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A inexigibilidade de conduta diversa como causa
supralegal de exclusão da culpabilidade
Fernanda Figueira Tonetto professora de Direito da UFSM
PARTE I
Sumário: 1. Introdução. 2. Culpabilidade: Evolução Histórica.
3. Elementos da culpabilidade e Causas de Exclusão. 4. A Inexigibilidade de
Conduta Diversa como Excludente Genérica da Culpabilidade. 5. Hipóteses de
Inexigibilidade de Conduta Diversa não Previstas na Lei Penal.
1.Introdução
O presente estudo trata da possibilidade de adoção da tese
da inexigibilidade de conduta diversa como causa da exclusão da culpabilidade,
por ausência do elemento reprovação.
Tendo em vista que a censura de uma conduta é informada
primordialmente pela possibilidade de realização de um comportamento adequado
ao ordenamento jurídico combinada com a violação deste, muitos doutrinadores
têm debatido a tese da possibilidade de adoção do elemento inexigibilidade de
outra conduta como causa supralegal de isenção da culpabilidade,
independentemente de previsão expressa.
E são esses debates que se pretende enfocar, através do
estudo da culpabilidade e de seus elementos.
2.Culpabilidade: Evolução histórica
A Culpabilidade, ao longo dos tempos, sofreu inúmeras
mutações até que se chegasse a sua atual concepção, tendo sido explicada,
basicamente, por três teorias cronologicamente sucessivas, quais sejam, a
Teoria Psicológica, a Teoria Psicológico-Normativa e a Teoria Normativa.
Segundo a Teoria Psicológica da culpabilidade, o
crime era um conceito bipartido, de um lado estando o elemento objetivo e de
outro o elemento subjetivo.
Partindo desse pressuposto, a culpabilidade era tida
exatamente como esse elemento subjetivo do delito, já que consistia na acepção
psicológica feita pelo agente a respeito do resultado, baseando-se no seu
querer ou na sua possibilidade de previsão do evento.
Assim, para que o fato criminoso pudesse ser imputado a
seu agente, não bastava a conduta objetiva contrária ao ordenamento jurídico,
sendo indispensável a relação psicológica vinculante entre o sujeito e o
resultado, também chamada de nexo subjetivo.
Daí se denota que a Teoria Psicológica entendia ser
espécies da culpabilidade o dolo e a culpa, consistindo aquele na vontade e
essa na potencialidade de antevisão do resultado. A culpabilidade era vista
como um elemento puramente naturalístico, bastando, para sua caracterização, o
nexo psíquico entre o agente e o resultado. É por essa razão que se diz que,
sob a égide dessa teoria, a culpabilidade era eminentemente causal, eis que a
conduta do sujeito (voluntária, ou involuntária com resultado previsível) era a
causa do elemento subjetivo do crime, e tão-somente.
No entanto, por incluir em um denominador comum
(culpabilidade) conceitos completamente diversos, como são o dolo (psicológico)
e a culpa (normativo); por não explicar a culpa inconsciente e por não resolver
a questão da inimputabilidade como excludente da culpabilidade, essa teoria
mereceu severas críticas que lhe renderam um esquecimento quase total.
Ainda, é preciso registrar que mesmo considerando a
culpabilidade como vínculo psíquico, tal teoria reputava a conduta do
inimputável isenta desse elemento subjetivo, configurando, pois, um contra
senso, vez que esse, mesmo não tendo responsabilidade, pode agir dolosamente de
forma a desejar o resultado.
Partindo dos desacertos da Teoria Psicológica,
construiu-se a Teoria Psicológico-Normativa da Culpabilidade, que tinha
no dolo e na culpa não mais espécies da culpabilidade, mas sim elementos, ao
lado de outros.
A construção de tal doutrina baseou-se em um caso de
estado de necessidade, o caso da tábua de salvação, onde se verificou
que embora o sujeito agisse dolosamente, isto é, mesmo querendo realizar o
evento, não merecia ele a reprimenda penal, por não lhe poder ser reclamado
comportamento diferente.
Assim, a exigibilidade de conduta diversa (que gera a
reprovação do comportamento) passou a ser vista como elemento da culpabilidade,
ao lado da imputabilidade, da culpa e do dolo, esse tendo inerente em seu
conceito a consciência da ilicitude.
Passou-se a exigir, além da vontade de realizar o evento
(dolo) ou da possibilidade de previsão de evento não desejado (culpa),
consistentes no liame psicológico, também o juízo de reprovação, consistente no
liame normativo.
Daí a denominação Teoria Psicológico-Normativa.
Inobstante tenha colaborado enormemente para a formulação
da atual concepção de culpabilidade, pecou por persistir entendendo que o dolo
e a culpa dela faziam parte. Diz-se que pecou porque aqueles estão na conduta
do réu e esta está no juízo de reprovação a ser feito pelo juiz.
Além disso, o dolo continha em si a consciência da
ilicitude: era o chamado dolo normativo ou Dolus Malus, porque se
entendia que o agente que quer o resultado conhece sua antijuridicidade.
Partindo-se dessa premissa, aquele que não tivesse
consciência da ilicitude (inobstante pudesse ter), por possuir padrões morais
invertidos, não agiria com dolo e seria, portanto, isento de culpabilidade, o
que é um absurdo, já que um criminoso dessa espécie merece a reprimenda penal.
A partir dos erros da Teoria Psicológico-Normativa e da
expulsão dos elementos psíquicos erroneamente inseridos no conceito de
culpabilidade, formulou-se a Teoria Normativa, aceita por nossa legislação
penal de 1984.
Diz-se Teoria Normativa porque a culpabilidade passou a
ser informada unicamente por elementos ensejadores de um juízo de valoração por
parte do julgador. A culpabilidade passou a ser puramente axiológica.
Tais elementos passaram a ser a medida, o critério para o
nível de reprovação. Daí falar-se em graus de culpabilidade.
Dolo e culpa foram colocados no tipo penal, já que esses
são elementos integrantes da conduta do agente, isto é, da sua ação ou omissão
(daí o surgimento dos conceitos de tipo doloso e tipo culposo).
Por seu turno, a consciência da ilicitude foi destacada do
dolo, uma vez que um independe do outro: pode haver conduta dolosa sem que o
sujeito saiba que a mesma é contrária ao direito. O primeiro problema
resolve-se no âmbito do tipo penal, ao passo que o segundo encontra solução na
culpabilidade.
Deixou-se de falar em dolo normativo, ou Dolus Malus, para
se falar em dolo natural. Deixou-se de se falar em consciência da ilicitude
como excludente da culpabilidade, para se passar a falar em potencial consciência
da ilicitude.
Assim, e consoante já referido, a culpabilidade passou a
ser vista unicamente sob o aspecto normativo, consistente na reprovação da
conduta.
E, para que tal censurabilidade pudesse ser auferida,
colocou-se a disposição do julgador elementos capazes de informar o grau de
reprovação, dependendo de sua maior ou menor presença na conduta do agente, o
que leva à conclusão de que a culpabilidade é um conceito graduável.
Os elementos da culpabilidade, pois, condicionam a maior
ou menor censurabilidade da conduta.
Tais elementos consistem na imputabilidade, na potencial
consciência da ilicitude a na inexigibilidade de conduta diversa.
3. Elementos da culbabilidade e causas legais de exclusão
Consoante assentado pela Teoria Normativa, a culpabilidade
não passa da censurabilidade da conduta praticada pelo agente, censurabilidade
essa a ser auferida pelo julgador.
Para colher o grau de reprovabilidade do comportamento,
colocou-se à disposição do magistrado elementos capazes de graduar essa
culpabilidade, ao mesmo tempo em que a inexistência de qualquer deles passou a
ter o condão de exclui-la, consoante prega a Teoria das Circunstâncias
Concomitantes, de Frank.
São eles a imputabilidade, a potencial consciência da
ilicitude e a inexigibilidade de conduta diferente.
Interessa-nos a inexigibilidade de ação ou omissão
diversa.
Tal elemento provém do princípio segundo o qual a pena é
personalíssima, não podendo ser aplicada contra quem não deu causa ao evento
criminoso.
Consoante tal princípio, e como corolário deste, pode-se
dizer que para que o agente seja culpável, mister tenha cometido o fato dentro
de circunstâncias normais, como algo exclusivamente seu e sob o total
domínio de sua inteligência.
Do contrário, estando o sujeito inserido em contexto
fático constituído por circunstâncias anormais que influíram na prática do
crime, não se pode afirmar que esse proveio inteiramente de sua conduta, por
não lhe ser exigível outra dentro daquelas circunstâncias.
Dessa forma, se dentro daquelas particularidade do fato,
não era possível ao sujeito agir como normalmente o faria, a conclusão que se
chega é a de que a ele não podia ser imposta a prática de outra conduta.
Não podendo o sujeito agir consoante o direito, a
reprovabilidade da conduta desaparece, isso porque tal reprovabilidade existe
exatamente quando o agente pode realizar a conduta em acordo com o ordenamento
jurídico e, no entanto, age de outro modo, violando-o.
Assim, a exigibilidade de conduta diversa aparece como
elemento da culpabilidade, excluindo-a quando o comportamento diferente não
pode ser reclamado.
Da mesma forma que ocorre com os demais elementos da
culpabilidade, o legislador previu especificamente as causas de isenção de pena
quando ausente a exigibilidade de comportamento diferente.
No art. 22 do Código Penal, pois, estão previstas a coação
moral irresistível e a obediência hierárquica, justamente porque nesses casos o
ordenamento jurídico não pode impor que o agente dirija seu comportamento de
forma lícita.
Alguns doutrinadores vêem também no art. 348, § 2º, do
Código Penal uma causa legal de exclusão da culpabilidade baseada na
inexigibilidade de conduta diversa.
Tal norma prevê a isenção de pena do ascendente,
descendente, cônjuge ou irmão do criminoso que o favorece a subtrair-se da ação
da autoridade pública.
Cremos que a razão lhes assiste, uma vez que em se
tratando o criminoso de pessoa intimamente ligada ao agente que comete o crime
de favorecimento pessoal, a esse agente não se pode exigir que entregue à
autoridade o seu afeto.
Além dessas hipóteses, pode-se dizer que há outra causa
legal de isenção da pena fundada na inexigibilidade de conduta diversa: é o
artigo 128, inciso II, do Código Penal, que prevê a prerrogativa de aborto
consentido pela gestante ou seu representante legal quando a gravidez é
resultante de estupro.
Isso porque o legislador e o ordenamento jurídico como um
todo não podem exigir da gestante que prolongue ainda mais seu trauma e
sofrimento resultante de um delito do qual foi vítima, ao dar à luz, porque não
dizer, ao produto do crime.
A existência do estupro com a conseqüente gravidez insere
a gestante em um contexto fático anormal capaz de tornar irresistível a prática
do aborto, não se podendo afirmar, nesse caso, que está presente o dever de
agir diferentemente.
Não se fala em exclusão da ilicitude, exatamente porque
não há adequação mediata ao artigo 23 do Código Penal, e, salvo melhor juízo,
as mesmas não se enquadram na hipótese sob análise.
4. Da inexigibilidade de conduta diversa como
excludente genérica da culpabilidade
São divergentes os posicionamentos doutrinários quando o
assunto refere-se à possibilidade de adoção do elemento inexigibilidade na
exclusão da censura.
Data Venia posicionamentos em contrário, pugnamos
pela tese da admissibilidade.
Parece lícito afirmar que a única razão para não se
entender possível a adoção da inexigibilidade de conduta diversa como causa
supralegal de exclusão da culpabilidade, para alguns doutrinadores, é julgar
exauridas no Código Penal todas as possibilidades de ausência de reprovação.
Se assim for, tal entendimento torna-se mutável à medida
em que forem sendo demonstradas possibilidades outras de conduta incensurável
por não se poder reclamar diferente ação ou omissão do sujeito.
E é justamente em razão de essas hipóteses se fazerem
presentes no mundo dos fatos que se vem sustentando a possibilidade de exclusão
da culpabilidade nesses termos.
Assim, considerando a faculdade de uso da analogia para
normas penais justificantes; considerando a exigibilidade de conduta diferente
como elemento (ou pressuposto) da culpabilidade e considerando que o legislador
jamais será onisciente a ponto de prever todos os acontecimentos do mundo dos
fatos, não será defesa a absolvição do agente, com base no artigo 386, inciso
V, do Código de Processo Penal, se não podia o ordenamento jurídico-criminal a
ele impor outro comportamento, mesmo que esse ordenamento não tenha antevisto a
faculdade.
Mais: em não se adotando a inexigibilidade de conduta
diversa como excludente da culpabilidade, mesmo em casos não expressamente
cominados, a pena passa a ser contrária à equidade, injusta e, porque não
dizer, desumana.
Isso porque não é humano aplicar-se uma reprimenda a
alguém quando, segundo FREDERICO MARQUES (1965, p. 227) sua "conduta
típica ocorreu sob a pressão dos acontecimentos e circunstâncias que excluem o
caráter reprovável dessa mesma conduta".
E não poderia ser diferente.
Em primeiro plano, o argumento segundo o qual a culpabilidade
é sinônimo de reprovação, bem como que a falta de exigibilidade de outra
conduta não gera esse juízo de censura, é irrebatível.
A partir do instante em que se constatam novas hipóteses
de prática de conduta destoante do ordenamento jurídico por impossibilidade de
o fazê-lo de outra forma, a aplicação da pena fica destituída de fundamento
pela ausência de culpabilidade (leia-se reprovabilidade).
Então, o que se pode afirmar é que o legislador, sabendo
da impossibilidade de previsão de todas as hipóteses de inexigibilidade de
outra conduta, preferiu elencar as causas de exclusão da culpabilidade nela
baseadas através de fórmula meramente exemplificativa, o que possibilita a
interpretação analógica. Ou, ainda, que mesmo não tendo idéia de que outras causas
poderiam surgir, o legislador não limitou a falta de culpabilidade a casos
expressamente previstos.
E, sendo assim, se pergunta: Por que razão tal
hermenêutica é autorizada para um dos elementos da culpabilidade, e não o é
para os demais?
A resposta é singela, mas, ao que se crê, verdadeira:
simplesmente porque quanto aos demais elementos as causas de exclusão são de
tal forma genéricas que abrangem todas as hipóteses de inexistência de
culpabilidade, por ausência de um dos seus pressupostos.
As causas de exclusão da culpabilidade baseadas na
inexistência de imputabilidade não ultrapassam os limites da doença mental, do
desenvolvimento mental incompleto ou retardado e da embriaguez completa
proveniente de caso fortuito ou força maior.
Poder-se-ia indagar da existência da inimputabilidade por
ebriez completa, dolosamente provocada, mas nesse caso a imputabilidade
subsiste em razão da Actio Libera In Causa, tema esse que não é objeto
do presente estudo.
Também no que se refere à potencial consciência da
ilicitude, o erro de proibição, por ser expresso em um tipo aberto, abrange
todas as hipóteses em que não há possibilidade de conhecer a antijuridicidade
do fato.
Os casos de inexigibilidade de outra conduta, contudo, não
foram esgotados pelo legislador, mesmo que se admita que o aborto proveniente
de estupro e o favorecimento pessoal (artigo 348, § 2º, do Código Penal) são
causas legais de exclusão da culpabilidade baseadas na impossibilidade de
escolha da prática delituosa.
E tal assertiva tanto parece ser verdadeira que, adiante,
falar-se-á de algumas causas de isenção da pena não previstas expressamente na
legislação penal.
5. Hipóteses de inexigibilidade de conduta diversa
não previstas na lei penal
Ressaltou-se que o argumento segundo o qual a inexigibilidade
de conduta diversa não poderia ser adotada simplesmente porque o legislador
teve a capacidade de prever todas as hipóteses em que essa ocorria era
rebatível à medida em que se fizessem presentes no mundo dos fatos
acontecimentos outros onde não se pode reclamar comportamento diferente.
Pois bem: a primeira dessas hipóteses a ser analisada diz
com o estado de necessidade exculpante, que alguns doutrinadores
têm como causa de exclusão da culpabilidade com base na ausência da
exigibilidade de conduta diferente.
O estado de necessidade pode ser justificante ou
exculpante: aquele ocorre quando o bem jurídico sacrificado é hierarquicamente
menos importante que o bem jurídico protegido ou quando ambos têm o mesmo
valor; esse se dá, ao contrário, quando o bem que o agente optou salvaguardar
tem menor importância que o bem lesado.
No primeiro caso dá-se a exclusão da ilicitude e, no
segundo, a exclusão da culpabilidade, por ser inexigível conduta diversa.
Nessa hipótese, por não haver exclusão da ilicitude,
poderá ocorrer isenção de pena, por inexigibilidade de conduta diversa, se
observadas as condições de sua configuração, ou, nas palavras de ZAFFARONI
(1998, p. 656): "Em todos os casos de necessidade exculpante, o deve ser
uma necessidade, isto é, devem ser situações em que não se possa juridicamente
exigir do autor a realização de uma conduta menos lesiva".
Assim, para que se admita a exclusão da culpabilidade no
estado de necessidade exculpante, mister que se adote a inexigibilidade de
conduta diversa como causa supralegal de isenção da pena.
A presença do excesso em uma causa de exclusão da
ilicitude é outra hipótese.
Reza o artigo 23, parágrafo único, do Código Penal, que na
legítima defesa, no estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever
legal e no exercício regular de direito, o agente responde pelo excesso, seja
ele doloso ou culposo.
No caso da legítima defesa, por exemplo, em que o excesso
se configura pela extrapolação do uso dos meios necessários ou pela imoderação
no emprego desses meios, se a conduta praticada durante esse excesso configurar
ilícito penal, merecerá a respectiva sanção.
Mas, no entanto, se o excesso somente ocorreu porque não
podia o agente agir de outro modo, sendo-lhe inexigível conduta diversa, nesse
caso estará isento de pena porque a conduta ilícita não é, nessa hipótese,
culpável, já que sobre ela incide juízo de censura negativo.
Tendo em vista que a conduta praticada durante o excesso é
considerada autonomamente, para fins de configurar um fato típico e antijurídico,
nada mais lógico do que fazer incidir sobre ela o juízo de culpabilidade.
E, se durante o excesso não era possível que o sujeito
agisse de outra forma, por estar movido por sentimento de pavor, medo, ou outro
sentimento capaz de lhe tirar a capacidade de autodeterminação, aquela conduta
autônoma não pode ser culpável.
Assim, pode-se considerar o excesso, nesse caso chamado
exculpante, como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, em razão da
inexigência de conduta diferente.
A tese também se enquadra perfeitamente ao aborto
eugênico, senão vejamos:
Trata-se de hipótese em que o feto sofre de má formação,
havendo forte probabilidade de que nasça sem vida, ou, não sendo natimorto,
tenha poucas chances de sobrevivência. É o chamado feto inviável.
A lei não autoriza o aborto eugênico (ou eugenésico),
limitando-se aos casos de aborto necessário e aborto sentimental (causa legal
de exclusão da culpabilidade).
Mas, nessa hipótese, seria reprovável a conduta da
gestante que, sabendo que o filho terá mínima ou nenhuma chance de
sobrevivência, vem a adiantar sua morte? É exigível que ela prolongue o
sofrimento de carregar consigo um ser que sabe estar prestes a morrer?
Cremos que não.
Assim, muito embora a possibilidade não seja taxativamente
prevista, em verdade diz com a inexigibilidade de outra conduta que, por
expulsar a reprovabilidade da ação, gera a isenção da culpabilidade.
E, enquanto não ecoa em nossa legislação o aborto eugênico
como causa de exclusão da antijuridicidade, ou mesmo como uma causa legal de
isenção de pena, correto o entendimento segundo o qual se trata de causa
supralegal de exclusão da culpabilidade, diante da impossibilidade de o
ordenamento jurídico exigir outra ação da gestante.
Há de ser ressaltado que o caso concreto, analisado em
todas as circunstâncias, é que irá demonstrar ao julgador ser ou não ser
possível a exigência de outra conduta.
O caso a seguir, trazido por MENDES CAMPOS (1998), bem
expressa tal assertiva.
Imagine-se duas pessoas, sendo uma dotada de forte
constituição física e poder amedrontante, e a outra fraca, tímida e temerosa.
A primeira pratica contra a segunda, reiteradamente,
delitos de ameaça, afirmando que irá lhe matar fazendo uso de meio cruel e
mediante surpresa, e isso a ponto de a vítima das ameaças não ter mais sossego.
Essa sabe que na hipótese de confronto corporal entre
ambos, por certo restaria prejudicada. Isso sem pensar na possibilidade de ser
atacada inadvertidamente, caso em que suas chances seriam ainda mais diminutas.
Certa feita, a vítima (agora possível réu) ataca seu
desafeto inesperadamente, quando este estava de costas, vindo a matá-lo.
Nesse caso não se fala em legítima defesa, por ausência de
proteção à agressão atual ou iminente.
Também não se configura o estado de necessidade, já que
naquela ocasião não havia imperatividade de escolha entre um ou outro bem, eis
que o agredido encontrava-se inerte, talvez até sem ter visto seu agressor.
A hipótese do inciso III, artigo 23, do Código Penal, não
tem aplicação, da mesma forma.
Então se pergunta: a conduta do agente é culpável?
Pode-se dizer que não, já que o mesmo estava inserido em
contexto de anormalidade, capaz de influir em seu ânimo a tal ponto de não ser
possível reclamar-lhe outra ação.
Não se podia exigir que aquela situação ameaçadora
perdurasse por longo tempo, eis que hábil a retirar o sossego da vítima das
ameaças constantemente, o que não é lícito.
Também não era exigível que o sujeito aguardasse a
agressão da "vítima" para que então se configurasse a legítima
defesa, até porque certamente correria o risco de ser prejudicado no embate e
perder a própria vida, já que seu desafeto possuía características físicas mais
avantajadas.
Assim, é lícito entender por inculpável o sujeito, diante
da inexigibilidade de outra conduta que, por se tratar de hipótese não descrita
na lei, configura-se em uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
Por seu turno, tem a jurisprudência admitido a adoção da
tese em casos de crimes de sonegação fiscal, seja por ausência de
pagamento de impostos, seja pelo não recolhimento de contribuições
previdenciárias, desde que comprovada de forma assaz a insolvência do devedor a
ponto de restar comprometida a satisfação de necessidades mais importantes.
Da mesma forma, e diante do mesmo argumento, têm os Tribunais
admitido a isenção da culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa, em
casos de defraudação do penhor, desde que comprovada a
impossibilidade do pagamento.
Resta salientar, por fim, que com a adoção da tese da
inexigibilidade de conduta diversa, encontra-se aberta a discussão a respeito
da eutanásia, e a conseguinte possibilidade de sua
descriminalização genérica.
A acolhida, no ordenamento jurídico, de referido
instituto, começa com a seguinte pergunta:
É exigível do Homo Medius que, ao presenciar o
sofrimento e a morte inevitável (mas que tarda) de um ente querido seu, deixe
de atender ao pedido de fazer cessar o padecimento? É censurável a conduta
daquele que atende ao último desejo do moribundo?
Cremos que não, exatamente em obediência aos princípios da
Teoria da Normativa da Culpabilidade que a vê como sinônimo de censura e
reprovação e que, com isso, admite a invocação da inexigibilidade de conduta
diversa em qualquer circunstância.
Destarte, e para concluir a primeira parte do presente
trabalho, pode-se afirmar que diante das inúmeras possibilidades de
configuração da não exigibilidade de outra conduta, possibilidades essas não
previstas na legislação penal, mas que de qualquer forma retiram a
censurabilidade da ação ou da omissão, fazendo, pois, desaparecer a
culpabilidade (já que aquela é pressuposto dessa), pode-se entender por
insustentável o posicionamento segundo o qual a impossibilidade de
autodeterminação como eximente da pena limita-se às hipóteses da coação moral
irresistível e à obediência hierárquica, bem como ao aborto sentimental (ou
resultante de estupro) e ao favorecimento pessoal cometido pelo afeto do
fugitivo, sendo imperativa a adoção da tese da inexigibilidade de outra conduta
como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
PARTE II
Sumário : 1. A inexigibilidade de conduta diversa e
os delitos culposos. 2. A inexigibilidade de Conduta Diversa nas Causas de
Aumento de Pena. 3. A inexigibilidade de Conduta Diversa no Tribunal do Júri.
4. A Inexigibilidade de Conduta Diversa e a Insegurança Jurídica. 5. Conclusão.
1. A inexigibilidade de conduta diversa e os
delitos culposos
Muito já se falou a respeito da impossibilidade jurídica
de exigência de condutas conforme o Direito, e especialmente abordamos o tema
na primeira parte desse trabalho. No entanto, muito pouco ou quase nada já se
referiu sobre a possibilidade de adoção da tese no que respeita aos delitos de
conduta tipicamente culposa.
Mas, diante de todos os princípios decorrentes do conceito
de culpabilidade, é possível concluir pela adoção da inexigibilidade irrestrita
mesmo em se tratando de infrações cometidas sob o manto da inobservância do
cuidado necessário?
Ao que cremos, sim.
Isso porque com a evolução do conceito de culpabilidade, chegou-se
à adoção da Teoria Normativa, segundo a qual o pressuposto da pena é puro juízo
de reprovação, a ser formulado pelo julgador.
Assim, retirou-se da culpabilidade o dolo e a culpa, que
foram inseridos no tipo penal, tendo em vista que se tratam de elementos
integrantes da conduta (1).
Bem se vê, pois, que culpa e culpabilidade consistem em
elementos de natureza completamente diversa: enquanto aquela diz respeito à
falta de vontade dirigida ao resultado – o qual somente advém da inobservância
da cautela imposta para a prática de determinada ação ou omissão –, esta se
refere à censurabilidade do ato humano típico.
Ambas são independentes. São conceitos de natureza
diversa.
Destarte, mesmo o sujeito agindo de forma imprudente,
negligente ou imperita, sua ação pode não ser censurável.
E, se a ausência da censura advier da impossibilidade de
se exigir, no caso concreto, que o sujeito aja consoante as regras de cuidado
reclamadas ao Homo Medius, ter-se-á um caso de crime culposo inculpável
pela presença da causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
Pode-se pensar no seguinte caso:
Imagine-se um exímio motorista que vê o filho sofrer de
grave enfermidade repentina e que, para salvar a vida do ente querido, coloca-o
em seu automóvel a fim de levá-lo ao hospital.
Trata-se de hipótese em que a criança está prestes a
morrer, se não atendida imediatamente. Qualquer minuto que se perca pode
custar-lhe a vida.
Diante de quadro alterado das circunstâncias fáticas, o
pai emprega no veículo velocidade por demais incompatível com o local em que
trafega, vindo a lesionar transeunte que observava corretamente as regras de
trânsito.
Pergunta-se: inobstante tenha cometido a figura típica do
artigo 129, § 6º, do Código Penal, merece o motorista a reprimenda penal? Foi
censurável sua conduta? Era exigível que colocasse em risco a vida do filho a
fim de preservar a incolumidade física de terceiros?
O fato é típico, visto que o delito de ofender a
integridade corporal de outrem é previsto na modalidade culposa e a culpa se
fez presente na conduta do acusado, eis que não observou as regras de trânsito.
Mas, sob o prisma da culpabilidade, não era exigível que o
agente respeitasse aquelas regras tendo em vista que a observância do cuidado
necessário poderia custar o sacrifício de uma vida.
A situação de anormalidade era tal (risco de vida do ente
querido) que o ordenamento jurídico não poderia exigir do agente outra conduta,
que não a posta em prática.
Destarte, por encontrarem-se em patamar diverso culpa e
culpabilidade, não há o que impeça se adote, nos delitos culposos, a tese da
inexigibilidade de conduta diversa como excludente supralegal da culpabilidade,
desde que a conduta causadora do resultado seja de tal sorte irrepreensível.
2. A inexigibilidade de conduta diversa nas causas
de aumento da pena
Já abordamos a inexigibilidade de conduta diversa na
prática das infrações penais, sem nos referirmos às circunstâncias do crime.
Indaga-se da possibilidade de afastamento de uma causa de
aumento da sanção se a mesma se deu em circunstância adversa, a ponto de o
ordenamento jurídico não poder exigir que não se tivesse feito presente.
A fim de responder a indagação, podemos sustentar que se a
culpabilidade é um conceito graduável, de acordo com o grau de censura da
conduta, que por sua vez é diretamente proporcional ao Quantum da
sanção, então uma circunstância capaz de aumentar a pena, quando plenamente
justificada, não pode influir na fixação da mesma. Não é parâmetro de graduação
sancionatória.
Em outras palavras, mesmo que o sujeito seja culpável, por
ter praticado uma conduta provida de reprovabilidade, e mereça a sanção penal,
não terá aplicação a causa de aumento se sobre essa não tiver lugar o juízo de
censura, por ser inexigível a sua ausência.
Para tanto, mister que a circunstância do crime advenha de
uma conduta autônoma própria do agente, apenas a ele atribuível, já que a
ausência de reprovação provém da inexigibilidade de conduta diversa
proveniente do sujeito ativo do delito.
Assim, a título de exemplificação, o artigo 121, § 4º, do
Código Penal, prevê que no homicídio culposo a pena é aumentada de um terço se
o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima.
Mas, no caso de a omissão de socorro (conduta autônoma)
provir de circunstâncias adversas, diante da inexigibilidade de conduta
diferente, a causa de aumento pode ser afastada.
É o caso do agente que, cometendo homicídio culposo na
direção de veículo, não presta auxílio à vítima por temor de represália ou por
buscar atendimento médico próprio em virtude de lesões sofridas no acidente.
Nesses casos, muito embora não haja discordância da
possibilidade da isenção da causa de aumento de pena, tal faculdade, ao menos
explicitamente, não é vista como hipótese de inexigibilidade de outra conduta,
consoante se depreende das decisões supra, citadas por SILVA FRANCO et al
(1995, p. 1617):
Não
há aplicar a majoração do art. 121, § 4º, do CP se, sentindo-se ameaçado pelos
circunstantes, deixa o agente de prestar imediato socorro à vítima, fugindo do
local do sinistro (TACRIM – JUTACRIM 31/304).
É
mais prudente não aumentar a reprimenda imposta ao acusado que abandona o local
dos fatos sem prestar socorro à vítima, por temor da reação popular ante sua
conduta punível ( TACRIM – SP – JUTACRIM XI/269).
Nos
acidentes de trânsito não se majora a penalidade do réu que abandona o local
com o escopo de procurar socorros médicos para estancar sangue que flui de suas
próprias lesões (TACRIM – RT 412/290).
Mas, muito embora as decisões sob análise não contemplem a
inexigibilidade de conduta diversa como eximente, o fato é que naquelas
hipóteses a omissão de socorro é incensurável por não se poder reclamar do
agente outro comportamento, hipótese em que a causa de aumento é afastada.
Dessa forma, pode-se falar em inexigibilidade de outra
conduta como excludente, não só da pena, por completo, mas também de parte da
pena, desde que a causa de aumento configure-se como um comportamento autônomo
e justificado e seja inexigível que essa conduta não se tenha materializado.
3. A inexigibilidade de conduta diversa no
tribunal do júri
Consoante já se ressaltou, inúmeras são as possibilidades
de configuração de conduta ilícita, dotada da característica da
incensurabilidade por impossibilidade de ação ou omissão compatível com o
ordenamento jurídico.
A inexigibilidade de conduta diversa, pois, pode se fazer
presente na violação das mais diversas espécies de bens jurídicos tutelados e,
efetivamente, configura-se em delitos contra a vida.
Assim, diante da competência constitucionalmente prevista
do Tribunal do Júri para o julgamento dessa espécie de delitos, a tese tem
amplo espaço nos debates firmados perante o Conselho de Sentença.
Muito embora a questão esteja distante de uma solução
pacífica, é lícito afirmar que se há possibilidade de absolvição, por ausência
de culpabilidade (artigo 386, inciso V, do Código de Processo Penal), em
qualquer espécie de infração, desde que configurada a inexigibilidade de
conduta diversa, não menos justa é a absolvição em delitos de competência do
Tribunal do Júri, baseada no mesmo argumento.
Além desse princípio isonômico, segundo o qual crimes de
natureza idêntica merecem ser tratados com as mesmas regras gerais do Direito
Penal, soma-se ainda mais um argumento que vem a possibilitar a aplicação da
tese da inexigibildiade da conduta diversa em crimes contra a vida: é a
possibilidade conferida aos jurados de decisão por convicção íntima, não
estendida aos demais crimes, onde vinga a exigência da decisão fundamentada.
E, muito embora alguns Tribunais ainda entendam pela
nulidade do julgamento onde se quesita a inexigibilidade de conduta diversa, a
coerência da tese leva a crer seja imperativa a quesitação da ausência de
culpabilidade por falta de autodeterminação, sob pena até mesmo de cerceamento
de defesa do acusado, isso em razão do artigo 484, inciso III, do Código de
Processo Penal, que prevê a imperatividade da formulação de quesitos sobre
"qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o
crime".
Assim, sendo a inexigibilidade de conduta diversa uma
causa de exclusão da culpabilidade que, salvo melhor juízo, isenta de pena o
réu, a sua quesitação é, porque não dizer, obrigatória.
A formulação do quesito, entretanto, deve obedecer à
exigência de adequação ao caso concreto, não sendo lícito ao juiz, pois,
indagar apenas se "o réu agiu por lhe ser inexigível conduta
diversa".
É nesse sentido a orientação da jurisprudência que prega a
adoção da tese, consoante se depreende do julgado trazido por TOLEDO (1991, p.
329):
Processual
Penal — Júri — Homicídio. CPP, art. 484, III.
Inexigibilidade
de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão de culpabilidade, cuja
admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada.
Júri.
Homicídio. Defesa alternativa baseada na alegação de não-exigibilidade de
conduta diversa. Possibilidade, em tese, desde que se apresentem ao Júri
quesitos sobre fatos e circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico
(grifo nosso).
Quesitos.
Como devem ser formulados. Interpretação do art. 484, III, do CPP, à luz da
reforma penal.
Recurso
especial conhecido e parcialmente provido para extirpar-se do acórdão a
proibição de, em novo julgamento, questionar-se o Júri sobre a causa de
exclusão da culpabilidade em foco.
Sendo assim, não se vê obstáculo à possibilidade de
absolvição, nos crimes de competência do Tribunal do Júri, exatamente pela
configuração de uma hipótese de excludente da culpabilidade, que é a
inexigibilidade de conduta diversa, adotada como causa supralegal de isenção da
pena, o que configura hipótese de imperativa quesitação.
4. A inexigibilidade de conduta diversa e a
insegurança jurídica
Consoante já se tentou ressaltar, a doutrina divide-se no
que diz respeito à possibilidade de adoção da tese da inexigibilidade de
conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
O fulcro de argumentação da doutrina contrária reside no
receio de impunidade que tal sistemática geraria, em razão do alargamento das
hipóteses de absolvição, que se estenderiam inclusive a crimes de extrema
gravidade.
Fala-se na insegurança jurídica que seria criada em se
outorgando ao julgador amplos poderes (poderes supralegais) de constatação da
ausência de culpabilidade na conduta do agente.
Ou, nas palavras de Jescheck, apud MIRABETE (1994, p.
191):
[...]
necessário é que no âmbito da culpabilidade sejam previstos expressamente os
requisitos fixados para as dirimentes e que uma causa supralegal de exclusão
pela inexigibilidade de conduta diversa implicaria o enfraquecimento da
eficácia da prevenção geral do Direito penal e conduziria a uma desigualdade na
sua aplicação.
No mesmo sentido posicionam-se ZAFFARONI & PIERANGELI
(1997), ao afirmarem que a inexigibilidade como causa supralegal teria passado
por irreversível fracasso, desde o final da II Guerra Mundial, uma vez que
servia à impunidade de crimes bárbaros.
Dessa forma, a inexigibilidade de conduta conforme ao
Direito só teria aplicação nas causas expressamente previstas pelo legislador,
ou seja, funcionaria tão-somente como uma causa legal de exclusão da
culpabilidade.
Tais argumentos, no entanto, não merecem acolhida.
Em primeiro lugar, inadmissível falar-se em excesso de
poderes do julgador, quando se confere a ele, e apenas a ele, a prerrogativa de
examinar a censurabilidade da conduta do réu. Afinal, a culpabilidade está na
cabeça do juiz, e não na cabeça do agente.
A lei confere ao magistrado critérios rígidos dos quais se
servirá para graduar a culpabilidade, cuja presença mais ou menos intensa será
diretamente proporcional ao Quantum de pena merecido pelo sujeito ativo
do delito.
Vale ressaltar a lição de TOLEDO (1991, p. 329):
Muito
se tem discutido sobre a extensão da aplicação do princípio em foco, entendendo
alguns autores que sua utilização deva ser restringida às hipóteses previstas
pelo legislador para evitar-se mais uma alegação de defesa que poderia conduzir
à excessiva impunidade dos crimes. Não vemos razão para esse temor, desde que
se considere a "não-exigibilidade" em seus devidos termos, isto é,
não como um juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas, ao
contrário, como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade normativa, o
qual, conforme já salientamos, compete ao juiz do processo e a mais ninguém.
No mesmo diapasão, a Teoria Normativa construiu o
entendimento segundo o qual a culpabilidade se mede pela presença dos elementos
imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta
diversa.
E, aplicando-se a Teoria das Circunstâncias Concomitantes
de Frank, a ausência de qualquer desses elementos da culpabilidade tem o condão
de eximi-la.
Por outro lado, não se pode afirmar que crimes atrozes não
mereceriam a aplicação da tese da inexigibilidade de conduta diversa como
isentora genérica da pena, porquanto qualquer espécie de delito merece o mesmo
tratamento extraído da Parte Geral do Código Penal, somente diferenciando-se no
que diz respeito à aplicação da pena.
Não se pode, por exemplo, admitir, nas mesmas
circunstâncias, o reconhecimento do estado de necessidade para um delito de
furto e não admiti-lo para um homicídio, por mais grave que seja.
Desde que configurada a excludente, seja da ilicitude,
seja da culpabilidade, desimporta a gravidade da infração, pois em qualquer
caso a punição torna-se injusta. Não existem crimes
"inabsolvíveis".
A propósito, mister ressaltar a lição de FREDERICO MARQUES
(1965, p. 227):
A
inexigibilidade de outra conduta pode ser invocada, apesar de não haver texto
expresso em lei, como forma genérica de exclusão da culpabilidade, visto que se
trata de princípio imanente no sistema penal. Nem se diga que, com isto, haverá
uma espécie de amolecimento na repressão e na aplicação das normas punitivas.
Quando a conduta não é culpável, a punição é iníqua, pois a ninguém se pune na
ausência de culpa; e afirmar que existe culpa diante da anormalidade do ato
volitivo, é verdadeira heresia.
Sendo assim, nem se fala em aplicação benéfica da lei, uma
vez que a adoção da inexigibilidade de outra conduta como causa supralegal de
exclusão da culpabilidade é, pura e simplesmente, corolário da correta
hermenêutica das disposições penais, não implicando afrouxamento do caráter
retributivo da pena, já que a falta de sanção não é vista como impunidade, nem
mesmo como relaxamento do caráter preventivo da pena, pois a ausência de
punição, quando a culpabilidade é inexistente, não pode ser vista como
incentivo à prática criminosa, mas, antes sim, como forma de evitar a
iniquidade de um decreto condenatório.
Não há se falar sequer na aplicação do princípio da despenalização,
porque despenalização só há quando é possível a aplicação da pena e esta não é
aplicada por razões de política criminal.
Aqui não se chega à possibilidade de aplicação de pena,
porque a ausência de culpabilidade enseja sua isenção.
5. Conclusão
Tendo em vista a evolução das teorias da culpabilidade e o
ápice a que se chegou com a Teoria Normativa e com a Teoria das Circunstâncias
Concomitantes de Frank, deve-se entender que não há culpabilidade quando está
ausente qualquer dos seus três elementos constitutivos.
Mais: diante da idéia de que culpabilidade é sinônimo de
reprovação, a mesma desaparece quando a conduta ilícita não é censurável, por
qualquer razão que seja.
Assim, e considerando-se a exigibilidade de conduta
diversa como elemento da culpabilidade, quando tal exigência desaparece em
determinado comportamento, não subsiste a censura, já que sobre a ação ou
omissão resta um juízo negativo de reprovação.
A adotar-se tal raciocínio, conclui-se que mesmo o
legislador não tendo previsto todas as hipóteses em que é inexigível outro
comportamento, não se pode deixar de considerar o sujeito inculpável quando não
tinha capacidade de autodeterminação diante das circunstâncias fáticas
extraordinárias que se lhe apresentaram: é a inexigibilidade de outra conduta
como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
E, diante da Teoria Normativa, que retirou o dolo e a
culpa da culpabilidade e os inseriu no fato típico, tal teoria pode ser
aplicada tanto a crimes dolosos quanto culposos, já que dolo e culpa
encontram-se em patamares distintos do juízo de censura.
Além disso, desde que uma causa de aumento de pena se
configure em uma conduta autônoma, a mesma pode ser afastada se for proveniente
de uma situação que tornou imperativa ao sujeito a prática daquele
comportamento: é a inexigibilidade de ação ou omissão diversa afastando as
causas de aumento de pena.
Tendo em vista, ainda, que por se encontrar na Parte Geral
do diploma material repressivo, tal tese aplica-se a qualquer espécie de
delito, e por certo terá aplicação nos delitos contra a vida, cujo julgamento é
de competência do Tribunal do Júri, razão pela qual sua quesitação é
obrigatória, sob pena de cerceamento de defesa.
Por fim, diante dos argumentos da doutrina contrária no
sentido de que a inexigibilidade de outra conduta como causa supralegal de
isenção da pena é um instrumento de impunidade, concluiu-se não haver razão
para esse temor, uma vez que o magistrado é dotado de critérios seguros para
aferição da culpabilidade do agente, não sendo admissível que se aplique ao
agente uma punição injusta pelo simples receio de impunidade.
Notas
1. Segundo a Teoria Normativa da culpabilidade, o Tipo
Penal é composto pela conduta, pelo resultado, pelo nexo de causalidade e pela
tipicidade. Na conduta, por seu turno, encontram-se o dolo e a culpa.
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Retirado: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3163