Autor: Fernando Antônio Nogueira Galvão da Rocha. Promotor de
Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
É um fato comum que a instituição do Ministério Público enfrente o
ataque daqueles que ganham a vida com infrações da ordem jurídica e com a
fragilidade de um Estado que se vê cada vez mais incapaz de oferecer respostas
adequadas à criminalidade contemporânea. Todos os dias a estratégia de
desqualificar a competência profissional, a motivação e a honra dos membros da
instituição ministerial se coloca a serviço do objetivo de evitar a realização
da planificação normativa. Segundo esta lógica, “o réu não cometeu qualquer
crime, o Promotor é que o está perseguindo e quer aparecer.” Só um magistrado
muito ingênuo para deixar aprisionar seu raciocínio por tais simplificações. Em
geral, os magistrados sabem que o trabalho do Ministério Público é tão
profissional e digno quanto o desenvolvido pela magistratura. A distinção de
tarefas não justifica valorar distintamente as instituições que as realizam.
Mas, a estratégia de distorcer a realidade e desviar o foco
das atenções pode enganar a população, já que esta não acompanha de perto as
dificuldades inerentes às relações processuais. A impossibilidade material de
produzir alguma prova ou a demora no curso do processo que leva à prescrição,
por exemplo, muitas vezes servem para formar certidões de bom comportamento.
Superar estas dificuldades faz parte da nossa profissão.
Nada a reclamar ou estranhar. É dever inerente ao nosso ministério evitar que a
sociedade seja enganada e, para tanto, não podemos permitir sejamos também
enganados por artimanhas tão evidentes. Mas, de vez em quando alguns novos
atores desse jogo de engana-esconde se revelam e causam surpresas nos demais
atores e na audiência. A indignação surge como reação natural à quebra de
expectativas. No Big Brother, como na vida real, não gostamos de falsidades e
enganações.
Como novidade na estratégia da enganação, agora surge o
discurso de que é inconstitucional a investigação criminal desenvolvida pelo
Ministério Público. De acordo com a titulação ou credibilidade atribuída a quem
o defende, aumentam ou diminuem as chance de iludir. Nesse particular, merece destaque
a manifestação articulada pelo sr. Presidente do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais - IBCCrim, que foi encaminhada a membros de tribunais
superiores, congressistas, aos meios de comunicação e, em outras palavras,
publicada no Boletim Informativo do referido instituto. Também atribui-se a
outras sete entidades científicas a autoria do manifesto. Dentre as entidades
subscritoras do documento firmado consta o Instituto de Ciências Penais – ICP -
que foi fundado em Minas Gerais e conta com a participação de muitos colegas.
Por afirmação verbal de seu presidente, Dr. Hermes Guerrero, e de um de seus
diretores, Dr. Guilherme José Ferreira, alguns dos filiados tiveram a notícia
de que o ICP não teria subscrito o manifesto. Seria mesmo estranho admitir uma
manifestação desta natureza sem um debate com os filiados, mas, como o IBCCrim
também não promoveu qualquer debate ou consulta aos filiados e o manifesto foi
produzido, todos gostaríamos de saber se a indicação do ICP no documento é
indevida ou não. Das informações prestadas informalmente pelo Sr. Presidente do
ICP somente podemos concluir que o documento não merece qualquer credibilidade.
Na ausência de uma explicação formal aos filiados do ICP, a estes restam as
alternativas de acreditar no uso indevido do nome ou no arrependimento
posterior. Em qualquer caso, o fato põe em dúvida a legitimidade da
manifestação das demais instituições. Será que também houve uso indevido do
nome? Será que seus filiados tiveram conhecimento da posição firmada e da forma
escolhida para expressar tal opinião? Da maneira como as coisas vão, nunca
saberemos.
Por outro lado, vale observar que, em sua essência, a
manifestação estimula o conflito inter-institucional acirrando os ânimos entre
Polícia e Ministério Público. O fato só prejudica uma relação que nunca se viu
tão proveitosa para a sociedade. Em numerosos casos se pôde aplaudir a
convergência de esforços que culminou com o esclarecimento de fatos socialmente
relevantes. O trabalho em conjunto propicia a produção de melhores resultados,
mas isto significa descobrir mais crimes e criminosos. A absurda tese da
inconstitucionalidade da investigação só confere lucros a criminalidade.
A simplificação das argumentações dos que defendem a nova
tese pode ser retratada nas declarações do Sr. Presidente do IBCCrim,
publicadas no Estado de Minas, no dia 15 de fevereiro do corrente ano:
“O Ministério Público fica bravo quando a gente fala isso,
mas ele só investiga casos que dão manchete em jornal. O caso do pobrezinho que
tem a filha estuprada o Ministério Público, se não sair no jornal, não
investiga.”
Considerando que tais declarações foram feitas por um Juiz
do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, suas palavras merecem
alguma reflexão. Deixando de lado a confusão entre as pessoas físicas que
exercem funções ministeriais e a instituição, bem como o preconceito
inaceitável de que todo Promotor de Justiça exerce suas funções com desvio de
finalidade, fica a dúvida: sendo o referido Sr. um Juiz criminal e tendo conhecimento
de casos concretos de omissão por parte de membros do Ministério Público que
prejudicam o exercício da ação penal não haveria para ele o dever de informar o
fato aos órgãos competentes, para a apuração das responsabilidades pertinentes
? Não tenho notícia de que houve qualquer comunicação nesse sentido. Seria
admissível que ele se omitisse em fornecer tais informações? Nesse caso, sua
conduta seria menos reprovável do que a do membro do Ministério Público omisso?
A simplificação da tese não esconde a estratégia que lhe é
subjacente. Por esta lógica, se os membros do Ministério Público somente agem
para aparecer na mídia não podem fazer uma investigação séria. Para evitar
prejuízos à sociedade, portanto, não se poderia admitir Promotor de Justiça
investigando.
Na verdade, de todos os argumentos levantados contra a
possibilidade do membro do Ministério Público reunir, em procedimento
administrativo, elementos de convicção que forneçam lastro para a denúncia só
um convence: Se investigar, vai acabar descobrindo... (e isso é justamente o
que não se quer que aconteça)
Nesse jogo do engana-esconde, fica a pergunta: esta
estratégia visa enganar a quem? Aos Ministros do Supremo Tribunal Federal que
receberam pessoalmente a manifestação? Se eles não fossem capazes de
interpretar a Constituição e pensar por si mesmos, seria até possível admitir
ser este o objetivo. Mas, acreditando que os Ministros são plenamente capazes
de decidir sem a ajuda dos universitários, o ato político da entrega da
manifestação aos Ministros possui outros objetivos. A esperada decisão do
Supremo para um caso concreto representa uma ameaça da qual o grupo que domina
o IBCCrim quer tirar proveito. E a pressão já surtiu alguns efeitos.
Um Código de Ética para o Ministério Público começa a ser
discutido e já se denuncia que esta seria uma manobra ministerial para evitar
um controle externo. A discussão sobre um Código de Ética que venha a
regulamentar o exercício de nossas atividades merece muita atenção por parte de
todos nós, da mesma forma que as iniciativas que pretendam implantar um
controle externo.
Uma regulamentação interna, que respeite o princípio
constitucional da independência funcional, pode contribuir muito para o
aprimoramento da instituição. No que diz respeito à relação com os meios de
comunicação, tal regulamentação poderia estabelecer o ponto de equilíbrio entre
o direito de informação da sociedade e a imagem do investigado/acusado. Seria
possível, também, garantir que o investigado tenha pleno acesso aos autos da
investigação, sem que isto venha comprometer seu normal desenvolvimento. Não se
pode, entretanto, admitir que ocorram restrições ao objeto da investigação e a
conclusão que cada órgão ministerial pode chegar dos elementos de convicção que
reuniu. Um Código de Ética, como forma de controle interno, não pode restringir
a independência funcional que foi conferida pela constituição aos membros do
Ministério Público para a defesa da sociedade.
A mesma preocupação deve acontecer quando se discute formas
de controle externo. Se não se pode admitir interferências no ato de julgar,
também não se pode limitar as atividades investigatórias e acusatórias do
Ministério Público. É necessário que, na defesa dos interesses sociais maiores,
saibamos preservar a independência que constitui a essência de nossa
instituição. Das recentes iniciativas da diretoria do IBCCrim pode-se perceber
que o controle externo que lhe interessa é aquele que pretende dizer ao
Ministério Público o que investigar e, conseqüentemente, quem acusar. Das
palavras de seu presidente, percebe-se a clara intenção de impedir a
investigação que incomoda os poderosos. A investida política do IBCCrim ainda
nos oferece outro alerta: um órgão de controle externo deve possuir
legitimidade para exercer sua atividade fiscalizatória. Não se pode admitir que
o órgão fiscalizador do Ministério Público seja dirigido pelos interesses
privados que são patrocinados pelos grandes escritórios de advocacia.
Temos a obrigação de enfrentar todas as formas de
articulação que defendam a democracia do mais forte, que vistam o lobo com a
pele de cordeiro (ainda que travestido de científico) para preservar
convenientes desigualdades materiais. Por isso, não podemos nos furtar aos
debates sobre um Código de Ética ou o controle externo.
*Fernando Antônio Nogueira Galvão da Rocha
Promotor de Justiça
Belo Horizonte (MG)