A EUTANÁSIA NO BRASIL
Por: Luíz Flávio Borges D'Urso
Eutanásia sempre gerou muita polêmica no Brasil, pois inflama
paixões de ambos os lados, porquanto aqueles que a defendem, esgrimam com
argumentos que são relevantes, todavia jamais decisivos, de forma a trazer
segurança, inclusive jurídica para sua prática.
A palavra eutanásia traz sua construção semântica dividida em "Eu",
que significa boa e "thanatos", que significa morte, de forma
que a origem da palavra revelava o que se pensava ser boa morte, piedosa,
altruísta, caridosa, etc.
Hoje, no Brasil a eutanásia é crime, podendo caracterizar o ilícito penal de
várias formas. Vejamos uma delas; caso um terceiro, médico ou familiar do
doente terminal lhe dê a morte, estaremos diante do homicídio, que,
eventualmente teria tratamento penal privilegiado, atenuando-se a pena, pelo
relevante valor moral que motivou o agente, assim o juiz poderia reduzir a pena
de um sexto a um terço.
Esse homicídio, mesmo privilegiado, não leva em conta, se houve ou não
consentimento da vítima para descaracterizar o crime, aliás, mesmo em havendo
tal consentimento, se haveria de desconfiar sobre sua lucidez e independência
para decidir sobre a própria vida. Neste particular fica fácil entender por que
alguém doente, terminal ou não, mas que sofre dores atrozes, pede a morte,
mesmo sem pretender morrer, objetivando somente aliviar aquele sofrimento. O
parâmetro é quando uma leve enfermidade nos arrebata e embora não seja
incurável, terminal ou extremamente dolorosa, basta alguma dor, para o
desespero alucinar o raciocínio.
Outra forma de crime eutanásico é quando o terceiro auxilia o próprio doente
para que este se lhe dê a própria morte. Trata-se da modalidade criminosa do
auxílio ao suicídio, pois pune-se alguém que estimulando, induzindo ou
auxiliando, colabora para que o doente se mate. Neste exemplo, as formas de
colaboração são as mais diversas, desde o fornecimento de uma arma, até a
colocação de equipamentos vitais ao alcance do doente, que ao desligá-lo vem a
falecer. A instigação e o induzimento, embora de prova difícil, poderá ser
determinante para que a eutanásia se consume.
Assim, a única forma que a legislação atual brasileira não pune é
quando o doente, absolutamente sozinho, se mata, por iniciativa e vontade
própria. Neste caso, nem mesmo a tentativa pode ser punida, uma vez que se o
agente quer se dar a pena máxima, de nada adiantaria lhe atribuir uma punição
para que não reitere nessa conduta. Seria absurdo se pensar contrariamente.
No mundo todo existem gigantescas resistências à aprovação de lei que autorize
a eutanásia, isto porque os interesses mundanos que poderiam estar revestidos
de piedade, teriam um verdadeiro salvo conduto para que o agente cometesse o
crime e fosse perdoado, talvez até parabenizado por sua piedade extrema.
Tenho profunda desconfiança dessas motivações, pois embora algumas delas sejam
norteadas pelo sentimento de amor, muitas outras, sob essa capa estariam a
esconder disputas de heranças (uma vez que enquanto não se der a morte, não se
abre sucessão), ou ainda interesses conjugais subterrâneos, a encalhar o
cônjuge sadio, que se vê obrigado a assistir o cônjuge enfermo, sem falar num
eventual amante que aguarda-o do outro lado da porta do cômodo onde se encontra
o moribundo.
Portanto, sou radicalmente contra a legalização da eutanásia no Brasil e a
Holanda, que acaba de legalizar a eutanásia, mais uma vez nos dá exemplo do que
não se deve legalizar – na Holanda as drogas são legalizadas, admite-se
casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.
Dessa forma entendo que erra o legislador que pretende tal legalização.
A comissão de reforma do Código Penal brasileiro enfrenta essa questão e traz
uma alternativa que merece estudos, vejamos o que diz o projeto:
Eutanásia
§ 3.º. Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente, descendente,
irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por
compaixão, a pedido desta, imputável e maior de dezoito anos, para abreviar-lhe
sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal,
devidamente diagnosticados:
Pena – reclusão, de dois a cinco anos.
Exclusão de ilicitude
§ 4.º. Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio
artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e
inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade,
de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.
Estes dispositivos revelam que a tendência da comissão é manter
criminalizada a eutanásia, excetuando quando o agente deixar de manter a vida
de alguém por meio artificial, ou seja, ligado a aparelhos, desde que
previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e
desde que haja consentimento do paciente ou de parentes.
Questiono o critério de morte iminente e inevitável, questiono o critério da
irreversibilidade do estado do paciente, bem como da doença incurável, pois o
que é incurável hoje poderá ter cura amanhã, o que é irreversível hoje, poderá
reverter amanhã e o momento da morte, por mais iminente e inevitável, pode ser
adiado indefinidamente, inclusive com melhora do estado de saúde, por fatores
que os médicos e a humanidade não têm condições de determinar.
Outra questão que precisa ser focada é a de que a vida tem necessariamente de
ser útil, produtiva, eficaz, plena, viável, enfim, uma série de adjetivos
criados por uma sociedade global que não tem tempo, nem paciência de cuidar e
tratar de seus doentes inúteis ao mercado predatório do consumo. Ora a vida é
Dom de Deus e assim sendo, ela se basta, não precisando ter qualquer
adjetivação. O que satisfaz a natureza humana é estar vivo, na condição de
saúde que for, porquanto no plano religioso, jamais teremos condições de
entender os desígnios do Criador, restando-nos, portanto, apenas viver,
brindados que fomos com a dádiva maior que, insisto, é a própria vida.
O tráfico de órgãos humanos seria a última abordagem que me leva a reiterar o
risco da legalização da eutanásia, pois qualquer pessoa enferma deve ser vista
como alvo de tratamento, jamais como prateleira de órgãos humanos prontos a
servir quem melhor oferta fizer, mesmo que tal custe a vida daquele miserável. O
mundo vem conhecendo essas máfias e a legalização da eutanásia seria um belo
serviço prestado a essa modalidade de crime.
Digo não à legalização da eutanásia por tudo isso e mais, pela coerência de
quem defende incondicionalmente a vida.
* Prof. Luíz Flávio Borges D’Urso é Advogado Criminalista, Presidente da
Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRAC, Presidente da
Academia Brasileira de Direito Criminal – ABDCRIM, Conselheiro e Diretor
Cultural da OAB/SP, Mestre e Doutorando em Direito Penal pela USP, Membro da
Associação Internacional de Direito Penal, Presidiu o Conselho Estadual de
Política Criminal e Penitenciária de São Paulo e é Membro do Conselho
Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.
Retirado de: http://www.mundolegal.com.br/Default.cfm?FuseAction=Artigo_Detalhar&did=6225&Assunto=penal