® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdade
fundamentais:
linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira
SUMÁRIO: Introdução – 1. Bem Jurídico-penal – 1.1.
Evolução – 2. Bem Jurídico e Princípios do Direito Penal – 2.1. Fragmentaridade
do Direito Penal – 2.2. Subsidiariedade do Direito Penal – 3. Bem Jurídico e
Constituição – 3.1. Bases Filosóficas da Lei Fundamental – 3.1.1. O Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana – 3.1.2. A Tolerância – 3.1.3. Liberdades
Fundamentais – 4. Constituição e Direito Penal – 5. Proteção Penal dos Direitos
e Liberdades Fundamentais – 5.1. Paradigmas Penais – 6. Situação Penal
Brasileira – 6.1. Lei dos Crimes de Preconceito de Raça ou de Cor – 6.2.
Modalidade Especial de Injúria – Conclusão.
Resumo: A constante (re)definição do direito penal
no prosseguimento da pax publica, invariavelmente condicionada a duas
esferas que se entrecortam – a do ethos e a do chronos – põe em
relevo o problema de sua eficácia para a proteção do direito à diferença, ou,
num sentido mais amplo e consentâneo com os princípios fundamentais que nos
regem, para a proteção das liberdades e direitos fundamentais. A tentativa de
resposta que se propõe, passa pela consulta à Lei Fundamental e aos princípios
filosóficos nela contidos.
Palavras-chave: direito penal – dogmática penal –
bens jurídicos – dignidade penal e carência de tutela penal – constituição –
princípios fundamentais – direitos e liberdades fundamentais – função do
direito penal.
Introdução
Uma das verdades de difícil aceitação pelo brasileiro é a
referida à existência de atos discriminatórios contra as chamadas minorias
sociais. Trata-se de fenômenos isolados, que não chegam a avultar nos
noticiários, longe, portanto, de constituírem-se em pathos social, como
ocorre nos Estados Unidos da América e em diversos países europeus
(paradoxalmente defensores do direito à diferença e da dignidade da pessoa
humana, como é o caso da Alemanha). Mas não podem ser simplesmente
desconsiderados, como o fez Gilberto Freyre, sob o argumento de que o caráter
brasileiro, formado a partir de uma propensão dos colonizadores portugueses à
miscibilidade, é aberto e de marcante tolerância (1). Aliás, o
próprio sociólogo pernambucano oferece-nos inúmeros indícios de que, se não
assimilamos condutas racistas, ao menos carregamos fortes hábitos
preconceituosos (2). E que, mesmo passados quase setenta anos do
aparecimento de sua Casa Grande & Senzala, são facilmente
perceptíveis (3).
É em razão dessa realidade, que conflitua com a pretensão
nacional de concretização de um Estado-de-direito-material numa base de valores
axiológico-democráticos (vocacionado para o respeito à dignidade da pessoa
humana, à qual vão ínsitos os princípios de igualdade e universalidade –
formando um sistema de princípios fundamentais que pretende o respeito à
condição humana, de cada indivíduo e de todos os homens), que se não pode
deixar o tema fora do alcance do sistema jurídico. E o nosso constituinte,
imbuído daquela pretensão, percebeu muito bem a necessidade de fundamentar
nosso corpus jurídico no respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III, da CR) (4). E a modo de estruturar um sistema coerente de
direitos fundamentais, sujeitou-os aos princípios da igualdade e da universalidade
(art. 5º, caput, da CR), reforçando os objetivos nacionais de promoção
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (art. 3º, IV, da CR). Dentro desta concepção de
valores ontológico-axiológicos, é de suporem-se vedados os comportamentos que
ultrapassam os níveis de tolerância, ganhando status de discriminação.
Este arcabouço filosófico da nossa Lei Fundamental, e que
só por si determina sejam repelidos os atos discriminatórios, é, no entanto,
reforçado por direitos fundamentais, que se inserem no sistema de
aplicabilidade imediata (§ 1º, do art. 5º, da CR). Ou seja, são direitos e
garantias fundamentais que, originando-se de uma esfera axiológica, gozam de um
estatuto proeminente em relação aos demais direitos constitucionais (5).
É nesta categorização que entra a inviolabilidade de crença (inc. VI, do art.
5º, da CR) e da honra (inc. X, do art. 5º, da CR). Além de que a Lei
Fundamental expressamente salvaguarda o cidadão das discriminações por motivo
de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política (inc. VIII, do art.
5º, da CR). Por fim, reserva um tratamento especial para prática de racismo,
que se "constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei (6).
Do que foi dito, avulta desde logo a constatação de que a
Lei Fundamental categoriza como sendo crime a prática de racismo. Mas silencia
quanto às demais formas de discriminação. Ou seja, deixa de vincular o
legislador infraconstitucional à criminalização de outras condutas que não
sejam as referidas ao racismo. E é neste ponto que se situa a zona problemática
desde o início por nós proposta. Traduzindo-a de forma mais explícita: estará o
legislador autorizado a determinar punição para as condutas preconceituosas de
origem, sexo, idade ou de qualquer outra diferença pessoal e que,
indiscutivelmente, afetam a dignidade da pessoa humana? É possível
identificar-se naquelas condutas agressão a bem jurídico que careça de proteção
penal? Em que medida será legítima a intervenção penal, como ultima ratio
do sistema jurídico, para solucionar os conflitos sociais decorrentes das
condutas de discriminação?
1. Bem Jurídico-penal
Numa primeira aproximação ao problema resultante da tensão
entre as ordens jurídicas constitucional e penal, parece-nos indispensável uma
incursão, mesmo que breve, ao conceito de bem jurídico (7). Afinal,
este conceito servirá de critério de delimitação da atividade estatal de
legislação em matéria penal. No dizer de Costa Andrade, seu surgimento na
dogmática penal "corresponde a uma viragem no sentido de positivização,
normativização e subjectivização sistémico-social do objecto da infracção"
(8). Rematamos nós dizendo que o bem jurídico se insere na concepção
moderna de direito penal (9).
1.1. Evolução
Como é sabido, num primeiro estágio civilizacional,
predominava o relacionamento de punição à vingança de sangue (Blutrache)
do direito germânico, que autorizava à tribo ofendida o revide de um mal
praticado por outra tribo. Havia um pendor eminente de perseguição punitiva
privada, já que inexistia naquelas organizações comunitárias um órgão com a
função específica.
Mais tarde, a centralização do poder durante o Ancien
Régime absolutista, determinou o aparecimento de uma verdadeira espécie de
vingança institucionalizada: o soberano exercia o direito de punir sob o escopo
de garantir a pax publica, mas não no sentido hobbesiano, posto que os
excessos e a invariável falta de segurança dos súditos constituíam-se a regra.
Contra este estado de coisas opõem-se os ideais do
iluminismo setecentista surgidos na Europa, que vêm propiciar a derrocado do Ancien
Régime, e, por conseqüência, propiciam elementos para o surgimento do
direito penal, tal como visto nos dias de hoje, como uma ciência normativa.
Além dos referenciais humanistas, avultam, a partir de Beccaria, a concepção
utilitarista e o fim de prevenção geral: o direito penal intervirá como meio
formal de solução de conflitos sociais e definirá a margem de liberdade dos
integrantes da sociedade. É em razão disto que o legalismo – coerentemente
concebido pela Intelligentsia iluminista como forma de salvaguarda das
liberdades em face às atividades estatais – ganha projeção. Ou seja, o direito
penal (moderno) passa pelo processo de positivização legal.
É bem verdade que o ideário iluminista não determinou a
configuração definitiva do direito penal. No entanto, os marcantes influxos do
liberalismo repercutiram nas obras de um Mill ou de um Bentham, e, mais tarde,
nas posições tomadas por Feuerbach. De forma que este, escoimando do direito
penal as intervenções pertencentes ao estrito âmbito da moral (10),
referiu que o crime é uma violação a um direito subjetivo do cidadão ou do
Estado. Assim, "O objeto de proteção [do direito penal], integrado por uma
faculdade jurídica privada ou uma atribuição externa e individual constitutivas
de direito subjetivo, representa o núcleo essencial do fato punível, sobre o
qual se deve configurar o conceito jurídico de delito" (11).
Por outras palavras, o direito penal tinha por escopo a proteção dos direitos
individuais, tornando-se um instrumento eficaz para garantir a liberdade
pessoal (12).
A tentativa de construção do conceito material de delito
só ganhou melhor impulso a partir das noções de bem jurídico introduzidas por
Birnbaum (13). O autor, filiando-se à escola histórica, admite como
dignos de perseguição penal aqueles bens identificados pelas observações
empírico-naturalistas. Por outras palavras, passam a ter interesse para o
direito penal os direitos pré-jurídicos. Além do mais, a posição de Birnbaum
rompe com os postulados individualistas de Feuerbach, visando a construção de
um sistema teleológico-social de direito penal, voltado para a preservação de
valores sociais. Sua teoria preconiza, portanto, a proteção de bens
transindividuais.
Foi Binding quem, na sua Die Normen, empregou o
termo bem jurídico (Rechtsgut). Mas já com vincado positivismo, pois,
"Para o autor, o bem digno de proteção legal depende do juízo de valor
estabelecido pelo legislador. É este quem elegerá a atuação protetiva do
Direito Penal sobre determinado bem ou interesse" (14). Por
outras palavras, é o legislador que deverá determinar o objeto do direito
penal, gozando de ampla liberdade de opções. Mas, para evitar as arbitrariedades,
o sistema bindinguiano condicionou o trabalho do legislador na necessária
identificação de uma carga de danosidade social que deve estar ínsita nas
condutas perseguidas. Ou seja, para Binding "O bem jurídico é protegido
sempre em nome da totalidade, por mais individual que seja, isto é, ele deve
ter representação e valor para a sociedade" (15).
É igualmente importante para o entendimento do conceito de
bem jurídico a formulação de von Liszt. Este autor discrepará da teoria de
Binding ao apelar não para o positivismo extremado, mas para a localização dos
bens dignos de proteção penal numa fase pré-jurídica. Ou seja, antes de o
legislador dedicar proteção a certos bens, será o homem integrado à sociedade
quem selecionará seus valores mais representativos. De forma que os bens
jurídicos aí identificados, serão "(...) criações da própria vida, que o
direito encontra e a que assegura protecção jurídica" (16). Mas
como na concepção de Binding, von Liszt apóia sua teoria na necessidade de o
bem jurídico ter uma representação de danosidade social. De forma que sua
proteção pelo direito penal visará a preservação de valores essenciais para a
sociedade. Os demais, sujeitar-se-ão a meios menos gravosos de solução de
conflitos instituídos pela política social. Por outras palavras, ao direito
penal restará a condição de ultima ratio do ordenamento jurídico,
intervindo subsidiariamente em relação aos meios menos gravosos de solução dos
conflitos.
Deste panorama, já podemos divisar como ponto fulcral do
conceito de bem jurídico uma sua vinculação com a preservação dos valores mais
representativos para a sociedade. E, com Eduardo Correia, é possível dizer que
os bens jurídicos "São, pois, conceitos do plano normativo que, de modo
algum, se podem confundir com interesses ou bens dos indivíduos singulares,
materiais ou morais, que daqueles são apenas um possível substracto, apenas
seus possíveis portadores noutro plano" (17). Constituem-se, no
atual estágio da dogmática penal, em referencial para as políticas criminais,
ostentando a função de limitador do direito de punir do Estado (18).
Foi nesta condição que o Projeto Alternativo do CP alemão (1969) preconizou no
seu § 2º que "As penas e as medidas de segurança servem à proteção de bens
jurídicos e à reinserção social do agente na comunidade jurídica". O art.
40º do CP português também revela semelhante conteúdo programático ao dispor
que "A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de
bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".
Mas mesmo com o conhecimento dos elementos informativos do
conceito de bem jurídico, restarão indagações a respeito da identificação de
sua capacidade de legitimação penal. De outra forma expondo o problema, o que agora
se nos apresenta está referido à seleção dos bens jurídicos dignos de proteção
penal. Quais serão os valores sociais que apresentam dignidade e necessidade de
intervenção penal?
2. Bem Jurídico e Princípios do Direito Penal
Ao tratar do problema, Figueiredo Dias adverte que a noção
de bem jurídico "(...) não pôde, até o momento presente, ser determinada –
e talvez jamais o venha a ser – com uma nitidez e segurança que a permita
converter em conceito fechado e apto à subsunção, capaz de traçar, para além de
toda a dúvida possível, a fronteira entre o que legitimamente pode e não pode
ser criminalizado" (19). Em idêntico sentido vai a posição de
Roxin, para quem "Está claro que o conceito de bem jurídico não é uma
varinha mágica, com cuja ajuda se pode separar, sem mais, por meio da subsunção
e da dedução, a conduta punível da que deve permanecer impunível"
(20). O único aspecto consensual estabelecido sobre a matéria, diz
respeito à representatividade de valor social que deve conter o bem jurídico,
mesmo que a ele estejam diretamente relacionados interesses de cunho
individual. É o que ninguém contestará quando posto em relevo, v.g., a
proteção penal ao patrimônio, mediante a criminalização do furto.
Mas já outras intervenções penais, ao menos quando
analisadas segundo o padrão dos Estados ocidentais de feição democrática,
deverão ser precedidas de maior ponderação. É que o exagerado regime
legiferante pode invadir, indevidamente, determinadas áreas que devem
permanecer a salvo da atividade persecutória penal do Estado (21). O
âmbito da mera cogitationis, v.g., é um deles (22).
Daí que só se punam os atos que, ao menos, representam um começo de execução de
crime. Disso resulta a conclusão de que, não se inscrevendo o bem jurídico num
conceito fechado e preciso capaz de ser prontamente empregue pelo legislador na
tarefa de (re)definição da ordem jurídico-penal – e nem poderíamos conceber a
realização do direito penal como uma tarefa de puro pragmatismo, como se fosse
uma solução de álgebra, porque este ramo do direito integra uma vasta
constelação de valores humanísticos – haveremos de nos apegar a outros
referenciais.
2.1. Fragmentaridade do Direito Penal
A história do direito penal desenvolve-se em torno da
constante dialética sobre o papel que lhe cabe no corpus iuris duma
sociedade. E, por isso, passa por um processo de questionamentos pelo qual se
busca precisar o objeto de sua tutela que, como dito antes, não está
referenciado a uma fórmula fechada e acabada. Antes, estará sujeito às varáveis
identificadas na comunidade e em determinado tempo. Sua (re)definição estará,
assim, irremediavelmente vinculada ao ethos social e ao chronos
(23).
É óbvio que o direito penal de uma sociedade com vincado
cariz pluralista elegerá somente aqueles valores mais representativos para a
manutenção da conformação social ao estado de pax publica. Para tanto,
evitará imiscuir-se em determinadas zonas nas quais inexiste o consenso
ético-social a exigir sua intervenção. Sob pena de criar paradigmas de
comportamento que desprezam, ao menos ao nível ontológico, a esfera de
desenvolvimento da pessoa humana, já para não se falar, ao nível das concepções
do Estado-de-direito-material, de um inegável conflito com os princípios
fundamentais da igualdade e da universalidade, que regem os direitos e
liberdades individuais. Assim, v.g., o direito penal não poderá proteger
os dogmas da igreja católica em detrimento das outras orientações religiosas,
muito embora a sociedade brasileira seja formada, em sua maioria, por pessoas
que professam aquela fé. Mas, já será legítima a intervenção para proteger a
liberdade de crença religiosa, assegurando a todos a autodeterminação no âmbito
da fé religiosa.
Do que ficou dito, resta-nos a noção de que a ordem
jurídico-penal não abarcará proteção à generalidade dos interesses sociais e
bens jurídicos: ao contrário, alcançará somente aqueles mais significativos
para a sociedade. Numa palavra, o direito penal revela-se, necessariamente,
como uma ordem jurídica fragmentária (24).
2.2. Subsidiariedade do Direito Penal
O direito penal é, a todas as luzes, o meio de controle
dos conflitos sociais mais gravoso do ordenamento jurídico. Já para não nos
alongarmos nas conclusões óbvias que podem ser retiradas do exame da natureza e
conseqüências das penas (inclusive acessórias), podemos mencionar que a própria
ritualização requestada para a aplicação da lei penal, através do
processo-penal, com todas as circunstâncias de emblemático formalismo, é, em
si, um gravame pesado para o réu. Já bem antes de submeter-se à pena, o réu
sofrerá, inevitavelmente, dos estigmas conferidos pelo processo (25).
Talvez terá sido por esta razão que a escola de direito penal alemã, de longa
tradição jusracionalista, apresentou alternativas para a praxis processual
penal. Inclusive com nítido pendor desjudiciarizante expresso no "Projeto
contra o furto nas lojas" (Entwurf eines Gesetzes gegen Ladendiebsthal)
e no "Projeto de uma lei reguladora da justiça na empresa" (Entwurf
eines Gesetzes zur Regelung der Betiebsjustiz), ambos da década de 70
(26).
Já nos alvores da teoria do bem jurídico, von Liszt
entendia que "A política social actua, como meio de combate ao crime, de
um modo incomparavelmente mais profundo e mais seguro do que a pena ou qualquer
outra medida que com ela se assemelha (...) (27), desta forma
deixando implícito que há outros meios para o controle dos desvios sociais mais
eficazes que o direito penal, ao qual se recorrerá quando necessária a
aplicação de pena para garantir a ordem pública. Daqui extraindo-se seu cariz
subsidiário em relação aos demais aparelhamentos do ordenamento social e
jurídico.
Portanto, apresentando-se como a ultima ratio do
ordenamento jurídico, o direito penal passará sempre pela (re)definição de sua
necessidade para o controle dos desvios sociais. Na formulação da dogmática
penal alemã, absorvida pela escola de direito penal de Coimbra, representada
por Costa Andrade e Figueiredo Dias, as opções de política criminal de
criminalização e de descriminalização passarão pelo equacionamento de
identificação da dignidade penal (Strafwüdkeit) do bem jurídico e da
carência de tutela penal (Strafbedürftigkeit) (28). Assim,
não se contestará que a dureza do direito penal não será desproporcional, v.g.,
para a proteção do bem jurídico vida (detentor de dignidade penal),
proibindo-se o homicídio e impondo-se a ameaça de pena restritiva de liberdade,
como remédio mais forte e necessário à prevenção (revelando existir carência de
tutela penal). Já não estará livre de dúvidas a afirmação de validade do
direito penal para reagir contra o adultério, especialmente por se saber que
hoje se recorre ao direito civil ou mesmo a meios de conciliação para a solução
do problema.
3. Bem Jurídico e Constituição
Do que ficou dito, avulta a conclusão de que o bem
jurídico, só por si, não será um meio totalmente seguro para conduzir o
legislador na tarefa de realizar a política criminal, seja criminalizando, seja
descriminalizando. Melhor dizendo, as diretrizes de um direito penal voltado
para a preservação do mínimo ético-social e, pois, condicionadas a um
determinado ethos social, não terão na noção de bem jurídico uma fórmula
para pronta aplicação. Antes partirão da identificação dos valores mais caros
ao sistema social e recondutíveis ao conceito de dignidade penal, e
perscrutarão na fenomenologia a necessidade de intervenção penal, obedecendo-se
à ordem de subsidiariedade. Tal tarefa será reclamada à criminologia. Mas, sem
sombra de dúvida, poderá ser obviada pela correta exegese da Lei Fundamental. Para
Figueiredo Dias, "Logo por aqui se deve concluir que um bem jurídico
político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se encontre refletido
num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social
total e que, deste modo, se pode afirmar que "preexiste" ao
ordenamento jurídico-penal" (29). De forma que entre a ordem de
valores jurídico-constitucional e a ordem jurídica penal dos bens jurídicos
haverá uma relação de mútua referência de analogia material, "fundada numa
essencial correspondência de sentido e- do ponto de vista de sua tutela
– de fins" (30). E, mais adiante, o penalista de Coimbra
arremata seu raciocínio, afirmando que "É por esta via – e só por ela em
definitivo que os bens jurídicos se "transformam" em bens jurídicos
dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal"
(31).
A Lei Fundamental, tal como o ordenamento jurídico-penal,
é, em sua essência, fragmentária, pois abrangerá, tout court, os bens e
valores sociais de maior representação. Aqueles identificados na ordem de
valores axiológica da comunidade. E, por isso, será fonte imediata para o
legislador penal, que também norteará o ordenamento jurídico-penal por aquela
representação. Em alguns casos, há determinação constitucional expressa de
criminalização, como aquela contida no art. 5º, XLII. Mas em muitos, o
legislador infraconstitucional vai apoiar-se em autorizações implícitas de
criminalização, como ocorre, v.g., quando legisla para proteger o bem
jurídico constitucional vida (art. 5º, caput). No entanto, tal
relacionação não implicará numa situação de coincidência do âmbito protetivo
dos dois ordenamentos jurídicos, posto que o legislador penal terá uma maior
área de atuação (32). Portanto, quando tratar do bem jurídico vida,
parece-nos estar autorizado não só a protegê-lo das agressões danosas que o
sacrifiquem mas, também, normatizar as formas não naturais de procriação
(33). Isto porque, segundo entendemos, estará arrimado não só no conceito
de bem jurídico, mas também nos referenciais ontológicos que definem a Lei
Fundamental. Portanto, já bem antes de socorrer-se às matérias afins do direito
penal, como a criminologia, o legislador penal poderá consultar as bases
ontológicas-axiológicas que presidem à Lei Fundamental.
3.1. Bases Filosóficas da Lei Fundamental
O sistema constitucional brasileiro vigente rompeu com as
antigas pretensões de estabelecimento de um regime social enformado dentro dos
limites da ordem dada e diretamente vinculado ao poder político (34).
O então regime constitucional de 1969 desconsiderava a formação heterogênea da
sociedade, para promover um padrão comportamental – logicamente, mais fácil de
enquadrar-se nas linhas filosóficas revolucionárias (35). O atual,
pelo contrário, reconhece que o Brasil é formado por uma sociedade pluralista,
por isso funda "um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça" (preâmbulo da CR); reflete as
idiossincrasias nacionais ao mencionar que o povo brasileiro, apesar da
heterogeneidade, é composto de "uma sociedade fraterna", "sem
preconceitos" e "fundada na harmonia social". E para estruturar
o Estado-de-direito-material, o poder político assume uma posição
compromissória de "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art.
3º, IV da CR). Podemos dizer, à guisa de arremate, que para além de radicar os
direitos fundamentais no princípio da dignidade da pessoa humana, a nossa Lei
Fundamental potencializa dois importantes valores, que estão intrinsecamente
unidos: a liberdade e a tolerância.
3.1.1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III, da CR), apresenta um campo ontológico largo, praticamente
insusceptível de delimitação. Mas de sua noção, destacam-se, imediatamente,
dois supostos irrenunciáveis: o primeiro de que a dignidade é referida à
espécie humana, como forma de distinção do ser hominal das demais espécies. É
atributo distintivo do ser humano, de cada homem e de todos os homens e,
portanto, diretamente referenciado ao princípio da universalidade. O segundo,
parte do fato de que essa categorização especial é única para todos os homens,
ou seja, não se admitindo a taxionomia de graus de dignidade. Em uma palavra, a
dignidade da pessoa humana também se referencia com o princípio da igualdade.
Daí que, tendo sido adotado como princípio fundamental, o constituinte não
podia desprezar os dois outros princípios que nele vão implicitamente contidos,
sob pena de quebrar a unidade de sentido filosófica da Lei Fundamental.
É ela, sob estes dois aspectos que acabamos de mencionar,
coerente ao dispor os direitos e garantias fundamentais para todas as pessoas,
"sem distinção de qualquer natureza" (36). De maneira a
erigir, sob a tutela do princípio da dignidade, um sistema de direitos e
garantias que viabiliza a formação da esfera de desenvolvimento da pessoa
humana. Potencializa, enfim, a autodeterminação das pessoas, quer seja
garantindo os direitos clássicos (vida (37), liberdade e
propriedade); seja no caráter mais lato da cultura (através, v.g., das
liberdades de expressão, de religião, de convicções filosófica e política);
quer seja no sentido de propiciar o gozo, para além das liberdades clássicas do
iluminismo, da liberdade positiva de autopromoção (através, v.g., do
acesso garantido à justiça, à saúde e à educação).
Do que acabamos de expor, podemos concluir, com Jorge
Miranda, que do princípio da dignidade da pessoa humana – o princípio
fundamental que rege o sistema de direitos fundamentais – surgem cinco
diretrizes básicas:
a)
A dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e a cada uma das pessoas e é a
dignidade da pessoa individual e concreta;
b)
Cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela
mesma, e não da situação em si;
c)
O primado da pessoa é o do ser, não o do ter; a liberdade prevalece sobre a
propriedade;
d)
Só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida,
e)
A protecção da dignidade das pessoas está para além da dignidade da cidadania
portuguesa e postula uma visão universalista da atribuição dos direitos;
f)
A dignidade da pessoa pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua
autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às
outras pessoas. (38)
3.1.2. A Tolerância
As pretensões de maior envergadura da Lei Fundamental,
ligadas às relações interpessoais e dos cidadãos com o poder político,
esvaziam-se de sentido quando se lhes subtrai um marco essencial para as
sociedades pluralistas e democráticas: o da tolerância. A almejada sociedade
fraterna e solidária não passará de um plano formal, se não for orientada por
uma razão de tolerância. E o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana ficará restrito ao conceito metafísico, sem qualquer hipótese de
concretizar-se nos direitos e garantias fundamentais. Por isso, já referimos
que "Parece-nos inquestionável que esta base ontológico-axiológica que
dirige a Constituição formal só tenderá à formação do Estado de direito
material brasileiro a partir dos pressupostos da tolerância" (39).
É importante aqui destacar que o conceito de tolerância
não corresponde exatamente à negação de intolerância. Latorre Latorre entende
"(...) por tolerância a renúncia ao exercício do poder de desaprovação e
por intolerância o desprezo coativo (em sentido amplo) pela diversidade (também
em sentido amplo)". E conclui afirmando que "intolerância, pois, não
é simplesmente o lado negativo da tolerância, não é seu reverso, pois não é
mimeticamente o contrário, nem o dependente, ocupando um nível distinto"
(40). Mas aquela renúncia ao poder de desaprovação antes mencionada, não
significa dizer que a tolerância se constrói a partir da apatia social ou da
mais pura omissão. Implica, antes, em entender a diversidade comportamental e a
própria contingência heterogênea da sociedade, para que se evitem os conflitos
nocivos à pax publica. A tolerância é exercida constantemente e de forma
positiva, inclusive para corresponder à intolerância do intolerável. Melhor
explicando, a tolerância não se traduz pelo fechar de olhos a tudo que se
passa, pois ela não é um valor absoluto. A tolerância aos fenômenos de
intolerância importaria numa iniludível negação ontológica de seu conceito. A
este propósito, Garzón Valdés menciona que "(...) a tolerância não pode
ser absoluta (encontra-se limitada), pois a tolerância indiscriminada, a
tolerância pura, sem limitações, termina negando-se si mesma e em sua versão
mais radical equivaleria à eliminação de toda regulação do comportamento
humano" (41). Assim, numa sociedade plural como a nossa,
composta de várias etnias, raças e culturas, mas de maioria branca, a
neutralidade dos membros da população em relação aos atos de racismo não
corresponderia à noção de tolerância. Tal hipótese provocaria, já o dissemos
"uma paradoxal situação de tolerância do intolerável, que nos leva a uma
das seguintes conclusões: ou a permissividade geraria um caos social, com a
insurreição das minorias contra a população branca; ou a comunidade, antes
fundada no pluralismo, e nos princípios da igualdade, universalidade e
dignidade da pessoa humana, negaria através da força sua Constituição, fundando
uma nova comunidade, agora impermeável (intolerante) com relação às influências
de outras raças, etnias e culturas" (42). É por isso que
entendemos ser este postulado ôntico válido para formação de um corpus iuris,
nomeadamente na esfera do direito penal.
3.1.3. Liberdades Fundamentais
A tolerância, tanto exercida no plano vertical, nas
relações entre os cidadãos e o poder político, como a tolerância concretizada
no plano horizontal, nas relações interpessoais (e parece-nos que estes dois
níveis são indissociáveis, pois a tolerância nas relações interpessoais tenderá
a exigir uma correspondência quando estiverem em jogo os cidadãos e o poder
político) (43), potencializa as liberdades e delimita-as de acordo
com as vocações sociais.
É claro que o atual regime constitucional, no qual estão
plasmados estes referenciais ontológicos, representa uma grande viragem em
relação ao modelo tipicamente liberal inscrito na anterior Lei Fundamental. O
bem jurídico propriedade, v.g., não mais pode ser categorizado como absoluto,
devendo ser harmonizado com o conceito de função social que o constituinte,
seguindo o padrão das constituições sociais-democráticas, resolveu inserir em
sua noção. Mas as liberdades e os direitos dos clássicos continuam a orientar o
legislador infraconstitucional. E com o inegável raiz fundada nos postulados
que nos vieram com o iluminismo oitocentista. Tanto é que a liberdade se
inscreve dentro do quadro garantístico da legalidade. E não é outro o
significado que o constituinte quis dar ao enunciado de que "ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Eis, aqui, a síntese de tudo o quanto se pode imaginar sobre a liberdade – não
a liberdade natural e primitiva imaginada pelos filósofos do iluminismo, que mais
se identificava com os instintos desenfreados e tendentes a um constante estado
de guerra, mas a liberdade com um sentido, com uma ordem, delimitada pelo
bem-estar social e por aqueles valores que se tornaram, pelo consenso,
irrenunciáveis. Não se trata do direito de liberdade de tudo, mas da
liberdade para a auto-realização, com respeito à dignidade da pessoa
humana. Ou seja, a liberdade não poderá chegar aos extremos de vulnerar certos
bens jurídicos, como a vida, a honra, a liberdade física ou o patrimônio.
4. Constituição e Direito Penal
Os referenciais da Lei Fundamental para a (re)definição do
direito penal vão, como visto, muito para além dos direitos expressamente nela
contidos. A nós nos parece, acompanhando a lição de Figueiredo Dias, que o legislador
penal deverá gizar-se pelos elementos axiológicos e ontológicos plasmados na
Lei Fundamental que, afinal, representam uma determinada realidade social. De
forma que haja uma relação de congruência entre os ordenamentos jurídico-penal
e jurídico-constitucional.
Uma tal situação implicará reconhecer que o direito penal
evitará algumas intervenções que não condizem com a estrutura de sociedade
pluralista, de índole democrática e, por isso mesmo, mais tolerante e com suas
liberdades potencializadas. Omitir-se-á de curar daqueles fenômenos referidos à
moral, a ideologias políticas e religiosas e do âmbito pessoal estritamente
interno. A atuação penal será exigida ali, naquelas zonas, onde os conflitos
sociais não podem ser resolvidos por aparelhos do sistema jurídico menos
gravosos e, pois, inaptos para a preservação da pax publica. Ao
responder à pergunta sobre o que pode o legislador penal proibir, Roxin pondera
sobre a necessidade de verificar o campo de atuação atribuído ao Estado e
afirma que "Hoje, como todo poder estatal procede do povo, já não se pode
ver sua função [do direito penal] na realização de fins divinos ou
transcendentais de qualquer outro tipo". E à guisa de remate de seu
raciocínio, refere que a função do direito penal "(...) limita-se antes a
criar e assegurar a um grupo reunido no Estado, exterior e interiormente, as
condições de uma existência que satisfaça suas necessidades vitais"
(44). É em razão disso que, numa análise mais aturada, o direito penal
terá a função de promover a esfera de desenvolvimento pessoal – de todas as
pessoas, de forma a preservar uma estrutura minimamente harmoniosa de sociedade
– protegendo, v.g., a honra, a vida, a liberdade física e a propriedade.
5. Proteção Penal dos Direitos e Liberdades
Fundamentais
Com a exposição das linhas mestras do direito penal, temos
já a possibilidade de dar uma resposta à nossa problemática, que consiste em
indagar sobre a idoneidade do direito penal para preservar as pessoas das
agressões de origem discriminatória. Ora, como já adiantamos, a Lei Fundamental
determinou expressamente a criminalização da prática do racismo (art. 5º, XLII,
CR), posicionando-se coerentemente em relação aos princípios fundamentais e à
orientação filosófica nela plasmados. Mas deixa de orientar o legislador penal
com relação às outras formas de discriminação que, como sabido, são inúmeras e
capazes de vulnerar a noção que se tenha da dignidade da pessoa humana. Ecoa,
então, a indagação: estará o direito penal autorizado a intervir naqueles
conflitos referidos a atos de discriminação?
A resposta, ao nosso ver, só poderá ser afirmativa. Isto
porque a função do direito penal está para muito além de estabelecer os marcos
mais ou menos precisos da liberdade: coordenando-a com um sentido e com uma
ordem, de forma a estabelecer uma sociedade consciente de um mínimo
ético-jurídico. Sua função vincula-se, ainda, à preservação de bens jurídicos
que, grosso modo, se reconduzem à noção mais ampla da(s) liberdade(s) e
da esfera de desenvolvimento humano. E, segundo a lição Roxin, "No Estado
moderno, junto a essa proteção de bens jurídicos previamente dados, aparece a
necessidade de assegurar, se for necessário com os meios do direito penal, o
cumprimento das prestações públicas de que depende o indivíduo no âmbito da
assistência social por parte do Estado", arrematando seu ponto de vista de
que o direito penal ocupa posição de destaque entre as funções do Estado,
porque "só com a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e
garantia das prestações públicas necessárias para a existência permitem ao
cidadão o livre desenvolvimento de sua personalidade, que nossa Constituição
[alemã] considera como pressuposto de uma existência humana digna"
(45). As prestações públicas de um Estado, estruturado segundo o modelo
de welfare State, como indubitavelmente perseguiu nosso constituinte,
incluem uma ampla gama de compromissos do poder político, tendente a tornar
efetivos os direitos e garantias fundamentais que, em análise mais atenta, não
podem padecer de óbices surgidos com atos de discriminação, sob pena de
macular-se o princípio da dignidade da pessoa humana. É nesta área de conflitos
que defendemos a hipótese de intervenção penal. Por outro lado, já a um nível
mais elementar de análise, podemos dizer, à guisa de exemplo, que a partir da
noção do bem jurídico liberdade, poderá verificar-se a idoneidade do direito
penal para tutelar a liberdade de fé religiosa ou de ingresso no mercado de
trabalho, desde que outros meios do sistema social se mostrem ineficazes, também,
desta forma, assegurando a livre esfera de desenvolvimento humano.
Por outro lado, o legislador penal poderá arrimar-se na
Lei Fundamental para adotar tal política criminalizante. É que, além de
expressamente estar autorizado para reprimir as condutas de racismo, tem a
prerrogativa de lançar proteção aos direitos e liberdades fundamentais, muitos
deles intrinsecamente relacionados a bens jurídicos. A Lei Fundamental, embora
não esclareça a natureza da punição, determina-a contra "(...) qualquer discriminação
atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (art. 5º, XLI, CR).
5.1. Paradigmas Penais
A situação penal em países como a Espanha e Portugal –
cujas constituições (de 1978 e de 1976, respectivamente) seguem o modelo de welfare
State e que se plasmam a partir do princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana – já anda mais bem definida em matéria de proteção daqueles bens
jurídicos que tenham repercussão no âmbito da esfera de livre desenvolvimento
humano. O código penal espanhol de 1995, estabelece, no título XXI, "os
delitos contra a Constituição", onde vão localizar-se, no capítulo V, os
"delitos relativos ao exercício dos direitos fundamentais e liberdades
públicas e ao dever de cumprimento da prestação social substitutiva". Seus
artigos 510 a 512 (46) tratam da fenomenologia dos atos
discriminatórios, abrangendo inúmeras condutas relacionadas com o racismo,
anti-semitismo, ideologia, religião ou crenças, situação familiar, etnia,
origem nacional, sexo, orientação sexual e enfermidade ou menosvalia. De forma
que, ao nosso ver, se guiou o legislador penal daquele país pelos princípios
humanistas, promovendo a dignidade da pessoa humana e, por conseqüência, a
igualdade material, necessária à formação da esfera de livre desenvolvimento
humano.
O código penal português de 1995, de inequívoco pendor
minimalista, trata, no título III dos "crimes contra a paz e a
humanidade", dispondo o seu capítulo II sobre os "crimes contra a
humanidade". Menos abrangentes que a legislação espanhola, as disposições
penais portuguesas contidas nos arts. 239º e 240º (47), referem-se
ao genocídio, com o fim de destruir, no todo ou em parte, grupos nacionais,
étnicos, raciais ou religiosos, além de tratarem da discriminação racial.
6. Situação Penal Brasileira
Parece-nos que num país com formação populacional tão
heterogênea como o nosso, onde ingressam diferentes raças, etnias e culturas, o
tratamento jurídico-penal dos fenômenos ligados a essa característica ocupam
lugar de destaque. É nessa área que também o direito penal exercerá a função de
controle dos desvios sociais, a modo de preservar a pax publica e as
liberdades. E mais. Estará iniludivelmente orientado por um sentido de
preservação da dignidade da pessoa humana.
Entre nós o tema não é novo. A obra de Gilberto Freyre e a
iniciativa de Afonso Arinos determinaram o aparecimento da Lei n.º 1.390/51, de
3 de julho, a qual leva o nome deste, tratando de crimes referidos ao
preconceito de raça e de cor. A Lei Afonso Arinos, que apresentava problemas de
técnica legislativa, especialmente por ser casuísta (48), foi
modificada pela Lei n.º 7.437/85, de 20 de dezembro, que a incluiu entre as
contavenções penais.
6.1. Lei dos Crimes de Preconceito de Raça ou de Cor
Atendendo ao mandamento constitucional, o legislador
editou a Lei n.º 7.716/89, de 5 de janeiro, que não ficava livre de críticas.
Nela, como no regime legal que a antecedeu, puniam-se, unicamente, os atos de
preconceito referidos à cor e à raça, de modo puramente casuísta. O legislador
resolveu estabelecer um rol de situações (talvez as mais comuns) que se
identificavam com as discriminações raciais e de cor, de forma a não contemplar
inúmeras outras em que o preconceito é factível.
Já em 1990 a Lei n.º 8.081, de 21 de setembro, veio a altera
a lei dos crimes de preconceito de raça e de cor, para introduzir o artigo 20,
tratando dos casos de induzimento ou incitação à preconceito ou discriminação
de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional através dos meios de
comunicação social. A melhora qualitativa da lei era parcial, pois apenas
contemplou o crime de induzimento ou incitação, deixando de lado as outras
condutas que muito bem podiam referir-se aos grupos étnicos, religiosos ou de
procedência nacional.
Somente tivemos um avanço significativo da matéria com as
alterações introduzidas pela Lei n.º 9.459/97, de 13 de maio. Punem-se, agora,
os preconceitos ou atos de discriminação referidos à raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional. Atualmente, o incitamento ou indução a condutas
intoleráveis, são punidos não apenas quando praticados pelos meios de
comunicação social, mas quando levados a efeito através de qualquer meio.
Houve, como se vê pelo rápido perpassar de olhos no
conteúdo da lei, uma grande abertura do regime penal, de forma a punir variadas
formas de discriminação. Mas, ainda, sujeita-se a reparos. O legislador
olvidou-se, v.g., dos casos de discriminação decorrentes de enfermidades
(49) (e parece-nos existir, em realidade, tais atos discriminatórios
quanto às pessoas infectadas com o vírus do HIV), de orientação sexual, de
convicções políticas ou filosóficas, sendo que estas representam liberdades
fundamentais tuteladas por nossa constituição. Por outras palavras, melhor
teria caminhado o legislador penal se tivesse seguido o exemplo espanhol, que
destinou proteção penal aos direitos e liberdades fundamentais.
6.2. Modalidade Especial de Injúria
A referida Lei n.º 9.459/97 também provocou a alteração do
art. 140, do Código Penal, acrescentando-lhe o parágrafo 3º. Assim, "Se a
injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia,
religião ou origem", a pena será de reclusão de um a três anos, além de
multa. Como se vê, o legislador fundou neste tipo de conduta uma modalidade
autônoma de crime. E mais. Com a pena sensivelmente mais elevada em relação às
demais categorias de injúria, deixando claro tratar-se de um crime contra a
honra que merece especial reprimenda penal. A nós nos parece injustificável a
inovação que se fez.
Muito embora a Lei Fundamental estabeleça direitos e liberdades regidos
pelo princípio de respeito à dignidade da pessoa humana, garantindo à
diversidade cultural, racial e étnica igualdade de tratamento, repudiando,
expressamente, atos de discriminação e de racismo, tal não conduzirá a uma
inapelável política de maior intervenção penal. Principalmente nos moldes
concretizados no novel apêndice do art. 140, do Código Penal., por três
especiais motivos. Primeiro porque, como dito anteriormente, não existe
coincidência nas esferas de proteção determinadas pelo ordenamento
jurídico-constitucional e pelo ordenamento jurídico-penal: ambos têm por
característica a fragmentaridade, por isso não abarcando todos os interesses
sociais ou bens jurídicos. Além de que as escolhas do direito penal recaem
sobre aqueles bens jurídicos que têm dignidade penal e que carecem da tutela
mais gravosa. Disso advindo como conclusão óbvia que, a não ser em casos
expressos, a tutela constitucional não determina a necessária intervenção
penal. Por outras palavras, os enunciados fundamentais que garantem o respeito
ao direito de diferença e ao pluralismo social brasileiro, não determinam a
intervenção jurídico-penal. Em segundo lugar, o referido parágrafo 3º acaba por
expressar um pendor meramente simbólico do direito penal, já que no campo
teleológico não se destina a repreender o racismo e os atos de discrminação,
mas, apenas, e de forma especial, as agressões contra a honra, bem jurídico de
natureza individual em que se protege o valor social e moral da pessoa
(50). Uma injúria verbal dirigida, v.g., contra um palestino, na
qual o ofensor destaca o propalado caráter avarento dos membros de sua nação,
atinge unicamente a honorabilidade da pessoa do ofendido. Em terceiro lugar,
este dispositivo penal agride, indubitavelmente, o princípio da
proporcionalidade e, por conseqüência, aquela noção clássica que se tem do
direito, imortalizada nas lições de Radbruch, segundo à qual o direito é
considerado como elemento de concretização de um ideal de justiça. Consoante o
atual estágio legal, uma ofensa como a referida no exemplo acima será mais
grave que uma referida ao caráter mais íntimo do ofendido, v.g., que
diga respeito à sua orientação sexual. Será, até mesmo, mais grave (ao menos no
plano formal da legislação) do que uma injúria real praticada na presença de
muitos circunstantes. Quer dizer, o legislador penal criou categorias
diferentes do bem jurídico honra que, ao nosso ver, é injustificável, quer por
razões ontológicas (51), quer pela razão do thelos daquele
dispositivo penal.
Conclusão
Para nós não resta dúvida de que a (re)definição do direito penal
(material), que entre em diálogo constante com a escala de valores axiológicos
na qual se enforma a sociedade, nela consultando as áreas de consenso que
reclamam a intervenção penal – ali, onde se verificarem bens jurídicos com
dignidade penal e carentes de tutela específica – torna-o apto a proteger os
direitos e liberdades fundamentais. Mas de forma a respeitar a orientação
filosófica e os princípios plasmados na Lei Fundamental, especialmente para que
não se criem categorias penais que conflituem com a noção de dignidade da
pessoa humana e com o princípio da igualdade. Ao nosso ver, o legislador
brasileiro, orientado pela realização de um direito penal simbólico, invade
determinadas áreas que não apelam para a intervenção penal e, em outras,
simplesmente relega ao olvido fenômenos de discriminação dignos de proteção.
Parece-nos que podia, ao modo como fez o legislador espanhol, ter consultado as
normas fundamentais e a criminologia.
Notas
1. Cfr. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 23ª ed. Rio
de Janeiro: Livraria José Olympio, 1984. passim.
2..O autor da mais célebre obra sociológica sobre a formação nacional,
refere alguns mitos, que traçam um estereótipo de malévolo do negro. Menciona
que "Ainda hoje [nos idos de 1930, quando surgiu a obra] se afirma em
Pernambuco que certo ricaço do Recife, não podendo se alimentar senão de fígado
de criança, tinha seus negros por toda parte pegando menino num saco de
estopa" (op. cit., p. 328). Outra lenda dos interiores brasileiros,
é a do negro do surrão, que raptava meninas, as quais eram exploradas para que
conseguisse esmolas (op. cit., pp. 328-329). Por fim, do hábito de as
casas coloniais possuírem um negro da mesma idade do filho-família, para servir
de companheiro, mas que ao fim e ao cabo era "apertado, maltratado e
judiado como se fosse todo de pó de serra por dentro; de pó de serra e de pano
como os judas de sábado de aleluia, e não de carne como os meninos brancos
(...)", restaram as brincadeiras das crianças das zonas rurais, destinando
os papéis inferiores aos negros, como o de boi que puxa a carroça (op. cit.,
p. 336).
Interessante notar que, apesar de sua formação de humanista, Gilberto
Freyre não deixou de usar o termo popular "judiar", de forte
conotação preconceituosa em relação à etnia judaica, para mencionar os atos de
crueldade.
3...E no Brasil de população jovem e de maioria branca, os preconceitos
já não se restringem à idade e à cor da pele. Já ninguém nega que para a
seleção de empregos preponderam a boa aparência e, até mesmo, uma constituição
física mais consentânea com os atuais padrões de beleza.
4...Sobre este princípio reitor dos direitos fundamentais, cfr. MIRANDA,
Jorge. Manual de direito constitucional. tomo IV. 2ª ed. revista e
atualizada. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. Pp. 166-176; o nosso Habeas
corpus: Crítica e perspectivas (um contributo para o entendimento da liberdade
e de sua garantia à luz do direito constitucional). 2ª ed. revista e
ampliada. Curitiba: Juruá, 2001. pp. 93-98. E, por todos, ANDRADE, José Carlos
Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976.
Coimbra: Livraria Almedina, 1987. pp. 100-103, 111-113, 130.
5...Referimo-nos aos direitos programáticos, que se acham numa situação
compromissória assumida pelo Estado, mas que não são auto-aplicáveis.
6...O constituinte, embora tenha determinado a punição dos atos contra os
direitos e liberdade fundamentais (inc. XLI, do art. 5º, da CR) – aí
incluindo-se aqueles relacionados às discriminações das mais diversas, como por
motivo de religião ou de sexo – determinou um tratamento penal especialmente
gravoso contra a prática de racismo, o que não nos parece coerente com o
sistema de princípios fundamentais. Primeiro porque há outras formas de
discriminação igualmente repudiáveis. A xenofobia que se vai estendendo por boa
parte da Europa, já causou até mortes de turcos e de orientais na Alemanha e na
França. A Grã-Bretanha vive os horrores da secular luta armada dos irlandeses,
gerada por diferenças religiosas. O marroquino que entra em Espanha é muitas
vezes maltratado. E muito mais poderíamos falar, mas fiquemos ainda com o mais
expressivo fato histórico não muito distante, que foi o genocídio de judeus e
ciganos durante a 2ª Grande Guerra, motivado pelos interesses utilitaristas do
social-nacionalismo alemão e pelo inegável objetivo de exterminação destas
etnias. Em segundo lugar, temos de destacar que um sistema de direitos e
garantias fundamentais presidido pelo princípio da dignidade da pessoa humana,
não pode estabelecer graus distintos para sua proteção e efetivação. É que,
estando diretamente ligada aos princípios da universalidade e da igualdade, a
dignidade da pessoa humana torna-se um suposto do homem "- de toda a
espécie humana, sem que haja razões para distinções de grau ou de quantidade de
dignidade (...)". (No nosso Habeas corpus: crítica e perspectivas...,
cit., p. 94). O que implica afirmar que toda e qualquer discriminação afeta a
dignidade da pessoa humana, merecendo repúdio. Em uma palavra, não há
discriminações mais graves que outras, apenas expressões com conseqüências
diversas.
7...Para análise mais detida sobre a matéria, cfr. ANDRADE, Manuel da
Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra: Coimbra
editora, 1991, p. 51 e ss.; "A nova lei dos crimes contra a economia
(Dec.- Lei 26784 de 20 de janeiro) à luz do conceito de bem jurídico"
in Direito Penal Económico. Coimbra: Centro de Estudos Judiciários,
1985, p. 69-105, maxime p. 73-96; DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões
fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 56 e ss.; CORREIA, Eduardo. Direito criminal, vol. 1
(reimpressão). Coimbra: Livraria Almedina, 1996, p. 277 e ss.; ROXIN, Claus. Derecho
penal: parte general, trad. para o castelhano de Diego-Manuel Luzón Peña,
Miguel Díaz y Gracía Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri: Editorial
Civitas, 1997, p. 54 e ss.; CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição
e crime: uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto:
Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 41 e ss. Entre nós, PRADO, Luiz
Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2ª ed. ver. e ampliada. São
Paulo: RT, 1997. Por fim, o nosso Dogmática penal e poder punitivo: novos
rumos e redefinições (em busca de um direito penal eficaz). Curitiba:
Juruá, 2000, p. 29 e ss.
8...In Consentimento e acordo, cit., p. 37.
9...Figueiredo Dias refere que o conceito material de crime resulta da
função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídico-penais, ou seja,
"(...) bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena". In
Questões fundamentais, cit., p. 62.
10....Não se pode esquecer que apesar de Feuerbach ter deixado de incluir
no Código Penal da Baviera (1813), de sua autoria, condutas como a heresia, a
blasfêmia, a bigamia e o incesto, não rompe de vez com o sistema então
dominante e remete para o direito penal de polícia – "que zelava pelo
bem-estar do cidadão" – a normativização de condutas atentatórias contra a
religião e outros desvios da moral reinante. Cfr. o nosso Dogmática penal...,
cit., p. 26-27.
11...PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 27-28.
12...Ibidem, p. 28.
13...Neste ponto chamamos atenção, seguindo Regis Prado, para o fato de
que Birnbaum introduziu o conceito de bem jurídico, rompendo com a teoria do
direito subjetivo de Feuerbach (cfr. Bem jurídico-penal, cit., p. 29).
Mas é importante salientar que o conceito de Rechtsgut foi, em
realidade, utilizado por Binding, no seu Die Normen.
14...Em nosso Dogmática penal..., cit., p. 33.
15...Ibidem, ibidem.
16...ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo..., cit., p.
39.
17...CORREIA, Eduardo. Direito Criminal, cit., p. 278.
18...Cfr. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal..., cit., p. 48.
19...DIAS, Jorge de Figeueiredo. Questões fundamentais..., cit.,
p. 62.
20...ROXIN, Claus. Problemas básicos del derecho penal, trad. para
o castelhano de Diego Manuel Luzón Peña. Madri: Reus, 1976, p. 46-47.
21...Uma tal condição de inflação de leis penais, pode ter como
significado aquilo que entre nós, numa atitude combativa, Silva Franco denomina
de criação de direito penal simbólico, que se origina de uma "política
falaciosa", à qual nossos legisladores recorrem para transmitirem aos
cidadãos a idéia de realização da pax publica. Cfr. FRANCO, Alberto
Silva. "Arma de brinquedo", Revista Brasileira de Ciências
Criminais, vol. 5, n.º 20, out.-dez., 1997, p. 71-74 e, ainda, "Do
princípio da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção",
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, fasc. 2º, abril-junho, 1996, p.
175-187.
Jakobs é mais contundente na sua crítica, chegando a afirmar que o
demasiado intervencionismo penal é próprio dos regimes totalitários, onde se
cria um direito penal de inimigos, caracterizado pela otimização da proteção de
bens jurídicos. Bem diferente, portanto, do que se passa nos regimes
democráticos, onde deve vigorar o modelo de direito penal de cidadãos, que tem
por objetivo otimizar as esferas de liberdade. Cfr. JAKOBS, Günther. Fundamentos
del derecho penal, trad. para o castelhano de Manuel Cancio Meliá e Enrique
Peñaranda Ramos. Buenos Aires: Ad-hoc, 1996, p. 190
22...Lembre-se da velha regra de Ulpiano, segundo a qual cogitationis
poenam nemo patitur. Desta decorrendo o imperativo de que de internis
non judicat praetor, as quais nosso legislador não prestou a devida atenção
quando tratou dos crimes de arma de fogo, entre eles incluindo condutas que
sequer representam perigo.
23...Cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo. "O direito penal entre a
‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade de risco’". Revista Brasileira
de Ciências Criminais. Ano 9, n.º 33, janeiro-março de 2001, p. 39-65. O autor
refere sobre os novos horizontes do direito penal voltado para a proteção de
bens postos em perigo pelo avanço da tecnologia, incumbindo ao direito penal o
papel de, v.g., punir as condutas que causem dano ao ambiente.
Interessante notar que os dias atuais revelam uma acentuada consciência
de preservação do ambiente para as gerações futuras, como paradigmaticamente
ficou plasmado no art. 225 da nossa CR que, em seu parágrafo 3º, determina a
responsabilidade penal daqueles cuja conduta o lesem.
24...Noção mais desenvolvida em nosso Dogmática penal e poder
punitivo: novos e redefinições, cit., p. 38 e ss.
25...A desjudiciarização plasmada na Lei dos Juizados Especiais (que
alguns de nossos juristas teimam em categorizar como sendo lei de índole
despenalizadora), imbui-se da tentativa de evitar os estigmas do processo penal
contra o delinqüente ocasional e de menor potencial ofensivo. E, neste sentido,
apresentando forte propensão para a eficaz prevenção especial.
26...Mais desenvolvidamente em nosso Dogmática penal e poder punitivo:
novos rumos e redefinições, cit., p. 102 e ss.
27...In Lehrbuch Deutschen Strafrechts, apud Roxin. Problemas
fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja, 1986, p. 59.
28...Sobre o tema, além da bibliografia vária estrangeira, pode-se
consultar o nosso Dogmática penal e poder punitivo: novos rumos e
redefinições, cit., p. 83 e ss.
29...DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais (...), cit.,
p. 67.
30...Ibidem, ibidem.
31...Ibidem, ibidem.
32...Só não podendo, como adverte Ferreira da Cunha, "criar uma
ordem de bens jurídico-penais de forma a inverter a ordem de valores
constitucional". (FERREIRA DA CUNHA, Maria da Conceição. Constituição e
crime, cit., p. 328). Assim, o legislador penal não poderá criar um regime
mais brando para os chamados crimes hediondos, sob pena de
inconstitucionalidade.
33...As inúmeras experiências sobre reprodução humana, avançando para a
possibilidade de clonagem de seres humanos, colocam em causa não só o bem
jurídico vida mas, também, a dignidade da pessoa humana.
34...O preâmbulo da Constituição Federal de 1967, ao expressar que
"O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a
seguinte Constituição do Brasil", deixa clara aquela pretensão do poder político
em estabelecer determinada ordem. Maluf, ao analisar o preâmbulo, afirma que
ele "Deixa patente que a Constituição origina-se do poder constituído.
É uma expressão da autoridade estatal. Em outros termos: provém do Estado, não
da Nação; do governo, não do povo". (MALUF, Sahid. Direito
constitucional, 17ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1985, p. 72).
35...A prova disso encontrava-se na maciça propaganda patriótica
veiculada pelos meios de comunicação e pelo ensino da disciplina de educação,
moral e cívica nos bancos escolares.
36...Miranda vai mais para além ao encontrar nos direitos econômicos,
sociais e culturais uma "fonte ética na dignidade da pessoa, de todas
as pessoas". (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional,
cit., p. 167).
37...O constituinte andou bem ao proibir a pena de morte, já que
reconheceu o valor eminente da pessoa humana e de seu bem maior. Mas ao
permitir sua aplicação no caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII,
"a", da CR), deixou de gizar-se por aquelas linhas filosóficas,
sugerindo-nos a leitura da existência de dois graus de dignidade: a do
criminoso comum e a do criminoso de guerra. Por outras palavras, a Lei
Fundamental estabelece uma linha de invencível incongruência com os enunciados
ontológicos da dignidade da pessoa humana. Nosso constituinte teria obrado
melhor se tivesse seguido o exemplo da CR de Portugal, cujo art. 24º prevê, de
forma coerente com o princípio da dignidade da pessoa humana, que: "1. A
vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte".
38...Ut
supra, p. 169.
39...SABBÁ GUIMARÃES, Isaac. "Tolerância: elemento de
intercorrência na redefinição do direito penal", Revista Jurídica. N.º
281, março de 2001, p. 65- 79, p. cit. 65-66.
40...LATORRE
LATORRE, Virgilio. Desde la tolerancia. Barcelona: Cedecs Editorial,
1998, p. 83.
41...GARZÓN
VALDÉS, apud LATORRE LATORRE, Virgilio, op. cit., p. 85.
42..SABBÁ
GUIMARÃES, Isaac. "Tolerância...", cit., p. 70.
43...Basta atentarmos para o fenômeno da derrocado do regime militar nos
países sul-americanos.
44...ROXIN,
Claus. Problemas básicos del derecho penal, cit., p. 20-21.
45...ROXIN,
Claus. Problemas básicos del derecho penal, cit., p. 20.
46...Art. 510.1. Os que provocarem a discriminação, o ódio ou a violência
contra grupos ou associações, por motivos racistas, anti-semitas, ou outros
referentes à ideologia, religião ou crenças, situação familiar, ao fato de
pertencerem seus membros a uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo,
orientação sexual, enfermidade ou menosvalia, serão punidos com a pena de
prisão de um a três anos e multa de seis a dose meses. 2. Serão castigados com
a mesma pena os que, com conhecimento de sua falsidade ou temerário desprezo em
relação à verdade, difundirem informações injuriosas sobre grupos ou associações
em relação à sua ideologia, religião ou crenças, à pertença de seus membros a
uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo, orientação sexual,
enfermidade ou menosvalia. Art. 511. 1. Incorrerá na pena de prisão de seis
meses a dois anos e multa de doze a vinte e quatro meses e inabilitação
especial para emprego ou cargo público por um a três anos particular
encarregado de um serviço público que denegue a uma pessoa uma prestação a que
tenha direito por motivo de sua ideologia, religião ou crenças, sua origem
étnica ou racial, nacional, seu sexo, orientação sexual, situação familiar,
enfermidade ou menosvalia. 2. As mesmas penas serão aplicáveis quando os feitos
se cometerem contra uma associação, fundação, sociedade ou corporação ou contra
seus membros por motivo de sua ideologia, religião ou crenças, a pertença de
seus membros ou de um deles a uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo,
orientação sexual, situação familiar, enfermidade ou menosvalia. 3. Os
funcionários públicos que cometam alguma das condutas previstos neste artigo,
incorrerão nas mesmas penas em sua metade superior e na inabilitação especial
para emprego ou cargo público por dois a quatro anos. 512. Os que no exercício
de suas atividades profissionais ou empresariais denegarem a uma pessoa uma
prestação a que tenha direito em razão de sua ideologia, religião ou crenças,
sua ligação a uma etnia, raça ou nação, seu sexo, orientação sexual, situação
familiar, enfermidade ou menosvalia, incorrerão na pena de inabilitação especial
para o exercício de profissão, ofício, indústria ou comércio por um período de
um a quatro anos (texto traduzido livremente por nós).
47...Art. 239º (genocídio) 1. Quem, com a intenção de destruir, no todo
ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal, praticar:
a) homicídio de membros do grupo; b) ofensa à integridade física grave de
membros do grupo; c) sujeição do grupo a condições de existência ou a
tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, susceptíveis de virem a provocar
a sua destruição, total ou parcial; d) transferência por meios violentos de
crianças do grupo para outro grupo; ou e) impedimento da procriação ou dos
nascimentos no grupo. 2. Quem, pública e directamente, incitar a genocídio é
punido com pena de prisão de 2 a 8 anos. 3. O acordo com vista à práctica de
genocídio é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. Art. 240º (discriminação
racial) 1. Quem: a) fundar ou constituir organização ou desenvolver actividades
de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio, ou à violência
raciais, ou que a encorajem; ou b) participar na organização ou nas actividades
referidas na alínea anterior ou lhes prestar assistência, incluindo o seu
financiamento; é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 2. Quem, em reunião
pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de
comunicação social: a) provocar actos de violência contra pessoa ou grupo de
pessoas por causa de sua raça, cor ou origem étnica; ou b) difamar ou injuriar
pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua cor ou origem étnica, com a
intenção de incitar à discriminação racial ou de a encorajar, é punido com pena
de prisão de 6 meses a 5 anos.
48...Cfr. as críticas de SZNICK, Valdir. "Contravenção por
preconceito de raça, cor, sexo e estado civil", Justitia, vol.
138, 2º trimestre, 1987.
49...Mesmo a Lei n.º 9.029/95, de 13 de abril, que proíbe a prática
discriminatória nas relações de emprego, deixa de tratar do problema.
50...Segundo a lição de Heleno Fragoso, a injúria constitui-se de imputação
de "(...) vícios ou defeitos morais, que, como em todos os crimes contra a
honra, atinge a pretensão ao respeito inerente à dignidade da pessoa" (in
Lições de direito penal, parte especial, vol. I. 8ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1986, p. 191). Magalhães Noronha, em análise mais percuciente e, sem
dúvida, com maior inclinação para a doutrina tradicional, afirma que "Além
da honra objetiva, isto é, do conceito ou aprêço que a pessoa goza na vida
comunitária, tem ela também honra subjetiva, ou seja, a estima própria, o juízo
que faz de si mesma, a sua dignidade ou decôro, que podem ser ofendidos pela
injúria. Esta exprime sempre uma opinião do agente, que traduz desprêzo ou
menoscabo do injuriado" (in Direito penal, 2º vol., 5ª ed. São
Paulo: Saraiva, 1969, p. 123).
51...A honra é insuscetível de graduação, por referir-se a um sentimento
pessoal. Por isso que merece proteção destinada a dignificar o valor em si.
De forma que não podemos compreender, v.g., que uma injúria contra uma
pessoa motivado pelo fato de pertencer à determinada etnia possa ser mais
gravosa que outras ofensas à honra ou ao decoro.
Retirado:
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2955