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Arma desmuniciada e, ademais, sem
nenhuma possibilidade de sê-lo, não ostenta nenhuma potencialidade lesiva
porque não é apta para efetuar disparos.
A 1ª Turma do
Supremo Tribunal Federal (STF), desde 25 de maio de 2004, no Recurso Ordinário
em Habeas Corpus 81.057-SP, firmou posição no sentido de que arma desmuniciada
(e sem chance de ser municiada rapidamente) não constitui o crime de posse ou
porte ilegal de arma de fogo. A jurisprudência assentada pelos tribunais
brasileiros, antes, era no sentido contrário (cf.: STJ, Habeas Corpus 14.747,
Gilson Dipp, publicada no Diário de Justiça de União de 19/03/2001, p. 127).
Esse entendimento assim como os votos dos ministros Ellen Gracie e Ilmar Galvão
(no referido Recurso Ordinário em Habeas Corpus 81.057-SP) tinham como
fundamento a natureza abstrata do perigo incriminado pelo legislador.
Isso tudo perdeu
validade dentro do moderno Direito Penal, guiado pelo princípio da ofensividade
(cf. GOMES, Luiz Flávio, Princípio da ofensividade no Direito Penal, São
Paulo: RT, 2002). Todo tipo penal fundado literalmente em perigo abstrato deve
ser interpretado e adequado à visão constitucional do Direito Penal (assim:
Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso, que foram votos
vencedores).
Arma desmuniciada
e, ademais, sem nenhuma possibilidade de sê-lo, não ostenta nenhuma
potencialidade lesiva porque não é apta para efetuar disparos. O ministro
Sepúlveda Pertence, com o costumeiro acerto, foi ao cerne da questão: se a arma
está desmuniciada não conta com potencialidade lesiva, logo, não é arma de
fogo. Falta o objeto material do delito (sobre o qual recai a conduta do
agente). Arma desmuniciada é arma, porém, não é fogo. E o que a lei incrimina
(no Estatuto do Desarmamento) é a arma de fogo.
Potencialidade
lesiva não se confunde com poder de intimidação. Poder de intimidação também
têm a arma de brinquedo, a arma inapta, a arma quebrada, a arma de sabão ou
qualquer outro instrumento lesivo (real ou fictício). A criminalização da arma
de fogo, considerada em si mesma, entretanto, não tem como fundamento esse
poder de intimidação (fundado nas teorias subjetivistas, que alimentam o danoso
Präventionstrafrecht), senão a sua potencialidade lesiva concreta
(teorias objetivistas, que demarcam o Verletzstrafrecht).
A conduta, para
criar um risco proibido relevante, nos termos da incriminação contemplada no
Estatuto do Desarmamento, deve reunir duas condições: (a) danosidade efetiva da
arma, leia-se, do objeto material do delito (potencialidade lesiva concreta) e
(b) disponibilidade (possibilidade de uso imediato e segundo sua específica
finalidade). O resultado da soma dessas duas categorias (ou exigências) nos dá
a idéia exata da ofensa típica a um bem jurídico supraindividual (certo nível
de segurança coletiva) ou, mediatamente, aos bens individuais (vida,
integridade física etc.).
Não preenchem esses
dois requisitos a munição desarmada (leia-se: munição isolada, sem chance de
uso por uma arma de fogo) assim como a posse de acessórios de uma arma. Não
contam com nenhuma danosidade real. São objetos (em si mesmos considerados)
absolutamente inidôneos para configurar qualquer delito. Todas essas condutas
acham-se formalmente previstas na lei (Estatuto do Desarmamento), mas
materialmente não configuram nenhum delito. Qualquer interpretação em sentido
contrário constitui, segundo nosso juízo, grave ofensa à liberdade e ao Direito
Penal constitucionalmente enfocado.
*Luiz
Flávio Gomes é Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da
Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Consultor
e Parecerista e Diretor-Presidente da TV Educativa IELF (1ª TV Jurídica da
América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo
país – www.ielf.com.br).
Retirado de: http://cartamaior.uol.com.br/cartamaior.asp?id=1183&coluna=jurisprudencia