Ano de eleição: mais uma lei dos crimes hediondos?

Autor: Luiz Flávio Gomes. Mestre e Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madrid (Espanha).

Como citar este artigo pela ABNT: GOMES, Luiz Flávio. Ano de eleição: mais uma lei dos crimes hediondos? Disponível na internet: http://www.direitopenal.adv.br, [05.05.02]


O legislador constituinte de 1988 (art. 5º, inc. XLIII) sinalizou que deveríamos contar com uma legislação mais “dura” em relação aos crimes hediondos (que devem ser definidos em lei) e equiparados (tráfico, terrorrismo e tortura).

O legislador ordinário vem cumprindo esse mandamento constitucional e periodicamente cuida do assunto. Não por coincidência, as principais leis relacionadas com os crimes hediondos saíram nos anos 90, 94 e 98. Ano de 1990: disputa entre Collor e Lula (aprovou-se a primeira lei dos crimes hediondos: Lei 8.072/90); ano de 1994: Fernando Henrique versus Lula (Lei 8.930/94); ano de 1998: Fernando Henrique versus Lula (Leis 9.677/98 e 9.695/98).

Ano eleitoral, como se vê, é tempo de revisar as leis dos crimes hediondos no Brasil! Logo, 2002 (seguramente) não escapará! Aliás, disso já se encarregou a Comissão de Segurança do Congresso Nacional que, logo após a morte do Prefeito Celso Daniel, em menos de dois meses, aprovou um “pacotaço” antiviolência: mais de dez propostas de mudanças na legislação, incluindo-se alterações significativas nas leis dos crimes hediondos.

As propostas, sem nenhuma grande novidade para os que militam na área criminal, tocam sempre nas mesmas teclas: definição de mais crimes, aumento de penas, endurecimento da execução, corte de direitos e garantias fundamentais etc. etc. É sempre a mesma coisa (more and more of the same), o filme e o roteiro não mudam. Mudança só existe mesmo no elenco (alguns atores, leia-se, políticos, são distintos) e no público (os enganados agora compõem um aglomerado maior que em 1998).

Uma outra diferença que se nota é a seguinte: antigamente havia mais pudor, a embromação era revestida de mais solenidade, a mídia era menos ostensiva. Hoje não, tudo é mais simples e direto. A deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP) bem resumiu a “ópera”: “A comissão é emergencial, tem caráter político e é uma resposta para a sociedade que o Congresso está fazendo algo pela segurança pública. Para ela a questão é política, e não regimental ou jurídica” (Folha de S. Paulo de 17.04.02, p. C8).

É a expressão mais viva do que nós professores e criminólogos chamamos de Direito penal “simbólico”. Que é isso? Significa o uso do Direito penal para fins políticos e eleitoreiros. É a sua utilização para acalmar a ira da população (e seu medo), diante do caos criado pela insegurança pública. Note-se que a preocupação não é resolver o problema (em sua origem, em sua base). O que se pretende é só “dar uma resposta à população”.

De uma vez por todas temos que proclamar: se mudanças nas leis penais fossem a solução para nosso gravíssimo problema de violência epidêmica já estaríamos vivendo num paraíso. Nenhum outro país (certamente) aprovou tantas leis penais como o Brasil nas duas últimas décadas (mais de 100). Se o setor da saúde pública (muito mais responsável do que o político-criminal) copiasse a mesma “solução” que os políticos dão para a violência, até hoje estaríamos só matando os mosquitos da dengue, sem ter praticamente erradicado (em brevíssimo tempo) todas as suas causas.

Nossos políticos e governantes precisam ser mais responsáveis nessa questão da violência epidêmica e da insegurança pública. Cuidar sempre (e só) dos efeitos da epidemia (e não das suas causas) conduz a uma política criminal estelionatária (enganadora, ilusionista), que combina a força simbólica do Direito penal com a ingenuidade das vítimas (população que crê em tudo isso) e o poder mágico dos holofotes midiáticos para satisfação de interesses (exclusivamente) privados (reeleição, manutenção do poder etc.). Até quando vamos ter que suportar esse círculo (e circo) vicioso?

LUIZ FLÁVIO GOMES
Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela Faculdade de Direito da USP e Diretor-Presidente do Centro de Estudos Criminais-Cursos e Pareceres Jurídicos (www.estudoscriminais.com.br). E-mail: falecom@luizflaviogomes.com.br