – cotejar, comparar produtos e ofertas. Este dever se assenta em duas
finalidades: uma econômica, que significa maior vantagem para a administração;
a outra isonômica, que implica iguais oportunidades aos particulares que
oferecem serviços, obras, bens à administração” (Manual de Direito
Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 151). Diz
o insuspeito MIGUEL REALE JÚNIOR: “merece, a nosso ver, destaque a
criminalidade dourada corruptora, ou seja, a praticada por empresas detentoras
de poder econômico e político, que, em geral mancomunadas com agentes oficiais,
atingem a Administração Pública, por exemplo, cartelizando a participação em
processos licitatórios, ou uniformizando preços e elevando-os
injustificadamente na prestação de serviços ao Estado” (Crime organizado e
crime econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São
Paulo, v. 4, n. 13, p. 189, jan/mar 1996).
No que tange
especificamente às licitações, quando ocorra a dispensa ou a declaração de
inexigibilidade fora das hipóteses legais, tem-se claramente a submissão do
interesse público ao interesse privado de quem pretende contratar com a
administração pública. Justamente para se evitar que o agente privado passe a
comandar o funcionamento do serviço público em seu próprio e exclusivo proveito
é exigida toda uma gama de formalidades, evitando, assim, o estabelecimento de
condições privilegiadas, como se pode ver deste julgado do Supremo Tribunal
Federal:
“HABEAS-CORPUS.
DISPENSA DE LICITAÇÃO FUNDADA EM DOCUMENTO INIDÔNEO. ARTIGOS 25, 83, 89 E 99 DA
LEI Nº 8.666/93 E 29 E 304 DO CÓDIGO PENAL. DENÚNCIA. ALEGAÇÕES DE FALTA DE
JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL, AUSÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO,
INEXISTÊNCIA DE RESULTADO LESIVO E DE FALTA DE INTIMAÇÃO DO ADVOGADO QUANDO SE
PROSSEGUE NO JULGAMENTO, APÓS PEDIDO DE VISTA. 1. Denúncia que satisfaz as
exigências do artigo 41 do CPP. Eventual erro na classificação do crime pode
ser corrigido até a prolação da sentença (CPP, artigo 383). O réu deve se
defender dos fatos que lhe são imputados, e não do tipo penal mencionado na
denúncia. 2. Ausência de qualquer das hipóteses que autorizam a rejeição da
denúncia in limine (CPP, artigo 43). 3. A juntada do exame de corpo de delito,
quando necessária, pode ser feita até a prolação da sentença, visto que o
artigo 525 do CPP só se aplica ao rito procedimental relativo aos crimes contra
a propriedade imaterial. Precedentes. 4. A existência, ou não, de dolo ou
culpa, e a exigência de resultado lesivo para a tipificação da conduta são
matérias próprias da instrução criminal. 5. Tanto no STF como no STJ não é
necessária a publicação de pauta quando se prossegue no julgamento de processo
após pedido de vista. 6. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido”[HC 80.306.
Relator: Min. Maurício Corrêa. DJ 4-05-2001].
No artigo 90 da Lei
8.666/93, o que se tem , de acordo com Diógenes Gasparini, é a criminalização
do gentlemen’s agreement: “a frustração e a fraude ao princípio da
competitividade devem ocorrer mediante ajuste, combinação ou qualquer outro
expediente. Há que existir, assim, uma ação combinada ou ajustada para alcançar
esse intento entre, no mínimo, duas pessoas. Esses agentes podem ser
participantes (pessoas físicas ou jurídicas ou uma e outra) do certame ou um
concorrente (pessoa física ou jurídica) e um servidor, desde que responsável
pela licitação” (Crimes na licitação. São Paulo: NDJ, 2001, p.
192). Quando diga respeito ao engajamento de particular em programa financiado
por recursos estrangeiros, o crime cai sob a competência da Justiça Federal,
como se pode ver deste julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
“HABEAS
CORPUS. APROPRIAÇÃO DE RECURSOS PÚBLICOS, OBTIDOS PELA UNIÃO MEDIANTE CONTRATO
DE MÚTUO FIRMANDO COM O BIRD. FRAUDE EM PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. 1.
Competência da Justiça Federal, não só por se tratar de crime que atinge bens e
interesses da União, que se endividou externamente para obtenção dos recursos e
se responsabilizou pela sua fiel aplicação, mas porque se trata de recursos
federais sujeitos a prestação de contas perante o TCU. Precedentes. 2. O crime
previsto no artigo 90 da Lei 8.666/93 não é necessariamente plurissubjetivo e,
de qualquer forma, o princípio da indivisibilidade da ação penal não incide
quando ela é pública. 3. De qualquer sorte, ainda que assim não se entendesse,
remanesceria o delito de estelionato, já que a hipótese, na ótica do acusador,
cuida de concurso material, da competência, também, da Justiça Federal. 4.
Ilegitimidade ativa que não se caracteriza, pois a denúncia foi oferecida por
quem tem a titularidade da ação penal por crimes praticados em detrimento dos
bens, serviços e interesses da união. 5. Cerceamento de defesa incomprovado. 6.
Aplicação do princípio da consunção deverá ser pleiteado a benefício do
paciente, se assim persistir o entendimento de sua defesa, na ocasião própria,
em sua sede natural, que é o processo de conhecimento condenatório. 7.
Denegação da ordem de habeas corpus.” [HC 199701000184370. Relator: Des. Fed.
Hilton Queiroz. Diário de Justiça da União – seção II – 3-10-1997].
Sob o enfoque da
probidade administrativa, o inciso VIII do artigo 10 da Lei 8.429, de 1992, em
sua primeira parte, desenha precisamente a hipótese da frustração da licitude
de processo licitatório. Com efeito, mesmo o fornecimento de bens e serviços à
administração pública, num certo sentido, pode ser considerado uma forma de manifestação
da participação no exercício do poder desta mesma administração. Nisto, aliás,
é que se pode ter uma idéia do que significou a revogação do artigo 171 da
Constituição Federal, no qual se estabelecia para a empresa brasileira de
capital nacional inclusive preferência em licitações.
O crime definido no
artigo 91 da Lei 8.666/93 é, consoante Diógenes Gasparini, “muito semelhante ao
consignado no art. 321 do Código Penal chamado advocacia administrativa. O
preceptivo em comento não abrange todo e qualquer interesse privado junto à
administração pública, mas unicamente os ligados à instauração da licitação e à
celebração do contrato” (op. cit. p. 107-108). Mostra-se evidente
a razão de ser da criminalização da conduta e a própria importância para que se
não criem situações privilegiadas no mercado, de tal sorte que a concorrência,
enquanto valor constitucionalmente protegido, se derrua.
O artigo 92 da Lei
8.666/93 criminaliza as condutas de admitir, possibilitar ou dar causa a
qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do
adjudicatário, bem como a de pagar fatura com preterição da ordem cronológica.
De acordo com Paulo José da Costa Júnior, “com o processo inflacionário
brasileiro, o pagamento da fatura antes da data devida configura vantagem
econômica indiscutível ao adjudicatário” (Direito Penal das licitações.
São Paulo: Saraiva, 1994, p. 31).
O artigo 93 tipifica a
conduta de impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato do
procedimento licitatório. Em se verificando qualquer das condutas descritas no
tipo – comentando, embora, o revogado artigo 335 do Código Penal, que se
referia a elas, também –, diz Nelson Hungria: “deixará de ser alcançada a
finalidade de uma ou outra dessas formalidades, isto é, a apuração do justo
preço a ser pago ou recebido pela administração estatal ou paraestatal, bem
como a necessária relação dos competidores, do ponto de vista de sua aptidão e
solvabilidade” (op. cit. p. 441). Paulo José da Costa Júnior, quanto à
consumação do fato típico, anti-jurídico e culpável, doutrina: “a norma penal
em tela não previu causas excludentes de criminalidade específicas, que venham
a justificar o impedimento, a turbação ou a fraude. Basta que o ato do
procedimento licitatório venha a ser impedido, perturbado ou fraudado para o
aperfeiçoamento do tipo penal” (Direito Penal das licitações,
cit. p. 38).
O artigo 94 da Lei
8.666/93 define como crime devassar o sigilo de proposta em licitação ou
ensejar a terceiro que o faça. Nelson Hungria, embora com os olhos postos no
revogado artigo 326 do Código Penal, ensina: “a preservação do sigilo em torno
de propostas de concorrência pública é uma condição do êxito ou eficiência de
tal expediente contratual no interesse da administração, isentando-o de fraudes,
assegurando a lealdade da competição e evitando que se frustre o objetivo
desta” (op. cit. p. 399). Paulo José da Costa Júnior complementa: “o sigilo das
propostas no procedimento licitatório é mantido pelo inciso I do art. 3º da
presente lei, assegurando a competitividade e a plena igualdade do certame
entre os concorrentes” (Direito Penal das licitações, cit.
p. 44). Também se há de cogitar de configurar tal conduta crime de
responsabilidade além de crime comum, em se tratando de ato determinado por quem
esteja no ápice da hierarquia funcional. É uma das formas de tornar, por
exemplo, as privatizações verdadeiros procedimentos com resultado predefinido.
Já nos debruçamos sobre o tema do papel do sigilo no Estado Democrático de
Direito em outra oportunidade (CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. A publicidade, o
segredo e as fronteiras entre o público e o privado no regime jurídico da
atividade econômica. In: <http://www.fbde.org.br/publicidade.html>,
acessado em 6 de março de 2004).
O artigo 95 da Lei
8.666/93 criminaliza a conduta de afastar ou procurar afastar licitante, por
meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de qualquer vantagem.
Heleno Cláudio Fragoso, olhos postos no revogado artigo 335 do Código Penal: “o
afastamento de licitante é a forma mais eficiente de comprometer o êxito da
concorrência ou da hasta pública, simplesmente porque elimina a competição”(Lições,
v. 2, cit. p. 506). Aqui, poder-se-ia visualizar também a hipótese de
terceirizações para determinados agentes privados, previamente determinados, de
tal sorte que a alguns privilegiados – os mais iguais - fosse assegurada a
forma de enriquecer à custa da necessidade coletiva.
O artigo 96 da Lei
8.666/93 tipifica a conduta de fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública,
licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias ou contrato
dela decorrente aumentando arbitrário dos preços (inciso I), vendendo, como
verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada ou deteriorada (inciso II),
entregando uma mercadoria por outra (inciso III), alterando substância,
qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida (inciso IV), tornando, por
qualquer modo, injustamente mais onerosa a proposta ou execução do contrato
(inciso V). Quanto ao inciso I, doutrina Paulo José da Costa Júnior: “a conduta
punível não consiste numa elevação qualquer de preços de mercado, mas numa
elevação arbitrária. Assim, a majoração haverá de ser injustificada,
desmotivada, contrariando regras e princípios” (Direito Penal das
licitações, cit. p. 50). Claro que a verificação da
razoabilidade ou irrazoabilidade dependeria, no caso, de produção de prova
técnica. Não é por outro motivo que o inciso VI do artigo 9º da Lei 8.429, de
1992, considera como ato de improbidade gerador de enriquecimento ilícito a percepção
de qualquer vantagem econômica para se fazer declaração falsa sobre medição ou
avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço: “a realização de
perícias avaliatórias sobre o objeto contratado pela Administração constitui-se
em importante função pública. São realizadas por profissionais detentores de
formação universitária. [...] Também nesta hipótese haverá o concurso de mais
de um ato de improbidade, porque ao enriquecimento ilícito corresponderá
prejuízo da Administração em decorrência da declaração falsa” (PAZZAGLINI
FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias & FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op.
cit. p. 63-64). Diógenes Gasparini, outrossim, salienta que o tipo do
inciso I do artigo 96 da Lei 8.666, de 1993, se refere mais às compras que às
vendas feitas pela Administração Pública: “a venda por preço inferior ao de
mercado, que caracteriza prejuízo efetivo para a Fazenda Pública, não foi, como
devia ser, incriminada por esse preceptivo penal, mas pode configurar o crime
da Lei Federal licitatória” (op. cit. p. 148). Tem-se presente, também, a
hipótese de incidência do inciso II do artigo 9º da Lei Federal 8.429, de 1992,
em que “o agente público percebe a vantagem econômica, ainda que indireta, para
facilitar (não criar dificuldade, abrir caminho etc.) a aquisição, permuta,
locação de bem ou a contratação de serviço pela entidade a que serve, por preço
superfaturado” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias &
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p.
60). Quanto ao inciso
V do artigo 96 da Lei 8.666, de 1993, eis o que diz Paulo José da Costa Júnior:
“de algum modo, a proposta apresentada pelo concorrente ou a execução de
contrato haverão de ser mais dispendiosas, o que irá gerar um prejuízo injusto
em detrimento da Fazenda Pública” (Direito Penal das licitações, cit. p. 52). O
Código Eleitoral prevê no seu artigo 303 o crime de majorar os preços de
utilidades e serviços necessários à realização de eleições, como transporte e
alimentação de eleitores, impressão de publicidade e divulgação de material eleitoral.
No inciso III do artigo 9º da Lei 8.429, de 1992, está tipificada como ato de
improbidade a percepção de vantagem econômica de qualquer natureza para
facilitar alienação, permuta ou locação de bem público ou fornecimento de
serviço por ente estatal por preço inferior ao de mercado. É a hipótese em que
“a incúria do agente público em detrimento da entidade, pela alienação,
permuta, locação de bem ou prestação de serviço, por valores inferiores aos
cobrados por outrem” (PAZZAGLINI FILHO, Marino, ROSA, Márcio Fernando Elias
& FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit. p.
60).
O artigo 97 da Lei
8.666, de 1993 incrimina as condutas de admitir à licitação ou celebrar
contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo. A inidoneidade é uma
das modalidades de capitis deminutio admitidas no Direito atual e,
efetivamente, pode afetar a própria credibilidade do desenvolvimento da
prestação do serviço. Aliás, o artigo 12 da Lei 8.429, de 1992 prevê, como
efeito acessório da condenação por improbidade administrativa, a declaração de
inidoneidade.
O artigo 98 da Lei
8.666, de 1993, tipifica a conduta de obstar, impedir ou dificultar
injustamente a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou
promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento do registro do
inscrito. Tem-se aqui, efetivamente, a tutela penal da concorrência, posta como
princípio da ordem econômica no inciso IV do artigo 170 da Constituição
Federal.
Fonte: http://www.fbde.org.br/responsabilidade.html