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A ação penal privada subsidiária nos
crimes vagos[1].
Anastácio Nóbrega Tahim Júnior [2]
INTRÓITO
01. Alçada à
categoria de garantia constitucional, a ação penal privada subsidiária da
pública ainda suscita controvérsias. Singularizada por muitos como uma
verdadeira avis rara de nosso ordenamento jurídico, sem prejuízo da
inconveniência resultante de sua existência num sistema acusatório, como é o
caso do nosso, a verdade é que, com assento no artigo 5º de nossa Carta Política
de 1988, a ação penal privada subsidiária consubstancia-se em cláusula pétrea,
em que pese todas essas honrosas críticas.
02. Introduzida
como meio de defesa social contra eventual desídia do Ministério Público no
exercício de sua atividade persecutória, esta espécie de ação penal está a
merecer uma melhor definição de seu espectro de abrangência.
03. Isto
porque, se por um lado não representa grande desafio identificar o autor dessa
espécie de ação penal num crime de homicídio, por exemplo, por um outro a
facilidade não é a mesma quando se está diante de uma crime ambiental, ou
contra a incolumidade pública, v.g.
04. Assim,
demonstrar-se-á sua aplicabilidade, também, àqueles crimes identificados pela
doutrina germânica como crimes vagos, em que os sujeitos passivos são
coletividades destituídas de personalidade jurídica, tais como o público, a
família, a sociedade, et coetera.
05. E mais....
Objetiva o presente trabalho propor uma solução à seguinte questão: em caso de
inércia do Ministério Público no oferecimento de denúncia, num dado crime
contra a incolumidade pública ou mesmo contra o meio ambiente, quem estaria
legitimado a promover a ação penal de iniciativa privada subsidiária da
pública?
EXPOSIÇÃO
A ação penal privada subsidiária. Sua aplicabilidade aos crimes vagos
06.
Reproduzindo parte da dicção contida no artigo 29 do Código de Processo Penal,
a Carta Republicana em vigor, em seu artigo 5º, inciso LIX, deu colorido
constitucional à ação penal privada subsidiária da pública ao dispor que “será
admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no
prazo legal.”
07. E,
doutrinariamente, não se duvida que a razão de ser da existência da ação penal
privada subsidiária ¾ a despeito de algumas críticas sobre sua conveniência em
nosso sistema acusatório ¾ foi a necessidade de criar um meio de defesa social
contra eventual desídia do Ministério Público no exercício de sua atividade
persecutória.
08. A bem da
verdade, ao mesmo tempo em que se outorgou àquela Instituição a titularidade
exclusiva da ação penal pública, objetivou o legislador constituinte,
essencialmente, criar um mecanismo de controle contra eventual abuso desse
monopólio.
09. Neste
diapasão, já que a possibilidade de abuso não é característica exclusiva de
determinados delitos, igualmente, a providência engendrada não pode ser
privilégio privativo dos crimes que tenham, como sujeito passivo, alguém
individualmente considerado e determinado. Não seria nada razoável admitir que
contra abusos em dados delitos houvesse controle, mas em face da desídia
ministerial em outras infrações penais não teria ele ¾ o controle ¾ aplicação.
10. Dessa
forma, sob o ponto de vista teleológico do instituto, não há razão para excluir
dos crimes vagos a possibilidade de controle do monopólio da ação penal pública
por meio da ação penal privada subsidiária.
11. Por outro
lado, agora sob o ponto de vista gramatical, um raciocínio diverso atentaria
contra a literalidade dos artigos 29 do Código de Processo Penal e 5º, inciso
LIX, da CRFB/88, os quais não excluem de sua incidência os chamados crimes
vagos. E aqui vale lembrar consagrada regra hermenêutica, no sentido de que não
se pode restringir onde não o fez, expressamente, o legislador.
12. O Professor
Julio Fabbrini Mirabete traz lição esclarecedora a respeito:
“Qualquer
que seja o delito que se apura mediante ação penal pública, se o Ministério
Público não oferece a denúncia no prazo que, em regra é de cinco dias, se o
agente estiver preso, e de quinze dias, se solto (art. 46 do CPP), poderá a
ação penal ser instaurada mediante queixa do ofendido ou de quem tenha
qualidade para representá-lo. Essa garantia contra possíveis abusos do
monopólio da ação penal pela inércia do Ministério Público tem aplicação
na legislação penal especial (Lei de Falências, Código Eleitoral, Código de
Processo Penal Militar etc.). A garantia constitucional não contempla
qualquer restrição ao princípio, não podendo restringi-lo a lei ordinária.”
(PROCESSO PENAL, 3ª Edição, São Paulo: Atlas, 1994, p. 121)
13. Fernando da
Costa Tourinho Filho é partidário da mesma opinião:
“Entende
Mirabete que, em face da linguagem constitucional, esta ação privada
subsidiária passou a existir nos crimes de imprensa, nos crimes eleitorais e
até mesmo nas infrações da alçada da Justiça Militar. A nós nos parece
também.” (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COMENTADO, Volume 1, 2ª Edição, São
Paulo: Saraiva, 1997, p. 73)
14. Demais
disso, não se pode deixar de ter presente que a ação penal privada subsidiária
é privada, apenas, subsidiariamente. Traz ela, como pano de fundo, toda a
principiologia que inspira e informa as ações penais públicas. Em se tratando
de ação pública em sua essência, pois, como qualquer uma outra, seu móvel não é
um interesse particular da vítima, mas o interesse público que anima e
justifica a própria repressão criminal.
15. Parece
insustentável, portanto, que esse interesse público e princípios como o da
obrigatoriedade e da indisponibilidade, por exemplo, possam não ser
reconhecidos a ponto de cair no vazio a persecução penal quando inerte o
Ministério público, em casos que tais; tão somente pelo fato de se ter, como
sujeito passivo, uma dada coletividade...
16. Assim, quer
tenha o crime, como sujeito passivo, uma pessoa individualmente considerada e
determinada, quer uma coletividade destituída de personalidade jurídica, é
possível concluir, com extrema razoabilidade, que há identidade de razão
jurídica entre ambas as situações, a justificar a aplicação dos mesmos
princípios e dispositivos.
17. É dizer,
qualquer que seja o delito, se inerte o Ministério Público quando do
oferecimento de denúncia, estará aberto o caminho para a ação penal privada
subsidiária, por quem detenha a necessária legitimidade...
A questão da
legitimidade ativa nos crimes vagos
18. A
legitimidade ativa figura como uma das condições genéricas da ação penal, seja
ela pública ou de iniciativa privada, em qualquer de suas formas. E
legitimidade ativa vem a ser a identidade da pessoa do autor com a da pessoa
favorecida pela lei para o exercício do direito de ação.
19. Volvendo ao
cerne da controvérsia, segundo prevê o artigo 30, do Código de Processo Penal,
a pessoa favorecida pela lei para o exercício dessa espécie de ação penal é “o
ofendido ou quem tenha qualidade para representá-lo”.
20. Mas o que
vem a ser “ofendido”, especialmente para os fins do artigo 30 do Código de
Processo Penal ? É ele o sujeito passivo material do delito. Vale dizer, é o
titular do bem jurídico tutelado pela norma penal.
21. O eminente
Magalhães Noronha é quem explica:
“Ofendido
(expressão sinônima de sujeito passivo) ainda é nos crimes contra quem o
personifica e representa.” (DIREITO PENAL, Volume 1, São Paulo: Saraiva, 1991,
p. 111)
22. Como se vê,
é a condição de sujeito passivo material (ofendido) que qualifica o prejudicado
pelo crime como legitimado ativo. Assim, tem legitimidade ativa para propor
ação penal privada subsidiária da pública qualquer sujeito passivo, ou todo
aquele que possa identificar-se como sendo o titular do bem jurídico tutelado
pela norma penal.
23. Nos
chamados crimes vagos, muito embora o bem penalmente protegido pertença, num
primeiro momento, à coletividade, pertence, também, aos que, individualmente, a
integra, até porque é aquela coletividade destituída de personalidade jurídica.
24. Desse modo,
nos crimes vagos essa espécie de ação penal poderá ser proposta por qualquer
indivíduo inserido na coletividade ofendida, desde que presente sua condição de
titular do bem jurídico penalmente protegido.
25. O já citado
Julio Fabbrini Mirabete arremata:
“Pode
intentar a ação privada subsidiária todo titular do interesse jurídico
lesado ou ameaçado na prática do crime qualquer que seja a lei penal definidora
do ilícito.” (PROCESSO PENAL, 3ª Edição, São Paulo: Atlas, 1994, p. 121)
26. A noção de
coletividade lesionada e, consequentemente, de indivíduos que a integra, para
os fins de ação penal privada subsidiária, deve-se prender à idéia de sujeito
passivo. E esta concepção é imprescindível para que se estabeleça a extensão
dos legitimados ativos...
27. Se tem
legitimidade ativa qualquer ofendido, entendendo-se este como sendo o sujeito
passivo, o alcance daqueles conceitos vai até onde houver titularidade do bem
jurídico penalmente protegido, sem pretender, obviamente, alargar o rol dos
legitimados previsto, exaustivamente, nos artigos 30 e 31-CPP, mas de aplicar
estes dispositivos a todos os crimes, indistintamente.
28. Noutras
palavras, onde se lê ofendido, leia-se sujeito passivo.
29. Igualmente,
não se busca, nos moldes da velha Roma, a instituição da “ação penal popular”
ou a “ação penal popular subsidiária”. Nesta, o direito de denunciar fica a
cargo de qualquer do povo; aqui, apenas do ofendido e desde que satisfaça as
demais condições da ação, notadamente o interesse de agir em sua tríplice manifestação:
utilidade, necessidade e adequação.
30. Diversa,
no entanto, foi a solução preconizada pelo Código de Defesa do
Consumidor quanto aos crimes vagos que interessam às relações de consumo, de
melhor técnica, a nosso juízo...
31.
Corroborando a tese aqui esboçada, no sentido de que a ação penal privada
subsidiária da pública também tem ampla aplicação nos crimes que
comprometem toda uma coletividade ¾ e a de consumidores não poderia
passar ao largo dessa disciplina ¾, a Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990,
atribuiu legitimidade ativa para aquela causa também aos legitimados
indicados no artigo 82, incisos III (as entidades e órgãos da administração
pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica,
especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo
CDC) e IV (as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que
incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos
protegidos pelo CDC) da mesma lei, nos termos de seu artigo 80[3].
CONCLUSÃO
32. Expendidas
essas considerações, eis as conclusões:
I - a ação
penal privada subsidiária da pública tem, também, plena aplicação nos chamados
crimes vagos; aqueles em que o sujeito passivo é uma coletividade destituída de
personalidade jurídica;
II - em caso de
inércia do Ministério Público no oferecimento de denúncia em casos que tais
(crimes contra a incolumidade pública ou mesmo contra o meio ambiente, por
exemplo), a ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública poderá ser proposta
por todo aquele que puder se identificar, ao lado da coletividade a que
pertence, como sendo o titular do bem jurídico tutelado pela norma penal;
III - A noção
de coletividade lesionada e, consequentemente, de indivíduos que a integra,
para os fins de ação penal privada subsidiária, deve-se prender à idéia de
sujeito passivo. A extensão desses conceitos, portanto, vai até onde houver
titularidade do bem jurídico penalmente protegido; e
IV - Quanto aos
crimes vagos que interessam às relações de consumo, a legitimidade ativa para a
causa é, sem prejuízo da pertencente ao ofendido, também conferida aos
legitimados indicados no artigo 82, incisos III (as entidades e órgãos da
administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica,
especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo
CDC) e IV (as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que
incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos
protegidos pelo CDC) da Lei n.º 8.078/90.
[1] Tese apresentada e aprovada no 13º Congresso
Nacional do Ministério Público, promovido pela CONAMP em 1999, na cidade de
Curitiba/PR.
[2] O autor é Procurador da República em Goiás,
atualmente.
[3] “Art. 80. No processo penal atinente aos
crimes previstos nestes Código, bem como a outros crimes e contravenções que
envolvam relações de consumo, poderão intervir, como assistentes do Ministério
Público, os legitimados indicados no art. 82, incisos III e IV, aos quais
também é facultado propor ação penal subsidiária, se a denúncia não for
oferecida no prazo legal.”
Retirado: http://www.prgo.mpf.gov.br/doutrina/ANASTACIO-50.htm