Buscalegis.ccj.ufsc.Br
Autor: Nome: Cláudio Duani Martins. Tenente PM em Minas Gerais.
Professor de Direitos Humanos.
Resumo: O texto aborda a questão do bom-senso no meio policial
entra com dois conceitos: Desobediência Civil e Desobediência criminal e faz
uma clara distinção entre eles.Estabelece que o bom-senso no cumprimento as
leis esta pautado na distinção que entre a luta pelos direitos e a violação
destes.Traz também um exemplo de atuação policial na desocupação de um terreno
no Bairro Serra Verde em BH onde se cumpriu a lei respeitando os direitos das
pessoas envolvidas.
Palavras Chaves: Respeito aos Direitos Humanos, cidadania,
bom senso, manifestações populares, cumprimento da lei, efetivação de direitos.
A COMPREENSÃO DO BOM-SENSO POLICIAL E O RESPEITO AOS
DIREITOS HUMANOS
Durante grande parte de nossa carreira policial ouvimos
falar sobre “usar o bom senso”, nas diversas situações do nosso conturbado
cotidiano.No entanto, muitos se perguntam qual é o verdadeiro sentido dessa
frase. Como praticá-la sem medo de errar ou ser injusto? Que é ter bom senso?
Por um longo período prevaleceu em nosso meio, através da
subcultura policial, uma visão pejorativa do bom senso. Ora, sejamos francos,
quem não se lembra de frases como esta: “Vou mostrar para este folgado o nosso
bom-senso, pega lá o bastão de madeira”, ou aquela “Olha, tô no final do meu
turno, por isto, vou usar o bom senso com você e te liberar”.
Hoje, porém, a evolução da sociedade não admite tamanha
falta de profissionalismo por parte de um profissional pago para garantir seus
direitos.Exige-se deste profissional uma visão mais moderna voltada ao
idealismo do fortalecimento da cidadania através de uma participação mais
efetiva junto à sociedade da qual ele faz parte.
É necessário ao policial ter uma visão mais crítica dos
fenômenos sociais (a violência, a miséria, o desemprego, etc).E é de
fundamental importância que ele busque compreender as causas destes fenômenos,
para tentar minimizá-los através de sua atuação.
Paulo Freire, célebre educador brasileiro, diz que se deve
sempre fazer uma leitura do mundo antes de fazer a leitura da palavra. Fazer a
leitura do mundo é, segundo o Educador “conhecer as manhas com que os grupos
humanos produzem sua própria sobrevivência”. Prosseguindo, diz com propriedade
que “a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da preguiça
popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus”. Ele conclui dizendo
que as pessoas são vítimas primeiras da perversidade do sistema social,
econômico, político em que vivem. (FREIRE,1996,p.23 )
Antes de prosseguirmos com este raciocínio, pretendemos
explicar os dois termos que julgamos de fundamental importância para o policial
moderno conhecer. O primeiro é a “Desobediência Criminal”, como o próprio nome
já diz, esta é praticada pelo cidadão infrator contra os diretos dos cidadãos
ordeiros (crimes em geral).
Aqui cabe também ressaltarmos que o cidadão infrator pode vir
a ser um cidadão ordeiro, pois todo ser humano tem a capacidade de aprender e
modificar sua conduta. Por isto apesar do crime cometido, este cidadão ainda
possui direito à vida, à integridade física, à ressocialização, entre outros. O
único direito que ele perde temporariamente é a liberdade. Por isto, usamos o
termo cidadão infrator. Somos aqui a favoráveis à máxima “Odeio o crime, não o
criminoso” (Santo Agostinho).
O outro é o que Henri David Thoureau filósofo americano
(1817-1862) intitulou de “Desobediência Civil”. A este termo vamos nos ater um
pouco mais, pois precisamos apresentá-lo de forma mais detalhada.
Em seu ensaio “A DESOBEDIÊNCIA CIVIL”, Thoureau diz:
“Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que
cultivamos pelo direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a
de fazer a qualquer tempo aquilo que considero direito. É com razão que se diz
que uma corporação não tem consciência, mas uma corporação de homens
conscientes é uma corporação com consciência. A lei jamais tornou os homens
mais justos, e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem
intencionados transformam-se diariamente em agentes da injustiça”.
(Thoureau1997, p.09)
Thoreau faz uma notória distinção entre os direitos
inaliáveis do ser humano (vida, liberdade, dignidade etc) e as leis elaboradas
pelos homens.
As leis que regem a vida em sociedade, que regulam a
economia, a política e o trato social nem sempre são elaboradas com o nobre
propósito do bem-estar social. Há aquelas que são elaboradas na defesa de
interesses de pequenos grupos que detêm, por exemplo, o poder econômico.Sem o
propósito social uma lei se torna injusta. Por isto, nem sempre o direito será
contemplado pela lei.
Surge, então, a exclusão e a desigualdade social.Neste
ambiente desigual surgem às lutas de classes, os movimentos sociais, ativistas,
organizações não-governamentais (ONGS), entre outros atores que se manifestam
contra a ação perversa das leis injustas.Esta é a base filosófica da
desobediência civil.
Mahatma Gandhi (1869-1948) grande líder religioso do
hinduísmo venceu o império inglês, com seu exemplo de um modo moralmente
exaltado de vida. Gandhi utilizou-se das teorias de Thoreau para derrubar o
império pregando a não-violência. Ele define assim a desobediência civil:
“A desobediência civil é um direito inalienável do cidadão.
Não haveria como renunciar a ela sem ser atingido em sua dignidade de homem.
Contrariamente à desobediência criminal, que o Estado deve reprimir pela força
para não soçobrar, a desobediência civil nunca leva à anarquia.” (STERN,
2003,p.97).
Ainda sobre a desobediência civil ele afirma:
“... reprimi-la é querer aprisionar a consciência. Um
militante da resistência civil coloca-se deliberadamente fora da lei ao afirmar
que não respeitará nenhuma lei imoral promulgada pelo Estado. A desobediência
civil é a forma mais pura de agitação constitucional. É claro que ela se torna
degradante e desprezível, se o seu caráter civil, ou seja, não-violento,
revelar-se uma mera camuflagem em vez de uma posição de princípio. Para ser
autenticamente civil, a desobediência deve ser sincera e respeitosa. Ela não
deve ser arrogante e deve dominar-se sobre a base de um principio bem
compreendido. Não deve ser caprichosa e, sobretudo, não deve esconder nem
rancor nem ódio.” (STERN, 2003,p.97-98).
Notadamente Gandhi defende a desobediência civil como um
direito do cidadão.Ele afirma que ela é a forma mais prudente de manifestar-se
contra uma injustiça cometida contra um grupo, um povo, uma nação. A
desobediência civil nasce na consciência de cada cidadão.
A consciência enquanto conjunto de atributos morais só se
tranqüiliza com a prática da cidadania, na efetivação de um direito, no
respeito à dignidade humana, que só a liberdade pode proporcionar às pessoas.
Por isto, Gandhi diz que não haveria como renunciar a ela
sem ser atingido em sua dignidade. Gandhi deixa claro que há como discernir a
desobediência civil praticada por cidadãos ordeiros de uma ação hostil
provocada por uma turba.
A História trás outros exemplos de Desobediência civil de
pessoas que lutaram por seus direitos e pela independência de seus paises, como
por exemplo: o Pastor Martin Luter King Jr. Que realizou uma campanha de
desobediência não-violenta contra a segregação racial e as leis
discriminatórias e injustas. De igual maneira citamos Nelson Mandela que lutou
contra a apartheid na África do Sul. Ressaltamos a Nigéria que após a luta
armada contra a França perdeu, e começou a praticar atos de desobediência civil
não violenta e conseguiu sua independência.
Aqui podemos então constatar que a quase todo ato de
desobediência civil corresponde uma ação por parte do Estado, geralmente com
atos de violência, atos de repressão. Ressalta-se o fato ocorrido com os
estudantes chineses que ousaram desafiar os governantes, em praça pública, de
forma não-violenta e foram violentamente oprimidos. Contudo a História nos
mostra que a desobediência desarmada não pode ser combatida com violência.
Estes princípios estão claramente definidos na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 .
No Brasil também enfrentamos graves crises provocadas pela
desigualdade social, desemprego, violência, falta de saneamento e adequadas
condições de trabalho e moradia, entre outros. Todos estes fatores contribuem
para um constante quadro de manifestações e desobediência civil. Neste
contexto, o policial observará sempre os propósitos, e a reação hostil não
provocada, por parte do indivíduo, ou grupo de manifestantes. Este tipo de
reação não configura resistência civil, mas sim desordem, “anomia social” .
Mas, para que o policial possa identificar com precisão
estes movimentos sociais, é necessário que ele tenha bom senso. Deduzimos que
ter bom senso na atividade policial basicamente reside na capacidade de
discernir o cidadão infrator, que destrói e viola constantemente os direitos
das pessoas (desobediência criminal),do cidadão ordeiro que se mobiliza pelo
reconhecimento de seus direitos (desobediência civil não-violenta).
No primeiro caso citado, a desobediência criminal deve ser
prevenida e reprimida, para que o Estado não sucumba ao crime organizado. No
segundo, o policial deve respeitar e dar seu apoio moral a toda forma de
manifestação justa e pacífica, privando-se de tratar o cidadão ordeiro da mesma
forma que trata o cidadão infrator.
De forma alguma estamos aqui dizendo que devemos insuflar,
ou apoiar manifestações populares de qualquer tipo, sejam elas pacíficas ou
violentas. Isto seria perigoso do ponto de vista prático e também seria antagônico
uma vez que a missão do policial é justamente a preservação da ordem pública.
O que queremos é expressar aqui o pensamento, que uma vez
quebrada a situação de normalidade por um manifesto pacífico e despido de
qualquer outro propósito hostil, como dizia Gandhi, ao policial caberá o
gerenciamento deste manifesto de forma consciente e profissional.
O policial, através de sua influência pedagógica, pode
mostrar às pessoas o modo certo de se manifestarem, e pregar sempre a
não-violência, dizer, por exemplo, a um grupo de manifestantes que agir
pacificamente é mais nobre e surte mais efeito de que reagir com violência. Há
outros meios de se manifestar e a não-violência é o mais eficaz deles.
Agora veremos um pouco mais do pensamento de Thoreau sobre
como os homens servem ao Estado:
“A grande maioria dos homens serve ao Estado desse modo,
não como homens propriamente, mas como máquinas, com seus corpos. São o
exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, os membros da
força civil, etc. Na maioria dos casos não há livre exercício, seja do
discernimento ou do senso moral, eles simplesmente se colocam ao nível da
árvore, da terra
e das pedras. E talvez possam fabricar homens de maneira
que sirvam igualmente a tal propósito”. (Thoureau(1997, p.10-11)
O policial que tem bom-senso é aquele que não age como uma
máquina do Estado. E sim como aquele que atua na proteção dos direitos das
pessoas, aí inclusos os seus.É aquele que tem a sabedoria do pensar e agir
corretamente. Esta sabedoria só é alcançada através da leitura do ambiente em
que vive, bem como do entendimento das causas da perversidade do sistema
econômico, político e social.
O policial, que representa o Estado, é a autoridade mais
comumente encontrada nas ruas, e não raramente se depara com a violência
provocada por crimes diversos. Assiste por vezes cidadãos honestos e
trabalhadores serem arrastados pela corrente do crime por falta de emprego,
pela fome e pelo descaso.
Este policial tende a se brutalizar se não tiver a consciência
de que, como diz Paulo Freire, a miséria é uma violência que se comete contra
as pessoas. Partindo deste pressuposto chegamos a este pensamento: se o
policial se adapta a sociedade onde vive e da qual faz parte, ele se tornará
bruto, pois, quanto mais as pessoas se tornarem violentas e insensíveis, mais
ele também se tornará violento e insensível. Por outro lado, se o policial se
insere na sociedade ele se tornará a cada dia mais humanizado.
Inserir-se na sociedade é justamente conhecer, como já citamos,
as maneiras com as quais os grupos humanos produzem sua própria sobrevivência,
é participar como cidadão da emancipação de sua comunidade e orientar sempre as
pessoas no sentido de conhecerem seus direitos e manifestarem sua indignação de
forma democrática e pacífica.
Desta forma o policial consegue enxergar, por exemplo, a
luta pela sobrevivência de grande parte da população brasileira que sobrevive
abaixo da linha da indigência, daqueles deficientes físicos, negros,
homossexuais, idosos, mulheres, entre outros, que constantemente se mobilizam a
favor do reconhecimento de seus direitos, para provar que são pessoas, e que
merecem o mínimo de dignidade. O policial, que assim agir, ostentará o título
público de Promotor de Direitos Humanos e Pedagogo da Cidadania.
O cumprimento inconteste (cego, frio) das leis torna o
policial injusto, uma vez que como já citamos nem toda lei contempla a justiça.
Em um caso prático, citaremos o fato ocorrido no Bairro Serra Verde, em Belo
Horizonte, em maio de 2000. Naquela ocasião, várias famílias cadastradas pela
Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (URBEL) demarcaram e montaram suas
barracas de lona num terreno no Bairro Serra Verde, de propriedade da
Prefeitura Municipal e de duas outras empresas. Os ocupantes foram apoiados por
várias entidades ligadas ao movimento SEM-CASA.Oficiais de justiça estiveram no
local e notificaram os ocupantes formalmente sobre o Mandado de Reintegração de
Posse do terreno, onde as famílias receberam um prazo de 24 horas para desocuparem
a área. Como o prazo não foi cumprido, a Polícia Militar recebeu a ordem de
desocupar o terreno. Em 12 de maio de 2000, em cumprimento à ordem judicial a
PM desencadeou a operação que envolveu 1.200 policiais, sendo que a área que ia
ser reintegrada estava ocupada por 4.000 (quatro mil) pessoas instaladas em 800
(oitocentas) barracas de lona. No dia anterior, à operação, a PM informou aos
ocupantes através de um panfleto, que estaria cumprindo a ordem judicial,
solicitando que as pessoas saíssem pacificamente do local.Várias autoridades,
entidades representantes de Direitos Humanos e da Prefeitura Municipal
estiveram no local. Durante toda a operação, foram respeitados os direitos das
pessoas ali envolvidas e a operação foi encerrada com a retirada das famílias
de forma pacífica, o que encheu de honra e orgulho todos os Policiais que
participaram daquela ação.
Este é um grande exemplo que o cumprimento da lei deve ser
efetivado, mas com respeito à integridade física e moral das pessoas
envolvidas.
Dai se o policial atua em uma desocupação de terras, com um
preconceito formado das pessoas que ali estão, sua atitude será violenta desde
o início e não haverá espaço ao diálogo, à compreensão das necessidades
daquelas pessoas e um desfecho menos violento do fato.
Por outro lado, se o policial enxerga a legitimidade da
desobediência civil na ação daquelas pessoas, ele irá tratá-las com
consciência, respeitará suas necessidades e fará o possível para cumprir a lei
com o uso mínimo da força ( quando o policial usa primeiro os métodos menos
violentos como a persuasão, verbalização e negociação, antes de antes de
empregar a força física legal) .
Concluímos que o bom-senso depende não só da vontade do
policial. Ele transcende até a esfera a dos princípios mais elementares que o
levam a se ver como um ser humano capaz de entender outro ser humano. Este
“olhar”, porém, é atingido através de uma constante leitura do mundo que nos
cerca.
Conhecendo as pessoas e sua forma de interagir com o mundo
onde vivem, Conseqüentemente, compreenderá melhor a sociedade e seus fenômenos,
interagindo e reagindo em seu meio de forma cirurgicamente eficaz,
reconhecendo, assim o valor do direito que é um grande passo para o
entendimento do valor da cidadania.
Esta é, em uma linguagem bem simples, ter direitos e
deveres, conhecer estes direitos e lutar por sua efetivação ao mesmo tempo em
que também respeitamos e compreendemos os direitos dos outros e auxiliamos no
que for possível, para que ele também o conquiste. Esta é a verdadeira essência
da cidadania.
O policial reconhece o exercício da cidadania quando admite
que as pessoas possuem a capacidade de querer ser mais, de buscar a felicidade
através de uma vida digna em sociedade. Neste mister, a compreensão dos
fenômenos sociais aliadas ao discernimento do hostil (desobediência criminal) e
do pacífico (desobediência civil), leva o policial a compreender a inexorável
marcha da humanidade em direção à conquista de seu espaço. Ao compreender isto
ele agirá com profissionalismo e de forma justa cumprirá a lei com bom-senso, e
respeitará e lutará pela efetivação dos direitos.
Referencias Bibliográfica:
1.Freire, Paulo A Pedagogia da Autonomia: Saberes
necessários à prática educativa- São Paulo: Paz e Terra, 1996 .
2. Princípios de vida de Mahatma Gandi / organização de
Henri Stern; tradução de Luca Albuquerque.-Rio de Janeiro:Record: Nova Era,
2003.
3.Thoreau, Henry: A Desobediência Civil / tradução de
Sérgio Karam. Porto Alegre:L & PM,2002.
3.Direitos Humanos: Coisa de Polícia, Ricardo Brisolla
Balestreri, CAPEC : Pater Editora Passo Fundo, RS,1998.
4.Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em
Paris, em 10 de dezembro de 1948.
5. Site: www.Institutoagora@yahoo.com.br: verbetes
pesquisados por Maurício Assunpção Moya, Bacharel em ciências Sociais e Mestre
em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo.