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Autor: Antônio Carlos Welter. Procurador da República em Porto
Alegre (RS).
O avanço da
macrocriminalidade, que parece não ter limites ou fronteiras e a imensa
lesividade de suas ações estão a exigir das autoridades públicas providências
cada vez mais céleres e mais eficazes. Nesta medida é necessário que os
instrumentos investigatórios disponibilizados ao Estado sejam eficientes e estejam
em condições de dar a resposta esperada pela sociedade.
Como regra os fatos atribuídos a organizações criminosas
são complexos e sua apuração não pode prescindir dos avanços da técnica –
exemplo da interceptação telefônica, que além de permitir o monitoramento das
conversas e diálogos, informa a exata localização dos interlocutores, mediante
a identificação das rádio-bases utilizadas pelos aparelhos celulares –; nem da
evolução da doutrina, com a revisão de antigos conceitos.
Delitos como a lavagem de dinheiro, de recursos
provenientes do narcotráfico e da corrupção, por exemplo, ou ainda os
econômicos, passaram à ordem do dia, exigindo a sociedade ampla reparação.
Todavia, sua apuração tem se transformado em desafio aos agentes do Estado,
dadas as carências materiais enfrentadas e principalmente a uma vetusta visão
protecionista, que prefere preservar a integridade do sigilo de determinadas
ações espúrias.
Nesse contexto, surge a figura do sigilo bancário, cuja
proteção é erigida por alguns como dogma em si mesma, inafastável e
inquebrantável.
Para parcela da doutrina, a proteção do sigilo bancário
liga-se à necessidade da preservação da intimidade do cidadão, qual seja do
titular da conta corrente, ligando-se ainda a laços contratuais, visto que as
relações mercadológicas asseguram o sigilo das relações profissionais e
mercantis.
As instituições financeiras estariam obrigadas a preservar
o sigilo dos dados de que dispõe em face do conteúdo das relações contratuais –
de cunho privado – mantidas com os clientes, preservando sua intimidade, esta
assegurada na Constituição Federal.
Assim, muito embora a Constituição Federal não proteja
expressamente o sigilo bancário – resguarda apenas o sigilo das
telecomunicações e o postal –, a preservação genérica da intimidade prevista no
art. 5º, inciso X, da Carta Federal tem servido de guarida para aqueles que
vêem o sigilo bancário como intangível.
Em uma sociedade cada vez mais voltada para o material,
para o patrimônio e o individualismo, o discurso ressoa: nada mais diz com a
intimidade do que a conta bancária para quem está preocupado com a manutenção
do patrimônio.
Todavia, a assertiva encontra seus limites.
O mesmo dispositivo constitucional que preserva a
intimidade e a vida privada não pode impedir que a investigação criminal – e
mesmo ações de cunho civil – avance quando o interesse público no
esclarecimento dos fatos estiver presente. Como refere VALDIR SZNICK (01), “O
Estado no exercício de suas funções sociais judicantes necessita de esclarecer
determinados fatos, no sentido de adequadamente fazer justiça. Assim, os
interesses individuais, que obrigam os bancos a guardarem segredos sobre
operações realizadas, cedem diante do interesse da Justiça e a descoberta da
verdade”.
A vida privada e a honra são, não raro, objeto de discussão
nos autos de processos cíveis e criminais, da coleta de prova e de intensos
debates. E o são porque interessam ao esclarecimento de fatos, porque sem estes
elementos a verdade não emerge. Chegando a outro extremo, no âmbito cível, não
raro a Fazenda Pública recorre à quebra do sigilo bancário para localizar bens
das empresas executadas e de seus sócios.
São situações em que a proteção jurídica assegurada pela
Constituição ao interesse individual é mitigada em favor de um interesse maior,
da própria sociedade, que é preponderante.
Assim, principalmente na esfera criminal, o sigilo das
operações bancárias não pode ser erigido como absoluto, oponível aos Poderes
Públicos constituídos e à própria sociedade, interessada na elucidação de fatos
delituosos, mormente daqueles que envolvem o patrimônio público. O sigilo
bancário, assim como o direito à intimidade não se pode constituir em
instrumento para ocultar e facilitar a prática de atos ilícitos.
Nas palavras de SACHA CALMON NAVARRO COELHO(02), em artigo
publicado nos Cadernos de Pesquisas Tributárias, “o sigilo bancário não é
absoluto, eis que diante do legítimo poder de polícia do Estado, como ocorre
nos EEUU, na França, na Alemanha e na Inglaterra, países sabidamente democráticos
e capitalistas, admite-se a sua relativização por fundados motivos de ordem
pública, notadamente derivados do combate ao crime, de um modo geral, e à
evasão fiscal, omissiva e comissiva.”
Prossegue o ilustre tributarista acrescentando que
“... não pode a ordem jurídica de um país razoavelmente
civilizado fazer do sigilo bancário um baluarte em prol da impunidade, a
favorecer proxenetas, lenões, bicheiros, corruptos, contrabandistas e
sonegadores de tributos. O que cumpre ser feito é uma legislação cuidadosa que
permita a manutenção dos princípios da privacidade e do sigilo de dados, sem
torná-los bastiões da criminalidade.” (vol. 18, p. 100, g.n.).
Deste modo, sempre que relevantes os fundamentos e
necessária a medida para a conclusão das investigações, o sigilo bancário pode
ser afastado, permitindo que informações de caráter sigiloso sejam obtidas,
mormente para fins de investigação criminal. Como diz SÉRGIO CARLOS COVELLO
(03), “O legislador não faz do sigilo uma obrigação absoluta. Antes consagra expressamente
as hipóteses em que a instituição financeira não só se desobriga da abstenção,
como se obriga a revelar os fatos de que tomou conhecimento em virtude se sua
atividade profissional. Destarte, o sigilo vai até onde começa a obrigação de
revelar o segredo.”
Tanto é assim que a Lei Complementar n° 105/01, que dispõe
sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, estabeleceu em seu
artigo 1°, § 4°, inciso VII:
“§ 4o A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando
necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do
inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:”
Outra não poderia ser a solução, sob pena de se
inviabilizar os atos investigatórios. A apuração de delitos graves, mormente os
praticados por organizações criminosas, os delitos econômicos, os perpetrados
em prejuízo do sistema financeiro, não pode prescindir desse relevante
instrumento. É evidente que se os recursos auridos do crime puderem circular
livremente, sem que se identifique sua origem e destino, o Estado nada poderá
fazer para apurá-los.
Assim, o Poder Judiciário, por suas várias instâncias, e
reiteradamente o Supremo Tribunal Federal, de longa data tem permitido o
afastamento do sigilo bancário quando o justificar a necessidade da colheita de
provas:
AGRAVO REGIMENTAL EM PETIÇÃO. EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. LEGALIDADE DA QUEBRA DOS SIGILOS BANCÁRIO E
FISCAL. (...) Este Tribunal tem admitido como legítima a quebra de sigilo
bancário e fiscal em caso de interesse público relevante e suspeita razoável de
infração penal. A iniciativa do Ministério Público de quebrar os sigilos
bancário e fiscal do Agravante foi provocada pelo Delegado da Receita Federal
com base em prova documental. Ela foi deferida pela autoridade competente, o
Juiz Federal. Portanto não houve ilegalidade. Recurso improvido. (AG.REG.NA
PETIÇÃO nº 2790 AgR – RS, Relator(a): Min. Nelson Jobim, Publicação: DJ
11-04-2003 PP-00040 EMENT VOL-02106-01 PP-00200, Julgamento: 29/10/2002 -
Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal)
Não poderia ser diferente, dado que a investigação seguiria
trôpega, já fadada ao insucesso na maior parte dos casos, haja vista a
impossibilidade de obter elementos para comprovar o ilícito senão mediante o afastamento
do sempre invocado sigilo. Havendo evidências da prática de ilícito, somada à
necessidade da obtenção de informações em poder de instituição financeira, a
medida se justificada e o Judiciário não pode se negar a concedê-la.
No ponto, não se pode deixar de mencionar, como refere
ANDRE TERRIGNO BARBEIDAS (04), que a referência à proteção da intimidade ainda
está por merecer melhor análise por parte do Poder Judiciário, visto que,
indistintamente, são preservados todos os dados de todas as operações e
contratos bancários, quaisquer que sejam, e, mais, indistintamente de pessoas
físicas e de jurídicas, com o que, evidentemente, não se pode concordar.
Todavia, superado o exame da possibilidade da medida,
restam ainda não suficientemente pacificados outros aspectos, como o momento e
a oportunidade em que os dados bancários podem ser obtidos e ainda quais
autoridades públicas estão aptas a requisitá-los.
Como é sabido, o início da investigação criminal pela
autoridade policial ou pelo Ministério Público não necessita de elementos
robustos.
Basta a notícia de um crime, acompanhada de elementos
mínimos para que a investigação tenha início. Ao contrário, se sobram elementos
de convicção, a fase pré-processual pode ser dispensada e desde logo proposta a
ação penal. Nas palavras de AURY LOPES JÚNIOR (05), “para a instauração da
investigação preliminar basta existir a possibilidade.”
Nesse diapasão, tem-se que somente com a instauração de
investigação – inquérito a cargo da autoridade policial, ou procedimento
administrativo nos mais diversos órgãos: Ministério Público, Tribunais de
Contas – e nos seus autos o sigilo pode ser afastado. Qual seja, as informações
devem ser buscadas de modo fundamentado para instruir investigação em curso, ou
em instauração. À investigação devem acorrer os meios, todavia preservando-se o
investigado.
Deste modo, presente a notícia do ilícito, assim como
elementos mínimos que o conformem, deve ser instaurado procedimento
investigatório, no qual o sigilo pode e deve ser afastado, sempre que
necessário, para que venham aos autos as informações de posse das instituições
financeiras, sejam estas dados cadastrais e documentos apresentados pelo
correntista, ou ainda extratos de movimentação, cópias de cheques, ordens de
pagamentos e transferências.
Para o deferimento de tal medida não há que se cogitar de
prova do crime, já que a medida destina-se à investigação, mas sim de indícios,
de início de prova que se pretende robustecer.
Por outro lado, tratando-se de informações que, à luz das recentes
decisões da Excelsa Corte somente podem ser obtidas mediante prévia autorização
judicial, como dito alhures, cabe compatibilizar tal orientação com o disposto
no art. 8º, inciso IV e § 2º, da Lei Complementar nº 75/93, que assegura ao
Ministério Público Federal a possibilidade de requisitar documentos e
informações de entidades privadas, haja vista que o sigilo não pode ser oposto
como óbice a seu fornecimento.
Em face de tal dispositivo, editado em conformidade com a
Constituição Federal, que em seu art. 129, inciso VI, assegura ao Ministério
Público a possibilidade de expedir notificações nos procedimentos
administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para
instruí-los, tenho que também ao parquet devem ser reconhecidas tais
atribuições.
Muito embora sobre tal afirmação resida controvérsia, cabe
trazer a lembrança decisão do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança
nº 21.729-DF (06), que confere ao Ministério Público Federal a possibilidade de
colher diretamente de instituição financeira informações necessárias à
instrução de procedimento administrativo instaurado em defesa do patrimônio
público.
Naquela situação, cuidou-se de mandado de segurança
impetrado contra ato do Procurador Geral da República que, sob fundamento de
instruir procedimento destinado a apurar desvio de recursos públicos,
requisitou ao Banco do Brasil relação de nomes de pessoas beneficiadas por
empréstimos concedidos com juros subsidiados pelo poder público.
Embora inicialmente concedida a medida liminar para sustar
os efeitos do ato, o mandado de segurança restou denegado no mérito, resultando
que a requisição do Ministério Público Federal deve ser atendida, ainda que
diga respeito a dados cobertos por sigilo.
Na situação enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal
tratou-se de investigação destinada a apurar o desvio de recursos públicos,
sobre os quais prepondera o princípio da publicidade (art. 37, caput, da CF).
Assim, tratando-se de fatos que a todos se deve dar a conhecer, visto que eventual
lesão acarreta prejuízos a toda sociedade, entendeu a Excelsa Corte autorizada
a diligência.
Vê-se, portanto, que a própria Corte Suprema autoriza a
requisição de informações pelo Ministério Público Federal sob determinadas
condições, mormente quando houver interesse público, como no caso relatado,
materializado na origem dos recursos.
Em conclusão, tem-se que o interesse público presente na
investigação criminal deve preponderar em face do interesse individual, devendo
ser afastado o sigilo que envolve os dados e movimentações bancárias para a
instrução de procedimento investigatório, sempre que presentes indícios de
materialidade e autoria, bem como justificada a necessidade da medida.
Considerados a matriz constitucional dos interesses protegidos, compete ao
Poder Judiciário apreciar os pedidos de afastamento do sigilo, sendo que ao
Ministério Público também se confere tais poderes, desde que para colher
elementos destinados a instruir procedimento administrativo no âmbito de suas
atribuições, destinado a apurar o desvio ou malversação de recursos públicos.
(01) SZNICK, Valdir. Crime organizado – Comentários. São
Paulo: Universitária de Direito Ltda., 1997.
(02) COELHO, Sacha Calmon Navarro. Cadernos de Pesquisas
Tributárias, vol. 18, p. 100, g.n.
(03) COVELLO, Sérgio Carlos. O sigilo bancário. São Paulo:
Universitária de Direito Ltda., 1991.
(04) BARBEIDAS, André Terrigno. O sigilo bancário:
Malheiros, 2003.
(05) LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação
Preliminar no Processo Penal. Lumen Juris, 2ª edição, 2003.
(06) Relator para o acórdão o Ministro Néri da Silveira, j.
em 05/10/1995.