Aborto ou terapêutica? |
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O tempo passa e as questões centrais que atormentaram a humanidade no
decorrer de sua história sempre voltam à cena, provocando debates fervorosos
entre os vários segmentos da sociedade, em especial a comunidade religiosa e
a jurídica. Estamos nos referindo a polêmica surgida por ocasião da ação de
argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) proposta pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) perante o Supremo
Tribunal Federal (STF), em que se postula não se considerar aborto a
antecipação terapêutica do parto de feto que apresente anomalia irreversível
que, segundo a ciência médica, certamente o levará a morte logo após o parto,
a exemplo dos casos de anencefalia (ausência de cérebro), permitindo que as
gestantes interrompam a gestação quando comprovada a anomalia por médico e
exames especializados sem a necessidade de autorização judicial ou qualquer
outra espécie de consentimento do Estado. A
questão é tormentosa, uma vez que expõe conflitos tanto de ordem moral como
principalmente jurídica. Segmentos da sociedade, a exemplo de algumas
comunidades religiosas, contrapõem-se radicalmente à interrupção, sustentando
que a vida humana deve ser preservada a todo custo e sob todas as condições,
num discurso mais que meramente jurídico, religioso e até filosófico.
Argumentam, sob o aspecto jurídico, que a vida surge desde a concepção e que
a Constituição brasileira assegura o direito à vida como direito individual
indisponível e irrenunciável (art. 5º), sendo inaceitável que se retire a
própria vida, menos ainda a vida de outrem. Não
por outra razão, a sociedade brasileira proíbe constitucionalmente a pena de
morte e estabelece, através de um Código Penal, normas de punição àquele que
mata alguém (art. 121), que comete ou provoca aborto com ou sem consentimento
da gestante (arts. 125 e 126), ou ainda, que induz, instiga ou auxilia alguém
a suicidar-se (art. 122) etc. Tais normas penais visam, em última instância,
preservar a vida, confirmando seu caráter de bem de invariável valor na
evolução histórica da humanidade. Por
sua vez, os que pregam a legitimidade da antecipação terapêutica em casos de
anomalias congênitas irreversíveis, devidamente comprovadas por análise
médica, como no caso de feto anencéfalico, também se esgrimam em argumentos
de toda ordem, inclusive jurídicos, afirmando em especial que para se
reconhecer a ocorrência de aborto é necessário que exista potencialidade de
vida extra-uterina para o feto, o que não ocorre em tais casos; e que a
Constituição garante, ao lado do direito à vida, o direito à dignidade da
pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º), sendo
admissível, assim, que se prive a mãe do prolongamento da dor e do sofrimento
decorrente da certeza psicológica de que está gestando ser que natural e
inevitavelmente morrerá após o parto. Diante
deste quadro, a questão jurídica da tensão entre dois direitos humanos
fundamentais deve ser solucionada. De um lado, o direito à vida a todos
assegurados após a concepção, tal como tradicional e cientificamente aceitos;
e, de outro, o direito à dignidade, expressamente consagrado na Constituição
e que busca por a vida humana à salvo de todo tipo de dor e injustiça. Não
basta viver, é necessário viver com dignidade. Direitos que naturalmente se
completam, agora se conflitam, reclamando conciliação por parte do intérprete
e operador do Direito para preservar seus núcleos mínimos de existência. Não
há dúvida que a solução para a questão passa evidentemente pela técnica da
ponderação do valor de tais bens a partir da observância dos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade que devem pautar a atividade de
interpretação do direito, conhecida na doutrina americana por "balancing
test". Mas o cerne da questão é justamente saber qual é o ponto de
equilíbrio entre estes dois direitos em aparente tensão. Deve prevalecer o
direito do feto acéfalo de viver, ainda que somente de forma intra-uterina ou
por alguns instantes após o parto, mas sem perspectiva de desfrutar
efetivamente da vida extra-uterina, porquanto desprovida de massa encefálica
e, pois, de consciência, inconsciência e de todos os sentidos que, ao que
tudo indica, dão razão à vida? Ou, de outra parte, deve prevalecer o direito
à dignidade da mãe, que sabe por comprovação médico-científica que o ser que
gera não poderá viver fora de seu ventre, de modo que deve ser colocada à
salvo da dor e sofrimento que o prolongamento do processo de gestação lhe
causará? Neste embate entre VIDA X DIGNIDADE, direitos igualmente
fundamentais do homem, qual deve preponderar sobre o outro? Em
princípio, a tendência é de se afirmar que a vida deve sempre prevalecer,
porquanto sem vida não há falar-se em sociedade, ou mesmo em Direito de
espécie alguma. A vida seria, pois, o maior dos bens humanos. Todavia, não
parece razoável impor à uma mãe que tenha sua dor e seu sofrimento
prolongados por meses até o dia do parto, como se de antemão tivesse sido
condenada pela natureza simplesmente por ter um dia buscado contribuir para
com ela. Soa irracional à compreensão humana e, pois, à razão do homem médio
conceber-se entendimento contrário, que proíba a antecipação terapêutica do
parto para privar de mais sofrimentos a genitora que vê, a cada dia que
passa, seu ventre crescer e gestar um ser que sequer chegará, de fato,
experimentar a vida como ela é, e morrerá, deixando ainda mais angústia, dor
e lágrimas no coração de uma mãe já certamente inconsolável. Torna-se
ainda mais irracional tal proibição no caso, em se considerando que a
legislação brasileira sempre admitiu o aborto quando a gravidez resulta de
estupro (art. 128, II Código Penal). Ora, se no conflito entre a liberdade
(liberdade sexual da mulher) e a vida (do feto), aquele bem sempre prevaleceu
– com o que, diga-se, estamos perfeitamente de acordo porquanto nada
justifica a violência sexual e o trauma psicológico que dela resulta para a
mulher - porque razão no conflito entre a sua dignidade (de pessoa humana) e
a vida (do feto anencefálico desprovido de potencialidade de vida
extra-uterina), esta deva preponderar. Admitir-se uma tal situação seria
contemplar a desigualdade, estabelecendo-se dois pesos e duas medidas, e
malferir os mais singelos princípios da razão e do Direito. É
certo que não se pode admitir que tal entendimento sirva de precedente para a
ampliação e proliferação descontrolada da prática em relação a outros casos
supostamente análogos - ou seja, relativos a outras doenças cujo grau de
certeza da morte pós-parto seja tão evidente para a ciência médica - e talvez
seja esta a preocupação dos que defendem a proibição, mas não é menos certo
que submeter a mãe ao sofrimento de gestar por nove meses um ser que sabe
antemão virá a morrer logo após o parto, proibindo-a de interromper este
processo, é negar-lhe uma gestação digna. Neste
conflito entre o direito a vida de um ser que inevitavelmente morrerá em
pouquíssimo tempo - muitas vezes até no próprio ventre materno - sem, pois,
qualquer potencialidade de vida extra-ulterina, e o direito a dignidade de
uma pessoa humana, psíquica, física e espiritualmente formada, cuja dor da
lembrança dos acontecimentos ela carregará consigo por toda sua existência,
parece razoável que a falta de perspectiva de vida do feto imponha que se
mitigue a reinvindicação deste direito, de sorte que ceda espaço à
preservação daquele relativo à dignidade, como forma de se minimizar o
sofrimento que o prolongamento do contato materno com o feto certamente lhe
proporcionará. Convém
destacar que não se trata de o Estado obrigar as gestantes de fetos
anencéfalos de interromperem sua gestação, negando-lhes o direito de levar a
gravidez até seu termo final, mas simplesmente assegurar-lhes a liberdade de
decidirem se desejam sofrer mais, ou menos, optando pela antecipação do
parto. A
solução desta questão, sem dúvida alguma, protegeria e privaria as gestantes
de sofrimentos desmedidos, além de preservá-las e também os profissionais de
saúde que participassem dos procedimentos de antecipação terapêutica do parto
de serem acusados da prática do crime de aborto, daí, aliás, a razão de a ação
ter sido proposta pela respectiva entidade de classe. No entanto, o desenlace
deste nó e a última palavra compete agora ao Supremo Tribunal Federal. Aos
senhores Ministros da Suprema Corte brasileira cabe então o encargo quase
celestial de decidir sobre a vida ou a morte, a dignidade ou indignidade,
enfim, sobre os valores humanos que, no caso e só no caso, devem preponderar
no seio de uma sociedade. Talvez esta seja uma das tarefas mais cruciais que
o ofício lhes impõe, porquanto revela a importância e expõe o alto grau de
responsabilidade de suas decisões para a vida dos homens. Todavia, delas não
podem se furtar, restando à sociedade civil somente esperar que a questão
seja bem refletida e sabiamente decidida à luz da inspiração divina. |