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A adolescência e seus riscos: uma abordagem psicanalítica

 

Autor: Thereza Christina Bruzzi Curi. Psicanalista. Membro do IEPSI( Instituto de Estudos Psicanalíticos).

Em um colóquio sobre a violência, não é demais lembrar que o sujeito humano é dividido, desde sua entrada no mundo, pelas pulsões de Amor e Ódio, sendo que nenhuma dessas pulsões é menos essencial que a outra: elas se amalgamam de tal forma que às vezes é difícil as distinguir. Raramente, nossas ações são obra de somente uma delas e ambas estão em ação em todo homem.

Assim, do ponto de vista da estrutura do ser humano, há um tensionamento desde sempre entre essas duas pulsões..

A adolescência tal como a conhecemos hoje, com lugar de idade favorita, não existiu sempre. No livro História Social da Criança e da Família, Philipe Áries (ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC - Livros Técnicos e Científicos, 1981) demonstra como a linguagem vai se modificando historicamente para nomear este novo fato que é a adolescência. Até o século XVII, a adolescência era confundida com a infância; usava-se o mesmo termo indiferenciadamente. Somente no século XVIII, passou-se a diferenciar a “infância”, a “juventude” e a “velhice”, mas a expressão “juventude” referia-se a uma idade mais tardia e tinha o sentido de “força da idade”, não havendo, portanto, “adolescência”.

Por volta de 1900, a “juventude” passa a ser objeto de preocupação dos moralistas e políticos. A consciência da “juventude” torna-se um fenômeno geral após a guerra de 1914, quando os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa às velhas gerações. A partir daí, a adolescência se expandiria, empurrando a infância para trás e a maturidade para frente. Assim, passa-se de uma época sem adolescência para uma época em que a adolescência é a idade que se destaca.

A adolescência surge, então, como um fenômeno da contemporaneidade: época em que a civilização ocidental produziu efeitos universalizantes e cosmopolitas no modo de vida de seus centros urbanos, em detrimento dos laços comunitários e tradicionais que uniam cada grupo social às suas origens históricas e culturais específicas. A contemporaneidade vem quebrar as certezas culturais e historicamente transmitidas.

A psicanálise é um saber que o homem se permitiu na contemporaneidade porque vem acontecendo a quebra de certezas: culturais, científicas, sociais e religiosas. Essas quebras expõem o homem ao seu não-saber. A psicanálise surge da necessidade de tratar esse não-saber com o qual o homem se depara; surge como uma forma de abordá-lo.
Dessa forma, a psicanálise interessa-se pela adolescência enquanto uma questão que apresenta vetores históricos, culturais e econômicos; levando a pensá-la como o produto de uma época. No entanto, para além desses vetores, é mister levar em conta a relação do sujeito com o que causa mal-estar na sexualidade durante a adolescência. Cada sujeito precisa encontrar respostas próprias para fazer sua passagem por esse momento que denuncia, uma vez mais, a impossibilidade estrutural do encontro com o real do sexo.
Com relação a essa passagem, alguns aspectos podem ser destacados.

Antes de enunciá-los, farei algumas considerações sobre a constituição do sujeito humano.
A criança nasce em seu desamparo fundamental, incompleta e absolutamente dependente de um Outro experiente que exerça a função de desejar que a criança viva. Esse Outro toma a criança como objeto de seu desejo, investindo nela narcisicamente e criando com a mesma uma ilusão de plenitude. Para tomar uma posição de sujeito que deseja, a criança precisa sair da posição de objeto, renunciando a essa ilusória satisfação plena – gozo. A partir dessa renúncia, a satisfação plena fica limitada, só podendo ser obtida dentro das regras de uma cultura. Essa renúncia implica na inserção na cultura e na produção de laços sociais, à custa de certo mal-estar, pois não há nenhum objeto que possa satisfazer plenamente os desejos do ser humano.

A criança assim constituída precisa, num segundo tempo, de apropriar-se de sua estrutura, carimbar sua estrutura. Retomemos, então, os aspectos importantes nessa passagem.

O primeiro deles é que o impacto das mudanças corporais e as exigências sociais fazem furo no saber que o jovem tinha, trazendo-lhe intenso mal-estar, aturdindo-o, causando estranhamento. Tais mudanças furam o saber sobre seu corpo – o corpo ficou desengonçado; furam o saber sobre a sexualidade – o sexo proibido e calado na infância pode virar ato, sobre o qual falta-lhe saber; o jovem se decepciona com relação à promessa infantil de que lhe seriam dados, pelos pais, os recursos para saber lidar com o real do sexo. Há furos, portanto, no saber sobre os pais – os pais “já eram”; eles não só não deram os recursos, como não os têm.

Essas mudanças furam o saber sobre as respostas de criança – o faz-de-conta não lhes serve mais para tamponar suas faltas, o que deixa os jovens vacilando numa “valsa-hesitação” (Expressão tomada emprestada de Bernard Nominé, Adolescência ou a queda do anjo. In: Revista Marraio – Formações Clínicos do Campo Lacaniano, n. 1, Da Infância à adolescência. Rio de Janeiro, 2001) entre suportar as perdas, renunciando ao gozo já perdido, e a incessante tentativa de recuperar o que se perdeu. Nessa valsa-hesitação, o jovem, é muitas vezes tomado, ora por arroubos de acreditar no “faz-de-conta”, empreendendo ações de teor impulsivo; ora por momentos de ensimesmamento.

Quanto horror e quantas fugas surgem na adolescência frente ao mal-estar causado pelos furos: fugas para o sono, para a voracidade, para os sonhos diurnos, para as drogas, para a ilusão, inclusive a ilusão das histórias de amor e dos grandes amores. Maneiras várias de não querer saber dos furos, ou das falhas. Frente a esse mal-estar que os furos fazem no seu saber, o adolescente fica “sem palavras” e precisa produzir respostas próprias que dêem conta de seu mal-estar.

O outro aspecto é que, para produzir respostas próprias e assumir a responsabilidade pelos seus atos, o sujeito adolescente precisa “queimar” aquilo que adorou, ao mesmo tempo em que, nessa ruptura e queima, há que ser sustentada pelo jovem sua identificação com a lei ordenadora transmitida pelos pais, a lei ordenadora da cultura. Esse paradoxo (ruptura e sustentação) gera um tempo difícil: para liberar-se da alienação aos ideais dos pais, o jovem está pronto a tudo, principalmente a oferecer-se como o pior dos escravos. (Nominé, Bernard. Op. Cit) .

Os grupos, as turmas, são meios encontrados pelos jovens para lidar com esse paradoxo: conversam sobre os obstáculos colocados pelos pais e sobre as soluções encontradas em conjunto para fantasiar e viver suas aventuras. Estabelecem nos grupos regras próprias para lidar com suas dificuldades, regras sobre os gostos, sobre os namoros, como atualmente o “ficar”.

Entretanto os grupos podem tornar-se bandos, e esse paradoxo pode dar lugar a exércitos de todos os tipos, nos quais a submissão a um mestre absoluto está em pauta. Nesses casos, o jovem busca, em sua valsa-hesitação, o gozo passivo da criança-objeto do desejo dos pais. Na atualidade, um mestre absoluto encontrado por ele é o “capital”, que vem travestido de tantas formas, sendo uma delas o traficante.
Em geral, as imagens parentais educativas são vistas como entraves. Para afirmar-se, o adolescente “imagina-se” reprimido. Porém, a repressão tirânica o coloca em perigo, pois pode induzi-lo a atuações desordenadas. Caso se sintam desafiados, eles geralmente têm uma reação de independência súbita e muitas vezes catastrófica, algumas vezes agindo contra a própria vida.

O acesso à responsabilidade em relação à sua singularidade precisa ser apoiado pelos pais, de modo que estes não se assustem com as afirmações passionais, pseudo ou efetivamente revolucionárias, ligadas a um interesse novo pelas coisas sociais. Quando os pais toleram este momento difícil, abrem o caminho para as negociações com os jovens.
Um terceiro aspecto é que o adolescente lida, ainda mais, com as questões da sexualidade: a possibilidade efetiva do ato sexual. O mito de que a adolescência é o tempo do encontro entre os sexos tenta escamotear a difícil verdade de que, para cada sujeito, não há complementaridade entre os sexos, mas sim uma impossibilidade estrutural do encontro com o real do sexo.

A responsabilidade pelos atos, seja ao nível da escolha amorosa, seja ao nível da escolha profissional, em geral é assumida através do enfrentamento de riscos. O jovem suporta inevitáveis desilusões e decepções – riscos – quando conta com o um imperativo de desejo que lhe dê coragem de engajar-se nas suas escolhas, assumindo a responsabilidade sobre seus atos.

Para exemplificar as metamorfoses da adolescência, segue a história da “Hungry Caterpillar”.

À luz da lua um ovo pequenino está sobre uma folha.
Na manhã de um domingo, o sol quentinho chegou e PUM! Saiu do ovo uma lagarta pequenina e faminta.
Ela começou a procurar comida.
Segunda-feira ela tunelou uma maçã. Mas ela continuou com fome.
Terça-feira ela tunelou duas peras. Mas ela continuou com fome.
Quarta-feira ela tunelou três ameixas. Mas ela continuou com fome.
Quinta-feira ela tunelou quatro morangos. Mas ainda estava com fome.
Sexta-feira ela tunelou cinco laranjas. Mas ainda estava com fome.
Sábado ela tunelou bolo de chocolate, sorvete, pickles, queijo, salame, pirulito, torta, salsicha, um bolinho e uma melancia. Naquela noite ela teve uma big dor de barriga.
O dia seguinte era domingo de novo. A lagarta tunelou uma tenra folha verdinha e depois sentiu-se melhor.
Nunca mais ela seria magrinha ou faminta. Agora ela era uma lagarta grande e gorda.
Ela construiu uma casinha chamada casulo em volta de si mesma e ficou lá dentro mais de duas semanas. E então ela abriu um buraco no casulo, mandou-se para fora...

Conclusão

A adolescência é esse tempo em que o sujeito, já tendo sua estrutura constituída, é despertado de seu sonho de criança. É despertado para encontros e desencontros.

Nesse despertar, o sujeito fica sem palavras para lidar com o impacto das mudanças corporais e exigências sociais. Suas respostas ficam “caducas”, seu saber sobre o corpo, sobre a sexualidade, sobre os pais, fica furado. O sujeito adolescente é despertado para a precariedade da condição humana: somos seres de falta. Não somos completos, não há um objeto único que traga felicidade e satisfação completas. O adolescente fica siderado, atordoado, sem respostas que dêem conta de seu mal-estar. ”É a idade do nada”, disse certa vez um adolescente.

Os aspectos pertinentes a esse momento de movimento da estrutura – furos, paradoxo, escolhas – deixam o jovem tão exposto aos riscos .
Tempo difícil, pois, enquanto ser de falta, em busca de respostas, o adolescente sai tentando fazer suas escolhas e, tal como a lagarta Caterpillar, às vezes se “empanturra“ e tem uma “big” dor de barriga. Entretanto, é a partir de ser-em-falta que o adolescente pode criar alguma coisa. Tarefa laboriosa, pois é fazer existir algo a partir do que não se tem.

Diante desse ser em turbulência, é exigido, daqueles que lidam com os jovens, inventar. E a psicanálise tem algo a dizer sobre esse tema.
Frente ao adolescente, qual é a posição correta?

A psicanálise não tem uma proposta única, ideal, que resolva todas as questões. Ela trata os problemas um a um e não de uma maneira generalizada; não propondo um modelo a ser seguido.
Mas tem algo a dizer.

É muito importante que não se horrorize frente ao adolescente, pois o horror, o estranhamento, muitas vezes traduz desejos desconhecidos dos quais não se quer saber. Em vez de horrorizar-se, fugir dele, ou simplesmente tentar regulamentá-lo, por que não olhar de frente cada acontecimento com o adolescente? Há muito que se pode fazer...

Algumas diretrizes podem auxiliar nesse trabalho de invenção: a primeira delas é tomar como direção de trabalho o fato de que somos seres de falta. Assim, não adianta “empanturrar” os adolescentes de coisas, objetos, pois eles vão sempre insistir: “algo falta”. Falta, incompletude: o que é estrutural no ser humano e que nos faz criar.
A psicanálise ensina que não há satisfação e felicidade completas, não há um objeto único que satisfaça o homem. Assim, ele pode satisfazer-se pelas vias da violência, do amor, da arte, do crime ou de “empanturrar-se”.

Os que cuidam dos jovens podem auxiliá-los ao abrir a possibilidade de transformar a satisfação pela violência em satisfação na cultura, oferecendo-lhes objetos dessa cultura – “as folhinhas verdes”; permitindo-lhes “servir-se delas” em seu processo de inscrição na cultura e no laço social e, assim, elevar sua agressividade à dignidade de sua inserção na cultura. Esse é um caminho possível, que poderá possibilitar maior número de escolhas nas quais o imperativo do desejo de cada um poderá realizar–se em atos criativos, sejam eles solidários, esportivos ou mesmo artísticos, e não obrigatoriamente de violência e morte.

Entretanto, surge aí mais um paradoxo com o qual nos deparamos ao abrirmos a possibilidade de oferecimento de “folhinhas verdes”: não se tem um saber sobre o que é melhor para o adolescente. Aliás, é mister que aqueles que cuidam dos adolescentes partam de seu não-todo saber, abrindo assim possibilidades para os diferentes estilos de cada adolescente.

Além disso, a “folhinha” oferecida é “não-toda” verde: isso não quer dizer que umas sejam verdes e outras não, mas que não há um “objeto-folhinha” que proporcione a completude. E mais: elas não estão prontas, “dando sopa por aí”.

BIBLIOGRAFIA

ALBERTI, Sônia. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC - Livro Técnico e Científico, 1981.

COTTET, Serge. Puberdade catástrofe. In Transcrição 4. Salvador: Fator, 1988.

CURI, Thereza Christina G. Bruzzi. Pai, não vês que posso perder-te? Grîphos-psicanálise. Belo Horizonte: Santa Edwiges, n. 15, ago./97. IEPSI.
__________________. A adolescência em questão. Grîphos-psicanálise. Belo Horizonte: Santa Edwiges, n. 16, /98. IEPSI.

FERES, Nilza. Seleção de textos da coluna: “Em dia com a psicanálise”. Jornal Estado de Minas, 93 a 97, Belo Horizonte.

LACAN, Jacques. “O Despertar da Primavera”. In Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assírio & Alvim, 1989.

NOMINÉ, Bernard.” Adolescência ou a queda do anjo". In: Revista Marraio – Formações Clínicos do Campo Lacaniano, n. 1, Da Infância à adolescência. Rio de Janeiro, 2001.


Thereza Christina Bruzzi Curi. Psicanalista. Membro do IEPSI( Instituto de Estudos Psicanalíticos). E-Mail: therezabruzzi@bol.com.br. Consultório:(31) 32267600

 

Retirado: http://www.direitopenal.adv.br/artigos.asp?id=1174