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A inexigibilidade de conduta diversa
como excludente da culpabilidade penal |
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Sumário: 1.
Introdução. 2. Culpabilidade como elemento do conceito de crime. 3. As
teorias da culpabilidade. 4. Os elementos da culpabilidade. 5. O papel
precursor do Tribunal do Império Alemão - Reichsgerich. 6. A exigibilidade de
conduta diversa na doutrina. 7. A matéria no Direito Penal brasileiro. 8. A
posição da jurisprudência. 9. Conclusões. 1. Introdução Há
casos de absolvição ocorridos no Judiciário cuja relação lógica da decisão
absolutória com as causas de exclusão do crime e de isenção de pena não é
alcançada por muitas pessoas, leigas ou mesmo estudantes do Direito. Citamos,
por exemplo, um julgamento realizado pelo plenário do Tribunal Popular do
Júri ocorrido em uma cidade do interior nordestino, quando os jurados
acataram a tese de coação irresistível, prevista no art. 22 do Código Penal,
para uma acusação de homicídio qualificado. O
fato julgado foi um homicídio praticado contra um homem acusado de haver
deflorado uma mulher. O homicida, no caso, era o irmão mais velho da suposta
seduzida. A
defesa, no plenário, alegou que o fato havia sido praticado sob coação moral
irresistível da sociedade do lugar onde morava o acusado, que o pressionava a
tomar uma atitude diante do falastrão, que, além de comentar publicamente o
defloramento de sua irmã, ainda dizia que a próxima seria a irmã mais nova. Os
jurados, à unanimidade, reconheceram a tese da defesa e absolveram o acusado,
levantando a revolta da acusação e o inconformismo da família da vítima que
não entendia o fato de o homicídio haver-se dado de emboscada, portanto, sem
estar configurada a legítima defesa. Tal
fundamento da absolvição, no entanto, está previsto no Direito Penal, sob a
modalidade de excludente da culpabilidade, porque excluído está um dos seus
elementos constitutivos, qual seja: a exigibilidade de conduta diversa. É
a partir desse prisma que desenvolveremos o presente estudo, com o objetivo
de entender-se a inexigibilidade de conduta diversa como uma das causas
legais ou extralegais de exclusão da culpabilidade. Evidentemente
que, no presente trabalho, não será possível uma abordagem aprofundada da
culpabilidade, matéria própria dos tratadistas, mas apenas a discussão de um
de seus elementos. 2. Culpabilidade como elemento do conceito de crime No
Brasil, como de resto no mundo contemporâneo, há grande discussão teórica a
respeito da inclusão ou não da culpabilidade no conceito analítico ou
dogmático de crime. Para
uns, o crime seria uma ação típica, ilícita e culpável; para outros o crime
não passa de uma ação típica e ilícita, ficando a culpabilidade apenas como
pressuposto da pena. Abrindo
a polêmica, Damásio de Jesus, penalista de escol, logo no início do seu
Direito Penal, parte geral(1), afirma categoricamente que a culpabilidade não
integra o conceito de crime, sendo mero pressuposto da pena. De acordo com
sua posição, que é acompanhada por Julio Fabrini Mirabete(2), o Código Penal
pátrio adotou a teoria finalista da ação, correspondente à teoria normativa
pura da culpabilidade. Justificando
sua posição, Damásio diz que nosso Código Penal ao disciplinar as causas de
exclusão da ilicitude, determina que "não há crime" (art.
23), ao passo que, ao tratar as causas de exclusão da culpabilidade,
considera que o agente é isento de pena (arts. 26, caput, e 28, § 1º). Magalhães
de Noronha(3) ao lado de Francisco de Assis Toledo(4) repudiaram essa tese. O
primeiro ao argumento principal que a culpabilidade é psicológico-normativa,
ou seja, não a integram apenas os elementos ditos normativos afirmados pela
teoria normativa mas também os psicológicos, no caso o dolo e a culpa. Para
o segundo, aqueles que defendem a teoria normativa pura da culpabilidade o
fazem sem senso crítico, esquecendo-se de que os próprios penalistas alemães
recentes, nacionais da origem do finalismo de Welzel(5), preferem seguir a
teoria limitada da culpabilidade, na sua opinião adotada pelo Código Penal
brasileiro. 3. As teorias da culpabilidade Alguns
autores apontam a teoria psicológica, nascida no final do século XIX e início
deste século, desenvolvida na Alemanha por Erik Wolf e na Itália por Giuseppe
Maggiore, como a primeira a tentar explicar a culpabilidade; contudo, há
registros de que as raízes da teoria da culpabilidade se encontram no Direito
Penal Italiano da Baixa Idade Média(6). Nos
primórdios, a culpabilidade era entendida como a liberdade de vontade,
posteriormente substituída pela teoria psicológica, a qual consistiu em
separar os aspectos exteriores do delito com seus componentes psíquicos,
caracterizando culpabilidade como a totalidade de relações psíquicas do autor
com o resultado. A culpabilidade resumir-se-ia no dolo e na culpa. Essa
teoria não respondeu a todas as indagações a respeito das relações psicológicas
do evento delituoso com seu autor, como bem ensina o penalista alemão
Hans-Heinrich Jescheck: A concepção psicológica da
culpabilidade logo se mostrou, sem dúvida, como insuficiente porque não dava
respostas às questões de quais relações psíquicas deviam considerar-se
relevantes jurídico-penalmente e porque sua presença fundamenta a
culpabilidade e sua ausência a exclui. Assim, não poder-se-ia explicar porque
ainda quando o autor atuasse dolosamente e, portanto, tenha produzido uma
relação psíquica com o resultado, deve negar-se sua culpabilidade se ele é um
doente mental ou se agiu em estado de necessidade (§ 35). Tampouco
poder-se-ia fundar o conteúdo da culpabilidade da culpa inconsciente com
fundamento na concepção psicológica da culpabilidade, já que nela falta
precisamente toda relação psíquica com o resultado. (7) Contrapondo-se
à teoria psicológica, Reinhar Frank, em sua obra editada em 1907 intitulada Über
den Aufbau des Schuldbegriffs (Estrutura do Conceito de Culpa) acrescenta
novos elementos à culpabilidade - o juízo de censura que se faz ao autor do
fato e, como pressuposto deste, a exigibilidade de conduta conforme a norma. Porém,
há aqueles que defendem a existência de uma teoria simbiótica formada pela
união da teoria psicológica com a normativa, daí seu nome ser teoria
psicológico-normativa da culpabilidade. Entre
nós seu grande defensor foi Magalhães de Noronha que disse: As duas teorias operam em
setores diferentes; porém não se repudiam porque a psicológica vincula
estritamente o indivíduo ao ato, enquanto a normativa refere-se à ilicitude
desse proceder. Destacam-se, pois, na culpabilidade, esses dois elementos: o
normativo, ligando a pessoa à ordem jurídica, e o psicológico, vinculando-a
subjetivamente ao ato praticado. (8) Com
o advento da teoria finalista da ação de Hans Welzel(9), jusfilósofo e
professor da Universidade de Göttingen, afirmando que o dolo estava na ação,
portanto integrando o tipo penal, surge pari passu a teoria extremada
ou normativa pura da culpabilidade. Para
essa teoria, os elementos da culpabilidade agora são: a imputabilidade, a
consciência potencial da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, nas
circunstâncias, porque o dolo e a culpa migraram para o tipo. Surge,
então, a teoria limitada da culpabilidade derivada da normativa pura, apenas
diferindo desta quando trata do erro de tipo derivado de descriminante putativa,
pois trata-o como excludente do dolo, enquanto a segunda apenas isentaria de
pena. Porém, o estudo do erro no direito penal deverá ser motivo de outro
estudo. De
resto, em razão da diversidade de opiniões, o próprio conceito de culpabilidade
variou com o passar do tempo e o desenvolvimento das teorias a respeito da
culpabilidade. Assim
é que, para os que adotam a teoria psicológica, a culpabilidade é a ligação
psicológica entre o agente e o seu fato. Para os normativistas a culpabilidade
é um juízo de valor sobre uma situação fática. Para os finalistas, a
culpabilidade é um juízo valorativo, um juízo de censura que se faz ao autor
de um fato criminoso. 4. Os elementos da culpabilidade Falaremos
agora, mesmo perfunctoriamente, de alguns aspectos dos ditos elementos
normativos da culpabilidade, a saber: 1) imputabilidade; 2) consciência
potencial da ilicitude e 3) exigibilidade de conduta diversa, nas
circunstâncias. A
imputabilidade, a par de existirem três importantes sistemas a seu respeito -
o biológico, o psicológico e a biopsicológico -, o nosso Código, no dizer de
Magalhães de Noronha(10), ao lado do italiano, suíco, argentino e alemão,
adotou o último. Para
tal sistema, é inimputável a pessoa que, em virtude de enfermidade ou
deficiência mental, não gozava, no momento do fato, de entendimento
ético-jurídico e autodeterminação. Assim, também, aqueles que, à época do
fato delituoso, tivessem 18 (dezoito) anos de idade completos. A
consciência da ilicitude ou antijuridicidade é o segundo dos elementos da
culpabilidade. Para este, alguém que tenha acesso amplo à informação e é
ciente das normas proibitivas deve ser punido com rigor, ao passo que se o
autor age sob um erro dito de proibição, previsto no art. 21 do CP, não seria
o caso de puni-lo, sendo o erro inevitável, ou então de diminuir-lhe a pena
na situação de erro evitável (parágrafo único do art. 21 do CP). O
terceiro elemento é a exigibilidade de conduta diversa. Assim, quando não é
possível exigir-se outra conduta ao agente de um fato, estar-se-ia na
presença de uma causa genérica de exclusão da culpabilidade, esta entendida
como um juízo de reprovação. 5. O papel precursor do Tribunal do Império Alemão -
Reichsgerich O
Reichsgerich (Tribunal do Império Alemão) foi construindo, a partir de
decisões de casos concretos, a doutrina da inexigibilidade de outra conduta,
posteriormente elaborada enquanto teoria, pelos professores Freudenthal e
depois por Edmund Mezger(11). O
caso mais famoso, em relação à culpa, citado em livros e monografias, é o do Leinenfager.
Ei-lo: O proprietário de um cavalo ressabiado e indolente ordenou ao
cavalariço que selasse o animal e saísse à rua com a finalidade de realizar
certo serviço. O cavalariço, prevendo a possibilidade de um acidente caso o
animal se descontrolasse, quis opor-se à ordem, porém seu patrão o ameaçou
com a demissão caso não cumprisse a determinação. O cavalariço, então
obedeceu. Na rua, o animal rebelou-se, causando lesões a um pedestre. O
Tribunal do Reich negou, contudo, a culpabilidade do cavalariço, porque,
levando em consideração as circunstâncias do fato, não podia ser-lhe exigido
conduta que o levaria à perda de seu emprego e de comida: negar-se a executar
a ação sabidamente temerária. O
caso acima está no campo da culpa no sentido estrito, pois o cavalariço,
mesmo se saísse sem a ordem do patrão, não deveria ser acusado de lesões
corporais dolosas, dado que as lesões foram ocasionadas por uma conduta
imprudente. Porém,
o Reichsgerich foi adiante, decidindo aplicar a doutrina da não
exigibilidade de outra conduta também aos fatos ditos dolosos. Relato
famoso envolvendo a aplicação da teoria aos fatos dolosos foi o da parteira e
dos mineiros, conhecido como Klapperstorch. Houve
um acordo entre a empresa mineradora e os seus empregados, pelo qual, no dia
em que a mulher de um deles desse à luz um filho, naquela data o mineiro
estaria dispensado do serviço e receberia seu salário com se trabalhado
tivesse. Os operários, então, ameaçando não mais procurar os trabalhos da
parteira, exigiram que ela, em caso de parto no domingo, deveria declarar ter
ele ocorrido em dia útil. Assim, a parteira com medo de perder a clientela e
sua única fonte de renda - já que a vila era formada unicamente por
trabalhadores nas minas -, foi responsável por diversas inscrições falsas no
registro Civil. No
caso, o Tribunal absolveu-a e condenou aqueles responsáveis pela ameaça. Um
outro, bastante assemelhado ao exemplo citado na introdução deste trabalho, é
o relatado pelo autor alemão Freudenthal, em sua monografia Shuld un
Vorwurf, Tübinger, 1922, pág. 18, de uma "jovem siliciana, que
matou o tio e a tia que a haviam feito vir de New York e de quem o tio se
tornara amante com o conhecimento da tia. Casada mais tarde, a jovem se vê
abandonada pelo marido, a quem a tia fizera ciente daquelas relações
ilícitas, e por fim mata o tio e ao tia, mas é absolvida pelo Tribunal, FREUDENTHAL
opina que a absolvição se justifica, porque em virtude das idéias dominantes
no meio em que a jovem fôra educada, não lhe podia ser razoavelmente exigida
conduta diversa". (12) 6. A exigibilidade de conduta diversa na doutrina Como
dissemos anteriormente a exigibilidade de conduta diversa como elemento da
culpabilidade surge na doutrina com a teoria normativa da culpabilidade
desenvolvida por Frank em contraposição à teoria psicológica que somente
previa o dolo e a culpa. Assim
disse Frank citado pelo também alemão Günther Jacobs: Se é que o conceito de
culpabilidade se reduz à soma do dolo e imprudência, e se estes constituem
apenas a realização consciente ou descuidada do resultado, não se explica como
se poderia excluir a culpabilidade mediante o estado de necessidade
(exculpante). Pois, também, o autor que age em estado de necessidade
(exculpante) sabe o que está fazendo. (13) O
mestre alemão continua: Para Frank na culpabilidade
dolo e culpa tem importância secundária. Na verdade a culpabilidade seria a
reprovação de um comportamento, dividindo-se a reprovação em partes separadas
entre si: <<constituição psíquica normal>>, mais <<relação
psíquica>> com o fato, mais <<configuração normal das
circunstâncias nas quais o autor age>>.(14) Edmundo Mezger, porém, foi
à frente do que escreveu Frank, em seu Moderne Wege der
Straferchsdogmatik, 1950, ao construir nas causas de justificação um
estado de necessidade supralegal, em que podem alojar-se casos de evidente
ausência do injusto que não possuem rigorosa previsão legal. O
grande penalista espanhol Juan Jimenez de Asúa, que durante muitos anos
esteve como refugiado político na Argentina, onde pontificou-se na cátedra do
Direito Penal, assim disse sobre a matéria: Desse modo, os dois
grandes caracteres do delito, a antijuridicidade e a culpabilidade, possuem
suas fases negativas, encaradas tanto como causas de justificação quanto
causas de exclusão da culpabilidade, duas fórmulas nas quais podem
refugiar-se toda conduta não antijurídica e não culpável, ainda que a lei não
haja previsto com precisão, sempre que se tenha reconhecido assim pelo
direito. (15). 7. A matéria no Direito Penal brasileiro Como
foi visto a inexigibilidade de conduta diversa como causa de exclusão da
culpabilidade foi amplamente aceita e aplicada no Direito Penal alienígena,
tanto em relação aos fatos culposos quanto aos dolosos. No
direito alemão, conforme noticia Hans Welzel, a inexigibilidade de conduta
diversa conforme o direito abrange três situações: 1) O estado de necessidade
(exculpante); 2) O estado de necessidade por coação e 3) O estado de
necessidade putativo. No
direito brasileiro as três hipóteses tomaram rumos diferentes ocupando
posições geográficas diversas no Código Penal. O estado de necessidade por
coação é uma causa de exclusão da culpabilidade na forma de coação
irresistível (art. 22 do CP). O estado de necessidade putativo tornou-se a
chamada discriminante putativa excludente do dolo, por se tratar de erro
sobre elemento constitutivo do tipo (art. 20, § 1º do CP). O
dito estado de necessidade exculpante não encontrou guarida na legislação
pátria porque ao contrário do Direito alemão, que previa no § 54 do seu
Código Penal tanto o estado de necessidade justificante quanto o estado de
necessidade exculpante, no Brasil adotou-se a chamada teoria unitária, cujos
defensores foram Costa e Silva, Aníbal Bruno e Nelson Hungria, prevendo-se,
então apenas o primeiro como causa de exclusão da ilicitude (art. 23, I e
art. 24 do CP). O
chamado estado de necessidade exculpante tornou-se, entre nós, uma causa
supralegal de exclusão da culpabilidade, adotada, inclusive pelos tribunais
pátrios, como se verá adiante. Dessarte,
para cumprir o objetivo proposto, analisaremos, agora, a obediência
hierárquica e a chamada coação irresistível, que os alemães chamaram de
estado de necessidade por coação, deixando-se o estado de necessidade
justificante e o estado de necessidade putativo, para outra oportunidade,
quando forem tratadas as causas de exclusão da ilicitude e de erro sobre os
elementos constitutivos do tipo. Pelo
que se pode depreender há dois tipos de coação: 1) a vis absoluta -
força física e a 2) a vis compulsiva. É
evidente que a força física (vis absoluta) não está no campo da
culpabilidade, pois esta exclui toda a vontade e ação própria do coacto,
portanto situada no campo da causalidade (art. 13 do CP). A que nos interessa
e que será objeto de estudo é a vis compulsiva. O
Direito Penal brasileiro entende como sendo a coação irresistível apenas a
força moral. O penalista paraense Edmundo Oliveira tem essa posição: Conforme já dissemos; o
art. 22 do CP, trata somente da coação moral irresistível, porque aqui o
coacto atua como pessoa, não como coisa, com consciência e com vontade,
embora esta esteja viciada pela pressão do coator. Assim, quem age sob coação
moral irresistível atua com dolo, pratica um ato típico, antijurídico, mas
não será punido por exclusão da culpabilidade, em virtude de não se exigir
conduta diversa. (16) A
ameaça é o anúncio de um mal que será realizado pelo ameaçador. Dessa forma,
pode-se ter a ameaça tanto sobre o parente do coacto quanto sobre ele mesmo. Existem
casos, v.g., em que a coação é feita mediante a ameaça de um mal a ser
praticado contra o próprio ameaçador. É o caso quando alguém ameaça de
matar-se para que a pessoa amada pratique um fato dito delituoso. Certo
é, porém, que a discussão noticiada por Magalhães de Noronha sobre a natureza
jurídica do fato praticado sob coação, está completamente superada, sendo
pacífico o entendimento de que é causa excludente da culpabilidade. Isso
porque o fato típico praticado sob coação é antijurídico, pois o autor da
coação, tendo o domínio completo do fato sobre um terceiro que age sem
liberdade, deve ser punido, na modalidade de autoria mediata. Portanto,
se José obriga a Maria, grávida, com ameaças graves, a ingerir um medicamento
abortivo. Maria é autora de aborto, porém não culpável. José não é mero
instigador, mas autor mediato, já que com sua pressão coativa sobre Maria
detinha o domínio completo do fato. Em
relação à obediência hierárquica pode-se dizer que também é uma causa de
exclusão da culpabilidade, mas os doutrinadores estrangeiros, em particular
Juan Jimenez de Asúa, não a coloca no campo da inexigibilidade de conduta
diversa. Para ele, trata-se de outro caso de erro: ... o que age em
obediência hierárquica acredita que a ordem é legítima, e por isso atua. Não
se nos diga que quando a ordem vem de um superior dentro do círculo de suas
atribuições e chega até o subordinado na forma requerido, o erro é
invencível. Por ser dessa maneira é que se exclui totalmente a culpabilidade,
já que, se não fosse assim, estaríamos na presença de um erro vencível que se
imputa a título de culpa(17). 8. A posição da jurisprudência Entre
nós, José Frederico Marques admite que, além de ser a obediência hierárquica
uma hipótese de erro de fato, também é uma causa de inexigibilidade de
conduta diversa: Na legislação pátria, segundo
o estatui o Código Penal, na segunda parte do art. 22, é exculpado o inferior
hierárquico que pratica o fato ilícito "em estrita obediência a ordem
não manifestamente ilegal". Se o superior dá a ordem, nos limites de sua
respectiva competência, revestindo-se ela das formalidades legais
necessárias, o subalterno ou presume a licitude da ordem (erro de fato), *
atualmente, erro de tipo ou erro de proibição, conforme o caso * ou se sente
impossibilitado de desobedecer ao funcionário de onde a ordem emanou (inexigibilidade
de outra conduta): de uma forma ou de outra, é incensurável o proceder do
inferior hierárquico, e, por essa razão, o fato praticado não é punível em
relação a ele. (18) Os
nossos tribunais têm acatado com parcimônia a inexigibilidade de conduta
diversa como causa de exclusão da culpabilidade. O
caso mesmo citado na introdução deste estudo foi a julgamento pelo Tribunal
Popular do Júri por duas vezes, porque no primeiro houve recurso de apelação
e o Tribunal de Justiça determinou a realização de outro, sob o fundamento da
não existência de coação social. Contudo,
a inexigibilidade de conduta diversa como causa excludente da culpabilidade
penal pode ser largamente aplicada, tanto pelos juízes estaduais quanto pelos
federais. Há
a situação dos chamados "sacoleiros", que, desempregados no Brasil,
vêem-se premidos a comprar mercadorias no Paraguai e a revendê-las no Brasil.
Discute-se, igualmente, a aplicação dessa excludente nos chamados crimes de
não-recolhimento das contribuições previdenciárias na época própria, quando o
agente opta por não recolhê-las para salvar a empresa da falência. Os
egrégios Tribunais Regionais Federais, em várias oportunidades, têm absolvido
acusados do crime acima referido aplicando a tese da causa supralegal de
exclusão da culpabilidade na modalidade de inexigibilidade de conduta
diversa, nas circunstâncias(19). O
Superior Tribunal de Justiça, noticia Francisco de Assis Toledo: ... por sua 5ª Turma,
admitiu, em tese, a alegação de inexigibilidade, em crime de homicídio,
estando o acórdão, de que fomos relator, assim ementado: "Penal e
Processual Penal. - Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e
supralegal de exclusão de culpabilidade, cuja admissibilidade no direito
brasileiro já não pode ser negada. - Júri. Homicídio. Defesa alternativa
baseada na alegação de não-exigibilidade de conduta diversa. Possibilidade,
em tese, desde que se apresentem ao Júri quesitos sobre fatos e
circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico. - Quesitos. Como devem ser
formulados. Interpretação do art. 484, III, do CPP, à luz da Reforma Penal.
Recurso Especial conhecido e parcialmente provido para extirpar-se do acórdão
a proibição de, em novo julgamento, questionar-se o Júri sobre causa de
exclusão da culpabilidade em foco (Resp. n. 2.492-RS). (20) Na
verdade, o que não se pode é, em princípio, estabelecer que nenhuma causa de
exclusão da antijuridicidade ou da culpabilidade não se aplica a determinado tipo
penal, isso porque tais regras são genéricas, podendo ser aplicadas a todos
os crimes indistintamente, lógico que analisando-se as circunstâncias de cada
caso individualmente, seja em crimes contra a previdência social seja em
crimes de homicídio. Assim
é que se espera que os doutos operadores do Direito cada vez mais tragam ao
Judiciário, na qualidade de matéria a ser discutida nos autos processuais, a
inexigibilidade de conduta diversa como causa de exclusão da culpabilidade. 9. Conclusões 1.
A inexigibilidade de conduta diversa surge como elemento da culpabilidade com
a teoria normativa de Frank. 2.
O Reichsgerich - Tribunal do Império Alemão - teve papel decisivo na
consolidação da doutrina da inexigibilidade da conduta diversa como causa
excludente da culpabilidade. 3.
Na doutrina Freundenthal e Mezger, autores alemães, foram os precursores
desse elemento da culpabilidade. 4.
O surgimento da teoria finalista da ação, correspondente à teoria normativa
pura da culpabilidade, firmou de uma vez por todas a exigibilidade de conduta
diversa. 5.
Para os alemães a inexigibilidade de conduta diversa corresponde a situações
do estado de necessidade: exculpante, por coação e putativo. 6.
No Código Penal pátrio, em razão da adoção da teoria unitária do estado de
necessidade, não foi adotada a modalidade exculpante, ficando esta como causa
supralegal de exclusão da culpabilidade. 7.
A obediência hierárquica não seria causa de inexigibilidade de conduta
diversa mas de erro. 8.
Sendo a inexigibilidade de conduta diversa causa genérica de exclusão da
culpabilidade pode ser aplicada a todos os tipos penais, indistintamente,
analisando caso a caso. NOTAS 1. Damásio
de Jesus, Direito Penal, Parte Geral, 20ª ed., São Paulo: Saraiva,
1997, p. V. 2. Julio
Fabrini Mirabete, Manual de Direito Penal, vol. 1, 8ª ed., São Paulo:
Atlas, 1994, p. 99. 3. Magalhães
de Noronha, Direito Penal, vol. 1, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991,
p. 100. 4. Francisco
de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª ed., São
Paulo: Saraiva, 1991, p.80. 5. Hans
Welzel, Derecho Penal Aleman, Parte General, 11ª ed., Chile: Editora
Jurídica de Chile, 1997. 6. Hans-Henrich
Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, vol. 1, Barcelona:
Bosch, p. 577. 7. Hans-Heinrich
Jescheck, ob. cit., p. 578, cuja tradução do original alemão para o espanhol
por S. Mir Puig, diretor do Departamento de Direito Penal da Universidade
Autónoma de Barcelona é a seguinte: "La concepción psicológica de la
culpabilidade pronto se sintió, sin embargo, como insuficiente porque no daba
respuesta a las cuestiones de qué relaciones psíquicas debían considerarse
jurídico-penalmente relevantes y por qué su presencia fundamenta la
culpabilidade y su ausencia la excluye. Así, no podia explicarse por qué aun
cuando el autor actúe dolosamente y, por tanto, haya producido una relación
psíquica com el resultado, debe negarse su culpabilidade si es un enfermo
mental o se halla en estado de necesidad (§ 35). Tampoco podía fundarse el
contenido de culpabilidade de la culpa inconsciente com arreglo a la
concepcion psicológica de la culpabilidade, ya que en ella falta precisamente
toda relación psíquica com el resultado". 8. Magalhães
de Noronha, ob. cit., p. 100. 9. Hans
Welzel, ob. cit. 10. Magalhães
de Noronha, ob. cit., pp. 162 e 163. 11. Juan
Jimenez de Asúa, in Leciones de Derecho Penal, México: Universidade
Nacional Autónoma de México, 1995, p. 274. 12. Aníbal
Bruno, Direito Penal, Parte geral, tomo II, Rio: Forense, 1959, p.
105. 13. Günther
Jacobs, in Derecho Penal, Parte General, Madrid: Marcial Pons, 1997,
p. 569, 14. Günther
Jacobs, ob. cit., p. 569. 15. Juan
Jimenez de Asúa, ob. cit., p. 277: "De este modo, los dos grandes
caracteres del delito, la antijuridicidad y la culpabilidade, tienen en sus
fases negativas tanto: causas de justificacion como causas de inculpabilidad,
dos formulas en las que puede refugiarse toda conducta no antijurídica o no
culpable, aunque la ley no lo hubiera previsto com precisión, siempre que se
halle reconocido así por el derecho". 16. Edmundo
Oliveira, Comentários ao Código Penal, Parte Geral, Rio: Forense, 1994, p.
230 17. Juan
Jimenez de Asúa, ob. cit., p. 272. 18. José
Frederico Marques, Tratado de Direito Penal, Campinas: Bookseller,
1997, p. 311 19. PENAL. CONTRIBUIÇÕES
PREVIDENCIÁRIAS. FALTA DE RECOLHIMENTO. SÓCIO NÃO-DIRIGENTE DA EMPRESA. 20.
Francisco de Assis Toledo, ob. cit., p. 329 |