Apontamentos sobre os delitos de
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Sumário: I.
Introdução; II. Desvalor da ação e desvalor do resultado; III. Classificação
clássica dos delitos de perigo; IV. Classificação moderna dos delitos de
perigo; V. Conclusão. I-Introdução Certa
feita afirmou HALSCHNER: "o perigo é filho de nossa ignorância". Sob
a perspectiva do Direito Penal, o perigo pode ser definido como a
probabilidade de um evento temido. A
idéia de perigo começa a se desenvolver como critério geral de intervenção
penal, tanto na argumentação dogmática como nas legislações penais mais
modernas. Neste
sentido, é notória a perda do medo de se ultrapassar as barreiras da proteção
penal, convertendo a punição de condutas que supõem um perigo para bens
jurídicos em uma técnica comum de tutela, de modo que a intervenção punitiva
aparece cada vez mais fundamentada na idéia de risco. Atualmente
o comportamento perigoso parece perfilhar-se como um modelo autônomo de
tipificação penal. O
tema relativo aos delitos de perigo apresenta expressivo relevo no contexto
da teoria geral do crime, vez que cresce de forma significativa sua
introdução nas modernas legislações penais. Em
atenção à modalidade do ataque ao bem jurídico, a doutrina penal elabora
critérios de distinção entre os delitos de lesão(dano) e os delitos de
perigo. A
primeira categoria denominada delitos de lesão ou de dano, são aqueles
em que o tipo penal descreve uma ação lesiva de um bem jurídico, de modo que
a conduta somente assume relevância jurídico-penal quando se verificar
efetivo dano(lesão) ao interesse tutelado. Os
delitos de lesão pressupõem a realização de uma conduta que destrua
totalmente ou ao menos, provoque danos graves ao bem jurídico digno de
tutela. Já
os delitos de perigo são aqueles que se consumam com a simples criação
do perigo para o bem jurídico protegido, sem produzir dano efetivo. Nestes,
segundo a moderna doutrina penal, existe nítida exposição do bem jurídico a
uma situação de risco. Com efeito, preconiza
POLAINO NAVARRETE que "en los delitos de peligro no se produce en
realidad una lesión material(objetivamente apreciable) a un bien jurídico,
sino que el objeto de tutela resulta precisamente protegido frente a la mera
puesta en peligro que la conducta típica entraña".1 II-Desvalor da ação e desvalor do resultado Dentro
do tema dos crimes de perigo, importante uma breve referência à concepção
pessoal do injusto penal, derivando disto a distinção entre um desvalor da
ação e um desvalor do resultado. O
desvalor da ação é representado pelo desvalor da intenção(dolo/culpa). É a
soma da infração da norma(proibida ou de cuidado) somada a criação do risco.
No desvalor da ação há a probabilidade de causar o perigo ex ante. Já
o desvalor do resultado traduz-se na lesão ao bem jurídico protegido e ainda
a realização do risco. Denota-se a constatação de uma situação de perigo ex
post. Neste
aspecto, a doutrina elaborou duas teorias de destaque: a primeira denominada
monista-subjetiva e a segunda, dualista do injusto pessoal. Para
a doutrina monista-subjetiva, considera-se que basta o desvalor da
ação para a confirmação do injusto penal, ficando em geral, o desvalor do
resultado relegado à categoria de condição objetiva de punibilidade.2 Referida
teoria é defendida em especial por ZIELINSKI e ARMIN KAUFMANN que sustentam
que para qualificar um fato como injusto penal, bastaria a análise do
desvalor de ação, que se identifica com a vontade antinormativa do autor,
ficando relegado o desvalor do resultado a um papel secundário, fora do
injusto. Em
suma, o ilícito jurídico-penal é ilícito de ação. Citada
doutrina é criticada, sobretudo, no tocante ao fato de que implica, no fundo,
em uma orientação autoritária que compatibiliza mais com um direito penal do
autor do que com um direito penal do fato, ao deixar em segundo plano a
valorização sobre a afetação do bem jurídico, conceito chave em um sistema
penal democrático.3 De
outra parte, a teoria dualista do injusto pessoal finca suas
bases em duas considerações concretas: sem desvalor da ação não se tem por
conformado o injusto penal e sem desvalor de resultado(lesão ou perigo para o
bem jurídico), da mesma forma, não se concretiza o injusto. Neste
sentido, toda infração penal deve conter um desvalor de ação e um desvalor de
resultado. Ao
tratar do tema, LUIZ REGIS PRADO assinala que "para a fundamentação
completa do injusto, faz-se necessária a coincidência entre desvalor da ação
e o desvalor do resultado, visto que a conduta humana só pode ser objeto de
consideração do Direito Penal na totalidade de seus elementos objetivos e
subjetivos".4 Em
síntese, é a teoria acolhida pela maioria das modernas legislações penais, em
especial no continente europeu. III-Classificação tradicional dos delitos de perigo No
âmbito dos delitos de perigo, percebe-se uma classificação antiga ou
clássica, segundo a qual, se o legislador inclui o perigo no tipo,
denomina-se crime de perigo concreto. Se
por outro lado, o legislador não menciona o perigo e se da interpretação do
tipo permite-se qualificá-lo como delito de perigo, a doutrina o denomina de crime
de perigo abstrato. Afirma
CLAUS ROXIN que os delitos de perigo concreto requerem que no caso
concreto haja produzido um perigo real para um objeto protegido pelo tipo
respectivo.5 Os
delitos de perigo concreto ou efetivo têm expressamente estabelecido no tipo,
a necessidade de que haja provocado uma situação de perigo(resultado de
perigo), a exemplo do que ocorre no delito de incêndio, tipificado no artigo
250 do CPB. Nestes delitos, o legislador via de regra, utiliza no tipo penal
a expressão "perigo". A
consumação de um crime de perigo concreto requer a comprovação por parte do
julgador, da proximidade do perigo ao bem jurídico e a capacidade lesiva do
risco, ou segundo TORÍO LÓPEZ, "a produção de um perigo efetivo ao
bem jurídico protegido pela norma penal". Importante
ainda relembrar os ensinamentos de VON LISZT, no sentido de que "o
Direito Penal termina ali onde desaparece o perigo concreto". De
outra ponta, define ROXIN que delitos de perigo abstrato são aqueles
em que se castiga uma conduta tipicamente perigosa como tal, sem que no caso
concreto se tenha que haver produzido um resultado de colocação em perigo.6 Nesta
categoria de crimes o perigo não é elemento constitutivo do tipo, senão um
mero motivo do legislador, que realiza a valoração de uma presumida situação
de perigo, que estima que possa derivar-se da prática de uma conduta para um
determinado bem jurídico, porém sem produzir-se em realidade tal situação de
perigo. Assim,
o legislador se conforma com a adequação da ação para lesionar um bem
jurídico incerto, portanto não se exige seu contato com a ação do autor e nem
sequer sua presença concreta no raio de ação deste. Nesta
linha de raciocínio, o perigo abstrato se configura como uma qualidade da
ação determinável ex ante. O
perigo abstrato é presumido juris et de jure, vez que não precisa ser
provado, contentando-se a lei com a simples prática da ação que pressupõe
perigosa, a exemplo do que se observa no tipo do art. 135 do CPB (crime de
omissão de socorro). O
perigo abstrato segundo ANTOLISEI é perigo presumido. Nesta
espécie de delito, a interpretação do tipo permite qualifica-lo como delito
de perigo. No
âmbito desta análise, importante observação a ser feita é no sentido de que
uma objeção aos crimes de perigo abstrato é que ao se presumir, prévia e
abstratamente o perigo, resulta que em última análise, perigo não existe, de
modo que se acaba por criminalizar a simples atividade, afrontando-se o
princípio da lesividade, bem assim o caráter de extrema ratio (subsidiário)
do direito penal.7 Portanto,
é cediço que parte da doutrina penal aponta no sentido de que os delitos de
perigo abstrato implantam problemas quanto à sua constitucionalidade. A
doutrina majoritária posiciona-se no sentido de que a diferença entre perigo
abstrato e concreto é de criação legal e requer para sua determinação
investigar a vontade legislativa expressada na norma do correspondente tipo
penal. Outra
diferença corresponde ao fato de que nos delitos de perigo abstrato basta uma
vítima potencial, já nos delitos de perigo concreto torna-se necessária a
existência efetiva de uma vítima no raio de ação perigosa do autor e que esta
corra um perigo real de lesão. Por
fim, ressalte-se que a doutrina sustentada por TORÍO LÓPEZ ainda apresenta
uma terceira modalidade de delito de perigo, denominado "hipotético"
ou "intrínseco". Comentando
sobre tal especie de delito de perigo, preleciona o Catedrático POLAINO
NAVARRETE que "los denominados delitos de peligro hipotético
constituyen una categoría dogmática cuya expresión terminológica y
configuración dogmática en nuestra doctrina se debe a formulación de Tório
López, quien entiende que determinados delitos no exigen la producción de la
lesión ni del peligro del bien jurídico, pero sí la ejecución de una acción
por sus características acredita una situación de objetiva peligrosidad hacia
el objeto de protección de la norma, de suerte que aunque no se traduzca en
la producción de un peligro concreto es en sí misma portadora de todas las
características inherentes a la propia situación de peligro".8 IV-Classificação moderna dos delitos de perigo Após
uma breve análise acerca da classificação tradicional encontrada na maioria
dos Tratados de Direito Penal, interessante uma menção a atual visão dos
delitos de perigo na doutrina penal. O
penalista espanhol NICOLÁS GARCÍA RIVAS apresenta uma moderna classificação
para os delitos de perigo. Para
citado autor, os delitos de perigo se dividem em delitos de mera ação
perigosa e em delitos de resultado de perigo.9 Os
delitos de mera ação perigosa, também chamados de delitos de
perigosidade (periculosidade), apresentam a característica de que o perigo
não se predica da ação, senão da classe de ações a que pertence a realizada
pelo autor, como por exemplo, conduzir um veículo sob efeitos de bebida
alcoólica. Segundo
MEYER, referidos delitos carecem do desvalor do resultado. Assim,
denota-se em tal modalidade delituosa, a assunção do risco e a inexistência
do desvalor do resultado. Não
há necessidade de nenhuma prognose sobre as conseqüências da ação. Se houver
exclusão do risco, a conduta é simplesmente atípica(VOLZ). Já
para identificar os delitos de resultado de perigo (Groben
Strafrechtkommission), cite-se a título de exemplo, o caso de um
terrorista que oculta uma bomba relógio de alta precisão em uma agência dos
correios quando se encontrava aberta ao público, preparando o detonador para
que a explosão ocorra quando a agência já se encontrar fechada e vazia. Entretanto,
durante a noite penetra no local um ladrão, sendo que este permanece até por
volta das 23.00 horas no interior da agência dos correios, momento em que a
bomba vem a explodir, matando-o. Existe
divergência doutrinária acerca da solução do citado caso concreto. Na
visão de WELZEL, o juízo deve ser feito ex ante, no momento da ação. Nesta
hipótese, o juiz deverá formular uma prognose acerca de se perquirir se no
momento em que o autor coloca a bomba, existe uma concreta colocação das
pessoas em perigo. Se o perito considera que as vinte e três horas não
haveria nenhum empregado na agência de correios, faltaria o perigo concreto. De
forma diferente, BOCKELMANN parte da análise de uma perspectiva ex post. Para
citado autor, a melhor solução seria fundamentar a base do julgamento ao
momento em que o dispositivo da bomba se ativava e teria ocorrido a explosão,
devendo considerar-se, portanto, a fortuita presença do ladrão no local, e
perquirir se naquele momento(da explosão), o raio de ação da bomba poderia
afetar a alguma pessoa. A
tese de BOCKELMANN além de se basear no juízo ex post, atenta-se na
questão do perigo como situação causada por uma ação. Ouso
me filiar ao entendimento de HANS WELZEL, vez que a prognose a ser feita no
caso em tela, obrigatoriamente deve ser ex ante, analisando-se as
circunstâncias cognoscíveis, ou seja, aquelas que podem ser conhecidas pelo
agente. Justifica-se esta posição, vez que ao se filiar ao entendimento de
BOCKELMANN, deveriam ser analisadas todas as circunstâncias (cognoscíveis e
não cognoscíveis) com relação ao perigo (perspectiva ex post), o que data
venia não coaduna com a estrutura do tipo penal do delito de perigo
concreto. V-Conclusão Após
este sucinto escrito jurídico-penal versando sobre os delitos de perigo,
chega-se a ilação de que referida espécie de infração penal possui
significativa importância no âmago das modernas legislações penais,
especialmente em face da crescente inserção na dogmática jurídico-penal da
teoria da imputação objetiva, a qual se fundamenta na idéia do risco
atribuído a ação perpetrada pelo agente. A
conceituação adotada pela doutrina clássica, distinguindo-se o perigo
abstrato do perigo concreto possui suma relevância para uma compreensão da
estrutura destes tipos penais, vez que parte da análise de duas situações
distintas, qual seja, a produção ou exposição do bem jurídico ao perigo. Definitivamente,
adoto a posição de que os tipos penais de perigo abstrato até podem ser
criados, porém, desde que a norma penal os descrevam de modo a não se aceitar
qualquer prova contrária em relação à presunção do perigo, configurando-se
como crimes de mera conduta. Já
a moderna classificação dos delitos de perigo baseada na análise do desvalor
da ação (juízo ex ante) ou do desvalor do resultado(juízo ex post),
leva-nos a compreensão de que os fundamentos da teoria dualista do injusto
representam a exata e correta concepção do injusto penal. Neste
sentido, imprescindível a conjugação dos requisitos do desvalor da ação e do
desvalor do resultado para a configuração do injusto penal. Notas 1
Navarrete, Miguel Polaino. Derecho Penal – Parte General, Vol. I, Tomo II.
Bosch: 2.000, p. 616. 2
Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São
Paulo. RT: 2.000, p. 221. 3
Berdugo, Gómez de la Torre e outros. Lecciones de Derecho Penal – Parte
General. La Ley: 1.999, p. 148. 4
Ibidem, p. 222. 5
Roxin, Claus. Derecho Penal – Parte General. Fundamentos. La Estructura de la
Teoría del Delito. Madrid. Civitas: 1.997, p. 404. 6
Ibidem, p. 407. 7
Queiroz, Paulo de Souza. Direito Penal – Introdução crítica. Saraiva: 2.001,
p. 121. 8
Ob. Cit, p. 619. 9
Notas extraídas de aula proferida na Capilla do predio do Rectorado de la
Universidad de Salamanca/España, em 14/01/02, por ocasião do X Curso de
Postgrado en Derecho Penal. |