® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

A INTERNET E OS TIPOS PENAIS QUE RECLAMAM

AÇÃO CRIMINOSA EM PÚBLICO

 

Aldemario Araujo Castro

Procurador da Fazenda Nacional

Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional

Ex-Coordenador-Geral da Dívida Ativa da União

Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB

Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico - IBDE

Brasília, 10 de agosto de 2003

 

I. INTRODUÇÃO

Vivemos em plena “Sociedade da Informação” (1). Os inacreditáveis avanços tecnológicos atualmente observados apresentam duas facetas muito bem definidas. Temos um lado positivo ou construtivo, onde a vertiginosa velocidade da transmissão de informações e a enorme quantidade de dados processados geram as mais variadas comodidades. Por outro lado, como é a regra nos espaços humanos de interação, existe um campo negativo ou destrutivo ligado às modernas tecnologias da informação baseadas nos computadores eletrônicos. São vários os agentes, movidos por todo tipo de interesse, que utilizam os computadores e as redes por eles formadas, notadamente a Internet (2), para realizarem as condutas mais censuráveis ou condenáveis.

II. OS CRIMES DE INFORMÁTICA E SUAS CLASSIFICAÇÕES

Apesar de alguma discrepância doutrinária, são denominados de “crimes de informática” as condutas descritas em tipos penais realizadas através de computadores ou voltadas contra computadores, sistemas de informática ou os dados e as informações neles utilizados (armazenados ou processados).

Os tais “crimes de informática” são classificados de diversas formas. Destacamos as duas mais utilizadas. Existiriam os crimes de informática próprios e os impróprios. Os primeiros são aqueles que somente podem ser efetivados por intermédio de computadores ou sistemas de informática, sendo impraticável a realização da conduta por outros meios. Já os qualificados como impróprios admitem a prática por diversos meios, inclusive os meios informáticos. A outra classificação mais freqüente é tripartida. Teríamos: a) os crimes de informática puros, onde o agente objetiva atingir o computador, o sistema de informática ou os dados e as informações neles utilizadas; b) os crimes de informática mistos, onde o agente não visa o sistema de informática e seus componentes, mas a informática é instrumento indispensável para consumação da ação criminosa e c) os crimes de informática comuns, onde o agente não visa o sistema de informática e seus componentes, mas usa a informática como instrumento (não essencial, poderia ser outro o meio) de realização da ação.

III. OS CRIMES DE INFORMÁTICA E A TIPICIDADE PENAL

A Constituição, no art. 5o, inciso XXXIX, estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina. Nestes termos, o chamado tipo penal consiste numa conduta clara e nitidamente fixada em lei. A materialidade da conduta, os traços caracterizados da ação criminosa, necessitam estar estabelecidos com suficiente densidade e precisão.

A legalidade penal e a legalidade tributária, notadamente por representarem exceções aos direitos de liberdade e de propriedade, respectivamente, não admitem operacionalização ou construções abertas, viabilizando desvios, abusos e, em última instância, insegurança jurídica (3).

Constatamos, no campo do direito penal brasileiro, que a parte especial do Código foi elaborada na década de 40 do século passado, estando os tipos penais mais relevantes vinculados aos traços de materialidade e tangibilidade, completamente afastados do mundo eletrônico ou virtual trazido pelas modernas tecnologias da informação (4).

Advogamos, portanto, a imperiosa necessidade de adoção, pela via legislativa, única apropriada, de modernos tipos penais para permitir a repressão às ações realizadas nos meios eletrônicos tendo como alvos as novas realidades intangíveis. Entendemos, apesar de inúmeras vozes contrárias, que nestes últimos casos, à mingua de lei, as condutas flagradas não são (ainda) criminosas (5).

IV. TIPOS PENAIS QUE EXIGEM AÇÃO CRIMINOSA EM PÚBLICO

Por outro lado, são vários os tipos penais atualmente existentes que reclamam publicação, publicidade ou ação em local aberto ao público como elemento essencial para efetivação da ação criminosa ou contravencional (6). Vejamos, num rápido apanhado sem pretensão de esgotar as hipóteses, os crimes (ou contravenções) com esta característica:

“Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” (art. 208 do Código Penal)

“Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público” (art. 233 do Código Penal)

“Incitar, publicamente, a prática de crime” (art. 286 do Código Penal)

“Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de seu autor” (art. 287 do Código Penal)

“Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele” (art. 50 da Lei de Contravenções Penais)

“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

§2o Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza” (art. 20 da Lei no 7.716, de 1989)

“Comete crime de concorrência desleal quem:

I - publica, por qualquer meio, falsa informação, em detrimento de concorrente, com o fim de obter vantagem;” (art. 195 da Lei no 9.279, de 1996)

“Fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” (art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente)

V. IMPORTÂNCIA DO TEMA

O debate aqui proposto reveste-se de importância fundamental. Afinal, se a veiculação de certos dados ou informações pela Internet (rede mundial de computadores) não puder ser caracterizada como publicação, estaremos afastando para o campo da atipicidade penal, para a ausência de conduta criminosa, uma série de ações altamente reprováveis e alvo de intensa condenação social.

Neste sentido, da caracterização de atipicidade penal, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Eis a parte mais significativa da ementa da decisão (7):

“A aplicação analógica de disposição penal atenta contra o princípio constitucional da legalidade ou reserva legal. ‘Divulgar’ não é ‘publicar’: quem publica, divulga, certamente; mas nem todo aquele que divulga, publica. A divulgação pode ser por qualquer forma, até oral, mas a publicação não prescinde da existência de objeto material corpóreo.”

VI. A INTERNET COMO ESPAÇO PÚBLICO OU ABERTO AO PÚBLICO E ONDE É VIÁVEL A AÇÃO DE PUBLICAR

A Internet (rede mundial de computadores) pode e deve ser vista como espaço público, aberto ao público e onde é viável a ação de publicar (8). Sustentamos a afirmação anterior com base em duas linhas de argumentação.

O primeiro argumento está assentado nos sentidos ou significados dos termos “público” e “publicar”. Não há, nas definições dos vocábulos, necessidade de meios ou formas específicos ou especiais. São termos abertos, dotados de significativa generalidade. Vejamos como aparecem os verbetes em alguns dos dicionários mais reconhecidos:

“Público. 3. Que é do uso de todos; comum: hospital público; passeio público. 4. Aberto a quaisquer pessoas: exposição pública; conferência pública; concurso público. 5. Conhecido de todos; manifesto, notório: O escândalo tornou-se público. 6. Que se realiza em presença de testemunhas, em público; não secreto: sessão pública; votação pública.

Publicar. 1. Tornar público, manifesto, notório; vulgarizar: publicar um segredo. 2. Divulgar, espalhar. Propalar. 3. Afirmar publicamente; proclamar, pregar.” (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Editora Nova Fronteira. 2a Edição)

“Público. Que se refere ao povo em geral. Manifesto, conhecido por todos. A que todas as pessoas podem comparecer. Em público, em presença de muitas pessoas.

Publicar. Levar ao conhecimento do público: publicar uma lei. Divulgar, propagar: publicar uma notícia.” (Enciclopédia e Dicionário Koogan/Houaiss. Edições Delta. 1995)

O segundo argumento está assentado na idéia de uma interpretação evolutiva (9) da legislação em consonância com o contexto em que a norma será aplicada. Com efeito, o frenético surgimento de novas tecnologias impõe ao intérprete e ao aplicador do direito uma responsabilidade anterior a do legislador. A ampliação do campo de abrangência de atos ou atividades representadas por determinada fórmula lingüística (palavra ou expressão) deve ser vista com naturalidade e prontamente acatada quando é uma imposição inexorável da realidade, e não, um capricho do intérprete para o atendimento de interesses escusos ou mesquinhos (10).

Neste sentido, o ato de publicar possuía contornos mais limitados antes do surgimento dos meios eletrônicos de amplo acesso público, notadamente a Internet. Com as novas formas eletrônicas de propagação da informação é irrecusável a ampliação do significado de publicar para abranger estas novas realidades.

Assim, o registro em sites ou home pages, o envio de informações por intermédio de listas de discussão ou distribuição de e-mails, a comunicação em chats ou salas de bate-papo abertas são situações que se enquadram perfeitamente na delimitação apresentada neste trabalho.

É preciso consignar que não é todo “local” na Internet que pode ser caracterizado como público ou viabilizador da ação de publicar. Com efeito, os sites, ou partes deles, com acesso restrito ou limitado, notadamente por conta da utilização de senhas, não permitem, à toda evidência, o enquadramento referido anteriormente (11).

VII. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Em decisão, alçada à condição de paradigma, de enorme repercussão nas reflexões sobre o direito da informática, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento absolutamente consonante com aquele defendido neste trabalho. Eis a ementa da importante decisão (12):

“’Crime de Computador’: publicação de cena de sexo infanto-juvenil (E.C.A., art. 241), mediante inserção em rede BBS/Internet de computadores, atribuída a menores: tipicidade: prova pericial necessária à demonstração da autoria: HC deferido em parte. 1. O tipo cogitado - na modalidade de ‘publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente’ - ao contrário do que sucede por exemplo aos da Lei de Imprensa, no tocante ao processo da publicação incriminada é uma norma aberta: basta-lhe à realização do núcleo da ação punível a idoneidade técnica do veículo utilizado à difusão da imagem para número indeterminado de pessoas, que parece indiscutível na inserção de fotos obscenas em rede BBS/Internet de computador. 2. Não se trata no caso, pois, de colmatar lacuna da lei incriminadora por analogia: uma vez que se compreenda na decisão típica da conduta criminada, o meio técnico empregado para realizá-la pode até ser de invenção posterior à edição da lei penal: a invenção da pólvora não reclamou redefinição do homicídio para tornar explícito que nela se compreendia a morte dada a outrem mediante arma de fogo. 3. Se a solução da controvérsia de fato sobre a autoria da inserção incriminada pende de informações técnicas de telemática que ainda pairam acima do conhecimento do homem comum, impõe-se a realização de prova pericial.”

VIII. CONCLUSÕES

Diante das considerações realizadas podemos concluir o seguinte:

1. A Internet (rede mundial de computadores) pode e deve ser vista como espaço público, aberto ao público e onde é viável a ação de publicar.

1.1. O registro em sites ou home pages, o envio de informações por intermédio de listas de discussão ou distribuição de e-mails, a comunicação em chats ou salas de bate-papo abertas são situações com a marca da publicidade.

1.2. Não é todo “local” na Internet que pode ser caracterizado como público ou viabilizador da ação de publicar. Os sites, ou partes deles, com acesso restrito ou limitado, notadamente por conta da utilização de senhas, não permitem, à toda evidência, o enquadramento referido anteriormente.

2. O frenético surgimento de novas tecnologias impõe ao intérprete e ao aplicador do direito uma responsabilidade anterior a do legislador. Impõe-se uma interpretação evolutiva da legislação em consonância com o contexto em que a norma será aplicada. A ampliação do campo de abrangência de atos ou atividades representadas por determinada fórmula lingüística (palavra ou expressão) deve ser vista com naturalidade e prontamente acatada quando é uma imposição inexorável da realidade.

NOTAS:

(1) “Hoje, a humanidade, atônita, se vê diante da incrível velocidade das mudanças. A primeira (Revolução Agrícola) levou um pouco mais de 9.000 anos; a segunda (Revolução Industrial) cerca de três séculos e agora pouco mais de 45 anos. Estamos frente a uma nova mudança, tão profunda, que arriscamos afirmar que nos encontramos diante de uma nova civilização. A civilização da Revolução Digital, tendo a América do Norte como o palco principal deste novo período, chamado, por muitos, de Sociedade Pós-Industrial./É importante frisar que estas três revoluções se caracterizaram, principalmente, por estarem embasadas num sistema distinto de geração de riquezas. Mas todas, indistintamente, produziram efeitos e conseqüências que interferiram de forma marcante, causando mudanças nos diferentes sistemas político, social, cultural, filosófico, jurídico, ético e institucionais, entre outros, como veremos a seguir” (Marco Antônio Machado Ferreira de Melo. A Tecnologia, Direito e a Solidariedade em Direito, Sociedade e Informática - Limites e perspectivas da vida digital. Fundação Boiteux. 2000. Págs. 22 e 23).

(2) “... é um sistema mundial de redes de computadores - uma rede de redes em que os usuários em qualquer computador podem, se tiverem permissão, obter informações de qualquer outro computador (e às vezes falar diretamente com usuários em outros computadores). (...) Hoje, a internet é uma facilidade pública, cooperativa e auto-sustentável acessível a milhões de pessoas em todo o mundo” (Dicionário de Tecnologia. Editora Futura. 2003. Pág. 436).

(3) Nesta linha, temos uma situação radicalmente distinta da proteção presente na legislação civil. Veja que os arts. 186 e 927 do Código Civil (Lei no 10.406, de 2002) fixam a obrigatoriedade de reparação do dano para qualquer ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência. Não existem condutas previamente descritas ou estabelecidas. Importa tão-somente a relação ou nexo entre a ação e o resultado.

(4) Neste sentido, a análise ou estudo do tipo penal do furto, consagrado no art. 155 do Código Penal, é riquíssima de significados. Com efeito, a ação ou conduta criminosa consiste em subtrair coisa alheia móvel. A marca da tangibilidade do bem sobre o qual recai a ação criminosa fica patente nos termos "subtrair", "coisa" e "móvel". Temos, para confirmar esta conclusão, o parágrafo terceiro do mesmo artigo estabelecendo taxativamente, porque não compreendido no caput, o furto de energia elétrica, algo desprovido de materialidade, consagrada como padrão.

(5) Importa, ainda, para não estender a conclusão anterior além do âmbito devido, fixar que não é o simples fato do uso do computador ou da presença dele que conduz a atipicidade penal. A conclusão decorre tão-somente das características não tangíveis dos bens afetados.

(6) “No Brasil, só há dois tipos de infrações penais: 1. Os crimes (também chamados delitos). 2. As contravenções. Na verdade, inexiste um dado exato que sirva de divisor entre crime e contravenção. (...) A única distinção entre crimes e contravenções reside na maior ou menor gravidade com que a lei vê tais condutas, denominado ‘contravenções’ às mais leves e ‘crimes’ às mais graves. Entretanto, dependendo da vontade do legislador, um corportamento que hoje é crime pode passar, amanhã, a contravenção e vice-versa” (Celso Delmanto. Código Penal Comentado. 2a Edição. 1988. Editora Renovar. Pág. 20).

(7) Habeas Corpus. Processo no 2000.059.01916. Sexta Câmara Criminal. Relator Desembargador Eduardo Mayr. Julgamento em 27 de julho de 2000.

(8) “Publicar é tornar público, divulgar. Quem insere fotos de crianças ou adolescentes em cena de sexo na Internet está publicando e, assim, cometendo a infração. O crime pode ser praticado através de sites ou homepages, muitas delas destinadas à pornografia. É importante salientar que não importa o número de internautas que acessem a página, ainda que ninguém conheça o seu conteúdo, as imagens estarão à disposição de todos, configurando a infração. Aliás, o crime se consuma quando as imagens estão à disposição do público” (Carla Rodrigues Araújo de Castro. Crimes de Informática e seus Aspectos Processuais. 2a Edição. 2003. Editora Lumen Juris. Pág. 46).

(9) O direito constitucional conhece o fenômeno da interpretação evolutiva. Segundo Luís Roberto Barroso: “ A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes” (Interpretação e Aplicação da Constituição. 4a Edição. 2002. Editora Saraiva. Pág. 145). O mesmo autor registra ainda: “As normas, ensina Miguel Reale, valem em razão da realidade de que participam, adquirindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas inalteradas as suas estruturas formais” (Idem. Pág. 144).

(10) “Pensamos, no entanto, que não violenta o valor segurança jurídica, nem diminui a força operacional da noção de conceito classificatório ou determinado, a adaptação de elementos tributários estruturantes a mudanças radicais de paradigmas sociais. Não advogamos a sensibilidade a qualquer mudança. Sustentamos a vinculação do conceito aos cânones de uma nova etapa histórica, condutora de fatos e situações novas, mas nele enquadráveis razoavelmente, porque apenas formas originais de efetivamente praticar os mesmos atos, ou, sob o ângulo do conteúdo, da essência, realizar as mesmas manifestações econômicas” (Aldemario Araujo Castro. Os meios eletrônicos e a tributação. Disponível em: http://www.aldemario.adv.br/meios.htm. Acesso em: 8 jul 2003).

(11) A menos que a senha seja distribuída indiscriminadamente ou para número significativo de pessoas.

(12) Habeas Corpus no 76.689/PB. Primeira Turma. Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Julgamento em 22 de setembro de 1998.