Autor: Inez Lemos. Graduada em história pela UFMG. Mestre em
educação-UFMG, e psicanalista com formação no GREP (grupo de estudos
psicanaliticos).
Como explicar a
violência atual entre os jovens de classe média, quando a questão econômica
deixa de ser fator preponderante? Proponho refletirmos a violência a partir da
sociedade midiática, cuja centralidade está na TV, e que elegeu a imagem como
metáfora de vida moderna, onde o foco é o corpo mercadoria e não o corpo
sentimento. Tentarei analisar como esse contexto histórico reflete nas relações
familiares, aprofundando entre os jovens o desamparo. A questão deve ser
pensada a partir de uma colonização do inconsciente pela mídia televisiva, que
vende um ideal de vida espetacular. Pais e mães inseridos numa hegemonia de
consumo, trabalhando cada vez mais. A educação hoje é para o gozo e não para o
real. A produção de subjetividade se realiza dentro de um modelo de sociedade
de mercado.
Violência lembra frustração, infelicidade, pulsão de morte.
Sabemos que o sujeito é estruturado nos amores edípicos, nas relações
familiares. O ideal romântico de paternidade remonta ao encontro amoroso entre
duas pessoas. O foco atual é uma sociedade narcisista, cujo ideal de vida está
marcado pela exterioridade, pela disputa em quem consegue vencer o anonimato e
angariar alguns minutos de fama. Dentro desse contexto, dedicar algumas horas
do dia aos filhos é um despropósito. É sinal dos tempos depararmos com notícias
onde o filho cobrou na justiça o amor do pai. A gratuidade do amor, deixar de
ser um valor, é prova cabal da reificação do mundo. Amar o dinheiro tornou-se
mais importante que amar pessoas. Devemos ler a violência como “o encontro do
sujeito da falta com a ausência dos pais”. É como se ali onde todos nós
faltamos, ele, o jovem que não foi estruturado numa relação afetiva com os
pais, hoje ele se depara numa dupla falta. O saber conviver com a falta é o que
possibilita ao sujeito construir destinos eróticos e sublimatórios para a sua
pulsão. É preciso coragem moral para enfrentar a angústia do desamparo.
O mundo infantil tornou-se um grande mercado. Todos querem
vender para crianças, desde festas infantis com buffets sofisticados a
modelitos coquetes, quando a menina começa a se produzir desde cedo. O estilo
“peruinha” está em alta, com direito a sapato de salto e salão de beleza
infantil. Já as adolescentes sonham com a primeira lipoaspiração, sendo que
intervenção no corpo era prática para senhoras idosas. Por outro lado, vivemos
um processo de crescente infantilização do mundo adulto, quando as referências
de idade, maturidade, responsabilidade e ética estão diluindo. Adolescentes
tornando-se mães, jovens criminosos, e pais se comportando como adolescentes,
quando disputam com os filhos quem exibe um visual mais arrojado.
Cenas de mães carregando os filhos no colo está em
extinção. Os idosos e os loucos ainda conservam um afeto pelo mundo infantil,
demonstrando portadores de uma maternidade que os indivíduos modernos já
suprimiram. A pedagogia do consumo, ao vender uma ilusão de completude, longe
da experiência de ascese, contribui para a violência. E aponta para o enfoque
econômico e político presente no deslocamento das posturas e das escolhas dos
pais, submetidos aos valores de uma sociedade competitiva e excludente. Entre
os golpes desferidos contra o ideal de racionalidade ocidental no início do
sécXX, lembramos que a teoria marxista desnudou o fenômeno da ideologia, ao
revelar que os sistemas filosóficos e científicos podem esconder a realidade
social a serviço da dominação e da exploração do homem por seu semelhante.
Significa que devemos desconfiar das aberrações que a sociedade atual está nos
submetendo. Devemos saber escolher com mais sabedoria o que é relevante e o que
não é relevante para o ser humano viver bem. Montaigne, partindo de um universo
filosófico diferente, e preocupado com a postura do homem diante do modelo
cartesiano de razão, alertava para o absurdo em confiarmos cegamente na ratio
moderna. Nos “Ensaios”, ele tratou “da loucura de opinar acerca do verdadeiro e
do falso unicamente de acordo com a razão”. Montaigne vem introduzir o Eu como
lugar do sujeito em si no mundo, do sujeito que se interroga. É o Eu no mundo,
fundamento do conhecimento e da ação humana em sua postura de finitude. Já
Descartes vem colocar o homem como representante da verdade, porém sob o
domínio da certeza. O cogito cartesiano absolutizou a verdade. O Eu
montaigniano é poético, dramático, contraditório.
Após o triunfo do racionalismo, que impôs a medida do ser e
da ciência, é necessário recuperar o sujeito que perdeu o seu lugar no mundo, o
sujeito que desacostumou de se interrogar, de falar de si, de ser a sua própria
metafísica. O sujeito que interessa aqui é o sujeito desejante, aquele que
consegue colocar um ponto de basta no gozo do Outro (no discurso do capitalista
que quer mais-vender). Insisto na questão de como a sociedade de mercado está
se apropriando das crianças como objeto de gozo. Existe uma organização interessada
em apropriar desse corpo como valor de troca, quando crianças-mercadoria são
submetidas à extração de um gozo, seja dos pais, como dos capitalistas. O que
importa é chamar a atenção para uma apropriação indevida e criminosa que os
adultos estão impondo às crianças, ao explorar a disposição polimorfa infantil
para ganhar dinheiro ou satisfazer vaidades. Uma mãe, ao criar a filha dentro
de significantes como “imagem, corpo, beleza”, ela projeta nesta um ideal de
vida dela e não da criança, e acaba por submete-la a objeto de seu gozo. A luta
dos pais deve ser pelo resgate do sujeito, aquele que ainda se agarra à vida
como experiência do particular, experiência de espiritualização, cuja
identidade é tecida na memória. A resistência ao desamparo implica vida
interior.
Foucault construiu uma genealogia do poder, onde apontou
dispositivos de poder que exercem um controle social, como a mídia hoje, que
investe numa produção de valores que diz mais aos interesses do capital a
felicidade dos homens. O poder soberano foi substituído por uma tecnologia do
poder que disciplina, cria hábitos e educa para o consumo. O poder iniciou sua
trajetória de controle sobre o corpo humano nas prisões, hospitais, fábricas e
escolas, e chega na atualidade diluído em redes de dispositivos tecnológicos
que, de forma sutil, captura o sujeito reduzindo-o a demanda por objetos. O
sujeito atual é investigado por pequenos mecanismos que controlam o pensamento
da época. O poder como tecnologia, a técnica pela qual uma sociedade regula seus
membros. O jovem atual cresce no meio dessa pletora de valores e necessidades.
A modernidade instaura o dualismo cartesiano, e o corpo
surge separado do espírito e logos de práxis. Freud, através do conceito de
pulsão, tenta superar essa dicotomia com a teoria dos afetos, onde temos um
sujeito de corpo e pensamento, marcado pelos destinos das pulsões. O discurso
psicanalítico, com seu corpo erógeno, está sendo esquecido e substituído pelo
discurso da psicofarmacologia, da ciência e do capitalista. Se ao consumir
objetos de desejo o sujeito não cumpre a realização de um desejo, temos no
mercado indivíduos cada vez mais insatisfeitos e assujeitados. As condições
propícias que eternizam a dependência do sujeito consumidor ao consumo, graças
a um jogo de alienação do sujeito ao seu desejo, são as mesmas que produz o
delinqüente, o violento. Se as sanções para os que desafiam as práticas
consumistas são muitas, pois historicamente sempre existiu um lugar na forca
para quem pensa diferente, as benesses para os obedientes não são promissoras.
O que está implicado nas práticas de consumo, é antes de tudo a disposição de
intervirem no direito absoluto do sujeito ao não assujeitamento à loucura do
mercado. Nossa sociedade, ao querer transformar os indivíduos em objeto de gozo
do capital, nos permite chamar de insanos todos os pais que não conseguem
vislumbrar outras saídas para seus filhos, longe dessa produção louca de
verdade. Será que não se pode mais efetuar formas inteligentes de saber e de
verdade que estejam fora das relações de mercado?
Quando a organização do laço social se realiza mais na
perversão e menos na neurose, o sujeito perde sua legitimidade e sua
singularidade, e se coloca como objeto de gozo para a sociedade. O jovem
pós-moderno circula desacreditado de suas idéias e utopias. É o anti-sujeito.
Ser sujeito é saber lidar com a tragédia do desamparo, é ter de reinventar
sempre sua trajetória singular, esboçando-a no circuito fascinante do desejo e
do erotismo. A cultura narcisista explora de forma contundente a insatisfação
do sujeito faltante, oferecendo promessas de gozo impossível. O que propor ao
fundo de falta que atormenta a humanidade? Precisamos de muita sabedoria para
enfrentar os desafios que a sociedade atual nos coloca, e que está justamente
em saber desviar das promessas de consumo vazio para um consumo pleno,
oferecendo produtos de consistência simbólica aos filhos. Educar é não submeter
os filhos à lógica da completude.
É educar no falta-a-ser. Sabemos que a civilização nasce de
Eros, no que Eros é falta e, como tal, segue seu caráter errante. O princípio
do prazer, do desejo é a falta, é não se completar. A sexualidade sempre será
insatisfatória, daí o ditame lacaniano: “a relação sexual não existe”. A
relação sexual de completude é da ordem do impossível. A violência pode ser
lida como revolta à promessa de satisfação que nunca se cumpre. A crueldade do
mundo reside na perversão dos que exploram a insatisfação como garantia de
mercado. O pacto do afeto cedeu à pedagogia do gozo.
Inez Lemos. Graduada em história pela UFMG. Mestre em
educação-UFMG, e psicanalista com formação no GREP (grupo de estudos
psicanaliticos). Atualmente trabalha com consultorias, é profª universitária e
psicanalista.
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