Por ato de um único
ministro do STF, a prática do aborto eugênico (no caso de criança anencéfala)
foi declarada "legal", com proibição expressa de outros juízes ou tribunais
decidirem em contrário. O meio para levar o assunto ao STF foi uma ação
denominada Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O autor
da ação foi a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). A causa
foi patrocinada pelo advogado Luís Roberto Barroso.
A ação (ADPF 54) foi protocolada
junto ao STF no dia 17 de junho de 2004 e distribuída para o ministro Marco
Aurélio. Argumentava a parte autora (CNTS) que, ao se proibir o aborto de
crianças anencéfalas, estava-se descumprindo um preceito fundamental da
Constituição (!).
É difícil imaginar que preceito
fundamental é descumprido quando se protege a vida de um deficiente. Segundo a
entidade impetrante, ao se obrigar a gestante a não matar seu filho gravemente
deficiente, estaria sendo violado o princípio da dignidade humana (!), da
legalidade (!), da liberdade e autonomia da vontade(!), bem como os princípios
relacionados com a saúde (!).Todas as decisões judiciais têm que ser
fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX, Constituição Federal). Qual
foi a fundamentação da decisão do ministro?
Segundo suas próprias palavras,
quando é detectada a anencefalia em um bebê, "a gestante convive
diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro
de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo (sic). Se assim é - e ninguém
ousa contestar (sic) -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria
ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a
autonomia de vontade".
Note-se que, para o ministro Marco
Aurélio, a criança anencéfala não é viva e nunca poderá tornar-se viva. Embora
ela tenha um coração pulsando, embora reaja a estímulos nervosos, embora
movimente-se dentro do útero, embora se alimente e respire pela placenta, ela
não tem vida! E mais: a ela nunca poderá tornar-se um ser vivo!
Continuará sem vida, ainda que
nasça, que respire com os próprios pulmões e que continue com o coração batendo
por alguns minutos ou por alguns dias! E o ministro está tão certo disso que,
segundo ele, "ninguém ousa contestar"! (1ª parte) (2ª parte) Ausente
vida humana intra-uterina, conclui o ministro, que não há que se falar em
aborto. Ao contrário do que afirmou o ministro, há quem ouse contestar suas
afirmações: a CNBB, em nota oficial.
Quem lê a Lei 9882/1999, que dispõe
sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, observa que seu
artigo 5º prevê a concessão de liminar "por decisão da maioria absoluta de
seus membros". Como então o ministro concedeu a liminar sozinho? É que o
parágrafo 1º do mesmo artigo diz que "em caso de extrema necessidade ou
perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator
conceder a liminar ad referendum do Tribunal Pleno".
Entendeu, portanto, o ministro
relator que havia uma necessidade extrema (!) ou um perigo de lesão grave (!)
que justificava impor a todo o país a obrigação de não proteger os mais
deficientes de todos os deficientes: os nascituros anencéfalos.Tal decisão é
provisória. O
Ministério Público Federal (representado pelo Procurador Geral da República --
Cláudio Fonteles) nem sequer ainda foi consultado. Os outros dez ministros
poderão confirmar ou cassar a liminar.
No entanto -- e isto é o mais grave
-- a liminar já está em vigor e tem efeito vinculante: nenhum juiz ou tribunal
poderá emitir uma decisão contra ela, até que o Tribunal Pleno se manifeste.
Se, por absurdo, o STF confirmar a liminar do ministro Marco Aurélio, tal
decisão, além de ser vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Público
(art. 10, § 3º, da Lei 9882/1999) será irrecorrível, não podendo ser objeto de
ação rescisória (art. 12 da mesma lei).
Estará assim "legalizado"
o aborto eugênico no país. E o autor dessa "legalização" não terá
sido o Poder Legislativo, mas o Judiciário, que não tem a faculdade de
legislar, mas tão-somente de aplicar a lei ao caso concreto.