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A coerção penal
no âmbito da Lei dos Crimes Hediondos
Simone Moraes dos
Santos
Além da significante ampliação do quantum das penas
para crimes hediondos, a Lei n. 8.072/90 trouxe mais uma causa de aumento
determinado por seu artigo 9º. Curiosas são as causas de diminuição de pena
determinadas pelos artigos 7º e 8º, parágrafo único, da Lei: funciona como
bater na cabeça do acusado com um martelo e depois lhe dar "melhoral"
para aliviar a dor. Aí sai todo mundo falando do "melhoral" para não
falar da martelada (22).
1.1 – Causa de Aumento Determinada Pelo Artigo 9º da
Lei n. 8.072/90
A Lei dos Crimes Hediondos, em seu artigo 9º, criou nova
causa de aumento de pena para alguns dos crimes nela determinados, distinta das
agravantes genéricas definidas pelos artigos 61 e 62 do Código Penal.
Veja-se a determinação do artigo 9º da Lei n. 8.072/90:
Art. 9º - As penas fixadas no artigo 6º para os crimes
capitulados nos artigos 157, § 3º, 158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º,
213, caput, e sua combinação com o artigo 223, caput e parágrafo único, 214 e
sua combinação com o artigo 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal,
são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta) anos de
reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no artigo 224
também do Código Penal.
Veja-se, também, a determinação do artigo 224 do Código
Penal:
Presunção de violência
Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:
a) não é maior de 14 (catorze) anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta
circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer
resistência.
Dessa forma, o artigo 224 do Código Penal, que até a
edição da Lei dos Crimes Hediondos apenas criava a presunção de violência nos
delitos contra os costumes previstos no Código Penal, passou a dispor sobre uma
causa de aumento de pena para os crimes do artigo 9º da Lei, quais sejam:
latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro
simples e qualificada, estupro e atentado violento ao pudor simples e
qualificada.
Note-se que a causa de aumento dos artigo 224 do Código
Penal agora incide não apenas sobre crimes contra os costumes, mas também sobre
crimes contra o patrimônio.
Os reflexos do artigo 9º da Lei n. 8.072/90 sobre algumas
figuras típicas causam certa estranheza, como, por exemplo, quando tal
dispositivo determina que a pena do artigo 157, § 3º do CP será acrescida da
metade. Ora, crime hediondo é apenas o determinado no artigo 157, § 3º, in
fine, qual seja, latrocínio, e não roubo de que resulte lesão corporal
grave (artigo 157, § 3º, 1ª parte). Vale aqui as palavras de João José Leal
(23):
O crime de roubo qualificado pelo resultado lesão corporal
grave (artigo 157, § 3º, 1ª parte) não foi rotulado pelo artigo 1º como crime
hediondo, mas acabou sendo atingido pelo disposto no artigo 9º da LCH. É mais
uma das contradições e inconveniência desta lei.
Outra estranha situação causada pelo artigo 9º da Lei n.
8.072/90 é a que iguala a pena mínima e máxima a determinados tipos nele
mencionados. Veja-se, por exemplo, o latrocínio cometido contra um menor de
catorze anos. A pena é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, aumentada da metade
pela idade da vítima, resultando, em abstrato, em pena de 30 (trinta) a 45
(quarenta e cinco) anos. Como o juiz não pode fixar pena superior a 30 (trinta)
anos, não há como individualizar a sanção que, necessariamente, será fixada no patamar
de 30 (trinta) anos.
Situação como esta ofende diretamente o princípio
constitucional da individualização da pena (artigo 5º XLVI da CF), onde o
julgador fica sem possibilidade de fazer uso desta, já que os marcos punitivos
mínimo e máximo coincidem.
Outra situação deriva da análise do artigo 9º que
estabelece acréscimo para os "artigos 213, caput, e sua combinação com
o artigo 223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o artigo 233,
caput e parágrafo único". Entendimento há que se a vítima, por
exemplo, for menor de quatorze anos, e a presunção de violência já foi
utilizada para tipificar a conduta criminosa, não poderá ser utilizada
novamente, agora como causa de aumento de pena. Admitir dupla utilização do
artigo 224 do Código Penal, ora para tipificar a infração penal, ora para
aumentar a pena de metade, sem dúvida alguma, incidiria bis in idem.
1.2 – Causas de Diminuição de Pena Determinadas Pela
Lei n. 8.072/90
A Lei de Crimes Hediondos prevê causas de diminuição de
pena, e não atenuantes, já que, diverso das atenuantes genéricas do artigo 65
do Código Penal, determinam o quantum da diminuição e podem reduzir a
pena abaixo do mínimo cominado para o delito.
São as causas de diminuição da pena na Lei n. 8.072/90, as
determinadas nos artigos 7º e 8º, parágrafo único.
1.2.1 – Delação Eficaz – Artigo 7º
O artigo 7º da Lei n. 8.072 assim dispõe:
Art. 7º - Ao artigo 159 do Código Penal fica acrescido o
seguinte parágrafo:
Art. 159 -...
§ 4º - Se o crime é em concurso, o concorrente que o denunciar
à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida
de um a dois terços.
Este instituto de redução, que beneficia o co-autor ou o
partícipe da extorsão mediante seqüestro que informa à autoridade (seja ela
Delegado de Polícia, Promotor de Justiça ou Juiz de Direito) a ocorrência
típica, de modo a tornar mais fácil a liberação do seqüestrado, refere-se à
chamada "delação premiada".
Da análise do dispositivo extrai-se que essa causa de
diminuição de pena é aplicável apenas ao crime previsto no artigo 159 do Código
Penal, qual seja, extorsão mediante seqüestro praticado em concurso de pessoas,
e não aos outros crimes hediondos.
Notável também é que o dispositivo não exige que o crime
seja praticado por quadrilha ou bando, sendo suficiente que a extorsão mediante
seqüestro seja praticada em concurso de pessoas (co-autoria ou participação),
beneficiando, assim, com a causa redutora, tanto o co-autor como o partícipe.
A delação deve ser eficaz, isto é, deve proporcionar a
libertação do seqüestrado. Se a libertação não ocorrer por qualquer motivo, o
benefício não poderá ser aplicado, mas o juiz poderá considerar o fato como uma
atenuante genérica.
O Juiz deve reduzir a pena do réu delator à razão de 1/3
(um terço) a 2/3 (dois terços). Quanto maior tiver sido sua contribuição para a
libertação do seqüestrado, tanto maior será a redução de sua sanção privativa
de liberdade. Trata-se, evidentemente, de circunstância de caráter pessoal que
não se comunica aos demais agentes.
Por fim, vale esclarecer que o instituto da delação não
visa tão-somente premiar o delator, mas também, e principalmente, facilitar a
liberação do seqüestrado. E é esse o objetivo da lei quando dispõe no § 4º do
artigo 159 do Código Penal que a delação deve facilitar a liberação do
seqüestrado.
1.2.2 – Traição Benéfica – Artigo 8º, Parágrafo Único
O caput do artigo 8º dispõe sobre o aumento de pena
para o crime de quadrilha ou bando, que antes era de 1 a 3 anos e agora é de 3
a 6 anos, quando se tratar de crimes hediondos e assemelhados.
Quanto à redução da pena, esta se encontra no parágrafo
único do referido dispositivo, que assim dispõe:
Art. 8º -...
Parágrafo único - O participante e o associado que
denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento,
terá a pena reduzida de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) (24).
Delação deve ser feita à autoridade (Delegado, Promotor ou
Juiz) sobre a existência da quadrilha ou do bando, e precisa ser eficaz, ou
seja, deve proporcionar o desmantelamento da quadrilha ou bando.
O beneficiário da redução será "o participante e o
associado". Por associado entende-se o membro da quadrilha ou
bando que além do crime de "associação para o fim de cometer
crimes", comete "crime hediondo ou assemelhado". É
assim porque a associação é um delito autônomo. Dessa forma, se além da
associação, houver ainda o cometimento de crime hediondo ou assemelhado, dois
são os crimes. Por sua vez, por participante entende-se o terceiro que
de alguma forma contribuiu para o crime praticado.
Feitas estas considerações, conclui-se que o associado
será beneficiado nas penas dos dois crimes (o de associação e o do crime
cometido, qual seja, o objeto da associação) e o participante na pena do crime
cometido.
02 – APELO EM LIBERDADE
Pelo mandamento do artigo 594, do Código de Processo
Penal, em caso de condenação, o réu que se encontra solto só poderá apelar em
liberdade se for primário e de bons antecedentes. Contudo, ao que se refere aos
crimes hediondos e assemelhados, esta regra deixou de ser aplicada em face do §
2º, artigo 2º, da Lei n. 8.072/90 que dispõe que o juiz decidirá se o réu
poderá ou não apelar em liberdade, desde de que justifique sua decisão.
Diante da determinação do § 2º de que "em caso de
sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar
em liberdade", deve-se analisar as duas situações em que se pode
encontrar o réu na época da condenação: estar o réu preso e estar o réu solto,
quando da sentença condenatória.
No primeiro caso, onde o réu respondeu ao processo preso,
em caso de condenação, deverá ser mantido no cárcere, já que sua liberação
equivaleria à concessão de liberdade provisória, vedada pela própria Lei dos
Crimes Hediondos.
No segundo caso, onde o réu se encontra solto quando da
sentença condenatória, é que se aplica a determinação do § 2º do artigo 2º da
Lei n. 8.072/90. Assim, tal dispositivo é aplicável tão-somente aos réus que
responderam o processo em liberdade, já que contra eles não foi decretada
qualquer tipo de prisão processual. Outra interpretação não haveria.
Outro problema surge do mandamento do § 2º, do artigo 2º,
da Lei n. 8.072/90 que permite o apelo em liberdade da sentença condenatória em
crimes hediondos e assemelhados, inclusive tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins. É que a Lei Antitóxicos (Lei n. 6.368/76), em seu artigo 35,
estabelece que o réu condenado pela prática dos crimes definidos nos artigos 12
ou 13 não pode apelar em liberdade.
Dessa análise pergunta-se: foi, então, revogado o artigo
35 da Lei n. 6.368/76?
Segundo Victor Eduardo Rios Gonçalves (25),
existem duas correntes que procuram explicar tal questão:
Surgiram duas correntes. A primeira entende que sim,
porque a lei posterior tratou do mesmo assunto de forma diversa. A segunda
argumenta que não, porque o artigo 10 da Lei dos Crimes Hediondos criou um
parágrafo único no artigo 35, determinando a contagem dos prazos procedimentais
em dobro nos crimes de tráfico. Ora, se introduziu um parágrafo no artigo 35, o
legislador não queria revogá-lo. Essa é a opinião amplamente majoritária.
E continua o mesmo autor:
Como então conciliar os dois dispositivos? Segundo a
doutrina dominante, a regra é a do artigo 35, caput, da Lei de Tóxicos
(o juiz deve decretar a prisão). Assim, o artigo 2º, § 2º da Lei de Crimes
Hediondos será aplicado apenas em situações excepcionais em que o juiz,
fundamentando sua decisão, poderá deixar de decretar a prisão. Ex.: réu idoso,
doente etc.
CAPÍTULO III: DA EXECUÇÃO DA PENA
01 – O REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA
1.1 – Considerações Iniciais
Sem dúvida alguma, a questão mais polêmica acerca da Lei
n. 8.072/90 é a que se refere à proibição de progressão de regime prisional aos
condenados por crime hediondos ou assemelhados.
Tanto no Código Penal Brasileiro como na Lei de Execução
Penal (Lei n. 7.210/84), adotou-se o sistema progressivo de cumprimento de pena
privativa de liberdade. O Código Penal regula a execução da pena privativa de
liberdade segundo três regimes: fechado, semi-aberto e aberto, sendo que a pena
de reclusão deverá ser cumprida nos regime fechado, semi-aberto e aberto e a de
detenção nos regimes semi-aberto e aberto (artigo 33, caput). Além disso,
determina o § 2º, do artigo 33, do CP que a execução da pena deve dar-se de
modo progressivo, segundo o mérito do condenado. Já o § 3º determina que o
regime inicial de cumprimento da pena será estabelecido com observâncias às
circunstâncias determinadas pelo artigo 59 do Código Penal.
Também a Lei de Execução Penal estabelece em seu artigo
112 que "a pena privativa de liberdade será executada em forma
progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso", visando
assim a gradual integração social do condenado quando este demonstra estar
preparado para tal. Júlio Fabbrini Mirabete (26), quanto a isso, bem
ensina:
Tendo em vista a finalidade da pena, de integração ou
reinserção social, o processo de execução deve ser dinâmico, sujeito a mutações
ditadas pela resposta do condenado ao tratamento penitenciário. Assim, ao
dirigir a execução da pena para a "forma progressiva", estabelece o
artigo 112 a progressão, ou seja, a transferência do condenado de regime mais
rigoroso a outro menos rigoroso quando demonstra condições de adaptação ao mais
suave. De outro lado, determina a transferência de regime menos rigoroso para
outro mais rigoroso quando o condenado demonstrar inadaptação ao menos severo,
pela regressão, que ocorre nas hipóteses do artigo 118 da Lei de Execução
Penal.
O sistema progressivo visa a ressocialização do condenado
para sua reinserção social, onde as penas devem ser executadas
progressivamente, conforme o preenchimento de requisitos objetivos e
subjetivos.
Todavia, em 1990 foi promulgada a Lei dos Crimes Hediondos
trazendo, no artigo 2º, § 1º, a seguinte determinação:
§ 1º - A pena por crime previsto neste artigo será
cumprida integralmente em regime fechado.
Ora, que se viu foi que, na ferocidade de dificultar a
vida dos criminosos, o legislador acabou-se por embaraçar, editando dispositivo
que colide com o sistema progressivo de cumprimento de pena adotado pelo Código
Penal Brasileiro e pela Lei de Execução Penal, já que os autores de crimes
hediondos e assemelhados devem cumprir integralmente a penas no regime fechado,
independentemente da quantidade da pena aplicada e da reincidência ou não dos condenados.
Na mesma linha de raciocínio de Alberto Silva Franco
(27), nota-se que o dispositivo em comento além de ser um desestímulo a
ressocialização do condenado, ainda proporciona a diminuição de rotatividade de
presos recolhidos em estabelecimentos penitenciários que já demonstram estar
espantosamente saturados. Além disso, a mantença num presídio de condenado por
largo espaço de tempo causa a desesperança no sentido de se obter um tratamento
mais favorável e, até mesmo, a liberdade, surgindo daí o inconformismo e o que
se vê diariamente: rebeliões. E tudo isso, infelizmente, demonstra, ao final, a
inutilidade do sistema penal.
1.2 – Princípios Constitucionais da Humanidade e da
Individualização da Pena
Preliminarmente vale aqui estabelecer a finalidade da
pena. Três teorias procuram justificar a aplicação da pena:
a)pela teoria absoluta, ou retributiva, a pena
funciona apenas como uma retribuição, recompensado o mal com outro mal, aliás,
a pena não tem finalidade, tendo como fim ela própria;
b)pela teoria relativa, ou preventiva, a pena visa
prevenir a prática de novos delitos, podendo a prevenção ser de caráter geral
(com relação a todos) ou especial (com relação ao condenado);
c)pela teoria mista, ou intermediária, a pena tem
caráter retributivo e, ao mesmo tempo, preventivo. É preventiva porque visa
prevenir a prática de novos crimes, e é retributiva porque a qualidade e a
quantidade da pena deve ser de acordo com a gravidade do delito e o grau de
culpabilidade do agente.
Inegavelmente, a pena tem caráter retributivo, vez que
funciona como verdadeira expiação. Contudo, a pena também tem a finalidade de
prevenir a prática de novos delitos, seja pelo próprio condenado, seja pela
sociedade em geral. Portanto a pena é isto, um misto de retribuição e prevenção,
correção e educação. Deve corresponder à idéia de humanizar, além de punir. E
deve ser assim, pois a pena cuja única finalidade é a retribuição nada se
distingue da vingança.
Feitas estas considerações, resta-se agora analisar a
disposição da Lei n. 8.072/90 que determina, para condenado por crime hediondo
e assemelhado, o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime
integralmente fechado. Defende-se, com sérios fundamentos, a
inconstitucionalidade do dispositivo baseando-se nos princípios constitucionais
da humanidade e da individualização da pena.
O princípio da humanidade da pena limita o
exercício do jus puniendi do Estado, em respeito à vida e à dignidade da
pessoa humana e decorre de diversos dispositivos constitucionais, dentre os
quais o inc. III, do artigo 5º, que dispõe: "Ninguém será submetido a
tortura nem a tratamento desumano ou degradante" ou o inc. XLVII que
dispõe "Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra
declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de
trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis".
Hans-Hainrich Jescheck, citado por Luís Flávio Gomes
(28), leciona:
O princípio da humanidade das penas impõe que todas as
relações humanas que o Direito Penal faz surgir no mais amplo sentido se regulem
sobre a base de uma vinculação recíproca, de uma responsabilidade social frente
ao delinqüente, de uma livre disposição à ajuda e assistência sociais e de uma
decidida vontade de recuperação do condenado... dentro dessas fronteiras,
impostas pela natureza de sua missão, todas as relações humanas reguladas pelo
Direito Penal devem estar presididas pelo princípio da humanidade.
Isto posto, pergunta-se: há alguma humanidade ou tentativa
de ressocialização em estabelecer-se regime integralmente fechado a um apenado?
Evidentemente não. A ideologia que norteou a feitura deste absurdo
jurídico-penal é a baseada no sistema punitivo-expiatório, onde a pena tem por
finalidade pagar um mal causado com um mal, apenas uma retribuição, quando não
até vingança.
Ignorou o legislador, inclusive, que mais efetiva que a
pena elevada é a pena certa; mais intimidante que a sanção rigorosa é a sanção
eficaz. A pena somente quando é justa e quando é aplicada de modo infalível e
rapidamente é que pode gerar algum efeito preventivo.
Conclui-se com lição de Alberto Silva Franco (29):
Pena executada, com um único e uniforme regime prisional,
significa pena desumana, porque inviabiliza um tratamento penitenciário
racional e progressivo; deixa o recluso sem esperança alguma de obter a
liberdade antes do termo final do tempo de sua condenação e, portanto, não
exerce nenhuma influência psicológica positiva no sentido de seu reinserimento
social; e, por fim, desampara a própria sociedade na medida em que devolve o
preso à vida societária após submetê-lo a um processo de reinserção às avessas,
ou seja, a uma dessocialização.
A exclusão do sistema progressivo pela Lei dos Crimes
Hediondos também conflita com o princípio da individualização da pena.
Para melhor entendimento, parta-se da interpretação da
garantia constitucional inserta no artigo 5º, inc. XLVI, da CF que determina:
"a lei regulará a individualização da pena[..]". Veja-se que o
legislador constituinte determinou que a individualização da pena deve ser
observada quando da elaboração de norma penal e, dessa forma, a lei que
generaliza a aplicação da pena, desconsiderando a individualidade do agente,
será inconstitucional.
Além do que, a não-progressividade de regime determinada
por lei destitui o juiz do poder de particularizar a pena. A Lei de Execução
Penal contém a regulamentação adequada para a individualização da pena, em
nível de execução. Se o legislador ordinário considerava branda demais a Lei n.
7.210/84, que estabelecesse novas regras para a individualização, não que a
impedisse. Se queria dar tratamento rigoroso a essa "etiqueta" de
delinqüentes, que o fizesse, mas usufruindo de seus meios, e não invadindo a
competência do Judiciário. Agravar a execução é uma coisa; destituir o juiz do
poder de particularizar o regime é outra.
Alberto Silva Franco (30) manifesta-se a
respeito:
Embora a Carta Magna afirme que "a lei regulará a
individualização da pena", força é convir que a lei poderá dar parâmetros
para a atuação judicial, mas não poderá, de modo algum, obstar que se realize a
individualização punitiva. Destarte, lei ordinária que estabeleça pena
fixamente determinada na sua quantidade, ou que impeça a discricionariedade
vinculada do juiz na sua aplicação ou não permita a atividade judicial
concretizadora na sua execução, é lei inaceitável, do ponto de vista
constitucional.
Portanto, lamentavelmente, esta não é opinião isolada
acerca da constitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei n. 8.072/90. Veja-se
entendimento de Julio Fabbrini Mirabete (31):
Não ofende o referido dispositivo o princípio
constitucional da individualização da pena, estabelecido no artigo 5º, XLVI, da
Carta Magna, já que a lei considerou tão graves tais delitos que seus autores
devem ser considerados como de periculosidade ímpar, a merecer a segregação
mais severa.
Infelizmente, com esse entendimento de que nada há de
inconstitucional na fixação de regime integral fechado, vêm decidindo
reiteradamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.
O § 1º, do artigo 2º é norma constitucional, reconhecida
como tal pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (HC n. 69.657 e n. 70.939).
Há, no Superior Tribunal de Justiça, vários precedentes no mesmo sentido.
Segundo os acórdãos dos tribunais mencionados, o trabalho de individualização
da sanção não se esgota com a fixação do regime de cumprimento da pena. Não se
vislumbra, portanto, ofensa ao princípio da individualização da pena.
1.3 – Fixação do Regime na Sentença
Como anteriormente demonstrado, a Lei de Crimes Hediondos
determina que o condenado por crime nela etiquetado deve cumprir a pena
privativa de liberdade em regime integralmente fechado. Portanto, pacífico é o
entendimento de ser possível a progressão quando fixado apenas regime inicial
fechado para o cumprimento das penas aos autores de crimes hediondos e
assemelhados, quando a decisão houver transitado em julgado para a acusação.
Apesar de expressamente disposto na Lei dos Crimes
Hediondos, para a aplicação de pena integral em regime fechado necessário se
faz que o juiz mencione tal circunstância na sentença. Se na sentença for dito
apenas que o regime inicial será o fechado e o Ministério Público não recorrer,
o condenado terá direito à progressão. De outra forma, se houver recurso
interposto apenas pelo réu em sentença que determina o cumprimento da pena em
regime inicialmente fechado, o tribunal não está autorizado a reformar tal
decisão para pior (regime integralmente fechado), caso contrário, incidiria em reformatio
in pejus.
Outra questão surge quando o juiz omite na sentença o
regime prisional. Entende o STF, como tantos outros tribunais pelo País, que
quando condenado por crime hediondo ou assemelhados e há na sentença omissão
quanto ao modo de cumprimento da pena, deve o cumprimento da pena se dar em
regime "integralmente fechado", por força da disposição legal contida
na Lei n. 8.072/90.
1.4 – A Possibilidade Do Regime Progressivo em Face da
Lei de Tortura
A Lei n. 9.455, de 07.04.1997, que define os crimes de
tortura e dá outras providências, no § 7º, do artigo 1º, esclarece: "o
condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o
cumprimento da pena em regime fechado". Vale dizer, já não exige que,
no crime de tortura, a pena seja cumprida integralmente em regime fechado, mas
apenas no início.
Em função desta determinação, parte da doutrina e
jurisprudência quis estender essa regra para os crimes hediondos, tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, sob o argumento de que a
Constituição Federal determinou a estes delitos tratamento paritário. Essa
argumentação, portanto, não logrou êxito, já que a Lei n. 9.455/97 é específica
para os crimes de tortura, não incidindo sobre qualquer dos outros crimes
dispostos na Lei n. 8.072/90. Dessa forma, a obrigatoriedade de cumprir pena em
regime fechado continua a existir nos crimes hediondos, tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afim e terrorismo e, somente para os crimes de tortura
admite-se a progressão de regime.
Veja-se o claro ensinamento de Julio Fabbrini Mirabete
(32):
Por incoerência do legislador, ao definir o crime de
tortura, equiparado a crime hediondo por força do artigo 1º da Lei n. 8.072/90,
a Lei n. 9.455/97, prevê para o condenado o regime inicial fechado (§ 7º), não
proibindo assim a progressão caso ele venha a preencher os requisitos legais.
Tratando-se, porém de regra especial para o crime de tortura, a possibilidade
de progressão não se estender aos demais crimes hediondos ou equiparados,
vigendo para estes ainda a regra do artigo 2º, §2º, da Lei n. 8.072/90, que
determina para o agente o cumprimento integral em regime fechado.
Nesse ponto, o legislador ordinário resolveu ser mais
condescendente, já que não é o cumprimento da pena em regime integralmente
fechado que diminui a incidência dos crimes etiquetados na Lei de Crimes
Hediondos.
1.5 – A Aplicação Temporal do Regime Fechado
Em análise ao parágrafo único do artigo 2º, do Código
Penal, extrai-se que, tratando-se de norma penal mais benéfica, a regra a ser
aplicada é a da retroatividade da lei mais favorável. A irretroatividade
aplica-se, tão só, à lei penal mais severa.
Pois bem, muito se discute acerca da aplicabilidade, ou
não, da regra do § 1º, artigo 2º, da Lei n. 8.072/90 (cumprimento da pena em
regime integralmente fechado) aos condenados por fatos ocorridos antes de sua
vigência. Para Antônio Lopes Monteiro (33), a aplicação deste
dispositivo, mesmo que mais severo, aos crimes hediondos e assemelhados é
imediata, mesmo para os crimes cometidos antes da vigência desta lei.
Nesse mesmo sentido é a opinião de Julio Fabbrini Mirabete
(34), que acrescenta ainda que, por tratar de matéria exclusivamente
processual (de execução penal), não vigora a regra de retroatividade da lei
mais benéfica. Aplica-se assim, segundo o doutrinador, a regra geral tempus
regit actum (artigo 2º do Código de Processo Penal).
Contudo, os defensores desta tese sustentam ainda que, aos
condenados que já estejam cumprindo a pena em regime semi-aberto ou aberto,
beneficiados que foram desde a sentença condenatória ou com a progressão, não
lhes são aplicável a disposição da nova lei, retroagindo ao regime fechado,
caso contrário haveria afronta à coisa julgada.
Mas, contrário à aplicação imediata do dispositivo, é o
acertado entendimento de Alberto Silva Franco (35):
Implica, ainda, [o princípio da legalidade] na
não-retroatividade de normas legais, que versem sobre a fase executória da
pena, e que se mostrem idôneas a agravá-la, ou na retroatividade dessas mesmas
normas, no caso de minorá-la. Porque "a maior ou menor severidade do
regime prisional liga-se, em primeira e última análise, com a própria qualidade
da resposta penal", não podendo ele (o regime prisional) "ser objeto
da modificação por lei posterior ao crime, que seja mais gravosa. Do contrário,
haverá viva ofensa à garantia constitucional da irretroatividade da lei mais
draconiana (artigo 5º, inc. XL)". A acolhida do princípio da legalidade,
na execução penal, é, portanto, inconciliável com a aplicação imediata do novo
dispositivo legal que incida negativamente sobre a situação prisional do
executado.
Felizmente, a grande maioria dos tribunais brasileiros,
inclusive o STF, vem decidindo que proibida é a retroatividade da lei mais
severa, admitindo, assim, a progressão no caso de crime praticado antes da
vigência da Lei dos Crimes Hediondos.
02 – A APLICABILIDADE DAS PENAS ALTERNATIVAS A CRIMES
HEDIONDOS
O Código Penal, no seu artigo 32, vale lembrar, dividiu as
penas em privativas de liberdade, restritivas de direito e de multa,
tratando-se de reprimendas distintas, possuindo, cada uma, características
próprias e diferenciadas entre si.
Pois bem, ao que interessa neste tópico, a Lei n.
9.714/98, que altera dispositivos do Código Penal (artigos 43, 44, 45, 46, 47,
55 e 77), fixa, no artigo 44, requisitos objetivos e subjetivos para a
substituição da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direito
(doutrinariamente alcunhadas de "penas alternativas"). Os requisitos
objetivos que deverão ser cumpridos são: a) a pena inferior ou igual a 04
(quatro) anos, se o crime for doloso; b) crime praticado sem violência ou grave
ameaça a pessoa; c) réu não reincidente em crime doloso. Quanto aos requisitos
subjetivos, necessário se faz a análise dos seguintes elementos: a) culpabilidade;
b) antecedentes; c) conduta social e a personalidade do condenado; d) motivos e
circunstâncias do crime.
Nota-se que os requisitos a serem obedecido para haver a
substituição da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direito são
somente estes acima enumerados, nenhum mais. E mais, sabido é que normas
fixadas em lei geral (no caso o Código Penal) são aplicáveis em fatos
incriminados em leis especiais, se estas não dispuserem de forma diversa
(conforme artigo 12 do Código Penal).
Assim, nessa linha de raciocínio, a Lei n. 8.072/90, que é
especial, definiu os crimes hediondos e os assemelhados, e disciplinou diversas
normas de direito penal, processo penal e execução aplicáveis aos crimes ali
definidos, mas nada dispôs acerca da impossibilidade de substituição da pena
privativa de liberdade por restritiva de direito, que deixa acreditar que é
plenamente possível a aplicação das penas alternativas aos crimes hediondos e
assemelhados (claro que excluídos aqueles cujas penas aplicadas excedam 4 anos
e os praticados com violência e grave ameaça à pessoa).
Essa conclusão se dá com base no princípio da legalidade,
também conhecido como da reserva legal ou da anterioridade da lei, consagrado
no artigo 1º, do Código Penal, e constitucionalizado no artigo 5º, incisos
XXXIX e XL, da CF/88. Ora, se nem o Código Penal e nem a Lei n. 8.072/90
proibiu a aplicação de penas alternativas aos crimes hediondos e equiparados,
não cabe ao interprete fazê-lo por conta própria, em face ao principio da
legalidade.
Outra questão se refere a previsão da Lei n. 8.072/90 que
estabelece o regime integralmente fechado para o cumprimento da pena privativa
de liberdade. Seria então incompatível a substituição da pena em face desta
determinação? Sábios doutrinadores crêem que não. Luiz Flávio Gomes (36)
entende que:
o regime fechado determinado pela lei dos crimes hediondos
somente é válido para a fase de execução da pena de prisão. Se o juiz entende
que a prisão imposta deve ser substituída por outra sanção alternativa, não se
chega a execução da pena de prisão (isto é, não se chega a sua fase executiva).
Logo, não é o caso de se aplica o "regime fechado". Só se pode falar
em "regime" na fase de execução da pena de prisão.
Assim, quando da aplicação da pena privativa de liberdade,
o juiz deve fixar o regime inicial de seu cumprimento para, posteriormente
examinar obrigatoriamente, conforme seja necessário e suficiente para a
reprovação e prevenção do crime, a substituição por outra espécie de pena, se
cabível. Mas a substituição se dá sempre antes da fase de execução da pena.
Feitas estas considerações, conclui-se que, na prática, as
penas alternativas definidas no artigo 43 do Código Penal, poderão ser
aplicadas (desde de que preenchidos os requisitos) no crime hediondo definido
no artigo 273, § 2º, do CP (falsificação, corrupção, adulteração ou alteração
de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais na modalidade culposa),
já que a conduta não é realizada com violência ou grave ameaça, e sim mediante
fraude, e a pena, no caso de tentativa, pode ser inferior a 4 (quatro) anos.
Quanto à aplicabilidade das penas alternativas aos crimes
equiparados aos hediondos, ao que se refere ao terrorismo, inaplicável a
substituição, já que é este não ainda tipificado. Da mesma forma, inadmissível
a substituição em caso de tortura, que, para sua configuração, necessário se
faz o emprego de violência e grave ameaça e para a substituição, por sua vez,
pressupõe-se que o crime não seja praticado em tais circunstâncias. Já quanto
ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, admite-se a imposição de
penas alternativas, tendo em vista que as penas mínimas previstas nos artigos
12, 13 e 14 da Lei n. 6.368/76 é de 03 (três) anos de reclusão.
Mas nunca se deve esquecer, que o tratamento mais leve, no
caso a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito
(ou alternativa), está sempre condicionado as circunstâncias subjetivas e
objetivas definidas no artigo 44 do Código Penal.
03 – LIVRAMENTO CONDICIONAL E REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA
A Lei n. 8.072/90, através de seu artigo 5º, acrescentou o
inciso V ao artigo 83 do Código Penal que dispõe sobre os requisitos para a
concessão do livramento condicional. O novo dispositivo determina que o
condenado por crime hediondo ou assemelhado obterá a concessão do livramento
condicional se, além de preencher os requisitos já determinados pelo Código
Penal (pena fixada na sentença igual ou superior a dois anos, bom comportamento
carcerário, ausência de periculosidade etc), preencher mais dois novos
requisitos, quais sejam: 1º) o cumprimento de mais de dois terço da
pena; e 2º) não ser ele reincidente específico. Veja-se a determinação
legal:
Art. 5º - Ao artigo 83 do Código Penal é acrescido o
seguinte inciso:
Art. 83 -...
V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de
condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente
específico em crimes dessa natureza.
Ao que se refere o primeiro requisito (o tempo de
cumprimento de pena para concessão do livramento condicional), à primeira
vista parece haver um choque com o artigo 2º, § 1º, da Lei dos Crimes
Hediondos, que determina o cumprimento da pena em regime integralmente fechado.
Ora, se condenado por crime hediondo ou assemelhado deve cumprir a integridade
da pena em regime fechado, como, então, aceitar que após o cumprimento de dois
terços da pena imposta (e não a integridade desta) tenha ele a concessão do
livramento condicional?
Na verdade, a contradição existente entre o artigo 83,
inciso V, do Código Penal e o artigo 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos é
apenas aparente. A doutrina, quase que na sua totalidade, defende ser as duas
disposições conciliáveis. Veja-se que, presentes os pressupostos autorizadores
da concessão do livramento condicional, é inquestionavelmente permitida a
concessão do benefício, ficando o condenado em regime exclusivamente fechado
até a concessão de sua liberdade condicional. Em outras palavras, enquanto não
puder se beneficiar com o livramento condicional, o condenado por crime
hediondo ou assemelhado deverá cumprir a pena integralmente no regime fechado,
sem poder obter progressão para regime mais leve.
O segundo requisito a ser obedecido para a concessão do
livramento condicional ao condenado por crime hediondo ou assemelhado é que não
seja ele "reincidente específico em crimes dessa natureza". Então,
sendo o condenado reincidente específico, inadmissível é a concessão do
livramento condicional para este.
Mas, o que vem a ser a "reincidência
específica"? A Lei dos Crimes Hediondos ressuscitou, e não definiu, esta
figura que há tempos fora sepultada pelo ordenamento penal, e que na doutrina e
jurisprudência vem sendo objeto de controvérsia.
Damásio Evangelista de Jesus (37) sobre o
assunto informa:
Há a reincidência específica, para efeito da disposição,
quando o sujeito, já tenha sido condenado por qualquer dos delitos elencados
por sentença transitado em julgado, vem novamente a cometer um deles. Exs.
crime hediondo anterior e tráfico de entorpecentes; estupro e tráfico de
entorpecentes; latrocínio e tortura etc.
Parecer diverso, mas talvez não tão acertado, tem Alberto
Silva Franco (38):
A reincidência que deve ser levada em conta, tem
características próprias, exclusivas: tem sua especificidade. E tal
especificidade reside, exatamente na comunicabilidade dos dados de composição
típica dos dois delitos. Qual a sintonia que pode existir entre o delito de
atentado violento ao pudor, simples ou qualificado, e o tráfico ilícito de
entorpecentes? [...] Evidentemente nada.
Ora, se bem analisada a intenção da lei ao fazer uso da
expressão "reincidente específico em crimes dessa natureza",
vê-se que não se refere esta a crimes da mesma espécie, como querem alguns,
refere-se a todos os crimes descritos na Lei n. 8.072/90.
Feitas estas considerações, acredita-se ser a posição mais
acertada a que se refere ao reincidente específico como sendo aquele que,
condenado com sentença transitada em julgado por crime descrito na Lei n.
8.072/90, venha a praticar outro crime previsto na mesma lei, independentemente
da natureza do primeiro ou do segundo.
04 – DA INSUSCETIBILIDADE DE ANISTIA, GRAÇA E INDULTO
A anistia, a graça e o indulto são formas de extinção da
punibilidade previstas no artigo 107, II, do CP. Através destes institutos o
Estado renuncia o jus puniendi.
Vale aqui fazer a distinção básica entre estes três tipos
de clemência soberana. Enquanto a anistia se aplica ao fato, a graça e o
indulto se aplicam às pessoas. Enquanto a graça (que alguns doutrinadores a
reconhece como indulto individual) é concedida individualmente quando
solicitada, o indulto é concedido coletivamente, sem necessidade de
solicitação.
Para o estudo destes institutos na Lei dos Crimes Hediondos, deve-se
voltar à análise do artigo 5º, XLIII, da Constituição, que considera os crimes
hediondos insuscetíveis de "graça ou anistia". Já a Lei dos
Crimes Hediondos traz em seu bojo que os crimes hediondos são insuscetível de
"anistia, graça e indulto". Note-se, então, que no inciso
proibitivo, o constituinte não inseriu o indulto, enquanto o legislador
ordinário o fez na Lei dos Crimes Hediondos.
Ora, teria aí o legislador ordinário extrapolado os limites que lhe foi
conferido por ocasião do preceito constitucional?
Há duas posições doutrinárias acerca do tema. Alberto Silva Franco
(39) manifesta-se pela inconstitucionalidade do dispositivo da lei
ordinária, citando o Ministro Assis Toledo:
... o Min. Assis Toledo deu à questão uma interpretação diversa,
considerando inaceitável a proibição do indulto, por meio de lei ordinária. ‘No
artigo 84, XII, a Constituição prevê expressamente o indulto e o atribui à
competência discricionária do Presidente da República. Ora, esse poder
discricionário do Chefe do Executivo encontra seus limites no próprio texto
constitucional, não podendo sofrer restrições pelo legislador ordinário. E a
Constituição, quando quis fazer restrições, mencionou a anistia e a graça,
deixando de fora o indulto, por ela previsto expressamente no citado artigo 84,
XII. Assim é, porque parece ilógico tomar, no artigo 84, XII, a palavra indulto
como abrangente da graça e, logo adiante, no mesmo texto constitucional (inc.
XLIII do artigo 5º), inverter o raciocínio para entender a graça é que abrange
o indulto’.
Noutro sentido é a posição de Antônio Lopes Monteiro (40):
A Lei n. 8.072/90, ao vedar a aplicação destes benefícios [..] apenas
repetiu o texto constitucional citado (artigo 5º, XLIII). Note-se que, numa
interpretação legal, o dispositivo incluiu o termo "indulto" para não
dar margem a dúvidas. [...] o texto constitucional no preceito concessivo
utiliza o termo "indulto"; já no de proibição, o termo
"graça". Ora, se não fossem utilizados, com as devidas diferenças
técnicas apontadas, como equivalentes, não seria lógico que no artigo 5º,
XLIII, a Constituição proibisse alguma coisa que no artigo 84, XII, não
estivesse prevista. Queremos com isso dizer que a concessão do indulto
coletivo, assim como do indulto individual (graça), já estava proibida no texto
da Carta Magna. Nem o dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos é
inconstitucional ao acrescentar o indulto, nem o dispositivo constitucional,
omitindo-o, teria sido omisso.
Esta segunda posição talvez seja a mais lúcida, já que se bem analisado o
artigo 5º, XLIII, percebe-se que a finalidade deste é a exclusão de todas as
formas de clemência soberana aos autores de crimes hediondos e assemelhados e
não haveria o porquê da exclusão de apenas parte destas.
05 – PRESÍDIOS FEDERAIS
A doutrina pouco diz acerca do assunto "presídios federais",
estabelecido pela Lei de Crimes Hediondos. Mesmo assim, vale o estudo do tema.
Determina o artigo 3º da Lei n. 8.072/90:
Art. 3º - A União manterá estabelecimentos penais, de segurança máxima,
destinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta
periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais ponha em risco a ordem
ou incolumidade pública.
Nota-se que a norma do artigo 3º é uma norma programática. Diz-se
programática porque o legislador ordinário impôs um programa, qual seja, a
construção de presídios federais, de segurança máxima. Só que, como para a
concretização deste programa necessário se faz verbas, esta norma é letra
morta.
O legislador ordinário demonstrou boas intenções neste ponto, criando
importante medida em face da periculosidade daqueles que praticam crimes
etiquetados como hediondos. A colocação desses criminosos em presídios de
segurança máxima dificilmente permitiria que eles comandassem a criminalidade
de dentro das prisões, como não raramente acontece nos dias atuais.
Mas, para o Estado, a questão prisional é relegada a uma posição
secundária. Valdir Sznick (41) acertadamente opina:
Aí está a norma. Resta agora a vontade política de construir presídios.
Cumpre assinalar que presídios e sua construção, assim o entendemos, não dão
voto. Mas se não dão votos diretamente, dão-nos indiretamente, através da
tranqüilidade e segurança que passam a fornecer aos cidadãos.
Lamentável é que os governos não atentem para este dispositivo, de imensa
relevância no combate à criminalidade (42). (43)
CONCLUSÕES
Diante do que fora exposto na presente monografia, passa-se às conclusões
alcançadas.
Os crimes hediondos têm sua gênese no artigo 5º, inciso XLIII, da
Constituição Federal, que, claramente, apoiou-se na corrente político-criminal
denominada movimento da lei e da ordem, que defende que força maior deve
ser dada à máquina repressiva do Estado. O mandamento constitucional é de 1988,
mas a Lei n. 8.072 só foi editada em 1990, em face dos crimes horrendos que
assombravam a nação àquela época.
A Lei n. 8.072/90 indicou, em rol taxativo, quais são os crimes
considerados hediondos, e também, seguindo o mandamento constitucional, indicou
os crimes assemelhados aos hediondos (a tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e o terrorismo).
Das conseqüências da hediondez, tem-se a dilatação do prazo da prisão
temporária, que, pela lei que regula esta prisão cautelar (Lei n. 7.960/89), é
de 05 dias, passou, nos casos de crimes hediondos e assemelhados, para 30 dias
prorrogáveis por igual período.
Outra conseqüência é a proibição de concessão de fiança e liberdade
provisória ao acusado por prática de crime hediondo e assemelhado. A proibição
de concessão de fiança é quase que inócua, uma vez que quase que a totalidade
dos crimes considerados hediondos e assemelhados não se encaixam nos requisitos
exigidos pelo artigo 323 e inciso do Código de Processo Penal, que autorizam a
concessão de fiança. No que pertine a proibição da liberdade provisória, nada
há de inconstitucional, vez que o inciso LXVI do artigo 5º da Constituição
Federal ampara a vedação, porque deixa à lei a escolha dos casos em que será
possível ou não à liberdade provisória.
Continuando, a Lei 8.072/90 estabelece causas de diminuição e aumento de
pena, nos artigos 7º, 8º, parágrafo único, e 9º. O artigo 7º criou para o
co-autor ou o partícipe do crime de extorsão mediante seqüestro (artigo 159 do
Código Penal), o benefício da delação eficaz, onde a pena destes será reduzida
em 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) caso a revelação do delator proporcione a
liberação do seqüestrado. O artigo 8º, parágrafo único, trata do instituto da
traição benéfica, onde haverá a diminuição da pena, na razão de 1/3 (um terço)
a 2/3 (dois terços), do réu que delatar à autoridade o bando ou a quadrilha,
possibilitando o desmantelamento destas. O artigo 9º, por sua vez, estabeleceu
causa de aumento de pena, dispondo que a pena será aumentada de metade nos
crimes nele relacionados quando a vítima se encontrar numa das condições do
artigo 224 do Código Penal.
Também, a Lei dos Crimes Hediondos determinou, em seu artigo 2º, § 2º,
que, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá se o réu poderá apelar
em liberdade. Assim, o juiz poderá permitir a apelação em liberdade, desde que
o faça fundamentadamente, baseando-se na desnecessidade da custódia cautelar.
Não poderá conceder tal direito, todavia, se o réu já se encontrava preso
durante a fase de instrução.
Quanto à execução da pena, a Lei n. 8.072/90 estabelece que o condenado
por crime hediondo e assemelhado deve cumprir a pena integralmente em regime
fechado. Tal disposição, além de ferir os princípios constitucionais da
individualização e da humanidade da pena, serve como desestímulo a
ressocialização do condenado, causando neste a desesperança de vislumbrar a
liberdade, surgindo o inconformismo e, de conseqüência, rebeliões e fugas.
Mesmo com esta determinação de cumprimento da pena integralmente em
regime fechado, o STF já decidiu que, se na decisão judicial constar a fixação
do regime fechado somente como regime inicial de cumprimento da pena, sem que
tenha recorrido o Ministério Público, transitando em julgado a decisão, o
condenado terá direito à progressão quando da execução da pena.
A Lei de Tortura ao estabelecer que o condenado por crime de tortura
iniciará o cumprimento de pena em regime fechado, não revogou o § 1º do artigo
2º da Lei dos Crimes Hediondos. Assim, admite-se a progressão nos regimes de
cumprimento de pena somente na hipótese de condenação por crime de tortura
(artigo 1º, § 7º, da Lei n. 9.455/1997). Essa é a posição do Supremo Tribunal
Federal.
Não havendo proibição nem no Código Penal, nem na Lei n. 8.072/90, de
aplicabilidade das penas alternativas a crimes hediondos e assemelhados,
conclui-se ser possível a aplicação de tal tipo de reprimenda aos que
praticarem estes crimes, desde de que preenchidos os requisitos objetivos e
subjetivos determinados pelo artigo 44 do Código Penal.
O Condenado por crime hediondo ou assemelhado, após cumprir 2/3 (dois
terços) da pena que lhe foi imposta, poderá ser agraciado com o benefício do
livramento condicional, desde que não seja reincidente específico (ou seja, não
tenha sofrido outra condenação por qualquer tipo de crime hediondo ou
assemelhado).
Quanto ás clemências soberanas, o condenado por crime hediondo não poderá
ser beneficiado com os institutos da anistia, da graça e do indulto.
Entretanto, há divergência doutrinária, pelo fato de a Constituição Federal
vedar aos referidos crimes a concessão da graça e da anistia, e da Lei dos
Crimes Hediondos vedar a concessão da anistia, da graça e do indulto. Portanto,
a vedação do indulto a tais crimes não fere a Constituição Federal, pois o
texto constitucional, ao mencionar a graça, o fez em termos genéricos, no
sentido de clemência, indulgência.
Ao que se refere ao mandamento legal de construção de presídios federais
(artigo 3º da Lei n. 8.072/90), esta é apenas mais uma norma programática que,
ora por falta de vontade política, ora por falta de compreensão popular, não
parece propícia a ser concretizada tão cedo.
Notas
01. Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, in
"Manual de direito penal brasileiro – parte geral". São Paulo: RT,
1997, p. 745, definem coerção penal assim: "Por coerção penal se
entende a ação de conter ou de reprimir, que o direito penal exerce sobre os
indivíduos que cometem delitos".
02. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O espírito das leis. Tradução
de: Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2ª ed. Brasíla: Ed.
UnB, 1995, p. 3.
03. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: RT, 2000, p. 75.
04. JESUS, Damásio E. de. Lei dos juizados especiais anotada. São Paulo:
Saraiva, 1996, p. 02-3.
05. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 76.
06. FEU ROSA, Antônio José Miguel. Direito penal concreto. Brasília:
Consulex, 1992, p. 81.
07. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 77.
08. DIAS, Jorge Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2001, p. 6.
09. FEU ROSA, Antônio José Miguel. Op. cit., p. 78.
10. DIAS, Jorge Figueiredo. Op. cit., p. 6.
11. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. São Paulo: Saraiva,
1991, p. 457.
12. Veja-se mais sobre o tema "penas desumanas" na seqüência
deste trabalho.
13. MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e
aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p 95.
14. MONTEIRO, Antônio Lopes. Op. cit., p. 95.
15. Ver mais sobre o tema na Parte II deste trabalho, no capítulo III, no
ponto 1.4 denominado "a proibição do regime progressivo em face da lei de
tortura".
16. MONTEIRO, Antônio Lopes. Op. cit., p. 113.
17. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 110.
18. Citado por Alberto Silva Franco. Op. cit., p. 362.
19. SZNICK, Valdir. Comentários à lei dos crimes hediondos. São Paulo:
LEUD, 1993, p. 311.
20. MONTEIRO, Antônio Lopes. Op. cit., p. 125.
21. MONTEIRO, Antônio Lopes. Op. cit., p. 125.
22. Trata-se aqui de uma adaptação dos dizeres de Jean-marie Lambert, in
Curso de direito internacional: o mundo global. Goiânia: Kelps, 2000, p. 45.
23. Citado por Alberto Silva Franco. Op. cit., p. 306.
24. Note-se que essa diminuição foi repetida pelo artigo 6º da Lei n.
9.034/95 (Lei do Crime Organizado) sendo que, desde então, o benefício se
entende ao participante ou associado de qualquer organização criminosa,
independentemente se a organização tem por finalidade a prática de crimes
hediondos e assemelhados ou não.
25. GONÇALVES, Victor Gonçalves Rios. Crimes hediondos, tóxicos,
terrorismo, tortura. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 67.
26. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à lei nº
7.210/84. São Paulo: Atlas, 2000, p. 327.
27. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 199.
28. GOMES, Luiz Flavio. Penas e medidas alternativas à prisão. São Paulo:
RT, 1999, p. 67.
29. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 166.
30. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 163.
31. MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p. 327.
32. MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p. 328.
33. MONTEIRO, Antônio Lopes. Op. cit., p. 139.
34. MIRABETE, Júlio Fabrini. Op. cit., p. 350.
35. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 206-7.
36. GOMES, Luiz Flavio. Op. cit., p. 113.
37. JESUS, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 545.
38. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 149.
39. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 141.
40. MONTEIRO, Antônio Lopes. Op. cit., 120.
41. SZNICK, Valdir. Op. cit., p. 334.
42. A esse respeito, veja-se nos anexos deste trabalho, reportagem
especial publicada in Revista Veja. O Brasil ensangüentado. N. 1.736, de
30 de janeiro de 2002, p. 76-77, que dispõe sobre a engrenagem emperrada do
sistema estatal que, ao invés de diminuir, contribui para aceleração da
criminalidade.
43. Cumpre aqui noticiar que o atual Ministro da Justiça, o grande
jurista Márcio Tomaz Bastos, que ocupa o cargo de ministro desde o início do
ano de 2003, até que tentou concretizar a norma que estabelece a criação de
presídios federais, mas logo viu que não é assunto de fácil resolução. No final
de março de 2003, o mesmo Ministro divulgou que dentro dos quarenta dias
seguintes, haveria a inauguração do primeiro presídio federal do Brasil (seria
realizada adaptação de um presídio já existente, que, mais tarde tornou-se
público, seria o Presídio Irmão Guido, localizado no Estado do Piauí). Mas logo
depois, cerca de 01 (uma) semana, o governador daquele Estado foi à Brasília
encontra-se com o Ministro e explicar-lhe que o Presídio Irmão Guido não tem
condições técnicas de ser federalizado, além de estar localizado no centro da
cidade da Teresina.Também, de acordo com aquele governador, não haveria
qualquer hipótese de o Estado ter um presídio federal e que todos os presos
perigosos do Brasil fossem para o Piauí. Daí vê-se o quão complicada é a
concretização de um projeto no sentido de construir um presídio federal, onde
nenhum governador estadual quer o preso de outro, tornando-se um verdadeiro
jogo de empurra política. Nada mais foi dito sobre o assunto depois disso,
sendo que a disposição da Lei dos Crimes Hediondos continua sendo apenas mais
uma norma programática.
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Retirado: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4690