A prestação de (des)serviço à comunidade nos delitos ambientais.

Autor: Alexandre Lima Raslan. Promotor de Justiça em Campo Grande, MS.

A PRESTAÇÃO DE (DES)SERVIÇO À COMUNIDADE
NOS DELITOS AMBIENTAIS

Sobre o autor: ALEXANDRE LIMA RASLAN
Promotor de Justiça
Especialista em Direito Processual Penal e em Direito Civil-Interesses Difusos
Titular da 34ª Promotoria de Justiça de Campo Grande
Promotoria de Justiça Ambiental Móvel

A PRESTAÇÃO DE (DES)SERVIÇO À COMUNIDADE
NOS DELITOS AMBIENTAIS*

1. Introdução

Não é original, nem desautorizado, dizer que a produção legislativa no Brasil é assombrosa, o que pode ser explicado, pelo perfil não consuetudinário de nosso sistema jurídico. Mesmo assim, diante de inúmeras normas, algumas revolucionárias como o Código de Defesa do Consumidor, o cidadão pouco afeto ao trato de questões jurídicas não está livre de ser alvejado por ilegalidades e arbitrariedades praticadas por quem tem a obrigação – ao menos técnica – de conhecer as leis e, sobretudo, bem aplicá-las.
De igual forma, pode ser dito que a criatividade brasileira deixou de ser atributo tão somente dos que se valem do senso comum para driblar dificuldades cotidianas, ou até mesmo de segmentos empresariais na busca de sucesso em seus empreendimentos.
A evolução normativa brasileira, quantitativa ou qualitativa, sofre influência direta desta criatividade que, aos poucos, parece querer avançar sobre algumas conquistas advindas desta própria evolução, em verdadeira autofagia, corroendo silenciosamente direitos e garantias individuais.
Um exemplo claro disso é o da desobediência àquilo que determina a Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) quanto à prestação de serviço à comunidade, que na exegese restritiva do art. 9º reza que “a prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição ao condenado de tarefas gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação e, no caso de dano da coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível”.
Não raro, infelizmente, as prestações de serviço à comunidade se revestem de caráter nitidamente diverso, passando o infrator, inclusive o poluidor ambiental, da posição de sujeito passivo para a de provedor de bens de uso durável (microcomputadores, impressoras etc.) ou na doação de recursos financeiros destinados aos Poderes Executivo e Judiciário, além do Ministério Público e da Defensoria Pública, sendo que todos têm previsão orçamentária fixada em lei.

2. Caso concreto

Exemplo do apontado desalento é o contido processo que tramitou pelo Juizado Especial Criminal da Comarca de Maracaju-MS, tendo como fato sob apuração aquele descrito no parágrafo único do art. 46 da Lei n. 9.605/98, objeto de pedido de audiência preliminar, nos termos da Lei n. 9.099/95.
No momento da propositura do pedido de audiência preliminar o Ministério Público, através do Promotor de Justiça Maracaju-MS, requereu: a) fosse deprecada a realização da transação penal prevista na Lei n. 9.605/98, com as limitações cogentes do art. 8º e seguintes; b) fosse avaliado o produto vegetal apreendido para ao fins do art. 25, § 2º, da Lei n. 9.605/98.
Em seguida, foi expedida carta precatória para a comarca e Juízo deprecados , tendo: a) a audiência preliminar sido realizada com o oferecimento de proposta de transação; b) aceita a proposta, os autores do fato cumpriram o que foi transacionado.
Merece transcrição a sentença que homologou a transação, constante de termo de assentada elaborada pelo Juízo deprecado:“DECISÃO: Acolhe-se a transação efetuada pelas partes, para que produza seus jurídicos e legais efeitos, determinando prestação de serviços à comunidade, pelo prazo de 90 (noventa) dias, para os dois infratores, junto à Igreja Católica Matriz, desta localidade, por (01) uma hora diária, no máximo (07) sete horas semanais. Os serviços compreendem os de limpeza e participação nos cultos religiosos. Deverão entregar, mensalmente, na Secretaria do JEAPC, comprovante do cumprimento da obrigação. Os infratores foram advertidos quanto ao descumprimento da obrigação. Faculta-se aos infratores a substituição da prestação de serviços à comunidade pela doação da importância de R$200,00 (duzentos reais), para cada um, em duas parcelas iguais, de R$100,00 (cem reais) cada, a primeira a vencer no dia 01.09.00 e a segunda e última, dia 02.10.00. A importância deverá serr entregue na Secretaria do Fórum e será destinada à reforma da 1ª e 2ª Varas deste Juízo. Com o pagamento, fica extinta a punibilidade, devendo ser devolvida a deprecata....”.
Não se duvide que esta decisão jurídica, que pode ser equiparada a uma Quimera, monstro mitológico formado por cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão, de surrealismo que causaria desconforto ao escritor francês André Breton, é inacreditável produto das intervenções de um Juiz de Direito, de um Promotor de Justiça e de um Defensor Público.
A negligência revelada neste ato processual desnuda o desprezo com que os técnicos do Direito trataram a questão, sem se falar na inegável ausência ética que, com certeza, tem justificativa na satisfação de interesses não comunitários, tudo isso resultando na conclusão de que o cidadão, deveras desprotegido na eficiente defesa de seus direitos e garantias individuais, pode estar sendo subjugado diariamente por quem deveria livrá-lo da opressão ilegal, por mínima que seja.

3. Ofensas à Constituição Federal

A decisão examinada, com meridional clareza, arrepiou comezinhos princípios constitucionais insculpidos no art. 5º da Constituição Federal, tais como, por exemplo, o da legalidade (inc. II), o da liberdade de crença (inc. VI), o da cominação prévia da pena (inc. XXXIV) e o do Juiz Natural (inc. LIII). Vejamos.

3.1. Juiz Natural

Merece a primeira observação a ofensa ao princípio do Juiz Natural. A dicção constitucional a respeito desta garantia está inscrita no inc. LIII do art. 5º da Constituição Federal, onde “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Esse dispositivo não comporta exceção de qualquer espécie, sendo seu conteúdo uma das mais importantes garantias do Estado Democrático de Direito.
No processo penal, segundo a doutrina, a incompetência absoluta e a incompetência relativa podem ser reconhecidas e invocadas de ofício pela autoridade judiciária (o que não ocorre no cível), em razão de que o interesse público na busca da satisfação do princípio da verdade real se sobrepõe ao interesse das partes (acusação ou defesa), nos moldes da regra geral do art. 70, do Código de Processo Penal (local da consumação do delito), segundo ADA PELLEGRINI GRINOVER et alii .
Excepcionando a regra geral, dita o art. 63 da Lei n. 9.099/95 que “a competência do Juizado será determinada pelo lugar em que foi praticada a infração penal”.
No caso da decisão em exame, o crime ambiental respectivo tem natureza permanente e foi praticado pelos autores do fato em Maracaju-MS, tanto é que se deprecou, exclusivamente, a proposta de transação.
Pelas imposições constitucionais e infraconstitucionais a respeito do tema competência, sempre recordando que o Direito Processual é matéria de Direito Público, insta dizer acerca da inadmissibilidade da opção por hipóteses diversas daquelas previstas expressamente, sendo o desrespeito àquelas causa de inexistência do processo (atos decisórios ou não) e a estas apenas dos atos decisórios.
O presente caso padece, portanto, não de desrespeito às competências constitucionais, mas, sim, e no mínimo, de arrepio às regras de competência infraconstitucionais. Nulos, portanto, os atos decisórios, notadamente a homologação da transação e a sentença que extinguiu a punibilidade dos autores do fato.
Deveria o juízo deprecado, por ser absolutamente incompetente e por não estar autorizado a homologar a transação ou extinguir a punibilidade dos autores do fato, remeter a deprecata para o juízo deprecante para a homologação ou não, sendo que somente depois da homologação por essa autoridade judiciária – competente – é que poderia ser exigido o cumprimento do pactuado, ficando a extinção da punibilidade condicionada ao adimplemento.
A informalidade que incrementa os Juizados Especiais Criminais não tem o condão de fundir jurisdições e de subverter a ordem estabelecida pelo Código de Processo Penal, posto que quando aplicado subsidiariamente não autoriza mitigação das regras de competência.
A confirmar as afirmações acima, invoca-se a lição de ADA PELLEGRINI GRINOVER et alii no sentido de que “a lei não estabeleceu todas as regras de competência do Juizado Especial Criminal, devendo por isso, naquilo que ela não regula, ser observadas as disposições constantes do Código de Processo Penal (arts. 69 a 91), que têm aplicação subsidiária segundo o art. 92. [...]. A lei inovou. Segundo o Código de Processo Penal (art. 70, caput), a competência é, de regra, determinada pelo lugar em que a infração se consumou. Aqui, não. A competência de foro será estabelecida pelo lugar em que for praticada a infração penal, ou seja, onde esgotados todos os meios ao alcance do autor do fato, independentemente do lugar em que venha a ocorrer o resultado”.
A reforçar a tese da incompetência do Juízo deprecado no caso em estudo, coleciona-se o julgamento do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, no Conflito de Competência n. 17.193-SP, que teve como relator o Min. Vicente Leal, onde figura como Suscitante o Juízo de Direito do Setor de Unificação de Cartas Precatórias Criminais de São Paulo-SP e como Suscitado o Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Pequenas Causas de Corumbá-MS, onde decidiu-se: “CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CARTA PRECATÓRIA. LIMITES. DELEGAÇÃO DE JURISDIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. - O exercício da jurisdição é indelegável, sob pena de quebra do princípio do Juízo Natural, em razão do que é de se conceber que o conteúdo da carta precatória deve restringir-se à comunicação dos atos processuais ou ao cumprimento de ordem judicial, afastada a possibilidade de deprecação de provisão judicial a ser decidida pelo Juízo deprecado. - Conflito conhecido. Competência do Juizado Especial Criminal de Corumbá, o suscitado”.
E para que não paire dúvidas sobre importância do respeito à competência e ao Juiz Natural, sobretudo para a emissão de decisões em sede de cartas precatórias, examine-se o Conflito de Competência n. 30.254-MS, relatado pelo Min. Barros Monteiro, onde a Segunda Seção do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA decidiu que “o Juízo Deprecado não é o da causa, mas mero executor dos atos deprecados. A defesa oposta ao cumprimento da diligência deve ser apreciada, em sua oportunidade e merecimento, pelo Juízo Deprecante. Precedentes”.
Portanto, examinando as normas postas, vê-se claramente que a decisão que homologou a transação e a sentença que extinguiu a punibilidade são nulas por terem sido proferidas por autoridade judiciária absolutamente incompetente.
De outra parte, sendo indelegável o exercício da jurisdição, obviedade ratificada nos julgamentos acima referidos, deveria o Juízo deprecado, nesta ordem: a) proceder às intimações dos autores do fato para a audiência preliminar onde seria feita a proposta de transação; b) aceita a proposta de transação, a carta deveria retornar para o Juízo deprecante (Juízo Natural constitucional) para a homologação; c) depois de homologada a transação, retornaria a carta precatória para o Juízo deprecado para a fiscalização do cumprimento; d) escoado o prazo para cumprimento da prestação objeto da transação, cumprida ou não, deveriam os autos retornar para o Juízo deprecante para extinguir a punibilidade ou encaminhamento dos autos ao Promotor de Justiça atuante no Juízo deprecante (Promotor Natural constitucional) para ajuizamento de denúncia, eventualmente.
Agindo nos moldes do parágrafo anterior, estar-se-á respeitando a indisponível garantia do Juiz Natural que, segundo decidiu SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL na Reclamação n. 1.861-0/MA, relatada pelo Min. Celso de Mello, “o respeito ao princípio do juiz natural – que se impõe à observância dos órgãos do Poder Judiciário – traduz indisponível garantia constitucional outorgada a qualquer acusado, em sede penal”.
Pode-se argumentar sobre a informalidade dos Juizados Especiais Criminais, pode-se dizer que a seqüência acima é puro preciosismo, mas não se pode dizer que o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA esteja equivocado, pois, como se pode ver do teor julgado, o Juízo deprecante era justamente um Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de “Pequenas Causas” – e, atente-se – de Corumbá-MS.

3.2. O princípio da legalidade e o da cominação prévia da pena (incs. II e XXXIV)

Diz o art. 9º da Lei n. 9.605/98, sobre a prestação de serviço à comunidade: “A prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição ao condenado de tarefas gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso de dano da coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível”.
Vê-se, portanto, que o disposto na assentada homologada pelo Juízo deprecado como prestação de serviço à comunidade não se encaixa no que deseja e compulsoriamente impõe a Lei n. 9.605/98.
A Lei n. 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais, é lei especial quando contraposta aos Códigos Penal e de Processo Penal, para os casos de sua competência, e isto não se discute.
Pelos mesmos fundamentos, a Lei n. 9.605/98 deve ser considerada lei especial não somente quando contrastada com o Código Penal e o Código de Processo Penal, mas, também, em relação à Lei n. 9.099/95, precisamente porque restringe, de modo especialíssimo, o conteúdo das penas restritivas de direitos previstas no seu art. 9º.
A reforçar este entendimento, é de se notar que no rol do art. 8º da Lei n. 9.605/98 existem penas restritivas que não estão previstas no Código Penal, na Lei n. 9.099/95 ou em qualquer outra.
Sem dificuldade, então, a especialidade da Lei dos Crimes Ambientais, que pode ser conferida, pelos menos crédulos, nas disposições dos Capítulos IV e VIII desse Diploma.
Com base nisso, a prestação de serviços à comunidade nos casos de crimes ambientais, previstos na Lei n. 9.605/98 ou não, deve se circunscrever às hipóteses do citado art. 9º, sob pena de se ofender o princípio constitucional de que não haverá pena sem prévia cominação legal (art. 5º, inc. XXXIX).
Por mais esforço que se faça não se encontrará previsão legal que condene ou ajuste que o cidadão deva colaborar com a construção do edifício do Fórum ou na compra de equipamentos para seu funcionamento, por exemplo. Nem se invoque, por soar ridículo, que a Lei n. 9.605/98 permitiu a prestação de serviços para entidades públicas sem qualquer especificidade, mas, ao contrário, expressamente diz parques e jardins públicos etc.
De sabença obrigatória que o devido processo legal não se finda com a sentença, mas, sim, estende-se até o fim da execução da pena, abrangendo o procedimento e o conteúdo da sanção.
Sobre o tema da garantia da legalidade na execução da pena vale acrescentar a estas razões a lição de ROGÉRIO LAURIA TUCCI , que diz: “E, como explicitado por RENE ARIEL DOTTI, a estrita legalidade da execução penal constitui um “desdobramento lógico” do postulado da “anterioridade dos delitos e das penas, tão caro às tradições democráticas do Direito Penal liberal”. [...] Essa, enfim, é a orientação expressamente adotada pela Lei de Execução Penal editada em 11 de julho de 1984, cuja Exposição de Motivos expressa, in n. 19, verbis: “O princípio da legalidade domina o corpo e o espírito do Projeto, de forma a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal”.
Adiante, imediatamente, especificando ainda mais, consagra o referido autor : “MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, após relembrar, com MONTESQUIEU, que “a liberdade é o espírito de fazer tudo aquilo que as leis permitem”, analisa o inc. II do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), expressando, verbis: “Se é reservado à lei determinar que se faça ou que não se faça alguma coisa, forçoso é reconhecer que os próprios poderes do Estado somente podem atuar dentro do campo estabelecido pela lei e segundo seus ditames. A Administração Pública e os órgãos jurisdicionais hão de aplicar a lei, o que significa que sua função vai, essencialmente, resumir-se em transformar em comandos individuais as ordens genéricas da lei, do legislador. Assim, Executivo e Judiciário não podem criar obrigações novas nem reconhecer direitos novos. Sua ação se limita ao cumprimento da lei”.
Desta forma, a entrega de pecúnia em favor do Poder Judiciário, no caso específico para a reforma do prédio do Fórum, se trata de uma ilegalidade quando testada frontalmente com a Constituição Federal e com a Lei n. 9.099/95 ou com a Lei n. 9.605/98, conforme demonstrado.
Mais do que ilegal, é metailegal, em razão de que o Poder Judiciário recebe repasses constitucionais do Poder Executivo, além de incrementar suas receitas com Lei Estadual instituidora do FUNJECC – Fundo Especial para Instalação, Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, instituído pela Lei n. 1.071/90, que em seu art. 102, diz: “Art. 102. Fica instituído o Fundo Especial para o Desenvolvimento e o Aperfeiçoamento das Atividades dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, destinado a centralizar recursos relacionados com a instalação, o funcionamento e o aperfeiçoamento de pessoal, das atividades dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais e da Escola Superior da Magistratura, inclusive para treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, com equipamentos e materiais permanentes de qualquer órgão do Poder Judiciário, com a construção, reconstrução, remodelação e reforma dos edifícios de Fórum das comarcas do Estado, além de outros próprios destinados a atividades forenses, bem como despesas de capital e custeio, com exceção da folha de pagamentos de pessoal e seus encargos”.
A ilustrar a desnecessidade de se arrecadar de forma diversa da prevista na Lei n. 1.071/90, confira-se o valor arrecadado pelo FUNJECC no mês de dezembro de 2000: total no Estado de MS – R$629.693,65; comarca deprecada, aproximadamente R$11.000,00 .
Não há dúvidas, então, que a prestação de serviço à comunidade consistente em doação de bens ou valores para o Poder Judiciário – o mesmo podendo se dizer do Legislativo, Executivo, Ministério Público e Defensoria Pública – é absolutamente ilegal, configurando-se em invenção das mais odiosas, e porque não dizer de modalidade expropriante sem previsão legal, de nítido contorno confiscatório.
Sobre a possibilidade do Poder Judiciário ser beneficiário de prestações de serviço à comunidade o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA decidiu, recentemente, no Habeas corpus n. 17.142-PE, julgado em 20.11.2001, que teve como relator o Min. Fernando Gonçalves, que: “HABEAS CORPUS. PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE. PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. AUDIÊNCIA ADMONITÓRIA. CONDIÇÕES. ENTIDADES BENEFICIÁRIAS. 1 – O Poder Judiciário não pode ser destinatário de pena de prestação pecuniária prevista no art. 45, parágrafo 1º do Código Penal. 2 – Nos termos do art. 46, parágrafo 2º, a pena de prestação de serviço à comunidade dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais. 3 – O horário de cumprimento da pena de prestação de serviços à comunidade deverá ser fixado de forma a não prejudicar a atividade profissional do condenado. 4 – Ordem concedida”.
No caso acima exposto, a concessão da ordem de habeas corpus livrou o paciente do constrangimento ilegal consistente em: a) prestar serviços pessoalmente, a cada quinze dias, no edifício do Fórum; b) adquirir e depositar no Fórum material de construção para edificação de banheiros públicos nesse local; c) adquirir e doar para uma das Varas Judiciais uma impressora laser.
Conforme leciona FERNANDO CAPEZ , “o Poder Judiciário não pode ser o destinatário da prestação, pois apesar de ter destinação social, não é entidade”.
Cabe dizer: não se pode, a qualquer pretexto, onerar o cidadão, ainda que infrator, com parcela complementar de responsabilidade exclusiva dos agentes públicos no gerenciar e aplicar os recursos legalmente arrecadados .
E, mais especialmente, diga-se que pelo prisma da Lei n. 9.605/98, a priori, nem mesmo as entidades do § 2º, do art. 46, do Código Penal podem ser beneficiadas, devendo ser prestigiadas as atividades imperativamente previstas e restritas ao ansiado pelo art. 9º da Leis dos Crimes Ambientais.

3.3. A liberdade de crença (inc. VI)

Outra violência que anima a decisão em exame é a obrigatoriedade de freqüência em culto religioso da Igreja Católica. Teratologia como esta não mais tem lugar na sociedade brasileira, não somente pela dicção constitucional, mas, sobretudo, por características culturais que resultaram em miscigenação de raças e credos que não pode ser ignorada.
A garantia de exercício livre de qualquer crença religiosa não admite exceção, revestindo-se, portanto, de caráter absoluto.
Não foi inovação da Constituição Federal de 1988 a liberdade de crença, posto que já na Constituição Federal anterior, no art. 153, § 5º, “obrigar alguém, ainda mesmo que seja condenado, a prestar serviços ou permanecer em algum templo religioso, seja espírita, católico, protestante ou outro qualquer, é manifestamente inconstitucional”, havendo reprovação da jurisprudência : “PENA – Restrição de direitos – Prestação de serviços à comunidade – Realização de tarefas junto a templo religioso – Inadmissibilidade – Determinação manifestamente inconstitucional – Ofensa à garantia constitucional da liberdade de prestar culto – substituição determinada – Inteligência do art. 46 do CP e aplicação do art. 153, § 5º, da CF. Prestação de serviços à comunidade. Templo religioso. Inconstitucionalidade. Ainda que provada a culpa e condenado o réu, ao juiz não é permitido obrigá-lo a prestar serviços em templo religioso, sendo tal determinação manifestamente inconstitucional, pois a liberdade de prestar culto é garantia individual assegurada pela CF em seu art. 153, § 5º”.
Sem dificuldade, portanto, se constata que a decisão em exame expedida pelo Juízo deprecado é inconstitucional e, por ser assim, intolerável.

4. Conclusões

A primeira das conclusões vem ratificar o incondicional respeito ao princípio constitucional do Juiz Natural. Sendo o Juízo natural para o processo e julgamento das infrações de menor potencial ofensivo o do local onde foi praticada – cometida – a infração, nas hipóteses em que se depreque a realização de audiência preliminar, por exemplo, nenhum ato decisório deve ser proferido pelo Juízo deprecado em razão de sua absoluta incompetência, nos termos do art. 63 da Lei n. 9.099/95.
A segunda conclusão respeita ao art. 9º da Lei n. 9.605/98 que, sem dúvidas, restringe a amplitude das prestações de serviços à comunidade relativas aos delitos ambientais, determinando que sejam atribuídas ao agente tarefas gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso de dano da coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível. Este artigo delimita e vincula a aplicação da sanção, consoante o princípio constitucional da legalidade e da cominação prévia da pena. Assim, soam arbitrárias e ilegais as propostas e inconstitucionais as homologações judiciais que imponham, não somente no âmbito da Lei n. 9.605/98, prestações de serviços que beneficiem os Poderes Judiciário, Executivo (administração direta ou indireta) e Legislativo, o Ministério Público e a Defensoria Pública, uma vez que, além de não se enquadrarem na exegese do art. 46, § 2º, do Código Penal, possuem previsão orçamentária e receita próprias.
A terceira conclusão atenta para a reafirmação constitucional da liberdade de crença, garantia presente, inclusive, na Constituição Federal anterior, que somente veio reforçada na Carta Maior vigente. Sem dificuldade constata-se a teratologia das indignas imposições judiciais de se prestar serviços de limpeza, por exemplo, em templo religioso, ou, ainda, de participação nos cultos. Inconstitucional, portanto, a decisão que interfira na opção de crença do cidadão.
A derradeira conclusão se liga ao fato de que não basta ser aplicar a lei para prestar eficiente serviço ao sistema de Justiça, mas, sim, que é necessário repensar diariamente o modo como fazemos, sob pena de estarmos desservindo.
“incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, tem em depósito, transporta ou guarda madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente”.
A comarca e o respectivo Juízo foram omitidos em razão da irrelevância para publicação e conclusão deste estudo. Contudo, acaso haja qualquer dúvida com relação a outros detalhes, o autor se dispõe a fornecê-los (alraslan@mp.ms.gov.br).

NOTAS


As Nulidades no Processo Penal. 6. ed.. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1997, p. 43-44.
Juizados Especiais Criminais, Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 3. ed.. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999, p. 79-81.
Boletim IBCCRIM n. 117, p. 632, Jurisprudência.
Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. São Paulo : Saraiva, p. 299-300.
Ob. cit., p. 301.
Diário da Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, n. 5426, de 15.01.2001, p. 02.
Curso de Direito Penal. São Paulo : Saraiva, vol. I, p. 358.
DOTTI, René Ariel. Penas Restritivas de Direitos. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999, p. 118.
Revista dos Tribunais n. 620, p. 353-355.